Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
"Grupos minoritários": forma e organicidade dos empreendimentos (ditos) solidários
"Minority groups": form and organicity of the (so-called) solidary enterprises
"Grupos minoritarios": forma y organizacidad de emprendimientos (dichos) solidarios
Fabio Bitencourt Meira*
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
RESUMO
O artigo adota referencial teórico da Psicologia Social de Eugène Enriquez para discutir a organização de empreendimentos de economia solidária (EES). Essas organizações são nomeadas "autogestionárias" porque supostamente produzem em bases democráticas contrariando pressões do entorno capitalista. O objetivo é apreender sua forma e organicidade diante de tais pressões. A construção de vínculos sociais grupais que potencializem a gestão democrática é alvo de análise. A tese central do artigo é que por meio do conceito enriqueziano "grupo minoritário" é possível compreender os dilemas implicados. A forma do grupo minoritário parece expressar coerentemente a forma dos EES, seus problemas e dificuldades. Conclui-se que a trajetória dos EES pode ser pensada como evolução do grupo a uma organização, num processo algo indeterminado, mas fortemente influenciado pela dinâmica do grupo: no trabalho do grupo sobre si estão em jogo sua autolimitação, suas ilusões e sua obra.
Palavras-chave: Psicologia social, Organização, Economia solidária, Autogestão, Eugène Enriquez.
ABSTRACT
The article adopts the Social Psychology of Eugène Enriquez as a frame of reference to discuss the organization of Solidary Economy Enterprises (SEE). These organizations have been labeled "self-managed", for supposedly produce in democratic bases counteracting capitalist environmental pressures. The purpose is to apprehend their form and organicity in relation to environmental pressures. The construction of social bonds promoting forms of democratic management is in focus. The article central thesis is that the Enriquezian concept 'minority group' facilitates the understanding of the dilemmas implied. Minority group's form seems to express coherently the form of SEE, their problems and difficulties. Conclusively, the SEE trajectory is thought as a passage from the group to the organization, in a process relatively undetermined, but strongly influenced by the group dynamics: the group working over itself to deal with its selflimitation, illusions and realizations.
Keywords: Social psychology, Organization, Solidary economy, Worker's self-management, Eugène Enriquez.
RESUMEN
El artículo adopta la Psicología Social de Eugène Enriquez como referencia teórica para discutir la organización de emprendimientos de economía solidaria (EES). Estas organizaciones son llamadas "autogestionadas" porque, se supone, producen en bases democráticas contrariando las presiones del entorno capitalista. El objetivo es aprehender su forma y organizacidad ante tales presiones. La construcción de enlaces sociales que potencialicen una gestión democrática es analizada. La tesis del artículo es que por medio del concepto enriqueziano "grupo minoritario" se comprenden los dilemas implicados. La forma del grupo minoritario parece expresar coherentemente la forma de los EES, sus problemas y dificultades. En conclusión, puede pensarse la trayectoria de EES como evolución del grupo a la organización, un proceso algo indeterminado, pero influenciado por la dinámica del grupo: un trabajo del grupo sobre si que pone en juego su auto-limitación, sus ilusiones y su obra.
Palabras clave: Psicología social, Organización, Economía solidaria, Autogestión, Eugène Enriquez.
Introdução
O debate em torno da Economia Solidária (ES) no Brasil é pautado pela ideia de que "empreendimentos solidários" manifestam "outro modo de produção" (Singer, 2002a, 2002b) ou "outra economia" (Cattani, 2003), em flagrante oposição ao capitalismo. Essas organizações definem-se por seu caráter sui generis, diferenciando-se das empresas capitalistas porque funcionam na base da solidariedade, autogestão e cooperação (Secretaria Nacional de Economia Solidária, 2005; 2007). Os mecanismos em operação fundamentam uma diferença ontológica entre, de um lado, a economia capitalista e, de outro, esta outra economia em gestação. A especificidade da forma dos empreendimentos da ES (EES) dá sustentação ao argumento da presença de uma alternativa não capitalista dentro do capitalismo (Santos, 2002).
Modo de produção é um conceito que deve ser tratado com cautela; Marx e Engels utilizam-no sem definição explícita, e a maior parte dos autores marxistas limita sua significação ao plano puramente econômico; o que é um reducionismo (Harnecker, 1972). Marx sugere que modo de produção seja uma estrutura global formada por três estruturas regionais: econômica, política e ideológica. No capitalismo, a estrutura econômica é dominante, determina as condições de existência material da sociedade ao mesmo tempo em que responde pela contínua reprodução das condições ideológicas e das relações de poder dentro da estrutura social (Harnecker, 1972).
Ora, o problema da organização dos EES e de sua relação com possíveis mudanças estruturais da sociedade são tratados com exagerada ligeireza por seus proponentes. A certeza sobre a transformação protagonizada por iniciativas no âmbito da ES deve ser relativizada. Se há uma mudança em curso, parece prudente considerá-la menos radical. A percepção de que algo de novo se manifesta é difícil de contestar, porém a assunção de que uma nova economia ou outro modo de produção explicam a novidade é apressada.
Vale enfatizar a importância de contextualizar a emergência do fenômeno observado, e sua fragilidade incontestável:
[...] Diferentemente [...] da Revolução Espanhola (1936-1939), em que inúmeras fábricas foram coletivizadas, os casos por nós estudados não se inserem num contexto revolucionário... são poucas as chances de manutenção das Empresas Recuperadas num momento de isolamento frente ao oceano capitalista e, mais que isso, num momento de regressão histórica que fragmentou a classe trabalhadora e lhe retirou direitos conquistados [...]. (Novaes & Dagnino, 2007:10)
A história se repete como farsa diz a famosa passagem do Dezoito Brumário (Marx, 1978). Se organizações autogeridas puderam existir em períodos revolucionários, agora o contexto é diverso. Trata-se de uma "autogestão parcial", já que, inseridas na lógica do capital, as unidades produtivas atuam no interior do sistema, e as atividades são organizadas dentro da unidade produtiva (Faria, 2009). Estamos diante de fenômenos organizacionais a serem compreendidos: será preciso um esforço em apreender os vínculos sociais aí gestados. A pressa em encampar tais iniciativas sob a bandeira da "autogestão" resulta de uma perigosa inversão: o pressuposto de uma operação na base da solidariedade, autogestão e cooperação.
