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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X

     

 

Subjetivação política e identidade: contribuições de jacques rancière para a psicologia política

 

Subjectivity and identity politics: contributions of jacques rancière for political psychology

 

Subjetivación política e identidade: contribuições de jacques rancière para a psicologia política

 

Subjectivité et identité politique: contributions de jacques rancière pour la psychologie politique

 

 

Frederico Viana Machado

Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. phredvm@gmail.com

 

 


RESUMO

Visando contribuir com o arcabouço teórico da psicologia política brasileira, o presente trabalho apresenta o pensamento de Jacques Rancière, de modo a situar um conjunto de conceitos que podem ser úteis às pesquisas desenvolvidas neste campo. Centraremos a análise da obra do autor em torno do conceito de subjetivação política por duas razões principais. Em primeiro lugar, por ser neste conceito que reside a possibilidade de expansão da democracia, constituindo-se como o trabalho mesmo da política. Em segundo lugar, pelas contribuições que a noção de subjetivação política traz para pensarmos o conceito de identidade. Ao final, apresentamos as implicações deste corpo conceitual para debater alguns impasses teóricos atuais da psicologia política, refletindo sobre a definição mesma desta disciplina.

Palavras-chave: Psicologia Política, Jacques Rancière, Subjetivação Política, Identidade, Democracia.


ABSTRACT

This paper explores Jacques Ranciere's contributions to the field of Political Psychology in Brazil. We focus our discussion on Ranciere's concept of political subjectivity for two reasons. First, for this concept attests the possibility of a democratic transformation. Second, because political subjectivity is an important analytical tool for re-envisioning the current uses of the concept of identity. Furthermore, we peruse the definition of Political Psychology based on our previous analysis of Ranciere's influence in the Brazilian context.

Keywords: Political Psychology, Jacques Rancière, Political Subjectivity, Identity, Democracy.


RESUMEN

En este artículo se propone discutir algunos aportes de la obra de Jacques Rancière para la psicología política en Brasil. La discusión se centrará en torno al concepto de la subjetividad política por dos razones. En primer lugar, por estar ahí la posibilidad de transformación democrática. En segundo lugar, por los cuestionamientos que la noción de subjetividad plantea para pensar el concepto de identidad. Desde este ejercicio conceptual, vamos a discutir la definición de la psicología política.

Palabras clave: Psicología Política, Jacques Rancière, Subjetividad Política, Identidad, Democracia.


RÉSUMÉ

Cet article vise à discuter des contributions de l'œuvre de Jacques Rancière à la psychologie politique du Brésil. La notion de subjectivité politique sera au centre de notre discussion pour deux raisons. Tout d'abord, parce que la possibilité de transformation démocratique y réside. En outre, en vu que la notion de subjectivité incite a poser des nombreuses questions sur la notion d'identité. D'après cette débat, nous examinerons la définition de psychologie politique.

Mots clés: Psychologie politique, Jacques Rancière, subjectivité politique, l'identité, démocratie.


 

 

Introdução1

Apesar da percepção hodierna de uma possível despolitização do espaço público e das relações sociais na contemporaneidade, a política é uma palavra cada vez mais presente em nossas vidas. Seja no âmbito das ciências, seja no senso comum, a política emerge como termômetro de teorizações sobre o social e sobre as instituições, traçando contínuos que associam comportamentos individuais e coletivos. Desde uma concepção do político como um processo identificável em qualquer ato cotidiano, até uma apreensão elitista da política, voltada exclusivamente para seus aspectos macrossociais, institucionais e formais, encontramos diferentes formas de conceber o político.

A psicologia política, localizada na intersecção entre a política e a psicologia, busca compreender de forma interdisciplinar discursos e comportamentos políticos voltados para os aspectos da vida coletiva que implicam em um redimensionamento do espaço público e dos princípios que regulam a construção de um comum compartilhado em sociedade. Buscando escapar de uma noção de psicologia política definida em função de seus objetos de estudo, Almeida, Silva & Corrêa (2012) traçam a seguinte definição ampliada desta disciplina:

O ponto de intersecção entre essas duas áreas científicas, Psicologia e Política, tem sido a preocupação com a construção de um universo de debate em que nem as condições objetivas nem as subjetivas estejam ausentes. Pelo contrário, que ambas estejam compreendidas por diferentes abordagens teóricas, como codeterminantes e, portanto, constituintes dos comportamentos coletivos, dos discursos, das ações sociais e das representações que constituem antagonismos políticos no campo social. (2012:6)

Se a compreensão da intersecção entre a psicologia e a política nos direciona para objetos sociais que estabelecem um campo teórico-metodológico de debates e embates comuns, a nosso ver, o mesmo não ocorre com o conceito do político. As noções de política que subjazem às diversas teorizações neste campo muitas vezes não recebem o devido cuidado e precisão conceitual. Não raro encontramos a palavra "política" sendo utilizada como sinônimo de políticas públicas (Tommasi, 2012) ou aplicada vagamente como se seu significado fosse autoevidente, o que tende a desprezar muitas consequências teóricas de noções implícitas sobre o político (Ferreira, 2004).

