Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
A psicologia e a judicialização dos casos de violência sexual
Psychology and judicialization cases of sexual violence
La psicología y la judicialización de casos de violencia sexual
Consuelo Biacchi Eloy*; Elizabeth Piemonte Constantino**
Universidade Estadual paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, SP, Brasil
RESUMO
A violência sexual é um fenômeno a ser enfrentado por diversas ações públicas e exige um sistema de notificação formal que preserve a vítima do sofrimento da exposição pública. Este texto discute, na especificidade da atuação da Psicologia, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a importância das políticas públicas no enfrentamento da violência sexual e no atendimento às vítimas. O principal objetivo deste trabalho é proporcionar uma revisão da relação estabelecida entre o Poder Judiciário e as Políticas Públicas, com enfoque no trabalho em rede e na desnecessária judicialização de ações, as quais deveriam se desenvolver em outro âmbito. A maneira como o fato é tratado na família e na sociedade vai determinar as reações e a predisposição da vítima para falar sobre o assunto, tanto no inquérito policial, quanto no processo judicial ou, ainda, nos programas específicos de atendimento.
Palavras-chave: Justiça, Judicialização, Políticas públicas, Psicologia, Violência sexual.
ABSTRACT
The violence is a phenomenon to be faced by several public actions and requires a formal notification system that preserves the victim of suffering from public exposure. This article discusses, in the specificity of Psychology action at the Court of the State of Sao Paulo, the importance of public policy in confronting sexual violence and the assistance of the victims. The main objective of this article is to provide a review of the relationship between the Judiciary and the Public Policy, focusing on networking and the unnecessary judicialization of actions that should be developed in another environment. The way the fact is treated in the family and the society will determine the victims' reactions and their readiness to talk about it, both in the police investigation, as in the judicial lawsuit, or yet, in specific assistance programs.
Keywords: Justice, Judicialization, Public policy, Psychology, Sexual violence.
RESUMEN
La violencia sexual es un fenómeno que se enfrentan por diversas acciones públicas y requiere un sistema de notificación formal que proteja a la víctima del sufrimiento de la exposición pública. En este artículo se discute la especificidad de la acción de la Psicología, en la Corte del Estado de São Paulo, la importancia de las políticas públicas en la lucha contra la violencia sexual y atención a víctimas. El objetivo principal de este trabajo es proporcionar una revisión de la relación entre el Poder Judicial y Políticas Públicas, con enfoque en el trabajo de red y en la innecesaria judicialización de acciones las cuales deberían desarrollarse en otro ámbito. La manera como el hecho es tratado en la familia y en la sociedad va a determinar las reacciones y predisposición de la víctima para hablar sobre el asunto, tanto en la investigación policial, como en el proceso judicial así como en los programas específicos de atención.
Palabras clave: Justicia, Legalización, Política pública, Psicología, Violencia sexual.
Introdução
Este texto tem o objetivo de discutir a judicialização das políticas públicas nos casos de violência sexual e traz a criança como protagonista da análise dos discursos produzidos no sistema de notificação que envolve diferentes instituições. Inicialmente, traça um breve histórico sobre a prática pioneira do profissional de Psicologia, no contexto judiciário, com especial enfoque nos casos de violência sexual contra a criança.
As reflexões apresentadas neste trabalho são norteadas pela experiência profissional como psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que há duas décadas participou da implantação do Serviço de Psicologia em Comarcas de pequenas cidades do interior paulista. Além disso, outra fonte de reflexão é a pesquisa que vimos desenvolvendo como tese de doutorado sobre o papel da Psicologia como instrumento de validação do testemunho da criança vítima de abuso sexual. A análise refere-se às práticas da sociedade brasileira contemporânea no atendimento às vítimas e os profissionais que compõem a rede de proteção das instituições sociais, educacionais, de saúde, jurídicas e policiais. Portanto, profissionais das áreas do Direito, da Medicina, da Assistência Social, da Psicologia e da Pedagogia necessitam inteirar-se das transformações provocadas pelas necessidades de construir uma nova política de atendimento às crianças vítimas de abuso sexual.
A significância das intervenções judiciais na interface com as políticas públicas é identificada no artigo, mediante a discussão sobre a importância do trabalho articulado e interdisciplinar, no atendimento às vítimas da violência sexual. Em seguida, discute-se a relação da sexualidade com a violência e sua influência na atuação dos profissionais envolvidos com esse fenômeno, objetivando a compreensão das dificuldades éticas no atendimento às vítimas.
A representação social da violência sexual se apresenta no momento em que o profissional acolhe a queixa da vítima, exigindo que as políticas públicas sistematizem as ações sociais. Tal abordagem está explicitada no texto e diferenciada entre a revelação a uma pessoa escolhida pela vítima e a denúncia aos órgãos que formalizarão os encaminhamentos e os procedimentos policiais e judiciais. A diversidade das intervenções profissionais e institucionais compõe um processo que está materializado nas práticas profissionais construídas no cotidiano da sociedade brasileira.