O problema é mais complexo do que faz supor a tese da 'outra economia', sua extensão é claramente enunciada na seguinte passagem de Eugène Enriquez:
O movimento auto-gestionário [...] acredita que a exigência de igualdade, de autoinstituição contínua, de confrontação de palavras livres [...] só pode ter como consequência uma gestão democrática, em que cada um demonstrará sua competência e sua responsabilidade. A servidão voluntária, o medo da liberdade e a sede do poder jamais são tomados em tal concepção. No entanto, aí se encontra, e não somente nos aspectos repressivos da sociedade capitalista, a origem do fracasso da maioria das tentativas autogestionárias. (Enriquez, 2007a:105)
O ideário da ES coaduna-se com as crenças do "movimento autogestionário". Os autores desproblematizam a gestão democrática, a ponto de aventarem uma suposta eficiência solidária. Gaiger (2000; 2006) pensa a solidariedade como "vetor de eficiência", em práticas que estão além dos objetivos econômicos e consolidam o empreendimento: "... a continuidade da cooperação no trabalho torna-se um diferencial, o solidarismo e a cooperação no trabalho propiciam fatores de eficiência, sendo então vetores específicos de viabilidade e competitividade dos EES" (Gaiger, 2000:185). Ao ser desvendada a racionalidade implícita nessas organizações, descobre-se sinais consistentes para sua viabilidade no mercado: os EES tornam-se mais competitivas quanto mais capazes de ativar a democracia interna. "Aqui se trata exatamente de fazer dos aspectos cooperativos a mola mestra da eficiência econômica: sem solidariedade fica comprometida a eficiência; em sendo eficiente, o empreendimento persiste; e persistindo, reforça os seus elementos solidários" (Gaiger, 2000:185).
Mas, esta tese faz a solidariedade aparecer transmutada em valor de troca, os vínculos sociais revestirem-se da forma mercadoria (Wellen, 2008). Negligencia-se o fato de que a "competitividade" se define pela racionalidade capitalista: a solidariedade torna-se obrigatória, uma contradição em termos que internaliza contradições da gestão capitalista. "Nesse contexto, as cooperativas de produção padecem de uma contradição básica: a necessidade de os operários se autodirigirem e desempenharem, em relação a si mesmos, o papel de empresários... para sobreviver, ou a cooperativa se torna uma empresa ou ela se dissolve [...]" (Tragtenberg, 1986:27).
O problema da crença no automatismo dos vínculos torna-se agudo pela constatação de que a "única alternativa de sobrevivência" dos EES passa a ser o fortalecimento da solidariedade interna à organização:
A única alternativa de sobrevivência para as empresas de autogestão é obterem vantagens competitivas no mercado. Sem altos contatos no governo e no mundo das finanças, com pouco capital e sem acesso à tecnologia de ponta, o único diferencial possível é a economia de controles e a utilização intensiva da racionalidade e criatividade da ação conjunta dos membros. (Gutierrez, 2000:38)
Ora, a afirmação de Enriquez (2007a) não deixa dúvidas: confiar tanto em vínculos dessa espécie é uma crença produzida pela supressão da problemática da construção de vínculos sociais na organização. Ao enfatizar a viabilidade econômica, os autores da ES não fazem senão reiterar os pressupostos da operação solidária, cooperativa e autogestionária. Mas, a questão sobre a construção efetiva de tais vínculos é desinterrogada.
Eis o problema de que trata este artigo: a pergunta sobre a dinâmica da construção de vínculos sociais nos EES, cuja simples enunciação implica o abandono de pressupostos a respeito da naturalização e existência a priori dos vínculos.
O artigo é um ensaio teórico exploratório. A partir do referencial da Psicologia Social de Eugène Enriquez (1989, 1990, 1991, 1997a, 1997b, 2000, 2007a, 2007b) busca-se identificar os mecanismos em operação na construção dos vínculos sociais em EES. A ideia é escapar da abordagem puramente socioeconômica, tão presente na literatura sobre o tema, e trazer à baila a 'outra cena', enfatizando a dimensão subjetiva, sem a qual vínculo social algum é construído.
É pela consciência da impossibilidade de despolitizar o conhecimento e consequente engajamento político do fazer científico (Kauth, 2003) que este trabalho se aproxima da Psicologia Política (PP). A problematização da emancipação de grupos sociais que sofrem opressão e o esforço em identificar brechas que potencializem a autodeterminação de suas vidas alinha-se à proposição de Montero (2009): construir uma PP que trabalha processos de desideologização, desalienação, desnaturalização e conscientização, entre outros. Uma PP que "estuda movimentos sociais entrecruzados por processos de desenvolvimento cidadão e de organização comunitária, e para cuja interpretação não servem modelos clássicos desenvolvidos na primeira metade do século XX" (Montero, 2009:207).
O texto está dividido em quatro partes. Primeiro, a discussão dos grupos humanos como lugar privilegiado da gestação de projetos transformadores. Em seguida, trata-se dos grupos fraternos praticantes da autogestão e democracia. A terceira parte divide-se em dois tópicos, especificando os grupos minoritários. Elabora-se, então, um conjunto de analogias entre os grupos minoritários e os EES, que conduz às considerações finais.