Em trabalho anterior (Machado, 2013), argumentamos que o estudo das relações entre os movimentos sociais e o Estado está condicionado pelo conceito de político que se utiliza. A definição de política se torna fundamental por permitir a análise da extensão e da estruturação argumentativa acerca dos fenômenos políticos. Analisar a constituição de um campo político e suas consequências demanda definições conceituais precisas, não apenas sobre o político, mas também de termos afins, tais como liberdade, igualdade, cidadania, conflitos, democracia e outros. Afinal, são conceitos como estes que, quando relacionados, nos permitem identificar e analisar os vieses dos processos de mudança social e os sujeitos políticos.

Visando contribuir com o arcabouço teórico da psicologia política brasileira, refletiremos sobre o pensamento de Jacques Rancière, situando conceitos úteis às pesquisas desenvolvidas neste campo interdisciplinar. Como veremos, o aporte deste autor mantém a radicalidade de um projeto democrático sem simplificar os conflitos políticos reduzindo-os à sua dimensão econômica ou às particularidades identitárias que tendem ao isolamento dos diferentes atores políticos. Frente à orfandade teórica deixada pelos determinismos do marxismo ou pelos relativismos pós-modernos, a obra de Jacques Rancière revela-se como uma contribuição fundamental para encararmos diversos impasses contemporâneos da psicologia política brasileira.

Ruby (2011:11) abre seu livro, que introduz o pensamento deste autor, argumentando que "a filosofia de Jacques Rancière se propõe a esboçar - em um sentido polêmico - uma filosofia contemporânea da emancipação"2. Galende (2012), em um sentido semelhante, destaca a relevância do autor exatamente pela radicalidade de seu pensamento frente à filosofia política, e argumenta que o que o diferencia é a sua rejeição à duas noções de política que já deram mostras de esgotamento no pensamento social ocidental: "a política entendida como administração governamental do poder; e a política entendida como um processo de transformação no qual as estratégias dos oprimidos são decididas por um grupo de experts" (p. 12). Talvez exatamente pela originalidade de seu pensamento, Rancière tem sido compreendido de formas tão díspares (Galende, 2012).

Não pretendemos aqui sintetizar o conjunto das proposições conceituais do autor3, que, inclusive, se estendem além dos objetos da política. Tendo como objetivo suas possíveis contribuições para a psicologia política, centraremos a discussão em torno do conceito de subjetivação política. Este conceito foi tomado como articulador por dois motivos. Em primeiro lugar, por ser ai que reside a possibilidade de expansão da democracia, constituindose como o trabalho mesmo da política (Rancière, 2009). Em segundo lugar, pelos questionamentos que a noção de subjetivação política coloca para pensarmos o conceito de identidade.

 

O Conceito do Político

Em qualquer esforço de compreensão dos fenômenos políticos subjaz uma definição, mesmo que implícita, de política. Como argumenta Ferreira (2004), qualquer conceituação sobre a política participa dos embates políticos, uma vez que define os critérios que condicionam estes mesmos embates. Deste modo, o conceito de política se torna também um objeto de disputa entre os atores que constituem uma determinada comunidade política. Nas palavras de Fair (2009), desde Aristóteles "que a situa [a política] como a ciência que tende ao bem da comunidade, até aqueles enfoques contemporâneos de origem liberal que a definem como uma luta por alcançar o poder e o prestígio individual, existem indefinidas formas de conceber aquilo que é próprio da política" (p. 88).

Guardadas suas especificidades, podemos situar a obra de Jacques Rancière em um conjunto de autores que seguem uma determinada concepção sobre a política. Esta concepção, crítica à concepção platônica, afirma que a política não se confunde com o lugar da verdade, herdando do pensamento de Maquiavel a percepção da impossibilidade de realização plena de um determinado projeto político (Ferreira, 2004). Assim, afirmar que a política não se confunde com o lugar da verdade nos obriga a incluir no campo político a contingência e eliminar concepções racionalistas, elitistas e universalistas. Por outro lado, tampouco podemos resvalar para um conceito de político excessivamente difuso, a partir do qual toda relação social seria uma relação política, pois isto acarretaria um esvaziamento do conceito e nos impediria de identificar os processos sociais que trazem implicações políticas substanciais e que de fato constituem o motor da transformação do social (Ferreira, 2004).

