Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
Dissidências existenciais de gênero: resistências e enfrentamentos ao biopoder
Existential gender dissent: resistance to biopower and confrontations
Disidencias existenciales de género: resistencias y enfrentamientos al biopoder
William Siqueira Peres*; Lívia Gonsalves Toledo**
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil
RESUMO
Este artigo aborda questionamentos sobre a normatização dos sexos, gêneros, desejos e práticas sexuais a partir do surgimento de novas identidades sexuais que podem ser classificadas como queer – travestis, transexuais e transgêneros. Problematiza, ainda, como os modos de subjetivação normatizados e as instituições hegemônicas marginalizam tais formas de existências, na imensa dificuldade do encontro com o estranho, o diferente e o inusitado. Buscamos com essas análises, que possam ser criados dispositivos para diminuir as intensidades de discriminação, estigmatização, violência e exclusões vividas e que são tão frequentes nos relatos dos(as) dissidentes das normativas heterossexuais de gênero sobre suas experiências nas relações sociais.
Palavras-chave: Travesti, Transexual, Transgênero, Identidade de gênero, Queer.
ABSTRACT
This article approaches the questions about the sexes, genders, desires and sexual standardization practices, starting from the appearance of new sexual identities that can be classified as queer – travesty, transsexual and transgender people. Still, we problematize how the manners of established forms of subjectivity and the hegemonic institutions marginalize such forms of existences, because of the immense difficulty in the encounter with the stranger, the different and the unusual. With those analyses, we are trying to provide the creation of devices to reduce the intensities of the discrimination, of the stigmatization, of the violence, so frequently lived by the people dissident from the heterosexual gender normative, what was reported about their own lived experiences.
Keywords: Travesty, Transsexual, Transgender, Gender identity, Queer.
RESUMEN
En ese articulo abordase cuestiones a respecto de la normalización de los sexos, géneros, deseos y prácticas sexuales desde que ha surgido nuevas identidades sexuales y de géneros que pueden ser clasificadas como queer – travestis, transexuales y transgéneros. Cuestiona, todavía, como los modos de subjetivación normalizados y las instituciones hegemónicas marginalizan esas formas de existencias, en la inmensa dificultad de lo encuentro con el extraño, el diferente y lo inusitado. Buscamos con esas análisis, que puedan ser creados dispositivos para disminuir las intensidades de discriminación, estigmatización, violencia y exclusiones vividas y que son tan frecuentes en los relatos de los/las disidentes de las normativas heterosexuales de género a respecto de sus experiencias en las relaciones sociales.
Palabras clave: Travesti, Transexual, Transgénero, Identidad de gênero, Queer.
Introdução
As identidades sexuais e de gênero norteadas por discursos e referências baseados em padrões sociais, políticos e culturais, bem como de conceituação teórica e científica, têm sofrido profundas transformações na contemporaneidade. A emergência e visibilidade de novas formas de existência, além dos tradicionais "homem", "mulher", "heterossexual" e "homossexual", têm produzido uma desestruturação das lógicas binárias e de referências que se orientam pela biomedicina e fundamentação essencialista.
Além dos modos de existência que se configuraram em identidades já apontadas por Regina Facchini (2005), em Sopa de letrinhas? – como LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), outros modos de existências não identitários embaralham os códigos de inteligibilidade e apavoram os viciados em identidades e desejosos de normas. As siglas, que ganharam sentido e foram inseridas na agenda internacional de defesa dos direitos sexuais e humanos, agregam outras letras de acordo com as demandas da organização social e política de cada país, que pede reconhecimento e emancipação para suas diversidades, como é o caso da inclusão da letra "i", para intersexo. Todas essas expressões não normativas, não hegemônicas, com ou sem nome ou identidade pré-definida, podem ser incluídas na expressão "queer".
Dentro do campo das identidades sexuais, de gênero e das diversidades por orientação sexual, o Queer surgiu enquanto movimento político e teórico nos anos 1990 como políticas de ação de grupos de pessoas que divergiam das normativas da heterossexualidade, que iam contra as políticas de identidade e suas demandas de integração à sociedade heterossexual dominante (tanto em relação às identidades LGBT quanto de um único tipo de sujeito do feminismo). O uso do termo queer veio como estratégia performativa fazendo uso do insulto sexual (do inglês: esquisito, estranho, anormal) como um lugar de ação política. Miskolci (2007:2) esclarece que:
Em fevereiro de 1990, Teresa de Lauretis empregou pela primeira vez a denominação Teoria Queer para contrastar o empreendimento analítico que um conjunto de pesquisadores desenvolvia em oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e de gênero. A escolha do termo queer para se autodenominar, ou seja, um xingamento que denotava anormalidade, perversão e desvio, destacava o compromisso em desenvolver uma analítica da normalização focada na sexualidade. Desta forma, os teóricos queer delimitavam um novo objeto de investigação: a dinâmica da sexualidade e do desejo na organização das relações sociais.
Limitaremos-nos a problematizar as letras "TTT", que nos remetem às expressões sexuais, de gêneros e existenciais das chamadas travestis, transexuais e transgêneros, lembrando que todas as expressões dissidentes da normativa de gênero determinadas para um sexo passam por processos semelhantes.