O Grupo Humano como Lócus do Projeto Transformador
A ES organiza-se por meio de empresas de pequeno ou médio porte, constituídas no molde das cooperativas de produção, em que organismos internos de representação ensejam um intenso debate entre os membros, favorecendo a interação face a face que caracteriza o funcionamento dos grupos humanos. Ao se pensar em organização tem-se em mente uma dinâmica em que a dimensão coletiva é central, o que favorece o olhar pela perspectiva da instância grupal (Enriquez, 1997b). As referências a organização e grupo são de início quasesinônimos; ao longo da exposição, as diferenças se explicitam.
Eugène Enriquez (1997b) define organização como sistema cultural, simbólico e imaginário. O sistema cultural oferece "uma estrutura de valores e normas, uma maneira de pensar, e um modo de apreender o mundo que orientam a conduta dos seus diversos atores" (Enriquez, 1997b:33) e compõem uma "armadura estrutural". Os integrantes são submetidos a processos de formação e socialização que tonificam uma identidade organizacional, fazendo a organização ser percebida e aceita. O sistema simbólico é a representação articulada do sistema cultural: a organização produz seus mitos unificadores e ritos, forma seus heróis, cria narrativas a eles relacionadas etc. Munida desses artefatos simbólicos a organização se oferece "como objeto a interiorizar e a fazer viver" (Enriquez, 1997b:33). O sistema imaginário é o sustentáculo dos outros dois, divide-se em imaginário motor e enganador. O primeiro incita a criatividade, diferença e singularidade individuais; o segundo prende os indivíduos "nas armadilhas de seus próprios desejos de afirmação narcísica", quando se deixam seduzir pela imagem de instituição grandiosa e divina com que se apresenta a organização (Enriquez, 1997b:35). O imaginário motor é dificilmente suportável para as organizações, dado seu potencial desagregador. Daí a tendência de prevalecer o imaginário enganador, responsável pela estabilidade do grupo social, essencial para a durabilidade necessária a toda organização.
Colocar-se na perspectiva de Eugène Enriquez é adotar a inspiração freudiana diante dos fenômenos organizacionais, admitindo, desde o início, a origem mítica do social e a dialética das pulsões. O mito coloca o simbólico no centro do fenômeno social e explicita a necessidade de uma referência ordenadora. A tensão entre pulsão de vida e de morte dá ritmo a esta ordenação. Toda a organização social se funda e se perpetua na base do amor, amizade, solidariedade de seus membros, porém, "a pulsão de vida encontra em sua rota a pulsão de morte. Freud concebeu a pulsão de morte de início essencialmente como repetição, tendência à redução das tensões ao estado zero [...]. Depois, e secundariamente, como pulsão de destruição voltada para o exterior ou retornando a si mesmo." (Enriquez, 1997b:19).
Três eixos de análise auxiliam a compreensão dos fenômenos organizativos na origem dos grupos humanos: o papel do grande homem no edifício social, a organização como renuncia às pulsões e a presença inalienável da ilusão na edificação dos vínculos sociais (Enriquez, 1997a:20).
Quanto ao papel do grande homem duas tendências se põem em tensão. (1) A figura do pai como chefe da horda, que os filhos matam e idealizam, criando "uma forma de poder derivada diretamente daquela que eles tinham experimentado" ao se subjugarem. Todo chefe ou líder é "herdeiro inconsciente da onipotência do chefe da horda..., uma civilização é criada, portanto, a partir da violência do pai e da violência em troca dos filhos" (Enriquez, 1997b:20). (2) O grupo nato "por um ato de amor espontâneo da parte do chefe que procria o grupo por partenogênese" (Enriquez, 1997b:20). A figura paterna aparece no chefe que irradia seu amor, que ama a todos igualmente e modela o grupo por "hipnose". É o objeto comum do grupo que cada um dos membros investe, num processo de identificação em que o chefe toma o lugar do ideal de eu de cada um. Na origem do grupo encontra-se um pai portador da morte ou um pai amoroso. "De todo modo não existe grupo sem pai, grupo sem obrigação infinita de pagamento de dívida do direito à existência, do direito ao sentido, e sem referência a um polo transcendente" (Enriquez, 1997b:20).
A renúncia da satisfação das pulsões é necessária para que se efetivem os vínculos grupais, e se expressa pela renuncia ao amor dual e o controle da pulsão de destruição. A conversão da pulsão sexual em afeição e amor mútuo do grupo permite "as identificações comuns que unem os seres por vínculos libidinais" (Enriquez, 1997b:21). A renúncia das pulsões agressivas é indispensável para evitar relações de dominação e exploração.
A combinação de renuncia às pulsões e sentimento de culpa representa uma tensão permanente, daí a ilusão ser a função que responde pelo equilíbrio e estabilidade dos vínculos sociais. A ilusão oferece garantias de proteção à comunidade, tudo se passa como se... uma entidade superior zelasse por ela. Se a ilusão primeira falhar, a comunidade instituir-se-á, ela mesma, como novo sagrado: a identificação com a "ordem transcendente" dará lugar à identificação mútua, interna ao grupo (Enriquez, 1997b:22).
Pai castrador e o pai amoroso são formas de poder que ordenam o social: o confronto com o pai simboliza o confronto com a lei. Na relação edipiana, instaura-se uma relação pai-mãefilho que é a entrada do sujeito no mundo social. A relação triádica é signo da civilização, "o centro do problema edipiano é o problema da civilização, não tanto o desejo de fazer amor com a mãe e matar o pai; é que enquanto houver só dois, não haverá sociedade" (Castoriadis, 2002:48). O terceiro termo instaura a noção de que o pai é apenas um entre muitos, o que está em jogo é a integração progressiva da lei por parte do sujeito:
Não se trata de submissão à regra, mas de sua retomada, de sua integração, de sua identificação à pessoa que a estabelece e que dará ao filho, por sua vez, a possibilidade de ser possuidor e mestre da regra; regra flexível e em evolução, já que aceita, integrada e internalizada não como regra, mas como abertura ao mundo dos homens. (Enriquez, 2007b:15)
A relação absolutamente assimétrica dá lugar à relação simétrica fraterna, mas isto não se faz pacificamente: o reconhecimento se faz com luta. Eis a dialética das pulsões: a fraternidade e a diferenciação entre os seres são indissociáveis da sua destruição. Matar o pai significa perder para sempre a possibilidade de reconhecimento imediato; agora, o reconhecimento passa necessariamente pelo ser do outro.