A Psicologia Jurídica e a Violência Sexual
As vítimas de violência sexual buscam no contexto judiciário, além da proteção de seus direitos fundamentais, a responsabilização e a punição pública do agressor. A inserção da Psicologia no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo apresentou aos profissionais da área uma realidade que, até então, estava distante do cotidiano profissional e as características da infância que lá encontraram não estavam impressas nos livros acadêmicos. O aprendizado se construiu no decorrer dos anos, e ainda se constrói, através de cada entrevista com crianças vítimas de violência sexual, as quais ensinam aos profissionais a acreditar em sua palavra e confiam-lhes seu segredo.
A partir da prática cotidiana, ao longo dos anos, observa-se que o trabalho da Psicologia construído no contexto judiciário, após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, em contraste com a dinâmica dos procedimentos judiciais e a objetividade do Direito, trouxe uma nova forma de escuta às vítimas e um novo olhar sobre o fenômeno da violência sexual. Contudo, na atualidade, a articulação e a intersetorialidade provinda das políticas públicas municipais oferece um diferencial no trabalho do psicólogo jurídico, pois além da elaboração dos laudos periciais, o profissional participa da interlocução proveniente do trabalho em rede.
O pioneirismo da implantação de um serviço de Psicologia na instituição judiciária teve seus percalços, pois, além da inserção em relações formais e tradicionalmente estabelecidas, mediante ritos jurídicos, necessitou imprimir um discurso diferenciado sobre o usuário da justiça, não apenas crianças e adolescentes, mas também seus familiares. Por meio de quesitos e determinações judiciais para a elaboração dos relatórios de avaliação psicológica, foi, sutilmente, revelada a expectativa inicial dos operadores do Direito de que o serviço de Psicologia desvendaria as dissimulações e as intenções subjacentes do ser humano. Entretanto, tal expectativa foi frustrada, uma vez que a participação atual do psicólogo no Poder Judiciário não corresponde ao ideário popular da lógica positivista da Psicologia Jurídica construída ao longo da história.
Assim, a Psicologia conquistou um espaço de atuação e exigiu do profissional a renúncia do sentimento de onipotência em trazer soluções generalizantes para o que lhe era determinado nos procedimentos judiciais. Foi um desafio perante a diversidade das demandas e das intervenções, mas que propiciou a construção de uma nova prática da Psicologia no Poder Judiciário. Por consequência, foi inevitável a busca de parcerias, não somente porque a lei regulamenta, mas pela necessidade da interlocução e da articulação das ações.
A Psicologia Jurídica, inicialmente, relacionada à área criminal, se expandiu para a atuação com a família, a infância e a adolescência e, conforme ressalta Jacó-Vilela (2005), tal fato exigiu um posicionamento coerente do profissional frente à possibilidade de tornar-se um avaliador da intimidade e de não descuidar de contextualizar o indivíduo em seu mundo social e cultural. A leitura prévia dos autos processuais, que antecede às entrevistas para a confecção dos laudos psicológicos, proporciona ao profissional o contato com a difícil realidade de que crianças são submetidas a sevícias físicas, psicológicas e sexuais.
Tomar conhecimento da violência sexual como realidade e não somente como referência bibliográfica altera os referenciais pessoais e exige técnicas específicas para a atuação profissional, uma vez que os atendimentos às vítimas proporcionam o contato direto com tal realidade. A existência de uma lei que reconheça a violência sexual infantil como crime não tem o poder de modificar as representações construídas pelo profissional durante sua vida.
Os questionamentos e as reflexões aventam a insegurança das práticas com a vítima criança que espera diante da porta da sala de atendimento. O profissional de Psicologia, ao deparar-se com uma infância desconhecida, com o enfrentamento da responsabilidade de participar da história e do destino da vítima, com a exigência da infalibilidade profissional e, por fim, com o modo de encaminhamento a ser realizado, experiencia o sentimento de impotência da atuação individual. A motivação para a determinação da avaliação psicológica provém de diferentes fatores, entre os quais o estado emocional da vítima após a revelação e a denúncia formal da clandestinidade dos atos sexuais. No entanto, tal avaliação não descuida de contextualizar a vítima, em sua biografia pessoal e familiar.
A Psicologia Jurídica desempenha uma função diferenciada da Psicologia Clínica e no ambiente forense promove o diálogo entre a vítima, a família e o contexto judiciário, evocando o direito da criança de ser ouvida e respeitada em suas peculiaridades. Na maior parte dos crimes sexuais, são inúmeras as vezes que a vítima, e em especial a criança, precisa relatar sua história para diferentes interlocutores antes de ser ouvida em juízo e ainda na entrevista psicológica. Conforme assevera Eloy (2010:133), "os depoimentos testemunhais nos crimes sexuais é que detêm as evidências do delito e precisam ser preservados¸ especialmente quando a vítima é criança ou adolescente que por sua condição sofre mais facilmente a sugestionabilidade em seu discurso". Portanto, a multiplicidade dos interrogatórios além de revitimizar a criança, poderá gerar o descrédito em sua narrativa e o longo tempo decorrido entre os fatos e a entrevista psicológica no Fórum é mais um entrave para a qualidade de seu testemunho, já que há um lapso de tempo desde a revelação inicial até o andamento do processo judicial.