Apesar de podermos dizer que a generificação do feminino ou do masculino materializa-se nos corpos por meio de uma cadeia de lineamentos presentes no dispositivo1 da sexualidade, há uma tendência muito grande em se orientar por um viés reducionista que busca uma verdade identitária marcada basicamente pelo sistema linear sexo/gênero/desejo (Butler, 2003), o qual se apoia na heterossexualidade compulsória2 (Rich, 1986). Isso significa que, segundo o pensamento hegemônico, a generificação do feminino só poderia ocorrer em corpos de fêmeas, que se orientariam eroticamente com seu desejo voltado para corpos de machos e masculinos, e que a generificação do masculino só poderia materializar-se em corpos machos, que se orientariam eroticamente para corpos fêmeas e femininos. Esse sistema sexo/gênero/desejo se mostra como uma potente ferramenta do biopoder (Foucault, 1985, 2006).
O biopoder pode ser entendido como "o crescente ordenamento em todas as esferas sob o pretexto de desenvolver o bem-estar dos indivíduos e das populações. Esta ordem se revela como sendo uma estratégia, sem ninguém a dirigi-la, e todos cada vez mais emaranhados nela, que tem como única finalidade o aumento da ordem e do próprio poder" (Rabinow & Dreyfus, 1995: XXII). Portando, no âmbito da sexualidade, o biopoder é aquele que será responsável pela disciplinarização dos corpos e pela regulação dos prazeres, de modo que todos se voltem para a heterossexualidade e correspondam aos padrões de gênero e de desejo socialmente determinados para seu sexo biológico. Seguir a heteronormatividade é considerado pelas práticas discursivas das ciências, bem como da maioria das religiões e das tradições culturais, como algo natural, normal, correto, santificado, saudável e superior às outras formas de sexualidade.
Em acordo com Foucault (1988), sabemos que o biopoder age em uma complexa rede. Ele não está centralizado em um único local, nem em um único "tipo" de sujeitos. A situação estratégica de ação do biopoder age por meio das instituições como a escola, as prisões, a família, por meio dos discursos cotidianos, das regras e normas sociais, mas também, sobre os sistemas perceptivos, sensitivos e de pensamentos humanos que visam à ordenação das interações entre os indivíduos e em qualquer lugar onde haja correlações de força que, devido à desigualdade, "induzem continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis" (Foucault, 1988:89). Assim, onde houver dissidência da heteronormatividade, haverá a ação do biopoder na tentativa de interdição, regulação, controle, invisibilização, segregação, exclusão, estigmatização, destruição etc.
Com a emergência da visibilidade das expressões que se diferenciam entre si, são necessários cuidados quando de suas conceituações, pois cada uma delas marca especificidades e nenhuma expressão identitária pode ser tomada como absoluta e/ou verdadeira, e nem como referência para comparações binárias e reducionistas. As pontuações realizadas sobre elas devem sempre ser orientadas pelo contexto sócio-histórico e político nos quais estas são produzidas e de onde emergem as reivindicações políticas de inserção e direitos dessa população.
De modo bastante sucinto, temos proposto como ponto de partida conceitual para as expressões travestis, transexuais e transgêneros, definições que se apresentam sempre em trânsito e em permanente construção, e que devem ser aprovadas e reconhecidas pelas pessoas que experimentam situar-se nestas conformidades. Neste sentido, o tempo todo temos nos reportado a um diálogo com o movimento nacional das travestis, dos(as) transexuais e dos(as) transgêneros, de modo a defini-los(as) de acordo com as suas recomendações, o que tem nos permitido propor as seguintes definições:
• travestis são pessoas que se identificam com as imagens e estilos diferentes do esperado socialmente para seu sexo biológico e que desejam e se apropriam de indumentárias e adereços dessas estéticas, realizando com frequência a transformação de seus corpos por meio da ingestão de hormônios e/ou da aplicação de silicone industrial, assim como pelas cirurgias de correção estética e de implante de próteses, o que lhes permitem se situar dentro de uma condição agradável de bem estar bio-psico-social. Travesti é um conceito muito utilizado por personagens políticas no Brasil, e, concordando com Marcos Benedetti (2000), portanto, há um feminino genuinamente travesti, sendo raríssimos os casos do uso desse termo no masculino ("os" travestis) por personagens políticos que tenham sexo biológico feminino e configuram suas existências em estéticas e performatividades masculinas. Contudo, ainda que de modo ínfimo, há ocorrências dentro do próprio movimento LGBTTT de pessoas de sexo feminino que reivindicam essa posição de travestilidade, conforme presenciamos junto à plateia do I Seminário Nacional Saúde da População LGBTT e a construção do SUS, organizado pelo Ministério da Saúde, em agosto de 2007.
• transexuais são pessoas que não se identificam com seus genitais biológicos (e suas atribuições sócio-culturais), podendo, às vezes, utilizarem a cirurgia de transgenitalização para construir suas expressões de gêneros em consonância com seu bem estar bio-psico-social e político, podendo ser FtM (femme to male – mulher a homem) ou MtF (male to femme – homem a mulher);
• costumava-se considerar anteriormente que os(as) transgêneros eram apenas aqueles(as) que mudavam momentaneamente suas performances de gênero com finalidades artísticas, lúdicas ou eróticas (transformistas, drag queens, drag kings, crossdressers, e outros). Atualmente, podemos definir transgêneros como pessoas que, temporariamente ou não, constroem suas estéticas e expressões de gêneros contrárias ao que é socialmente estabelecido para os nascidos com seus sexos biológicos, e que não se encaixam nas definições políticas estabelecidas para as expressões "transexuais", "travestis", "homem", "mulher" ou mesmo "lésbica", "gay" e "bissexual", categorias que traduzem mais a questão da orientação sexual do desejo que da identidade de gênero.