Carl Schmitt talvez tenha sido o primeiro pensador a definir a política como um campo próprio, afirmando-se como um dos maiores críticos de sua época ao pensamento liberal, que tende a circunscrever a política às disputas por poder eliminando sua especificidade epistêmica (Lima, 2011; Ferreira, 2004). Em seu texto intitulado o Conceito do Político, Schmitt (1992/1972) argumenta que, enquanto o campo da moral se define pela oposição entre bem e mal, o estético pela oposição entre belo e feio, o conhecimento pela oposição entre verdadeiro e falso, a política se caracteriza pela diferenciação entre amigo e inimigo4. Esta definição é importante, pois, ao estabelecer um campo próprio da política, reconhece no conflito sua essência e, consequentemente, a impossibilidade de adequar questões políticas à soluções técnicas, como tendem a fazer as matrizes de pensamento liberal.

Vários autores podem ser localizados nesta tradição de pensamento, tais como Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Alain Badiou, Giorgio Agamben e outros. Agrupar autores tão heterogêneos não é arbitrário. Autores como Fair (2009) ou Lo Valvo (2009) associam Laclau e Rancière, dentre outros, a partir da noção de ontologia da negatividade. Destaca-se, ainda, Lüders (2010), que os aproxima através de um fundamento negativo do político. Deste modo, um dos aspectos importantes de ser elencado é a legitimidade do conflito como constituinte da política, o que nos remete à impossibilidade de conceber a democracia como um projeto plenamente realizável.

Swyngedouw (2011) traz a noção de "pós-democratização" para mapear um determinado campo da filosofia política, interessado em compreender os conflitos e mudanças sociais para além da noção institucional/formal de democracia. Segundo ele, "as últimas duas décadas foram marcadas por processos de despolitização, pela erosão da democracia e pelo encolhimento da esfera pública" (p. 370), o que se coloca como contexto empírico sobre o qual se debruçam autores como Alain Badiou, Jacques Rancière, Slavoj Zizek, Etienne Balibar, Claude Lefort entre outros. Influenciados pelo pensamento deleuziano5 e lacaniano (Galende, 2012; De Vries, 2007) e críticos tanto ao pós-estruturalismo (o que os diferencia de Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e outros teóricos do discurso) como ao relativismo pósmoderno, estes autores apresentam diferenciações entre a política e o político6. Estas diferenciações, sempre postas em oposição conflituosa, marcam a "tensão entre, de um lado, a política, que é sempre específica, particular e local, e, por outro lado, os procedimentos universalizados da democracia política, que opera sob os significantes da igualdade e liberdade" (Swyngedouw, 2011:371).

Uma definição de política marcada pela contingência e pelo conflito leva-nos a considerar as identidades individuais ou coletivas como formações indivisíveis que, ao se conflitarem com outras identidades, demandarão um reordenamento dos processos identificatórios particulares e do ordenamento social como um todo. O estatuto ontológico da realidade, sustentado neste campo conceitual, está marcado pela negatividade, pela ausência de essências pré-discursivas. Em outras palavras, a suposta objetividade das "essências" se define na trama do político.

O conflito como elemento definidor da política imprime nestes autores uma forma de pensamento sempre tensionado e, a partir do reconhecimento das contingências históricas, tomam como fundamento do político o paradoxo engendrado pelas relações entre liberdade e igualdade. Deste modo, as negociações identitárias participam do campo político como processos de diferenciação e indiferenciação, ou, como grafam Prado & Souza (2002), processos de (in)diferenciação.

Entretanto, é importante ressaltar que o próprio Rancière criticou vários destes autores, argumentando que "pensadores tão diferentes como Arendt e Lyotard, Badiou, Agamben ou Milner tem em comum certa ideia de consenso como democracia", ao passo que sua perspectiva toma "o partido singular de dar à potência do heterogêneo, do um-de-mais, o nome de democracia como oposta ao consenso" (Rancière, 2004, citado por Madrid, 2010).

Jacques Rancière se destaca neste ponto, pois trará uma conceituação elucidativa sobre a relação entre liberdade e igualdade, a partir da subjetivação política, propondo uma concepção dinâmica para os processos de diferenciação e indiferenciação social que definem as identidades. Diferentemente de Badiou (2012), que tenta recuperar a potencialidade do projeto moderno e iluminista, compreendemos a obra de Rancière não como "moderna" ou "pósmoderna", mas amoderna (para reaproveitar uma classificação de Latour, 1994, sobre sua própria perspectiva). Rancière (2010; 2010c; 2006) refuta, tal como argumenta Ruby (2011), três mistificações: a grega; a moderna e a marxista, apontando a contingência epistêmica e a constituição hierarquizante nestas construções acerca do comum.