Duas dimensões do poder são correlatas à função paterna: consentimento e destruição. De um lado, a integração e internalização da lei, equalização dos seres por meio da retomada dos interditos em cada um deles; de outro, a faceta do poder resultante da luta permanente, que faz do mundo um conjunto de "comunicações assimétricas" – na economia, na política e na guerra – a guerra manifesta a essência desse poder: "a negação dos outros, a manifestação da pulsão de morte" (Enriquez, 2007a:21). Esta fórmula da guerra prenuncia a possibilidade de transformar a ordem social:
A negação pura e simples do interdito, na verdade, não passa de um outro modo de aceitação do interdito. A revolta representa a aceitação e a consagração do poder. Somente a evolução progressiva ou a revolução, ou seja, a criação de novos valores, de novas normas, de um novo modo de vida, é capaz de questionar o poder. Ela implica que cada sujeito se reconheça como homem, como potência operante, como inovação. É isso que Freud nos faz sentir em sua análise do complexo de Édipo. O filho só poderá entrar no mundo humano quando se apresentar como adulto... (Enriquez, 2007a:19)
O poder transformador apresenta-se pela referência e não pela negação, significa a dessacralização do poder: ele passa a ser de todos. A lei retomada pode ser a medida e a mediação ao alcance de todos, pois será interrogada enquanto tal. O poder despido de sua aura pode ser questionado: "somente quando há referência pode haver liberdade e autonomia" (Enriquez, 2007a:19).
O Grupo Fraterno: poder como capacidade de realizar fins coletivos
A lei retomada tem lugar nos grupos humanos que praticam democracia e autogestão. Aqui a fonte de poder reside na "adesão consciente ao trabalho efetuado e aos objetivos do grupo... e na capacidade de realizar fins coletivos" (Enriquez, 2007a:36). A estrutura social oriunda dessa fonte é o grupo que não segrega dirigentes. "Politicamente podemos caracterizar a democracia no grupo... como o regime de organização que assegure a esses grupos sua autogestão sem poder diferenciado, ou seja, sem seleção de um subgrupo de dirigentes entre seus membros." (Pagès, citado por Enriquez, 2007a:36).
A compreensão da dinâmica que induz o poder democrático depende do alargamento da apreensão dos fenômenos políticos para além da formalidade, "[...] enquanto os teóricos do poder democrático limitam suas investigações ao estudo das modalidades jurídicas da distribuição do poder [...] e da participação dos cidadãos [...]; os psicossociólogos tentam compreender e descrever as reais condutas dos grupos e dos indivíduos, ligadas por determinadas formalidades jurídicas." (Enriquez, 2007a:37).
A leitura do fenômeno político pela Psicologia Social alcança o que excede o poder formal, põe às claras sua distância para com a conduta real. O poder formal deixa um vazio entre a lei e a obediência, e se mostra insuficiente para recobrir esta brecha. O problema do vazio da formalização pode ser condensado numa simples constatação: "... é indispensável que as atitudes dos participantes, seu modo de relacionamento e seu nível de comunicação sejam coerentes com a forma jurídica" (Enriquez, 2007a:37).
A lei e a obediência se implicam mutuamente. O argumento é importante para a compreensão da dinâmica em operação nos EES. O exemplo dos conselhos operários evidencia que não basta empoderar pequenos grupos sem que seus membros saibam trabalhar e decidir em grupo; é imprescindível que eles se aceitem "mutuamente como seres humanos e não como objetos manipuláveis", se comuniquem "sabendo que a comunicação sem falhas não existe" (Enriquez, 2007a:37), que se mostrem plenamente disponíveis para o grupo. "A distância psicológica entre os membros dos grupos é reduzida ao máximo, e o detentor do poder é o próprio grupo. O chefe designado é simplesmente aquele que tem melhores capacidades de levar o grupo a alcançar os fins coletivos [...] seu poder é limitado e se pretende limitado; ele é partilhado entre os membros do grupo [...]" (Enriquez, 2007a:37).
A referência da Psicologia Social de inspiração psicanalítica evidencia a preocupação com "as condições de uma democracia real, enraizada no querer e na afetividade dos agentes." (Enriquez, 2007a:38). O poder coletivo se concretiza pela relação intragrupal simétrica do poder fraterno. "Vemos que aqui se desvela uma forma de poder totalmente original... Ela se torna possível desde que se quebre a contradição essencial: fraternidade / destruição do outro, ou seja, desde que o possuidor do poder aceite relações simétricas. Talvez seja essa a razão pela qual seja tão difícil aceitá-la e aplicá-la." (Enriquez, 2007a:39, grifos meus).
O Grupo Minoritário (I): os limites do poder fraterno
Toda utopia é uma inversão da realidade que leva um grupo à condição de "comunidade da negação", condição em que se nega a realidade para se viver na base de uma ilusão. Tanto o movimento cooperativista quanto a psicossociologia norte-americana flertam com a utopia, ao mesmo tempo, encontram no grupo fraterno um modelo de organização (Enriquez, 2007a:102). O resultado são as ilusões imanentes ao projeto autogestionário gestado pelo movimento cooperativista, bem como a noção de "grupo informal".
Os iniciadores do movimento cooperativo inspiraram-se no socialismo utópico para realizar um projeto, desejavam ir além das simples ideias para inscrever na realidade organizações de trabalho cujas práticas concretas contivessem seus ideais. Como sujeitos pertencentes a categorias sociais ameaçadas em sua existência pela revolução industrial, o tipo de organização gestada por eles tinha acento defensivo e marcava uma luta por reconhecimento, fazendo "oposição, pelo pensamento e pela ação, às novas hierarquias que estavam sendo instituídas" (Enriquez, 2007a:102).