Têm sido muito comum e frequente ouvirmos as pessoas leigas e até mesmo especialistas se confundirem diante dessas expressões existenciais das travestis, dos(as) transexuais e dos(as) transgêneros, tratando-os(as) como sendo a mesma coisa. Chamar travesti de transexual e/ou de transgênero, ou ainda, transexual de travesti, sob nosso ponto de vista, produz sérias complicações, dadas as especificidades desejantes e existenciais de cada expressão dessas pessoas. Deste modo, temos feito uso dos termos no feminino para as travestis, as transexuais e as transgêneros por uma reivindicação política delas e, no masculino, quando um corpo biológico fêmea se transmuda para uma estética corporal e afetiva emocional masculina, no caso dos transexuais e dos transgêneros.
Travestilidades e processos de estigmatização
Na vida de todas as pessoas dissidentes das normativas heterossexuais de gênero, se há alguma coisa comum entre elas, seriam os processos de estigmatização, ou seja, asdificuldades e impossibilidades destas em terem o direito fundamental à singularidade, de poderem exercitar o direito de ser, de viver e de serem respeitadas como todos os demais cidadãos. Pesquisadores (Peres, 2004; 2005; Benedetti, 2005; Pelúcio, 2006; 2007; Cardoso, 2006; Bento, 2006) têm demarcado sobre os processos de estigmatização vividos por transexuais e especialmente pelas travestis, e as respostas que esses personagens produzem para se afirmarem enquanto expressões que exigem respeito e solidariedade para suas demandas sociais, políticas e existenciais.
Por um lado, a análise dos processos de estigmatização vividos por essa população pode evidenciar as diversas linhas do dispositivo que promovem a disciplinarização e regulação de seus corpos, desejos e expressões sexuais, de gêneros e de existências, sob ação do biopoder, produzindo sofrimentos de toda ordem. Por outro lado, podemos mapear as diversas linhas emancipatórias que permitem a reversão conceitual negativa que é atribuída a essas pessoas, o que possibilita promover o sentimento de orgulho e de realização pessoal; vide a reversão dos conceitos presentes nas manifestações nas paradas, marchas e outros eventos de valorização e emancipação social, política e cultural da população LGBTTT.
A ideia de tomar os estigmas como processos ampliam as possibilidades de análises sobre o próprio estigma, pois o tomamos como efeito do biopoder e suas biopoliticas que atua sobre os corpos e suas relações, de modo a torná-los dóceis, úteis e assépticos. Essa perspectiva processual, nos diria Richard Parker e Peter Aggleton (2001:11-12), permite problematizar que:
[...] o estigma desempenha um papel central nas relações de poder e de controle em todos os sistemas sociais. Faz com que alguns grupos sejam desvalorizados e que outros se sintam de alguma forma superiores. Em última análise, portanto, estamos falando de desigualdade social. Para confrontar e entender corretamente as questões de estigmatização e da discriminação [...] é necessário, portanto, que pensemos de maneira mais ampla sobre como alguns indivíduos e grupos vieram a se tornar socialmente excluídos, e sobre as forças que criam e reforçam a exclusão em diferentes ambientes.
A desigualdade, esse efeito do biopoder, está presente em todas as etapas de vida das travestis, dos(as) transexuais e dos(as) transgêneros e podem ser cartografadas logo nas primeiras experiências vividas de discriminação, estigmatização, violência e exclusão. Em geral, essas experiências ocorrem inicialmente no espaço familiar pela rejeição, humilhação, ridicularização e violência sobre qualquer tipo de expressão das masculinidades em corpos biológicos femininos e das feminilidades em corpos biológicos masculinos, intensificando-se diante da expressão da orientação do desejo homossexual. Essa experiência de estigmatização no seio da família dá início a um processo de enfraquecimento da autoestima e da crença em si mesmos(as). Devido a isso, a necessidade de um sentimento de pertença os(as) leva à aproximação de pessoas que coadunam de mesmos gostos, desejos, sonhos; pessoas que de certa forma compartilham de suas experiências, necessidades, desejos e projetos. Esses contatos iniciais com indivíduos que se identificam com seus estilos de vida são imprescindíveis para que possam se fortalecer para os enfrentamentos das forças discriminatórias e excludentes, tanto no âmbito pessoal como em engajamentos políticos.
Porém, nem sempre a travesti, o/a transexual e o/a transgênero têm a oportunidade de serem preparados(as) para confrontar os processos de normatização e reivindicar seus direitos. Muitas vezes, perdendo a crença em si mesmos(as), gerando adoecimentos físicos e psíquicos, passam a acreditar que só podem viver como corpos abjetos, pré-sujeitos, sem direitos de ir e vir e circular pelo mundo como qualquer outra pessoa de direito – condições em que lhes é permitido se situar, que acabam por interiorizar em si mesmos(as).
De acordo com Judith Butler (2000:155), podemos entender o lugar da abjeção como "precisamente aquelas zonas 'inóspitas' e 'inabitáveis' da vida social que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do 'inabitável' é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito". É nesta direção que encontramos, na máxima de Deleuze (1990), uma possibilidade de clarificação, pois:
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; perdemos o mundo, ele nos foi tomado. Acreditar no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que escapem do controle, ou então fazer novos espaços-tempos, mesmo de superfície e volume reduzidos... É no nível de cada tentativa que são julgadas a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. São necessários, aAo contrário do processo de empoderamento, quando não encontram fortalecimento nas relações positivas de pertença, os(as) dissidentes tornam-se enfraquecidos(as) diante das experiências de estigmatização. Experiências essas que não se restringem ao espaço doméstico, mas se estendem pelas vizinhanças, escolas, hospitais, serviços de saúde, segurança pública, enfim, se processam nos mais diversos espaços de circulação social das travestis.o mesmo tempo, criação e povo. (Deleuze, 1990:73)
Ao contrário do processo de empoderamento, quando não encontram fortalecimento nas relações positivas de pertença, os(as) dissidentes tornam-se enfraquecidos(as) diante das experiências de estigmatização. Experiências essas que não se restringem ao espaço doméstico, mas se estendem pelas vizinhanças, escolas, hospitais, serviços de saúde, segurança pública, enfim, se processam nos mais diversos espaços de circulação social das travestis.