A própria filosofia política, para Rancière, deve ser considerada "um título para a subsunção constitutiva da política na filosofia", já que constrói um "complexo ordenado de pensamentos que trituraram a heterogeneidade do escândalo" que é de fato a política (Galende, 2012:75). Neste sentido, a radicalidade do pensamento de Rancière avança sobre o status do conhecimento científico que ampara e critica a civilização ocidental, o que resignifica a discursividade contingente que envolve o próprio termo "modernidade" e, consequentemente, suas instituições (Rancière, 2013; 2011c). Para Ruby (2011), a originalidade do pensamento de Rancière está em duas afirmações positivas: a igualdade, como operador lógico de verificação das relações sociais e, como consequência desta, a possibilidade de emergência do novo, que "reconduz a política à ação!" (p. 14). Precisamos, então, deter-nos sobre como Jacques Rancière compreende o político e qual o papel da identidade na dinâmica política.

 

Polícia, política e subjetivação política: (des)identificação

Rancière (2006) compreende como o político o encontro de dois processos heterogêneos: a polícia e a política7. A polícia está relacionada ao governo e "consiste em organizar o encontro dos homens em comunidade e seu consentimento, e descansa na distribuição hierárquica de lugares e funções" (Rancière, 2006:17). Guardando semelhanças com o conceito de hegemonia (Laclau & Mouffe, 1985), a polícia é o processo social através do qual se mantêm associados uma função e seu status, a posição social de uma função em relação às outras funções que se organizam na vida em comunidade.

A política, por sua vez, está relacionada à igualdade e se pauta pela possibilidade de verificar as relações entre quaisquer pessoas ou grupos de pessoas. Para Rancière, a igualdade é o único universal político possível, já que, na ausência de quaisquer outros fundamentos, frente à contingência absoluta de toda ordem social, é possível verificar a "igualdade" das relações expandindo assim o campo da democracia. Este conceito é o centro gravitacional do pensamento de Rancière e não pode ser entendido como um projeto político ou um horizonte de mudanças. A igualdade para Rancière é, como argumenta Galende (2012:13), "um ponto de partida, um axioma, uma condição que nos habita e que utilizamos para interromper um regime desigual que nos separa desse pressuposto. O que nos torna iguais uns aos outros é contar com uma vontade que se serve da inteligência".

Localizamos, deste modo, um universal político radical ao conceituar a igualdade como uma vontade associada à inteligência, o nos permite afirmar a arbitrariedade de quaisquer fundamentos da hierarquização entre os humanos. Este universal político deriva da liberdade, como expressão da contingência, e que permite a reconfiguração das identidades. O universal está, portanto, marcado pela negatividade, ou seja, pela ausência de um universal, assim como na perspectiva de Laclau & Mouffe (1985), segundo a qual qualquer universal deve ser considerado um "particular que 'se universalizou'". Laclau (2005), inclusive, reconhece a semelhança entre a noção de igualdade, em Rancière, e o que ele chama de lógica da equivalência.

Para Rancière, em toda vida social ocorre uma distorção, um dano produzido na distribuição hierárquica dos lugares e funções, e que gera relações de opressão e identidades subalternas. Ocultar parte desta distorção é indispensável para a naturalização da distribuição das partes de uma sociedade, e a política interrompe este processo a partir de uma nomeação polêmica deste dano, questionando assim a naturalidade da distribuição hierárquica das partes a partir da contingência absoluta, que se manifesta nesta igualdade fundamental. Para Rancière (2010) "a política começa precisamente ali, onde deixam de se equilibrar perdas e ganhos, onde a tarefa consiste em repartir as partes do comum, em harmonizar segundo a proporção geométrica as partes da comunidade e os títulos para obter estas partes".

A política para Rancière é uma nomeação polêmica que se realiza na publicização de um conflito, de modo que o dano produzido pela hierarquização e a consequente distribuição das partes apareça como um mimetismo deste mesmo dano. Isto implica em desconstruir, a partir da manifestação de um dissenso, a correspondência policial que naturaliza determinadas categorias sociais e suas funções correspondentes.

Entretanto, apesar de serem processos opostos, compreende-se que a política só existe em contraposição a uma ordem policial que define os limites de um sensível compartilhado, processo que Rancière (2009) denomina partilha do sensível. Para o autor, partilha do sensível "é o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas" (Rancière, 2009:15).