As conhecidas regras às quais se submeteram os cooperativistas pioneiros de Rochdale – adesão livre, administração democrática, repartição igualitária dos resultados do trabalho, educação, etc. – deram consistência à ideia de uma sociedade autogestionária constituída na base de pequenos grupos de produtores independentes. Tais regras favorecem o grupo "que vive o ideal democrático com todas as suas exigências: um homem deve ser igual a outro, [...] conformar-se às normas do grupo, mas não é obrigado a continuar a fazer parte dele se não mais o desejar" (Enriquez, 2007a:103).
Essas mesmas regras criam ilusões, pois sua concepção exagera na idealização da vida grupal e o resultado não previsto do projeto é a tendência dos grupos se fecharem em si mesmos. A vida interna do grupo ganha centralidade frente à mudança social, o investimento afetivo no grupo é o meio privilegiado para a consecução do modus vivendi almejado. "Acima de tudo eles têm a clara percepção da necessidade de viver a democracia diariamente, através de inter-relações concretas com outros homens [...]. Nesse aspecto, eles são os primeiros interventores da psicossociologia." (Enriquez, 2007a:103).
Este ideal do "bom grupo" aproxima movimento cooperativo e psicossociologia norteamericana dos pequenos grupos (Mayo, 1972). Para ambos, inexistem "conflitos de gravidade que não possam ser tratados" e "completamente resolvidos por um acordo" (Enriquez, 2007a:104). Se os conflitos entre os seres humanos são tidos como solúveis por princípio, o homem é visto como um ser essencialmente bom, capaz de tomar consciência dos laços sociais que se instauram no grupo, a ponto de desejar espontaneamente os modos partilhados de tomada de decisão.
Grupo Minoritário (II): a existência ameaçada
O grupo minoritário pode ser pensado por indução, pela generalização da condição dos pioneiros do cooperativismo. São sujeitos que integram categorias sociais "ameaçadas em sua existência [...]" e organizadas de modo a "fazerem oposição, pelo pensamento e pela ação, às [...] hierarquias [...] instituídas" (Enriquez, 2007a:102). Estamos diante de grupos que demandam reconhecimento, e que não o terão senão por meio da luta, opondo-se ao instituído. A solução gestada pelo grupo depende da relação que se estabeleça entre a realidade interior e exterior do grupo. Não há conteúdo objetivo universal nesta luta, mas uma dinâmica da condição minoritária teorizada por Enriquez (1997b).
Os grupos minoritários são portadores de um "projeto comum", isto implica que o grupo tenha para si uma autorrepresentação e um conjunto de valores introjetados, assim a ação grupal ganha o sentido preciso de passagem do projeto à sua realização. A autorrepresentação intelectual e afetiva comum tem apoio no imaginário social motor do grupo, que impulsiona a ação comum: "só podemos agir enquanto tenhamos uma maneira de representar para nós aquilo que somos" (Enriquez, 1997b:92). Assim, se explica de o grupo experimentar uma "mesma necessidade de transformar um sonho ou fantasma em realidade cotidiana, e dar a si os meios adequados para chegar a isto" (Enriquez, 1997b:92).
O grupo funciona na base dos três processos: idealização, ilusão, e crença. A idealização eleva as qualidades e o valor do projeto à perfeição, constrói uma "aura" que contagia os integrantes do grupo, por meio do reforço simultâneo do ego ideal e do ideal de ego, e os faz dignos de um projeto tão excepcional. A ilusão permite a canalização dos desejos, e esgota a interrogação crítica acerca do valor do projeto. Os dispositivos simbólicos – mitos unificadores, narrativas heroicas, artefatos etc. – operam esta dupla função porque mobilizam o desejo, ainda mais quando o projeto se apresenta inatacável. A crença é a autonomização da ilusão que esvazia a questão da verdade, "um dispositivo simbólico cobrindo toda a dúvida, todo o trabalho de indagação sobre si mesmo, se converte em sistema de crença" (Enriquez, 1997b:92).
Os três processos, presentes em diferentes matizes, fazem do projeto comum uma causa a defender. "Todo o membro de um grupo é, em certa medida, o porta-voz e o fiador de 'alguma coisa' que o ultrapassa e legitima sua ação e sua vida [...]": a missão a cumprir e o dever de realizá-la. "Para que um grupo se cristalize e se atribua os meios de ação, é necessário que se refira a um grande plano que o assegure de seu poder" (Enriquez, 1997b:93). A maioria representa a consumação de um triunfo; o grupo minoritário se constitui em contraposição ao que triunfou, numa "conduta desviada em relação às normas da instituição ou da organização [...]" (Enriquez, 1997b:93):
Toda a minoria tem [...] vocação majoritária: mas, antes de alcançar seus fins, ela deve de pronto [...] chegar a um grau de aderência que permita às pessoas se sentirem, antes de tudo e contra tudo, membros do grupo. Para tanto somente um caminho se abre: o complô contra os valores instituídos, visando à transgressão da ordem estabelecida. A transgressão não só questiona de maneira virulenta as instituições e as condutas estabelecidas, mas propõe novas ideias, maneiras inovadoras de ser (Enriquez, 1997b:94, grifos meus).