Desta forma, devido à discriminação e violências que os(as) dissidentes de gênero sofrem, especialmente as travestis por suas estéticas mais arrojadas e explícitas, muitos(as) acabam não frequentando a escola ou cursos profissionalizantes, sendo muito raro alguém lhes oferecer um emprego. Considerando as dificuldades em estudar e/ou de se profissionalizar, de conseguir empregos para garantias mínimas de suas sobrevivências, os(as) dissidentes de gênero acabam tendo que se adequar, pelo menos em uma medida "neutra", às normativas de gênero incompatíveis com seus modos existenciais.
No caso das travestis, muitas são empurradas para a marginalidade, recorrendo à prostituição para sobreviver, compondo um imaginário que naturaliza a associação das travestis com a prostituição. Na rua, as travestis têm que lidar com profissionais da segurança pública que não só, muitas vezes, abusam sexualmente delas, como as extorquem, assim como a seus clientes. Elas vão ganhando, então, nuances de estigmatização. Com a ausência de políticas públicas e programas inclusivos, a entrada das travestis no mundo da prostituição se torna pura negligência do Estado.
Como contraposição, encontramos incomuns situações de travestis que tiveram algum tipo de sorte e trabalham em diversos ofícios, inclusive de nível universitário. Deste modo, fica claro que travesti não é sinônimo de prostituição e que, se ocupa esse lugar no mundo, isso ocorre em consequência das diversas desigualdades sociais, políticas, raciais, sexuais e de gêneros que incidem sobre seus corpos. Apesar de não termos dados oficiais de pesquisas a respeito da saúde mental de travestis, transexuais e transgêneros, o convívio com sua comunidade permite algumas inferências preocupantes. Como exemplo, sabemos de um grande número de travestis e transexuais que reclamam ou que se mostram em estado de depressão – dados também encontrados por Pelúcio (2005) – ou ainda, expressando graus elevados de ansiedade ou de desânimo frente à vida e de total descrédito com ela. Em casos mais extremos, vemos notícias sobre altos índices de morbidade e mortalidade por overdose de drogas, ou ainda, de incidências sobre práticas de suicídio, quando não são assassinados(as) com requintes de crueldade.
Como recorte possível dentro da complexidade relacional das travestis, transexuais e transgêneros e buscas de respostas para solucionar suas demandas existenciais, apresentamos para o debate algumas reflexões sobre os enfrentamento e resistências políticas das travestis.
Nos últimos anos, as problematizações em torno da violação dos direitos humanos, a emergência de uma pauta de discussão sobre os direitos sexuais e sobre a construção da cidadania deu início a um processo de conscientização e articulação política da comunidade de travestis. Essas discussões ocorreram a partir de negociações da Articulação Nacional das Travestis, e das diversas organizações que a compõem com alguns setores da organização governamental, além dos projetos voltados para a prevenção e assistências às DSTS/HIV/AIDS/Hepatite, financiados pelo governo brasileiro. Elas, fortalecidas e esclarecidas de seus direitos, passaram a reivindicar direitos e respeito frente as suas expressões sexuais e de gêneros, por meio de participação em órgãos de tomadas de decisões nas esferas municipais, estaduais e federais.
Essa organização psicossocial, política e cultural pode ser entendida em uma perspectiva de enfrentamento e de resistência ao poder heteronormativo, demarcado através da assertiva foucaultiana de "encontro com o poder", evidenciando que:
O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer é o: encontro com o poder [grifo nosso] sem esse choque, nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. O poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção, ainda que por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denunciar, queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir e tenha, em poucas palavras, julgado e decidido. Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com freqüência enigmáticos – a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder. (Foucault, 2003:207-208)
A partir desse encontro com o poder, e de resistência ao mesmo tempo, surgem novas possibilidades de existencialização, logo, de novas demandas psicossociais e políticas de emancipação de direito a ter direitos, ou seja, de poder vivenciar sua condição de cidadania, visibilizando, assim, a emergência contemporânea de novos sujeitos.
Na maioria dos encontros regionais e nacionais – ENTLAIDS – Encontro Nacional de Travestis que atuam na luta contra a AIDS (em sua XVIII edição em 2011), em suas plenárias finais, temos presenciado aprovação de propostas de reivindicações junto aos Ministérios Federais, e em especial, ao Ministério da Saúde. Uma delas é o apelo à capacitação de profissionais da saúde para que tenham melhores tratos com a população TTT. Devido à estigmatização frequente, temos conhecimento de travestis que preferem se contorcer de dores em suas casas do que ter que suportar as discriminações feitas pelos operadores da saúde e de outras categorias profissionais nos estabelecimentos de saúde. Outros requerimentos dizem respeito a solicitações específicas e urgentes em torno do uso inadequado de silicone industrial líquido e suas cruéis consequências para a saúde e a vida. Da mesma forma, pedem maior acesso ao atendimento em saúde mental que as trate como pessoas dignas, sem classificações restritas às determinações psicopatológicas de psicóticas ou perversas devido às suas escolhas existenciais frente ao mundo.