Merece uma atenção especial o duplo sentido contido na palavra "partilha", pois indica, ao mesmo tempo: a divisão das partes e também a participação dos indivíduos neste processo, já que estes compartilham uma "mesma faculdade de compreender" (Rancière, 2010:64) que, embora esteja determinada pelos lugares sociais partilhados, engendram a noção de uma igualdade latente, de onde se deduz que "a desigualdade de posições sociais não funciona mais que em razão da igualdade mesma dos seres falantes" (Rancière, 2010:68). A tese de Rancière é forte neste sentido, pois destitui tanto um pensamento elitista quanto aqueles da esquerda ilustrada, cuja emancipação dos oprimidos depende de uma vanguarda pensante que ilumine o caminho e ensine como atingir a maturidade intelectual. Não por outro motivo, Rancière (2010b) estudou os escritos da classe operária reconhecendo a produção intelectual destes sujeitos, já que para ele a experiência prática é muito mais potente do que qualquer rigor conceitual.

Como argumenta Galende (2012:25) para Rancière "a teoria não muda a realidade por si mesma, nem pode ser considerada longe do mundo da prática", pois considera que "uma filosofia materialista se radicaliza justamente quando se prescinde de toda referência a um núcleo de verdade que a ciência ou a teoria protegem das distorções da vida prática". Neste ponto está a força epistemológica do pensamento de Rancière e que nos obriga a considerar o pensamento científico como parte da comunidade partilhada e não superior a ela ou possuindo algum status especial, devendo ser compreendido mais bem em seus efeitos policialescos do que potencialmente emancipatório. Neste sentido, "a imagem do trabalhador forte ou rústico - assim como o operário consciente que se organiza - são figuras identitárias sobre as que uma polícia intelectual não operou de modo distinto das demais polícias" (Galende, 2012:69).

A comunidade, em sua partilha, define assim os lugares sociais associados às funções que cada indivíduo ocupa e desempenha, ao mesmo tempo em que define o enquadramento partilhado a partir do qual os indivíduos atribuirão sentido à cada parte e à sua participação nesta partilha. Por este motivo, a ordem policial tende a fixar identidades, de modo que o ordenamento social apareça como dado, ocultando ou naturalizando os danos que produz e organizando a heterogeneidade do demos. A divisão das partes aparecerá então como natural, pois a percepção sensível da hierarquização não será polemizada.

Na obra de Rancière (1999), a concepção de partilha do sensível vincula intimamente política e estética. A nomeação de um dissenso é também uma nomeação estética, dependente, portanto, da forma e lugar a partir da qual se torna visível. A partilha do sensível define não apenas as partes hierarquizadas da sociedade, mas também como estas partes se hierarquizam. A partilha do sensível valora, política e esteticamente, a existência e a qualidade daqueles que ocupam um lugar determinado em um sistema hierárquico de posições sociais e valores. Em outras palavras, "se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nesta partilha" (Rancière, 2009:15). Por este motivo, Rancière (2010) argumenta que a política é uma raridade, que emerge em momentos específicos, os quais dependem de complexos processos de elaboração individual e coletiva.

A partilha do sensível nos remete à constituição das identidades que dela fazem parte. O trabalho da política consistirá em questionar a conta das partes desse sistema em um processo que Rancière denomina "subjetivação política". Subjetivação política é um processo de desidentificação ou de desclassificação que interpela a ordem policial em um determinado campo sensível. Nas palavras do autor, "por subjetivação, entender-se-á a produção, mediante uma série de atos de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis em um campo de experiência dado, cuja identificação, portanto, corre lado a lado com a nova representação do campo da experiência" (Rancière, 2006:52).

Um processo de subjetivação política compreende a possibilidade de questionar não apenas a conta de cada parte em um sistema partilhado, mas o próprio processo de contar as partes, separando-as hierarquicamente: "há o litígio em torno do objeto do litígio, o litígio emtorno da existência do litígio e das partes que nele se enfrentam" (Rancière, 1996b:66). É a possibilidade de desnaturalizar o enunciado "as coisas como elas são", que regula a disposição dos corpos e as possibilidades interpretativas em uma comunidade política determinada, engendrando novas configurações do comum. Subjetivação política é a elaboração coletiva que se dá pelo reconhecimento de estar "entre" identidades e não a partir da valorização, do fortalecimento ou da cristalização de uma identidade dada. É uma propriedade imprópria que se caracteriza pela sua negatividade (por aquilo que ela não pode ser) e se constitui em uma equação impossível capaz de interpelar, de um lado, a equação aritmética, que equilibra perdas e ganhos, e, de outro, a equação geométrica, que justifica méritos associando uma qualidade a uma posição social (Rancière, 2010; 2006).