Nessa perspectiva, além das dificuldades ligadas à memória, a vítima precisa relembrar detalhes que tentou esquecer e que demandou tempo para a elaboração mental e emocional, sendo exposta a uma situação de revitimização. A entrevista psicológica, se realizada com procedimentos adequados, que propiciem à vítima conforto e alívio para a ansiedade, cumprirá com sua função sem prejudicá-la emocionalmente. Por outro lado, a exposição da vítima às diferentes formas de atuação e de interrogatórios e a maneira como cada interlocutor contribui com suas próprias representações sociais na construção de um discurso poderão produzir uma verdade provinda de diversas narrativas e significações.
A linguagem e sua expressividade, quanto à apresentação de um discurso espontâneo ou construído, como também as contradições, as negações ou as retratações, são analisadas mediante o relato das vítimas em diferentes situações. Todavia, nem sempre a expressão verbal será suficiente, seja pela precariedade da aquisição e elaboração de sua linguagem, seja pela sua negativa em se manifestar verbalmente, exigindo do profissional uma habilidade com outras vias de comunicação, como o desenho e o brinquedo. É preciso propiciar à vítima condições de expressão por intermédio da atividade lúdica e/ou projetiva, evocando o caráter simbólico de suas experiências e percepções; porém, para tanto, somente os profissionais da Psicologia estão capacitados.
Nos casos infantis, com as teorias oferecidas pela Psicologia e utilizando técnicas para reduzir sua inibição, é possível criar condições para que a vítima manifeste suas fantasias e percepções, a fim de revelar as experiências vividas e externalizar suas atitudes e reações. Ao brincar com a pequena casa com cômodos, móveis e bonecos apresentados à criança durante a entrevista, é-lhe permitido que represente várias pessoas, como o pai, a mãe, os irmãos. O atendimento em ambiente livre da exposição e do constrangimento pode ser o diferencial para que a vítima leve adiante sua queixa e possa se libertar do jogo de dominação e submissão que caracteriza a violência sexual.
As Intervenções Judiciais e as Políticas Públicas
A inexistência ou a pouca eficácia de programas especializados em violência doméstica infla as Unidades Básicas de Saúde dos municípios e gera controvérsias sobre o papel de cada instituição e de cada profissional, nos casos de violência, sobretudo a violência sexual. Tal categoria de violência traz arraigada a problemática da mulher e da infância vivenciada de forma intergeracional, problematizando os valores morais e os conceitos sociais que o tema suscita.
Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha por objetivo promover a equidade social da infância e da adolescência, são as ações profissionais e as políticas públicas que a efetivam. A situação de vulnerabilidade e risco necessita de atenção especial dos gestores públicos e atuação efetiva dos Conselhos Tutelares e demais órgãos que compõem o Sistema de Garantia dos Direitos, evitando judicializar tais ações, visto que esse não é um papel a ser desempenhado unicamente pelo Poder Judiciário, mas sim em parceria com o Poder Executivo. Nota-se, na prática cotidiana, uma demanda de casos à justiça que poderiam ser solucionados pela rede de atendimento das políticas sociais públicas, impedindo a exposição das pessoas e suas famílias aos procedimentos judiciais.
A representação social da Justiça como o único meio de solucionar conflitos, leva a judicialização de ações que poderiam ser resolvidas na interlocução e articulação com outras instituições, igualmente, responsáveis, pelo amparo e proteção às vítimas. Nos casos de violência sexual contra a criança, é fundamental à averiguação da existência de um trabalho preventivo à família em situação de vulnerabilidade e risco, na qual a miserabilidade, a drogadição e o alcoolismo são fatores que, algumas vezes, levam a promiscuidade nas relações familiares e sociais.
É notável a adequação gradativa das políticas públicas ao combate à violência sexual ao selecionar os profissionais que se identificam, se sensibilizam e se comprometem com a problemática, retirando assim o psicólogo jurídico da ação solitária dos atendimentos às vítimas para a elaboração dos laudos, nos fóruns das comarcas, levando-o a compartilhar reflexões, ações e conhecimentos, tão necessários ao seu trabalho.
A importância da interlocução entre as instituições e a articulação das ações públicas é salientada na palavra da Lei de maneira clara e objetiva, não deixando dúvidas da responsabilidade conjunta. A oferta de políticas públicas de atendimento especializado retira o foco da judicialização das ações sociais preventivas e curativas, ofertando o compartilhamento da responsabilidade sobre os cidadãos. Desloca a criança do papel de apenas vítima para o papel de cidadão, visto que, por intermédio de políticas públicas, encontram condições adequadas para uma terapêutica psicológica, para a elaboração de possíveis vivências de situações traumatizantes e para o necessário amparo sociojurídico.