Dada a complexidade de categorias de análises possíveis sobre o universo dos(as) dissidentes de gênero heteronormativo, elegemos algumas questões que perpassam a vida dessas pessoas (especialmente das travestis, população sobre a qual temos mais dados) e suas relações com os serviços de saúde, sejam elas públicas e/ou privadas, considerando as linhas do dispositivo que compõem suas estéticas e existências.
Uma primeira linha diz respeito ao que chamaremos de identidade de gênero, ou seja, a materialização do gênero, seja do gênero feminino sobre um corpo masculino, no caso de uma travesti, uma transexual ou uma transgênero, seja do gênero masculino em um corpo feminino, no caso de um transexual ou de um transgênero. Um dos maiores constrangimentos possíveis de ser vivido por essas pessoas é quando alguém se dirige a ele/a chamando-o/a pela referência de sexo e não de gênero. Em relação às travestis, se suas expressões corporais, com suas indumentárias, maquiagens, roupas e sapatos de salto alto as remetem a uma estética feminina, porque tantas pessoas ainda insistem em chamá-las no masculino? Creio que muitas questões poderiam suscitar debates, desde a confusão de gêneros (Será homem? Será mulher?), até o disparo de fantasias de atração e repulsa que emergem intempestivamente. É preciso que nos coloquemos em análise, e, de modo definitivo, precisamos cada vez mais solicitar revisão das referências dos códigos de gêneros disciplinares e reguladores do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais (Butler, 2001).
Uma segunda linha diz respeito à somatória de estigmatizações. Dentro do mapeamento de estigmatização, entendemos que quanto mais atributos negativos e de desqualificação um corpo receber, mais processos de estigmatização se abaterão sobre esse corpo. Acreditamos que a maioria das trabalhadoras e trabalhadores da saúde já tenha presenciado a entrada "glamourosa" de uma travesti em uma unidade de saúde, que desperta curiosidades, medos e fantasias de toda ordem. Um recorte que chamo a atenção remete à própria estética da travesti e/ou transexual frequentadora dos espaços dos serviços de saúde e sua condição social, política e cultural. É muito diferente o tratamento dado às travestis que são mais pobres, negras, gordas, velhas e "encrenqueiras", da forma que são tratadas as travestis jovens, bonitas, bem vestidas, com dentes saudáveis, educadas, comunicativas e formais (e muitas vezes por ser militante) que com frequência recebem tratamentos diferenciados e até são convidadas para tomar cafezinho com os (as) funcionários(as).
Outra linha a ser problematizada diz respeito ao uso de silicone industrial pelas travestis, substância que modela os corpos e os tornam visíveis. A mudança estética do corpo é condição sine qua non para que se reconheça e seja reconhecida como travesti. Quando começamos a estudar seu universo por meio de abordagens preventivas frente à pandemia do HIV/AIDS, percebemos que este solicitava problematizações que iam além dos cuidados de si frente à AIDS, pois nos remetia a um território complexo de particularidades, e entre elas, a questão que remetia a problematizar a respeito dos cuidados de si frente à construção de seus corpos. Apesar da ausência de estatísticas oficiais entre as pessoas da comunidade travesti, é muito frequente informações de travestis que tiveram ou estão tendo problemas graves decorridos do silicone, em muitos casos, chegando a óbito.
Apesar de estarmos na era das próteses de silicone, ainda é muito caro para as travestis poderem lançar mão desses recursos. Enquanto para fazer um par de seios por meio de cirurgias de colocação de próteses mamárias se gastaria em torno de seis mil reais (2.800 dólares), com o auxílio das "bombadeiras", seus seios nas mesmas proporções custariam em torno de quinhentos reais (270 dólares); mesmo com facilidades para pagamentos em prestações, ainda assim é muito oneroso para as travestis pagarem por esses valores.
Em tempos de mudanças em que o corpo do desejo se transforma em corpo do design (Le Breton, 2006), as demandas desejantes oscilam entre o cuidado de si e a construção de si em uma temporalidade de tamanha urgência que as orientações de redução de danos têm surtido pouco efeito. Poucos projetos no Brasil se dedicam ao trabalho de redução de danos frente ao uso de silicone industrial, altamente tóxico, portanto também uma droga. Infelizmente valores moralistas e conservadores habitam as cabeças de muitos profissionais da saúde, bem como de legisladores e formadores de opinião pública, que pouco ou nada contribuem para a resolução desse problema que, de tão grave, se tornou um problema de saúde pública.
Outra problemática com a qual nos deparamos em relação à população TTT é sobre a ingestão indiscriminada de hormônios, sem orientação médica e sem a realização de exames de dosagens hormonais e/ou de acompanhamento psicológico. Com muita frequência ouvimos relatos sobre as experiências do uso abusivo dos hormônios, assim como, dos efeitos colaterais que são produzidos e dos desarranjos consequentes que se transformam em mal estares físicos, psíquicos e existenciais.
Se não fossem tantos os preconceitos médicos e psicossociais e de profissionais de outras esferas coletivas frente ao uso de hormônios femininos por pessoas de sexo genital masculino, e de hormônios masculinos por pessoas de sexo genial feminino, poderíamos diminuir substancialmente seus efeitos colaterais. Com isso, seria possível economizar com os gastos públicos em tratamentos, internações e outros exames laboratoriais que formam as suas propedêuticas, realizando assim prevenção em saúde mental e de defesa dos direitos sexuais e humanos.