As instituições são representações do "pai onipotente" ou da "mãe devoradora", ao grupo nada resta senão conspirar, opondo-lhes uma ordem contrária e transgressora: a organicidade do grupo se realiza numa ordem igualitária e fraternal. O ódio do exterior tem correlato no amor intragrupal, que faz circular o fluxo libidinal na passagem dos sentimentos egoístas aos sentimentos altruístas (Enriquez, 1997b:94). O sentimento de ser perseguido pela ordem triunfante favorece "a emergência do narcisismo grupal e a ausência de todo conflito interno" (Enriquez, 1997b:94). A questão fundamental é a mobilização contra a ameaça à própria existência, vinda daquilo que representa a causa triunfante. O grupo minoritário existe pondose à margem ou 'fora da realidade', para ser capaz de criar 'outra' realidade, condizente com uma 'nova' existência livre de ameaças. "Ódio do exterior, amor mútuo, amor do grupo enquanto grupo, sentimento de serem irmãos... uma comunidade de iguais... minoritários e portadores da verdade são condições que entram na constituição do vínculo grupal." (Enriquez, 1997b:95).
Ao constituir-se por meio de tais vínculos, um conflito incontornável marca a vida desses grupos: o conflito, vivido pelos membros, entre o "reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento" (Enriquez, 1997b:95). O reconhecimento do desejo faz cada pessoa desejar ser amada, ou, no mínimo, não ser rejeitada por aquilo que é. Fazer parte de um grupo é mais que partilhar seu projeto, é pensar em si mesmo como alguém que pode tornar seu desejo e originalidade reconhecível justamente pela convivência com aqueles que pertencem ao grupo, e graças ao seu imaginário comum. "Cada pessoa irá então tentar prender os outros nas redes de seus próprios desejos, manifestar no real seus fantasmas de onipotência e negar a castração, vivida num tal caso como ameaça real e não como elemento da ordem simbólica" (Enriquez, 1997b:95). O desejo de reconhecimento ou identificação é a expressão do desejo de ser reconhecido como um dos membros, que pode acontecer se as pessoas não forem muito diferentes entre si. Para que os membros de um grupo se reconheçam e "possam se amar... devem se identificar uns com os outros, colocar um mesmo objeto de amor (a causa) em lugar do seu ideal de eu." (Enriquez, 1997b:95).
O modo de resolução desse conflito dá origem a duas formas elementares: a massa que correspondente à primazia do desejo de reconhecimento; e a diferenciação protagonizada pelo reconhecimento do desejo.
O grupo-massa é centrado na identificação restrita e intolerante com a diversidade de condutas e pensamentos, características que têm consequências para a vida do grupo. A falta de variedade leva ao declínio da reflexão e da inventividade. O grupo tende a se tornar uma entidade toda-poderosa autônoma, corpo independente e temido por ser capaz de englobar os membros, evocando imagens arcaicas e fantasmas primitivos. O grupo-massa todo-poderoso é objeto de todos os investimentos, integrar-se nele é "ser mais forte e mais belo", o narcisismo pessoal reforça o narcisismo do grupo e vice versa (Enriquez, 1997b:97).
O grupo-diferenciação, ao contrário, caracteriza-se pela aceitação da expressão pessoal, admissão da diferença e variedade dos desejos exprimidos. O projeto comum é tomado tanto mais positivamente quanto mais seja resultado de conflitos negociados, argumentações contraditórias e debates. É um grupo de irmãos, "cada um reconhecendo a competência do outro que incide sobre domínios específicos [...]. A tolerância é de aceitação, ainda que as posições de cada qual sejam defendidas com clareza e obstinação." (Enriquez, 1997b:97). Este modo de regulação pode levar o grupo a exacerbar o conflito, nesse caso, a energia se volta à resolução das contradições internas, secundando o projeto comum. Ensimesmado, o grupo perde os objetivos almejados ou fixa-se na procura de um bode expiatório, para responsabilizá-lo e sacrificá-lo. Para evitar este caminho é necessário admitir a diferença e desejar ser gerido de maneira democrática, ao reconhecer num dos membros "um poder de sedução e uma influência no domínio das ideias, e investi-lo como chefe, capaz encarnar a vontade e desejo do grupo". Assim transformado, o grupo se torna um "grupo edipiano", tendo no "novo pai" uma referência que promove identificação mútua e coesão interna (Enriquez, 1997b:98).
Independentemente da forma que assumam, os grupos minoritários têm como marca a erotização das relações: a defesa da causa é sempre passional. O grupo é habitado por um fantasma de onipotência sem o qual não poderia haver convergência no desejo de mudar a ordem do mundo: "a situação minoritária obriga as pessoas a sentirem-se solidárias e amaremse, mas igualmente a defenderem-se contra o exterior e a entre-devorarem-se" (Enriquez, 1997b:98). Quando o mundo 'lá fora' é investido negativamente, a vigilância mútua, a suspeição e o julgamento entre os 'companheiros' torna-se regra. A tentação paranoica acompanha o processo libidinal, transformado em processo de erotização, tanto no sucesso quanto no fracasso. Se o grupo tiver sucesso em tornar aceitos seus ideais, transformando ainda que minimamente o campo social, então não tem dúvida de "estar dentro da verdade". Porém, se fracassar, procurará e encontrará as causas de seu fracasso nos inimigos externos que "fecharam as portas", e nos inimigos internos que "sabotaram os esforços comuns": "o grupo é incapaz de se interrogar sobre as verdadeiras razões de seu fracasso" (Enriquez, 1997b:100).
O caráter essencial dos grupos minoritários está em sua constituição e realização contrária à existência ameaçada, o grupo é essencialmente criação de uma comunidade: "uma associação voluntária de pessoas que experimentam em comum a necessidade de trabalharem em conjunto ou de viverem juntas de maneira intensa, a fim de realizarem um ou diversos projetos que assinalam sua razão de existir" (Enriquez, 1997b:103). A existência do grupo é indissociável do ideal comunitário, com seus atrativos e ilusões. Viver em comunidade é conviver com as contradições fora do sofrimento, criar a partir das tensões, neste 'lugar' e neste 'tempo' não há antagonismo entre lógica e afetividade, cada um pode ser totalmente ele mesmo e autor social. O grupo é então o "momento" da comunidade reconciliada. O que está em jogo é a possibilidade de um mundo, a um só tempo, coeso, caloroso e igualitário, funcionando conscientemente, que não se deseja falacioso e que se transforme dentro de seu ritmo próprio. (Enriquez, 1997b:102). Este "momento" permanece indispensável para a criação de toda organização, instituição e sociedade histórica. Se a comunidade não existisse o mundo seria feito unicamente de regras, sistemas de poder e relações de força, pura frieza, sistemas de alianças e de agressividade. "Para que esse mundo não seja o único a sobrevir ou que não sobreviva unicamente assim, é necessário que a comunidade intime todos os seres a buscar a nostalgia" (Enriquez, 1997b:104). A comunidade é a força instituinte, nos termos de Castoriadis (1995), funcionando desde o interior do instituído: o grupo dentro da organização ou instituição. A "comunidade" é a significação imaginária típica da instância grupal.