Entretanto, este processo de desidentificação é sucedido por um processo de reidentificação. Como apontam Blanco & Martín (2003:9), "a subjetivação implica em um movimento em dois sentidos: desidentificação e (re)identificação". Porém, a subjetivação não deve ser compreendida como dois processos distintos, mas sim "uma só e mesma aparição que, do ponto de vista da ordem constituída (e transcendida pela subjetivação) é desidentificação, do ponto de vista da novidade que irrompe é identificação":

Não há desdobramento de ações nem intenções ocultas: despojar-se e proclamar são ações simultâneas. O que conta é o caráter performativo do ato. Desidentificar-se não tem um sentido mais além da ação porque é a ação mesma. Dito de outra forma, se atua apesar da identidade prévia (e das regras que a regem e disposições que a determinam) ou como se esta identidade implicasse uma liberdade e uma igualdade até o momento incontada. (Blanco & Martín, 2003:9)

A subjetivação política redimensiona o campo da experiência sensível dos sujeitos, de modo que uma determinada identidade se desidentifique com a parte que lhe é(era) atribuída.

Este processo demanda a percepção sensível de que uma determinada experiência não implica necessariamente em uma identidade dada, mas se encontra entre identidades que foram cindidas por um processo de subjetivação anterior.

Como já se deixa entrever, a política para Rancière não se circunscreve ao espaço do Estado e da política institucional. O Estado e as instituições sociais participam da ordem policial e estão atravessadas pela partilha do sensível, sendo, assim, um poderoso agente da ordem policial. A política, ao contrário, não deve ser substantivada ou associada a um lugar específico, pois está mais associada ao verbo, a um movimento, a uma ação (Blanco & Martin, 2003). Em outras palavras, a política está associada a um discurso polêmico e litigioso que não se confunde com as técnicas de governo ou com partes da sociedade.

Entretanto, o Estado será importante por duas razões. Primeiramente porque a ordem policial é o outro da política, sem o qual não ocorreria qualquer processo de subjetivação, e as instituições jogam um papel importante nesse processo (Deranty, 2010). Em segundo lugar porque, como argumenta Rancière (2011), existem ordens policiais melhores (ou piores) que outras e o Estado representa determinadas garantias deste ordenamento. Isto evidencia o tensionamento do pensamento do autor que, ao mesmo tempo, questiona a ordem policial e a reconhece como condição de possibilidade para a existência da política bem como de seus processos de subjetivação (Chambers, 2010). Assim, a política interpela a ordem policial e seus agentes, entre eles o Estado, que respondem aos processos de subjetivação dissipando8 e/ou institucionalizando seu potencial de alargamento da experiência sensível.

Para Rancière, existe política porque uma enunciação nunca é simplesmente uma palavra, ou um conjunto de palavras, mas sim o modo como uma palavra é levada em conta. Ou seja, remete à medida a partir da qual uma determinada emissão sonora é compreendida como palavra, apta a enunciar o "justo", constituindo-se assim enquanto discurso político. Nesse sentido, a visibilidade de um determinado grupo social e de suas enunciações, apesar de ser um importante instrumento político, estaria condicionada ao lugar (sensível) em que se manifesta, à forma de sua aparição. A ordem policial estabelece as regras daquilo que pode ser objeto de disputa e, portanto, a visibilidade de um determinado discurso está equacionada pelo valor que lhe é atribuído:

O que devemos levar em conta é que a polícia estipula a 'regra do aparecer', que configura as diferentes tarefas, papéis, funções e lugares, correspondentes a cada classe. Trata-se do aparecer e um alguém (seja individual ou coletivo) e, então, de um 'lugar' no qual esse alguém pode aparecer. A relação entre aparecer e lugar é uma relação de interdependência. Quando advém o que Rancière chama de conflito, é essa ordem policial que é interrompida e questionada. Esta erupção leva o nome de política. (Blanco & Martín, 2003:7)

Por esta razão, a democracia para Rancière (2006b) não se identifica com o Estado deDireito ou com uma forma de governo. Democracia é o modo de subjetivação da política. É o nome de uma interrupção singular da ordem policial. Para o autor, "há democracia se há atores que não são nem agentes do dispositivo estatal, nem partes da sociedade" (Rancière, 2010:127). Os agentes de democratização são exatamente aqueles capazes de suspender a partilha a partir da verificação da igualdade, questionando a própria divisão das partes através de um litígio "dirigido no cenário de manifestação do povo por um sujeito não identitário" (Rancière, 2010:127). A política coloca-se aqui como algo que elicia processos de interpelação (não necessariamente do Estado) que ampliam o campo da experiência e colocam novas possibilidades de significação, a partir de atos que associam um sujeito a uma identidade fora do lugar no qual uma comunidade sensível aloca esta identidade. Assim, a política opera a partir de um processo de desidentificação que interrompe a lógica da dominação e o ordenamento sensível que organiza as identidades.