Visando contribuir para a atenuação desse cenário, em meados de 2009, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo criou um Ambulatório específico para o atendimento da comunidade TTT no município. Este ambulatório está realizando cirurgias de implante de próteses silicone, tratamento hormonal, remoção de silicone industrial e cirurgias de redesignação sexual3. Podemos considerar esta iniciativa como um pequeno avanço diante de toda uma sociedade que ainda está longe de alcançar o que chamaríamos de uma verdadeira democracia.
Pensando a emancipação psicossocial dos(as) dissidentes de gênero
Gostaríamos de demarcar entradas possíveis na reflexão e problematização das relações dos(as) dissidentes da normativa de gênero heterossexual com as pessoas, com as instituições, com as políticas públicas de emancipação psicossocial, política e cultural. Trata-se do lugar ocupado por essas pessoas e os processos de estigmatização vividos que as expõem a situações de vulnerabilidades diversas e que se somam às estigmatizações específicas de sexo, classe social, raça/etnia, orientação sexual etc.
O efeito do biopoder e suas biopolíticas (Foucault, 1985) objetivam disciplinar os corpos e regular os prazeres da população por meio de normas que são garantidas pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais (produtor e guardião da heteronormatividade) (Butler, 2001), e, nesta perspectiva, toma travestis, transexuais e transgêneros como corpos abjetos, insignificantes e esquecidos pelas políticas públicas. Essa ideia de corpo abjeto, que passamos a usar através de Judith Butler (2003), inicialmente nos remetia a pensar sobre as pessoas à margem social, sem assistência e credibilidade civil, pessoas que de alguma forma tiveram suas vidas impossibilitadas de reconhecimento e que se juntaram a tantas outras, denominadas por Herbert Daniel (1989) de "morte civil".
Michel Foucault vai nos fazer pensar sobre a vida de todas as pessoas que não são reconhecidas em sua cidadania e em sua humanidade quando escreve sobre "A vida dos homens infames", garimpando fragmentos de histórias esquecidas, abandonadas, deixadas no terreno da abjeção. Guimarães (2008:3) esclarece que:
É cruel a existência destas vidas que devem lutar para se manterem vivas sem que sua condição de seres humanos seja reconhecida. Vidas com um histórico de abandono pelos poderes públicos que libertas ou encontradas em situações de extrema degradação só poderão contar futuramente com suas próprias precariedades. Pessoas cujos nomes e histórias de vida quase nunca aparecem nos noticiários, que serão esquecidas em registros policias e judiciários. Vidas infames tal como aquelas retratadas por Michel Foucault em Ditos e Escritos V. Pessoas que têm suas trajetórias de vida definitivamente borradas, vidas que apresentam apenas pequenos fragmentos à opinião pública, vidas que podem morrer aos milhares sem qualquer registro, sem que ninguém seja efetivamente culpabilizado.
Butler (2002) avançará nas análises sobre os corpos abjetos e proporá uma reversão analítica em que os corpos abjetos passam a ser problematizados como agentes de resistência e de enfrentamento ao biopoder. De um corpo despotencializado e fraco, surge um corpo empoderado, forte, guerreiro e reivindicador de direitos, que participa das esferas de poder e descobre nas ações do coletivo a possibilidade de um tratamento de respeito e cidadania. Sua própria existência é um enfrentamento à heteronormatividade, que desestabiliza e coloca em questão a ordem normativa e disciplinar que é imposta pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, pois questiona as normas hegemônicas de práticas sexuais, de desejos, de gênero e de sexo, impostas pelo próprio bio-poder por meio de suas biopolíticas regulatórias.
Compreender a abjeção deste outro modo pode levar as travestis, os(as) transexuais e os(as) transgêneros ao enfrentamento político sobre as desigualdades sociais e sexuais, as iniquidades de gêneros, as violências estruturais, as transfobias (medo, nojo, aversão pelas expressões de TTT), os machismos e os racismos, pois começam a se inserir nos movimentos sociais e a intensificar forças que lhes dêem garantias de poder exercitar o direito de "ser" e de "viver". No Brasil, porém, estas ainda são iniciativas raras e de pouca divulgação, contando com uma ou outra travesti, ou um(a) ou outro(a) transexual, que se tornou consciente de seus direitos e se envolveu de alguma forma na militância política, nos movimentos sociais ou ainda em grupos específicos.