A educação familiar e cultural engendrada em todos os profissionais e, especialmente, naqueles que atuam nos casos de violência sexual, promove o resgate dos valores morais e dos conceitos sociais de sua formação pessoal, interferindo nas formas de atuação. O perigo dos preconceitos e das discriminações se torna realidade nos atendimentos realizados às vítimas e aos agressores, tanto no aspecto social quanto jurídico. Portanto, a complexidade da execução das leis que objetivam a equidade social, de gênero, de raça, de idade etc., encontra respaldo em políticas públicas continuadas e especializadas, bem como na capacitação dos profissionais que as executam.
Os referenciais pessoais e os elementos constituídos culturalmente são indicativos importantes na avaliação do trabalho profissional, pois desenvolvem uma representação social do fenômeno que forjará suas conclusões. Conforme enfatiza Jodelet (2001), tal fato não acontece de forma natural, todavia, segue um processo em que o que é novo ou estranho se torna familiar para ser assimilado e compreendido, descartando, com isso, sentimentos e ideias inaceitáveis. No caso da violência sexual, há o risco de o profissional manter-se em uma postura ancorada em ideias e conceitos relacionados, principalmente, ao gênero feminino construído historicamente com base na moralidade dos costumes e à infância relacionada à fantasia e à fragilidade de seu testemunho.
A representação social da violência sexual leva os profissionais a visualizarem nas instâncias judiciais, além da incriminação do agressor, o fim do conflito. Todavia, conforme explicita Rozansky (2005:94), "[...] os acontecimentos a partir dos quais a justiça fez a intervenção são de tal magnitude que a criança fica marcada para sempre. A vítima chega machucada, confusa, com sentimentos que a atormentam, e não deveria ser revitimizada". Assim, a criança é inserida na dinâmica dos procedimentos judiciais e policiais, os quais são imprescindíveis para a produção das provas que compõem um processo penal, porém sofre intervenções que a fazem revisitar o conflito intenso vivenciado durante a relação abusiva.
Em contrapartida, Pedroso (2001), salienta a probabilidade de a desjudicialização ocorrer por meio da prevenção dos litígios, levando ao conhecimento dos profissionais e das autoridades administrativas novas formas de atuação, que envolvam outras áreas além do Direito, bem como há a possibilidade de preservar a vítima da multiplicidade dos interrogatórios. Com base nisso, igualmente, nos casos em que já ocorreu a denúncia formal e a responsabilização do agressor, podem-se traçar ações que visem à reorganização das famílias após a vivência avassaladora da violência sexual. A reflexão conjunta e a prática fundamentada e sistematizada é uma das soluções para o trabalho em parceria, consciente e ético, dos diferentes profissionais que atuam nos projetos sociais públicos específicos de atendimento às vítimas.
Há a necessidade de programas sociais que, além de promover a proteção às vítimas, favoreçam a transformação das ações públicas, as quais estão plastificadas pela rotatividade política oportunista e pelo mecanismo do serviço público que maltrata suas instituições. A demanda ao Poder Judiciário revela a importância da interdisciplinaridade na solução dos conflitos, em seus diferentes níveis: social, político, emocional, jurídico etc., pois o trabalho em rede tornou-se mais uma ferramenta de auxílio no combate às injustiças e à produção de verdades prejudiciais à cidadania.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) trouxe importante contribuição para a modificação das políticas de atendimento às crianças e adolescentes de nosso país, porém, nem sempre encontra apoio adequado nos gestores públicos municipais, estaduais e federais para sua efetivação. As propostas contidas nessa norma jurídica são propostas de ação em termos políticos, culturais e jurídicos, compreendendo que as discussões devem extrapolar as verbalizações e documentações, partindo para a prática. Para tanto, a capacitação de profissionais com afinidade nessa temática e disponibilidade em se tornarem agentes multiplicadores de ação é fundamental para o sucesso de políticas públicas que visem à prevenção de qualquer tipo de violência e à proteção integral às vítimas.
O trabalho em rede que envolva o Poder Judiciário com as instituições educacionais, sociais e de saúde é fundamental para a compreensão do papel da vítima no crime. Todavia, os órgãos de segurança, em função da necessidade do cumprimento dos procedimentos legais, ainda se mostram relutantes em estabelecer ações articuladas e sistematizadas nos atendimentos aos casos de violência sexual. As particularidades que envolvem a sexualidade e por ser este um crime que, muitas vezes, não deixa vestígios físicos, justificam a necessidade de atendimento especializado.
A expectativa de que as instituições judiciárias trarão a solução para a erradicação da violência sexual contra crianças leva a judicialização de ações que deveriam ocorrer no âmbito do Poder Executivo, ainda que seja imprescindível a participação do Poder Judiciário na fase da responsabilização do agressor. Há de se objetivar não apenas a punição, mas a educação e a sanidade mental de vítimas e agressores, com programas específicos que atuem de forma a prevenir a reincidência da violência sexual.