Uma ordem social não pode, a partir deste entramado conceitual, ser classificada como mais ou menos democrática, embora, segundo Rancière (2011), existam ordens policiais melhores do que outras. A democracia é algo próprio do "povo", daqueles que não tem "parte", dos que "nada tem" ou "tudo tem", esta abstração cuja existência faz com que uma comunidade exista como comunidade política e legitime sua partilha. Em outras palavras:

É através da existência desta parte dos sem parte, desse nada que é tudo, que a comunidade existe como comunidade política, quer dizer, dividida por um litígio fundamental, por um litígio que se refere à conta de suas partes, antes inclusive de referirse aos seus 'direitos'. O povo não é uma classe dentre outras. É a classe da distorção que pré-concebe a comunidade e a institui como comunidade do justo e do injusto. (Rancière, 2010:23)

Assim, a política para Rancière só é possível porque existe essa classe inexistente, o povo, a abstração de uma suposta massa indiferenciada que constitui uma comunidade política. A política é então um conflito entre classes, mas não uma classe definida a priori, como no pensamento marxista (Bosteels, 2010). O povo enquanto uma classe que não é propriamente uma classe, já que não possui nenhum valor associado a ela (nem riqueza nem virtude), funciona como horizonte simbólico da subjetivação que interpelará a partilha das partes. A igualdade, própria do povo, é escandalosa por ser o universal capaz de suprimir os preconceitos e estereótipos que distribuem os lugares em uma comunidade política, revelando sua contingência (Prado & Machado, 2008). Assim,

[...] a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial mediante colocação em ato de um suposto que por princípio lhe é heterogêneo, o de uma parte dos que não tem parte, a que, em última instância, manifesta em si mesma a pura contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. (Rancière, 2010:45)

A noção que se apresenta como classe possui uma íntima articulação com a identidade, pois se constitui como dispositivos de regulação da ordem policial que ocultam a partilha do sensível, a qual atribui valor e determina as formas de aparecer sustentando um sistema de dominação e hierarquização. Rancière (2010), deste modo, retoma os títulos da comunidade discutidos por Aristóteles, para compreender a lógica da dominação e sua interrupção. Para ele, um regime de desigualdade tenta se naturalizar a partir da oposição entre equações que estabelecem, por um lado, a lógica da oligarquia (oligoi), daqueles que controlam a riqueza a partir de uma equação aritmética, e, por outro, a lógica da virtude e da excelência (areté) que define os eleitos pelo "mérito", a partir de uma equação geométrica que designa a cada função um status social. Articulando estes conceitos, de modo a compreender como se estruturam estas relações de dominação e como a política pode emergir desafiando a ordem policial e sua partilha do sensível, estruturamos o diagrama que pode ser visto na figura 1:

 

 

Neste diagrama (Figura 1) dispusemos em cada coluna os valores (axiai), a formação social e a equação que, combinados, sustentam a partilha do sensível e, portanto, as relações de dominação e hierarquização postas pela ordem policial e, consequentemente, a possibilidade de emergência da política a partir da equação impossível de (des)identificação que se dá pelos processos de subjetivação política. Agora nos será útil investigar como a identidade, ou os processos de identificação, relacionam-se e eliciam processos de subjetivação política em relação aos conceitos acima dispostos.

 

Psicologia Política e Identidade

Rancière (2010) não considera a política de forma substantivada, mas como um movimento, um verbo, uma ação significante. Neste sentido, argumentam Blanco & Martí (2003), a identidade é entendida como um operador identificante que trabalha, simultaneamente, possibilitando os processos de individuação e o pertencimento dos indivíduos a uma comunidade. Estes mecanismos identificantes são operados pela lógica policial que, ao distribuir geometricamente as partes de um sensível compartilhado, permite a emergência da diferença e sua classificação em partes específicas: grupos identificáveis por uma comunidade mais ampla, no interior desta mesma comunidade e seu conjunto de relações sociais. A política, portanto, "não tem como uma de suas tarefas outorgar identidade ou identificar, mas sim, romper uma identidade dada e, com ela, uma ordem de identidades preestabelecidas. Esta ruptura se exerce por meio da inscrição de uma nova identidade, a inscrição de um novo sujeito ou subjetivação" (Blanco & Martí, 2003:10). Ao referir-se sobre suas análises dos escritos operários (Rancière, 2010b), Rancière (2013) argumenta que não parecia se tratar de adquirir conhecimentos para a emancipação dos proletários, mas sim, "livrarem-se de um certo saber e uma certa voz" (p. 12), que, no curso normal das coisas, "reserva para uns as tarefas do pensamento e para outros, o trabalho da produção" (p. 13).