A transfobia pode significar formas específicas de exclusão e violência contra as pessoas que constroem suas expressões sexual e de gênero diferente da norma "macho, então masculino, então homem"; e "fêmea, então feminina, então mulher", junto à pressuposição e consequente discriminação dessas pessoas por assumirem ou serem suspeitas de assumir uma orientação sexual diferente da heterossexual. Ou seja, a transfobia é direcionada àqueles e àquelas que não regulam suas expressões existenciais de gênero e seus modos de subjetivação às normas de sexo/gênero/desejo/práticas sexuais (Butler, 2003) hegemônicas, centradas na heterossexualidade. Na busca de uma conceituação para transfobia, ela aparece inicialmente agregada à noção de homofobia, conforme nos aponta Borrilo (2001:16) ao esclarecer que:
A homofobia se converte assim na guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo) e de gênero (masculino/feminino). Por isso os homossexuais não são as únicas vítimas da violência homofóbica, que também atinge todos aqueles que não se aderem à ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais, mulheres heterossexuais com forte personalidade, homens heterossexuais delicados ou que manifestam grande sensibilidade. [tradução nossa do espanhol]
Porém, de uma maneira mais específica, a definição de transfobia será afinada por Louis-Georges Tin (2003), quando esclarece que
Assim como os homossexuais, homens ou mulheres foram objetos de homofobia, os(as) transexuais, transgêneros, travestis, drag queens ou drag kings são alvos de tratamentos discriminatórios. Essas populações não se definem, a priori, em função de uma sexualidade específica, não se trata aqui de propriamente falar da adoção de uma forma de sexualidade humilhada pelo modelo heterossexual que constituem o disparador de reações de rejeição ou de exclusão. Entretanto, a relação entre sexo, gênero e aparência sobre a qual essas identidades se constroem, contribuem para estremecer as referencias de ordem heterocentrista, a transfobia exprime a hostilidade, a aversão sistemática, mais ou menos consciente, em respeito a esses indivíduos os quais a identidade confunde os parâmetros dos papéis sócio-sexuais e transgride as fronteiras entre os sexos e entre os gêneros. [...] A expressão da transfobia, reveste-se, de fato, de formas muito similares àquelas da homofobia; mas ela comporta igualmente especificidades que correspondem às particularidades dos grupos específicos. Sua tradução a mais brutal e a mais evidente é sem dúvida a violência física e a intimidação. (Tin, 2003:406-409)
É importante lembrar que as homofobias e seus subtipos (transfobias / travestifobias/ lesbofobias / gayfobias / bifobias) não se configuram em uma fobia psicológica individual de cada pessoa, mas em uma fobia social encarnada nos indivíduos e que participam da construção de seus processos de subjetivação normalizadora. Tal como aponta Natividade e Oliveira (2009:128), a homofobia:
[...] integra aspectos sociais, culturais e políticos a disposições psicológicas, percepções e reações emocionais. Neste sentido, reações viscerais de repúdio à diversidade sexual devem ser pensadas como atitudes políticas, motivadas por fatores culturais e manifestadas no nível da própria corporalidade. O caráter visceral de certas reações encobre suas fontes morais, como se estas fossem desencadeadas mecanicamente por propriedades intrínsecas ao objeto. A aversão à expressão pública de afeto entre pessoas LGBT, por exemplo, poderia ser interpretada como objeção política à visibilidade destas minorias, causada por disposições conservadoras tocantes à moral sexual.
O encontro com o estranho, o diferente, o queer, pode disparar sensações, pensamentos e ações de toda ordem, mesmo porque, tendemos a ficar ansiosos diante do novo. Podem emergir fantasias sexuais positivas, mas também fantasias destrutivas nas pessoas, sendo que estas últimas não só impossibilitam estes sujeitos de aproximação com os(as) dissidentes das normativas de gênero heterossexuais, como também de atendê-los(as) adequadamente, surgindo a transfobia nas relações dos operadores da saúde e outras instâncias, nas mais variadas intensidades.
Reflexões em trânsito
O momento primevo do encontro das pessoas com alguém que se comporta, se expressa e se caracteriza em gênero inversamente ao estabelecido socialmente para seu sexo é sempre perturbador, evocando fantasias arcaicas e atualizadas em torno das sexualidades, dos corpos e seus prazeres. A rigidez com que somos constituídos através de uma classificação "hard" dos modos masculinos e femininos de ser diante das expressões de gêneros nos impede de termos tranquilidade frente às pessoas que apresentam um sexo genital masculino e uma expressão social de gênero feminina (ou vice-versa).
Para as pessoas que foram intensamente construídas pelos processos de subjetivação normatizadores, e que se tornaram "viciados e dependentes de identidade", logo, "viciados e defensores das normas", ao se depararem com as travestis, os(as) transexuais e os(as) transgêneros propondo identidades estranhas aos seus universos de referências, têm nos seus corpos os disparos de fantasias, desejos, medos e ansiedades que as tornam perturbadas, aproximando-as de um estado de 'non sense', no qual os códigos de inteligibilidade se embaralham e suas referencias, até então tidas como certas e absolutas, já não servem mais como referências analíticas.
Faz-se importante aqui demarcar que muitos Psicólogos não se encontram isentos dessas posições e posturas frente às expressões de TTTs, o que a nosso ver contribui para uma prática psicológica restrita aos reducionismos morais assépticos e a diagnósticos de manutenção às normativas impostas pelo bio-poder, distantes de uma perspectiva política e emancipatória, logo, perfeitamente próximas de práticas de perversidade, distanciando completamente de uma Psicologia Política e Queer.
Muitos dos dispositivos que podem diminuir a intensidade da discriminação, estigmatização, exclusões e violências vividas por esta comunidade estão nas mãos do Estado. Entre outras possíveis intervenções, vislumbramos: a aprovação de leis de discriminação por homofobia (e seus subtipos), como o PL 122, que tramita no Senado desde o ano de 2006; a capacitação de profissionais, especialmente da área da saúde, educação e da justiça para o trato humano e cidadão com os dissidentes das normativas de gênero; introdução de disciplinas sobre a temática de gênero e sexualidades nas grades curriculares dos cursos educativos, de formação e profissionalizantes; financiamento de projetos sociais voltados à população de travestis, transexuais e transgêneros; políticas públicas inclusivas e viáveis de atenção e promoção de direitos sexuais e humanos da população de TTTs.
Por outro lado, vemos a militância da população TTT como outro dispositivo de enfrentamento e resistência ao biopoder, que vem sendo estabelecida por meio da participação social e política junto a órgãos de tomada de decisão da sociedade, mas ainda muito incipiente em comparação com o número de cidadãos que não se sentem empoderados(as) para tais atos públicos, que se acreditam somente poder existir no terreno privado e da abjeção.