É evidente que nos casos de violência sexual infantil é fundamental tanto a proteção da vítima quanto a responsabilização do agressor, porém é de igual importância a avaliação prognóstica de cada caso. A continuidade de atendimento ao agressor ao final do cumprimento da pena, especialmente, nos casos de abuso sexual intrafamiliar e a assistência à vítima e seus familiares são condições que necessitam ser analisadas e discutidas no trabalho em rede. Neste ponto converge a representação social de violência sexual e a judicialização, pois se espera do Poder Judiciário o recurso definitivo e preventivo que não corresponde à sua capacidade institucional.
Em 07 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei nº 11.340 (2006), intitulada Lei Maria da Penha, asseverando a necessidade de gerar ações públicas especializadas às vítimas de violência doméstica, não apenas em decorrência da falta de pró-atividade nas políticas públicas de proteção e de acompanhamento, mas pela indulgência na maneira como o Código Penal tratava tal crime. O surgimento de uma norma jurídica específica para a mulher denuncia a falibilidade das ações públicas e da sociedade civil em resolver os conflitos coletivos.
No entanto, ainda não se percebe uma mudança efetiva e de âmbito federal, nos programas de prevenção e atendimento, bem como no sistema de notificação das violências, especialmente nos crimes sexuais. O objetivo de proteger as vítimas do constrangimento da inevitável multiplicidade dos interrogatórios policiais e judiciais ainda é uma meta a ser alcançada. Embora bastante debatida, a Lei Maria da Penha engatinha sob os olhares duvidosos das autoridades policiais e judiciárias, uma vez que há de se desenvolverem novas representações sociais de gênero, de pobreza, de infância e de violência. A oferta de políticas públicas que garantam a parceria necessária entre as instituições e a efetivação das leis, é uma alternativa viável para a transformação de tais representações.
O Poder Judiciário, ainda que tenha se adaptado às novas políticas de atendimento à infância, enfrenta as dificuldades em se adequar às demandas das ações sociais atuais. As exigências de tratamentos especializados provocam a necessidade de alterações na redação das normas jurídicas, como, por exemplo, na Lei nº 2.848 (1940), o Código Penal, e na promulgação de leis específicas referentes à violência doméstica e familiar. No título VI do Código Penal, há uma nova redação dada pela Lei nº 12.015 (2009), indicando que as alterações na terminologia empregada implicam mudanças também na representação social da violência sexual, pois o art. 213 remete ao fato de que "constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso" será julgado como estupro.
Título VI
Dos crimes contra a dignidade sexual
Capítulo I
Dos crimes contra a liberdade sexual
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal
ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1º Se a conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos.
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte.
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
A criança vítima de violência sexual, aprisionada na incredulidade dos adultos, no decorrer do tempo transforma-se em adolescente, conhece a própria sexualidade e consegue compreender a realidade da relação abusiva. Nas sevícias continuadas, a adolescência as encoraja à denúncia, e o acolhimento adequado de sua narrativa é essencial para ao fortalecimento da autoestima e para a superação dos possíveis conflitos emocionais decorrentes. A representação social da violência sexual infantil desenvolvida pelo grupo de profissionais que trabalha com as vítimas, seja nas instâncias sociais, educativas e de saúde, como também nas instituições policiais e judiciárias, poderão levar a busca precípua da responsabilização do suposto agressor. Com isso ocorre a desvalorização de ações no âmbito das políticas públicas de proteção à criança e a priorização de ações punitivas ao transgressor, judicializando ações que não seriam , única e necessariamente, do trabalho da Justiça.
O término do processo judicial não finaliza nem interrompe o conflito e o sofrimento psíquico ocasionados pela experiência da violência sexual. Os temores da família de que a criança se transforme em um adulto com uma sexualidade inapropriada, a falta de credibilidade na palavra da criança, as representações sociais da infância e da sexualidade constituem uma temática complexa e que necessita de discussão e reflexão na coletividade, buscando caminhos diversos. Desta forma, a representação social da violência sexual leva os profissionais e cidadãos a buscarem na Justiça, vista nesse aspecto tanto como valor éticomoral quanto como representatividade institucional, a alternativa que finda a problemática. Contudo, há a necessidade de reparação dos danos psicológicos causados à vítima e ao agressor, no que a instituição judiciária é insuficiente em tratar e necessita da interlocução com as demais instituições que previnem a violação dos direitos fundamentais da criança.
A capacitação dos profissionais para a entrevista de vítimas de violência sexual é essencial para não revitimizá-las e para preservar sua narrativa própria, evitando possíveis induções e/ou sugestões. Tal fato também é imprescindível para o deslinde judicial do caso, já que o conteúdo das entrevistas alude a algo mais do que apenas o vocabulário da vítima. Grande parte dos profissionais envolvidos no atendimento às vítimas não recebe capacitação específica para realizar os procedimentos necessários, sendo nítido o seu despreparo para ouvi-las.