Por outro lado, a comunidade é sempre algo incompleto, "termina na inércia e num mundo de dúvidas", a comunidade é obra que termina somente com a consecução de uma organização: "nada da comunidade se conclui senão na luta e na organização" (Enriquez, 1997b:104). A tentativa do movimento autogestionário de fundar o mundo real sobre o grupo, e mudá-lo através dele, se vê continuamente renovada e fracassada. "O grupo permanece então uma instância inquietante... pode pender sobre si mesmo, criar normas muito rígidas, processos identitários maciços; pode ser pelo contrário o motor da mudança ou seu lugar privilegiado" (Enriquez, 1997b:104).
Forma e Organização dos EES: analogias com o grupo minoritário
A descrição do grupo minoritário partiu da experiência histórica dos pioneiros de Rochdale, pois, se o cooperativismo histórico inspira boa parte dos pensadores da ES, a pretensão aqui é revelar conexões que foram silenciadas em suas interpretações. Isto se fará pelo exercício da analogia direta, que "serve para estabelecer uma comparação, colocar em paralelo os fatos, os conhecimentos ou as disciplinas diferentes [...]" (Enriquez, 1997b:12). A tentativa é colocar em paralelo grupos minoritários e empreendimentos da economia solidária (EES).
A "Existência Ameaçada"
Vários autores da ES reconhecem a existência ameaçada nos grupos que compõem EES. Para Gaiger (2000), o engajamento dos sujeitos sociais em projetos da ES se deve, em boa medida, a uma não opção de inserção econômica. A proposta da ES se explica, ela mesma, pela ameaça de desemprego, pobreza, falta de perspectivas de inserção econômica (Singer, 2002b). Segundo Vieitez e Dal Ri (2001a:146), "o desemprego estrutural e a obsolescência crescente do tempo de trabalho como medida de valor" levam trabalhadores a encontrarem saídas, dentre elas a ES.
Os EES constituem-se como refúgios protetores onde os sujeitos amotinam-se, buscando escapar das ameaças 'de fora'. Este aspecto faz emergir vínculos de solidariedade entre os integrantes dos projetos, cria a brecha para que se forme um grupo minoritário potencialmente capaz de fornecer organicidade ao empreendimento.
A existência ameaçada marca os grupos de ES e dá um sentido específico ao seu projeto comum. Ao contrário dos pressupostos de autores da ES, parece duvidoso que eles expressem um grande projeto de transformação social, integrado a um amplo movimento social de ES. Mais plausível seria pensar que o projeto tenha o sentido profundo de uma causa a defender, principalmente, porque incide sobre a existência mesma dos sujeitos envolvidos. Causa e sobrevivência misturam-se, por isso ganha dimensão especial o fracasso/sucesso dos empreendimentos. O reconhecimento e a aceitação do projeto são sinônimos de sucesso, e podem colocar entraves à adoção de práticas que não revelem eficiência imediata. Se a autogestão parecer um impedimento ao sucesso, é provável que seja descartada: por que a autogestão valeria o sacrifício? Qual será a 'verdadeira' causa a defender?
A existência ameaçada é um signo da pulsão de morte. O trabalho da pulsão de morte é fundamental para 'desligar' os vínculos com a antiga situação de precariedade. A morte favorece a emergência do novo, rompe as ligações e apoios estabilizados e obriga a reiniciar a busca no nível das pulsões. "A morte favorece a desestruturação-reestruturação, a autoorganização, a abertura do sistema... favorece o nascimento de novas representações, de outro universo simbólico" (Enriquez, 1997b:132).
Democracia e Autogestão: as contradições diante do entorno capitalista
O contexto capitalista impacta os processos de trabalho nos EES. Há um limite à reinvenção das formas de organizar, dado por aspectos econômicos da produção. Essas determinações obrigam a uma estabilização das relações sociais internas ao grupo, obrigamno a encontrar o ponto arquimediano da autonomia/disciplina na produção. A fala de um cooperativado da ES exemplifica o problema: "Os principais conflitos aconteceram quando abolimos o cartão de ponto e as chefias. Parece que abolimos os limites. Quando tiramos, teve gente que passou três dias sem vir na fábrica e não estava nem aí. Muita gente saia antes do horário e não falava nada para ninguém." (citado por Vieitez & Dal Ri, 2001b:24).
Por que abolir limites é tão perigoso? Qual o problema de atrasar, faltar ao trabalho ou sair antes do horário sem avisar? Há dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito à relação do EES com as regras e normas (analogia da relação do grupo com a lei, com o pai); o segundo é o problema dos limites e seu modo de aparição nos EES. O perigo de abolir os limites é a supressão das diferenças, o que faz do comportamento transgressor nada mais que pura celebração do poder. A mensagem é ouvida e entendida: o transgressor quer tomar o lugar da lei, o lugar simbólico do pai. O sentido disso é percebido pelo grupo: o comportamento é perigoso porque significa o não reconhecimento do outro, cancelando o vínculo grupal diferente da submissão, ou seja, apaga o que há de fraterno no grupo.