Por tudo isso, é importante lembrar que a ação do biopoder e suas biopoliticas estão em todas as redes relacionais. É especialmente no cotidiano dessas pessoas que os enfrentamentos e resistências se iniciam e criam força para chegar à reivindicação de política pública. É por meio das relações interpessoais e da visibilidade dessas formas de existências que se estabelecem mudanças. Quando as pessoas tomam conhecimento da realidade das travestis, dos(as) transexuais e dos(as) transgêneros a partir da interação, do diálogo e de informações sobre seus universos, conseguem mudar seus conceitos. Percebendo o universo complexo composto por modos de estigmatização carregados de violências, desigualdades, intolerâncias e exclusões sociais de toda ordem, vividos nas mais diversas relações que os(as) dissidentes de gênero estabeleciam com as pessoas, com o mundo e consigo mesmas, as pessoas se aproximam de suas vidas por meio da criação de vínculos de confiança, amizade, solidariedade e respeito aos seus modos de existência (Peres, 2005).
As resistências ao biopoder e suas biopoliticas se expressam desde a infância nas vidas das travestis, dos(as) transexuais e dos(as) transgêneros nos desejos de construírem suas vidas de forma singular, expressas pelas escolhas de suas roupas, dos adereços, ainda de forma ingênua e inocente. Mesmo com as dificuldades de serem aceitos(as) pela família, escola e sociedade, insistem na efetuação de seus sonhos, buscando cumplicidades consigo mesmas. Devido a isso, muitos(as) acabam afastando-se de seu ambiente familiar e escolar – quando não são segregados(as) e mesmo expulsos(as) – buscando um lugar para serem eles(as) mesmas, e poderem se expressar autenticamente. A partir da constatação e interlocução com pessoas que se assemelham a eles(as) em seu modo de vida, estabelecem um sentimento de pertença e produção de uma expressão, criando cumplicidades e organizando estratégias de afirmação de suas singularidades.
Todas essas mudanças e resistências à normativa heterossexual recebem, cada vez com mais força, a potencialidade de imposição e violência dos processos de estigmatização (Peres, 2005), por isso, podemos considerar que os enfrentamentos e resistências ao biopoder estão nas próprias existências das travestis, dos(as) transexuais e dos(as) transgêneros, nos seus modos de ser, estar e circular pelo mundo, imersos em um campo de normas e regras de sexo, gênero e sexualidades que são inculcadas em cada um de modo sutil ou violentamente pelos instrumentos do biopoder. Assim, somos permitidos a problematizar os(as) dissidentes das normativas de gênero heterossexuais como expressão de resistências ao biopoder, de enfrentamento aos processos seculares de normatização e a emergência de novas expressões existenciais que se efetuam como estilísticas da existência, confirmando a leitura feita por Foucault (1985) de que onde há poder há resistência.
Nossa concepção de estilística da existência nos remete a pensar os(as) dissidentes das normativas de gênero heterossexuais como pessoas que criam suas existências como um continuum exercício de liberdade, como expressão dos efeitos de subjetivação singularizadores que permitem a eles(as) fazerem de suas vidas admiráveis obras de arte.
Eles e elas denunciam a crise dos paradigmas e das referências sobre as identidades sexuais e de gêneros que se processa dentro de um registro binário, sedentário e universalista, abalando todas as certezas que insistem na efetuação de verdades absolutas e acabadas, que são impostas pela perspectiva moral essencialista/biomédica. Nesse sentido, se pensamos a travestilidade, a transexualidade e a transgeneridade como um "modo, uma estilística da existência", podemos entendê-las não como prioridade de alguns, mas possibilidade de todos, pois todos, de alguma forma e/ou em alguns (ou muitos) momentos, produzem dissidências às normas de gênero.
Como consequência de resistências, presentes tanto no plano individual (consciência de cidadania) quanto no plano coletivo (organização psicossocial e política), emerge uma nova paisagem sexual e de gênero na contemporaneidade. Butler (2000, 2003) sugere que as políticas queer devem se orientar para as questões que conferem "habitabilidade" para os indivíduos pensando em estratégias que diminuam os conflitos com as normativas de gênero. Essa habitabilidade está relacionada a quais sujeitos são considerados incluídos nas categorias de reconhecimento, ou seja, quem é considerado viável como humano ou vidas consideradas verdadeiras (Butler, 1993). O queer escapa da lógica formal, tendo mais a ver com trânsito, fluxo e performatividade, propondo que a categoria humano esteja sempre em aberto, ou seja, que nenhuma sexualidade ou expressão de gênero torne-se polícia de outra.
Referências
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Endereço para correspondência
William Siqueira Peres
E-mail: pereswiliam@gmail.com
Lívia Gonsalves Toledo
E-mail: liviagtoledo@gmail.com
Recebido em: 30/01/2010
Revisado em: 13/09/2010
Revisado em: 24/03/2011
Aceito em: 25/04/2011
* Psicólogo e Doutor em Psicologia, Professor-Doutor do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Membro do GEPS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil.
** Psicóloga e Mestre em Psicologia. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Membro do GEPS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil.
1 Gilles Deleuze (1989) apresenta o dispositivo como sendo composto por um emaranhado de linhas e por uma complexidade de fatores que participam dos processos de subjetivação.
2 A heterossexualidade compulsória é um conceito criado por Adrienne Rich (1986) que propõe a heterossexualidade como uma instituição que pressiona, força e obriga, de forma violenta ou subliminar, todas as pessoas, a tornarem-se heterossexuais. Essa forma de organização social contribui com a opressão dos homens sobre as mulheres, e das masculinidades sobre as feminilidades, por ser um sistema que acomoda e hierarquiza as relações entre os sujeitos, onde o homem, masculino e heterossexual se torna sempre a referência valorizada.
3 Cf. <//www.saude.sp.gov.br/content/woclugiceu.mmp>.