Ainda que o enfoque deste ensaio esteja direcionado às políticas públicas nos casos de violência sexual e não na responsabilização judicial do autor do crime, não há como desconsiderar a importância, para a vítima, da existência de um desfecho judicial coerente com suas expectativas. Tal fato, muitas vezes, torna-se reparador do sofrimento psíquico, visto que as vítimas desejam ter sua palavra reconhecida e publicamente crível.
A compreensão das representações sociais sobre a violência sexual e a sexualidade, certamente, influenciarão no trabalho, tanto individual quanto em grupo, dos diferentes profissionais que se deparam com as vítimas infantis. O sistema de crenças que envolvem os casos judiciais é um importante fator a determinar as decisões dos litígios e dos encaminhamentos realizados. Conforme expõe Louwe e Feuerhahn (2001:286), há aspectos da representação social comuns a um grupo, uma coletividade ou uma sociedade em que os indivíduos "compartilham da mesma forma de perceber e representar um mesmo objeto", neste caso a violência sexual, atribuindo-lhe características.
Na representação social é dada proeminência à ação do sujeito, na maneira como interage social e culturalmente e na mediação entre seu mundo interno e o externo. A linguagem veicula representações que são assimiladas pelo indivíduo em sua atuação profissional e, posteriormente, reproduzidas por ele, segundo suas próprias experiências e vivências anteriores. Contudo, esse processo é contínuo, uma vez que, ao confrontar-se com novos acontecimentos ou situações, poderá ampliar ou rever sua representação do mundo e de si mesmo, transformando, assim, seus sentimentos, suas atitudes, suas ideias. Tal representação pode ser refletida, consciente, organizada, oportunizando-lhe a noção adequada de suas ações. Sob esse prisma, mais uma vez, a capacitação deve ser aventada, pois traz ao profissional o auxílio técnico para superar as armadilhas convencionadas pelo senso comum (Jodelet, 2001; Moscovici, 2007).
Discorrer sobre a violência sexual, no contexto das Políticas Públicas e da Justiça, remetenos à necessidade de considerar a sexualidade em sua historicidade cultural. Igualmente, para compreender como se desenvolve uma representação social é preciso pensar para além dos gestores públicos e dos profissionais que trabalham na rede de atendimento, ponderando sobre a maneira como os indivíduos vivem na coletividade e assimilam o significado dos acontecimentos, dos objetos ou dos fenômenos sociais e psicológicos.
A sexualidade é um conceito que deve ser analisado não somente do ponto de vista individual, mas também social, porque se expressa de forma particular, ao mesmo tempo em que é influenciada culturalmente. As vivências religiosas, os valores morais e os conceitos sociais são interiorizados mediante métodos educativos diversos, provenientes da família e dos grupos sociais em que o indivíduo está inscrito. As proibições e permissões ensinam, desde a infância, a reprimir o que é desagradável aos olhos dos outros e que, por esse motivo, passa a ser também para si próprio.
Histórica e culturalmente, a repressão sexual faz parte das práticas sociais de controle, o que, imperceptivelmente, o indivíduo incorpora às suas práticas pessoais cotidianas, transmitindo em suas atitudes e narrativas os preconceitos e as discriminações relacionadas à esfera da sexualidade. Igualmente, a violência, em uma diversidade de sentidos, passa a ser aceita na educação de crianças e leva muitos adultos a transgredirem o poder disciplinador que lhes é conferido natural e culturalmente.
A história da sexualidade está atrelada à história dos discursos, principalmente cristãos e judiciários, o que tem influenciado nas análises e interpretações a que são submetidas as pessoas, crianças ou adultos, no que abrange a sexualidade, que deve ser compreendida, quando situada no âmbito e nas regras culturais. As diversas formas de organização familiar, a importância dada à família, as proibições e permissividades sexuais dependem da sociedade em que estão inseridas, onde as pessoas vivenciam maior liberdade para manifestação da sexualidade ou intensa submissão às normas sociais.
A iniciação sexual está relacionada à vida cultural dos povos, o que foi exemplificado por Ajuriaguerra (1983) ao descrever que os primitivos do noroeste da Melanésia permitem que as crianças presenciem os atos amorosos de seus pais, bem como a atividade sexual infantil é considerada um divertimento inocente. No ocidente, diferentemente, a sexualidade é imposta a um regime rigoroso de repressão, sendo considerada como perigosa à vida em sociedade e submetida à lei, o que gera uma interdição generalizada e sintomas psicológicos individualizados.
O conjunto da civilização é quem dita os comportamentos que serão aceitos e proibidos, dividindo as categorias sexuais. Os valores e conceitos construídos sobre a sexualidade variam em conformidade com o meio sociocultural e familiar e no contexto da cronologia histórica, interferindo no desenvolvimento da representação social da violência sexual.