A analogia com o grupo minoritário auxilia também a compreender contradições externas. O ambiente e as instituições capitalistas significam a recusa do projeto comum, porque simbolizam "o pai onipotente" ou "a mãe devoradora" (Enriquez, 1997b). O ódio do exterior é um mecanismo para que o grupo se torne coeso. O sacrifício (de vencer barreiras iniciais, trabalhar jornadas extensas, mal remuneradas etc.) pode ter relação com a causa a defender: o sacrifício remete ao objeto sagrado, e a causa da sobrevivência do grupo, por meio da vitória de seu projeto, tem esse peso. A presença de processos de idealização, ilusão e crença também ajudam a elucidar esta contradição externa. O grupo não é capaz de tomar para si o sentido da contradição em seu trabalho cotidiano, a precariedade pode parecer evidente aos olhos de um analista externo, mas para o grupo é o seu trabalho, e, sobretudo, o que conduz à realização do projeto comum, numa laboriosa gestão cotidiana.
A Trajetória do Grupo
A concepção de grupo minoritário tem o mérito de incluir as aspirações do movimento autogestionário com a devida distância crítica em relação às ilusões nele implicadas. A análise dos EES aqui preconizada permite apontar uma armadilha conceitual disseminada na literatura da ES: o pressuposto autogestionário.
A analogia com o grupo minoritário evidencia ganhos ao se questionar esta tese. A busca de imparcialidade incita pensar que os EES aportam um projeto gestado por trabalhadores, e que este projeto tem um conteúdo objetivo a ser apreendido, e não predeterminado. A apreensão privilegia a trajetória de um grupo com intenção de solidificar uma organização: desenha-se um processo de transição – saída da condição de existência ameaçada para uma condição de (mínima) segurança, na representação imaginária do grupo.
Vale lembrar a vocação majoritária dos grupos minoritários. O sentido dessa vocação situa-se no interior do grupo ao alcançar aderência e coesão internas. Os vínculos e as identificações manifestam-se pela oposição virulenta com o exterior, e tem expressão na paranóia grupal. Esta intensa ligação interna é típica da organicidade da instância grupal. A relação com o exterior é estruturante, o ódio do exterior e o desinvestimento que produz são necessários para o grupo ganhar consistência. O isolamento conforma aquilo que é a criação da instância grupal: a "comunidade" (Enriquez, 1997b).
O caráter comunitário do grupo representa um potencial transgressor para as instituições do entorno. A comunidade se define como força instituinte (Castoriadis, 1995), designação que marca o caráter de obra permanentemente se fazendo no interior da instituição. Eis o sentido da afirmação sobre o caráter inconcluso da atividade do grupo: a atividade grupal alimenta a organização e a instituição com um gérmen transgressor. Esta tensão é o que caracteriza a forma dos EES: dado o contexto de inserção no modo de produção capitalista, as "empresas solidárias" devem construir-se como negócios prósperos. Mas, como fazê-lo?
O que foi acima referido por "contradições", pode ser lido da perspectiva interna do grupo como uma trajetória em direção à organização, signo de sucesso do projeto. Aqui se revela o aspecto fundamental relacionado ao esclarecimento da forma e organicidade dos EES: a manifestação da dinâmica grupal em relativa (des)harmonia com a estruturação da organização. Trata-se de um modo de organizar que não anula a lógica comunitária, mas a incorpora seletivamente. Esta característica se insinua na tese da eficiência solidária (Gaiger, 2002; Gutierrez, 2000) de modo insuficiente: ao permanecer na superfície do grupo, restringese o campo de ação dos sujeitos à lógica socioeconômica capitalista.
O sucesso dos EES pode ser pensado 'outramente', e parece consistente com a proposição enriqueziana do grupo minoritário: "tornar aceitos seus ideais, e transformar pouco ou muito o campo social" (Enriquez, 1997b:100). No caso dos EES, o sucesso pode ser resumido, um tanto abruptamente, como a realização pura e simples de produzir e vender o que se produz. A transformação do campo social dá-se, então, pela aceitação no mercado e consequente sucesso econômico-financeiro – um considerável avanço para um grupo saído da condição de existência ameaçada. Desta perspectiva, a autogestão, solidariedade e cooperação podem evanescer sem prejuízo do projeto.
Considerações Finais
A possibilidade concreta revelada pela análise dos grupos minoritários é a trajetória do projeto comum ser uma evolução do grupo em direção a uma organização. Sem que se tenha uma forma pré-vista para esta organização, ela será um resultado da dinâmica de evolução do próprio grupo. Nesse sentido, é preciso lembrar que os apoios simbólicos são indispensáveis para a construção e elaboração da realidade psíquica dos grupos, por isso, o fato de os símbolos da sociedade capitalista se oferecerem com tamanha volúpia não é negligenciável.
Parece fundamental considerar a indeterminação do processo de transformação gestado pelos grupos de trabalhadores no âmbito da ES. O que se aponta como problema a enfrentar é a necessidade dos EES construírem-se por processos de incorporação seletiva da racionalidade capitalista, sem o que não sobreviverão. O que está em jogo é a autolimitação, o trabalho do grupo sobre si, suas ilusões e sua obra. Trata-se, portanto, de um campo de possibilidades, que jamais se abriria para o grupo se ele não desenvolvesse alguma capacidade de converter-se em um projeto: para se fazer reconhecer é preciso algum sucesso comercial.
Portanto, não parecerá escandaloso concluir pelo abandono da tese da solidariedade, cooperação e autogestão. Abandono que não significa descrença, mas simples abertura para o novo, assunção da indeterminação presente nos projetos dos grupos humanos que compõem empreendimentos de economia solidária.
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Endereço para correspondência
Fabio Bitencourt Meira
E-mail: fbmeira@ea.ufrgs.br
Recebido em: 03/05/2011
Revisado em: 27/10/2011
Aceito em: 16/11/2011
* Doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, SP, Brasil, e Professor Adjunto da Escola de Administração de Empresas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.