A sexualidade, vista como algo naturalmente indócil, rebelde e estranho, exerce certo domínio nos diferentes modos de relação entre os indivíduos, seja entre homem e mulher, seja entre jovens e idosos, seja ainda entre adultos e crianças. Durante muito tempo, a violência sexual despertou pouco interesse científico, uma vez que a vinculavam à fantasia infantil ou, ainda, à crença machista de que determinadas mulheres insuflavam os instintos agressivos masculinos para se beneficiar. No entanto, as denúncias de mulheres que sofreram violência sexual, na infância e na vida adulta, tornaram-se crescentes, revolvendo o universo moral e firmando-se como um fenômeno real.
Conforme explicita Jodelet (2001:32), existe um processo de adesão e participação que aproxima a representação de uma crença, de maneira que "há representações que cabem em nós como uma luva ou que atravessam os indivíduos: as impostas pela ideologia dominante ou as que estão ligadas a uma condição definida no seio da estrutura social". O mito da criança sedutora, que com sua conduta coopera para as investidas sexuais do abusador, principalmente quando se constata que ela alimenta sentimentos positivos em relação a ele, contribui para a resistência em aceitá-las como vítimas dos crimes sexuais. Com tal posicionamento, incorrese ao erro de acreditar que a vítima poderia evitar a violência sexual, visto que não é percebida como passiva e dominada diante da situação abusiva, nem apresenta comportamentos aversivos em relação ao acusado.
A dificuldade da criança em revelar as sevícias sexuais de que é vítima também está associada às representações da sexualidade que aprendeu em sua vida cotidiana, podendo relacionar o sexo ao que é sujo e proibido. O sentimento de estar enredada em uma situação amoral e o temor dos castigos que poderá sofrer com a revelação gera uma autoimagem negativa e um desconforto emocional constantes. Portanto, quanto mais rígidas as regras familiares e os princípios educacionais, maior será a intensidade dos danos psíquicos e da resistência da vítima em confiar suas queixas a alguém.
Na maioria das vezes, o segredo fez parte da vida da vítima por um longo período, intervindo em seu funcionamento psíquico e gerando mecanismos mentais para suportar o sofrimento. Por esse motivo, o momento da revelação a uma pessoa de sua confiança e a maneira como é recebida determinarão as consequências psicoemocionais que a vítima levará consigo, por toda a vida. Tal fato, quando acontece na infância, pode ser revelado apenas na vida adulta, carregando consigo uma sexualidade perturbada pelos conflitos mal elaborados e pela falha do imprescindível atendimento especializado.
Nas cidades pequenas, onde os acontecimentos, verdadeiros ou falsos, são comentados por diferentes setores da sociedade, a vítima de violência sexual, bem como sua família, sofre assédios e constrangimentos intoleráveis. Essa vivência suscita na vítima o sofrimento da exposição pública e, com isso, sofre pressões para desmentir, ou ela própria percebe a necessidade de se preservar, de modo que desmente a realidade factual. Os familiares se veem às voltas com uma problemática que prefeririam ignorar e que gostariam que fosse fruto da atividade imaginativa da criança. Assim, optam por omitir-se em buscar os recursos judiciais, na tentativa de proteger a vítima e a si mesmos de constrangimentos, vivenciando, com isso, contradições que modificam, indelevelmente, a dinâmica familiar. Dessa forma, o ato de revelar a violência sexual é vivenciado tanto no aspecto individual, quanto social, desvelando os limites familiares e materializando os pecados, na significação do que é religioso e moral.
Muitas das reações dos familiares são agressivas, descarregando sobre a criança a angústia vivenciada diante da violação da sua infância e da frustração das expectativas geradas pelo seu despertar sexual. A impulsividade de um ato agressivo dos pais, quando tomam conhecimento do ocorrido, demonstra a responsabilidade que depositam na criança sobre a permissão para o ato. Por conseguinte, as contradições vivenciadas por ela, no momento da revelação, e a inusitada reação dos pais são particularidades importantes a serem analisadas, quando são tomadas as declarações da vítima pelos profissionais, no âmbito policial e judicial.
Considerações Finais
A inserção da Psicologia na instituição judiciária e sua participação na apuração dos casos de violência sexual tornaram-se fundamentais para a efetivação dos encaminhamentos e atendimentos necessários às vítimas. A possibilidade de diálogo do Poder Judiciário com as demais instituições também são oportunizadas pelas indicações da Psicologia, mediante os laudos periciais que trouxeram uma nova dinâmica aos procedimentos judiciais. O Poder Judiciário e as políticas públicas de proteção e atenção às vítimas possuem a mesma demanda, porém em formas de atendimento e em momentos diferenciados.
De nada valem os direitos conquistados pela infância, na trajetória histórica e social diante da inexistência da atuação articulada dos diferentes setores de atenção especializada. As redes sociais construídas e articuladas a partir da necessidade da melhoria do atendimento à população brasileira ainda não são uma realidade em muitas cidades do interior do país, nas quais se busca a Justiça formal para a resolução das dificuldades que seriam supridas no âmbito das políticas públicas.
Tais políticas surgiram como forma de efetivar direitos a partir da intervenção na realidade social. A coordenação de programas e ações públicas materializa as ditas políticas públicas, porém, elas devem ser discutidas pelos diversos atores sociais, no sentido de distribuir de maneira equânime os serviços públicos de qualidade. O trabalho em rede se faz também entre as instâncias policiais e judiciárias, na interlocução entre elas, e pela exigência de políticas públicas que garantam a proteção e a atenção às vítimas.
O tratamento da violência sexual contra crianças evidencia que as leis isoladas não garantem os direitos, que é preciso assegurar as condições políticas, materiais e institucionais necessárias, conforme preceitua o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), para que as vítimas não sofram a revitimização. A violência sexual coloca crianças na categoria de cidadãs em situação de risco e que precisam da proteção social básica, o que remete à construção de políticas públicas eficazes e a capacitação continuada dos profissionais que as compõem.
Os discursos expostos nos inquéritos policiais e nos processos judiciais questionam a existência real, ou não, de uma vítima, e por isso, passam a julgá-la em seus atos, inquiri-la em suas palavras e investigá-la em sua personalidade. O contato com o universo policial e jurídico, pela complexidade e burocracia de seus procedimentos, não é facilitador para que vítima exponha a violência vivenciada de maneira clara e segura. Muitas vezes, é em outras instâncias que a vítima consegue desvendar seu sofrimento e trazer à tona a violência experienciada na clandestinidade do lar e durante muitos anos.
A diversidade dos atendimentos e encaminhamentos à vítima de violência sexual está exposta na prática cotidiana e elucida que a Psicologia necessita estar inserida nos procedimentos iniciais. A prática demonstra que o profissional de Psicologia, desde que capacitado e familiarizado com a temática, possui recursos técnicos para evitar a revitimização de crianças que vivenciaram violência, gerando ainda, um novo tipo de diálogo entre as instituições.
O Brasil possui experiências relativamente recentes em relação às políticas de enfrentamento às questões ligadas à violência, com tendência a priorizar a responsabilização do agressor, em detrimento das ações de prevenção e de proteção às vítimas. A busca desenfreada por soluções no Poder Judiciário para questões de ordem social e de responsabilidade política suprime dos programas municipais, estaduais ou federais o enfrentamento da violência sexual. Uma prática reflexiva e fundamentada, tanto de técnica quanto de teoria, com cursos de capacitação e prática supervisionada em parceria com as universidades, aprovisiona os profissionais de ideias que, indubitavelmente, fortalecerão a execução de políticas públicas que assegurem a igualdade de direitos.
Há uma nova prática sendo construída no Poder Judiciário que prioriza a maneira de escuta daqueles que necessitam dos serviços da justiça. Em contrapartida, a Psicologia em sua relação com o Direito, aponta para a conscientização dos gestores de políticas públicas sobre a necessidade do atendimento especializado às vítimas de violência sexual, visando proporcionar-lhes condições emocionais para reorganizar a vida psíquica e sexual. A responsabilização do agressor é apenas um dos aspectos a serem tratados nos casos de violência sexual, pois há que se evitar que as vítimas se tornem, no sentido simbólico, apenas provas materiais de tal violência.
Conforme corrobora Marková (2006:55), "fazer distinções é fundamental para a vida; nos humanos essa capacidade é essencial também para o pensamento e a comunicação", assim ao expressar significados os indivíduos demonstram sua capacidade de fazer distinção e de perceber e, assim, comunicar. Desta forma, pode-se pensar na construção da representação social da violência sexual baseada nos procedimentos judiciais que estimulam o indivíduo a usar o pensamento e a comunicação em componentes opostos como, por exemplo, mentira e verdade; certo e errado; doentio e saudável. A expectativa de que uma perícia, um julgamento ou uma sentença judicial defina se a violência sexual ocorreu, se a vítima é crível ou se o agressor é perverso, leva à busca da judicialização de qualquer ação profissional que envolva esse fenômeno. A relação entre a representação social da violência sexual e a judicialização passa por essa vertente de reflexão, inscrevendo a continuidade das ações para além do papel da Justiça, tanto como instituição fiscalizadora das regras de convivência social, como referência de valor ético moral.
Referências
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Endereço para correspondência
Consuelo Biacchi Eloy
E-mail: consueloeloy@hotmail.com
Elizabeth Piemonte Constantino
E-mail: bethpie@assis.unesp.br
Recebido em: 18/07/2011
Revisado em: 29/11/2011
Aceito em: 30/12/2011
* Psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasil, e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, SP, Brasil.
** Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista"Júlio de Mesquita Filho", professora do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista"Júlio de Mesquita Filho", Assis, SP, Brasil.