O conceito de identidade desenvolvido pela psicologia social crítica brasileira (Ciampa, 1984; Lane & Codo, 1984) foi uma chave teórica importante para a superação do determinismo marxista, devolvendo às análises de classe a dimensão do sujeito, em suas particularidades e desejos individuais (Ciampa, 1987; 1984). Entretanto, se o que marcava mais enfaticamente os usos deste conceito estava voltado para a compreensão das relações comunitárias, dos projetos de educação popular, da vida coletiva e o enfrentamento ao contexto de subdesenvolvimento (Sandoval, 2000), ao longo da década de 2000, é notável como os estudos sobre identidade agregaram um forte interesse pela "diferença", em suas especificidades temáticas, e pelas particularidades das identidades sociais e das "minorias" (Mayorga, Rasera & Pereira, 2009; Mayorga & Prado, 2007).

Esta tradição de pensamento latino-americana abordou a identidade como um processo dinâmico. Entretanto, oscilando entre a ênfase na igualdade de classes ou a ênfase nas diferenças coletivas, muitos estudos acabam por enfocar os processos de identificação a partir das categorizações sociais que engendram. Isto, analisado à luz do pensamento de Rancière, pode revelar concepções essencialistas acerca dos fenômenos sociais e/ou acerca da natureza mesma do conhecimento. Neste contexto, encontramos autores como Prado (2001; 2002), inspirados pela teoria democrática radical e plural, de Laclau e Mouffe (1985), que evitaram considerar qualquer sujeito histórico privilegiado seja ele uma classe, uma categoria ou um grupo social e buscaram uma abordagem radicalmente antiessencialista. Como já sinalizado no tópico anterior, embora Laclau & Mouffe (1985) sejam, diferentemente de Rancière, tributários do pós-estruturalismo, muitas semelhanças podem ser encontradas entre eles, sobretudo em publicações mais recentes (Laclau, 2005).

Outra perspectiva importante nos estudos sobre identidade na psicologia política brasileira é o trabalho Alberto Melucci (2001; 1996). A perspectiva deste autor se aproxima do conceito de político apresentado em função da noção de transformação social associada à rupturas em relação à um sistema de referência9. Em um sentido muito estrito, a ordem normativa, da qual fala Melucci (2001), pode ser associada à ordem policial (já que coincide com a norma de ordenamento dos corpos e a manutenção de um sistema de referência simbólico, que define os processos de identificação), desde que reconheçamos as limitações da análise da identidade coletiva em Melucci (1996), que não se atenta da mesma forma para a dimensão da desidentificação nesta mecânica conceitual.

A subjetivação política, na medida em que produz um "alargamento" do sensível, na perspectiva de Rancière (1996), não é incompatível, ao menos do ponto de vista da identificação, com o que Melucci (2001) chamou de "movimento social". Entretanto, a noção de mudança social atravessada pelo funcionalismo subjacente à perspectiva sistêmica, que fundamenta o social em Melucci (1996), atribui um caráter excessivamente pragmático à realidade social. Neste ponto a perspectiva de Rancière traz uma compreensão da realidade menos prescritiva quanto às práticas sociais, abordadas como construção que se objetiva a partir de um precário e hierarquizado consenso intersubjetivo (e não interobjetivo, como poderíamos, nesta perspectiva, classificar Melucci), que pode ser interrompido pela política através do litígio instaurado pela subjetivação política. Nas palavras de Galende (2012:77), "a realidade é uma ficção desigualitária colocada sobre os cimentos de uma igualdade que é nossa". Por outro lado, na perspectiva de Melucci (1996), o "subjetivo" aparece como um elemento a mais compondo um sistema, cuja moeda de troca é a informação.

Se tomarmos a noção de identidade e seus usos na psicologia política brasileira, veremos que a perspectiva de Jacques Rancière nos ajuda a superar questões importantes, tais como uma crítica ao marxismo que traz uma compreensão precisa da igualdade como único universal da política, uma concepção de democracia dinâmica e a articulação entre estética e política. Do ponto de vista interacional, os conceitos discutidos nos ajudam a superar o cognitivismo ainda muito determinante na abordagem de Melucci. Além disto, Rancière é contundente em denunciar a perspectiva policialesca das teorias da identidade, que, no caso da psicologia política brasileira, ainda está às voltas com os dilemas analíticos e reflexivos postos em suas relações com as "minorias sociais", as populações oprimidas e a proliferação das diferenças em uma sociedade ainda tão desigual como a brasileira.

Para finalizar, como discutimos em trabalho anterior (Machado, 2013), embora estas teorias sejam úteis para a compreensão dos fenômenos políticos, apresentam dificuldades de operacionalização para investigações empíricas. A partir disto, identificamos potencialidades para a triangulação de teorias na composição de desenhos metodológicos10. Embora reconheçamos a relevância de um aparato teórico que compreenda a dinâmica e o funcionamento da polícia, argumentamos sobre a necessidade de mantermos uma relação tensionada entre diferenciação e igualdade na constituição de identidades.

Afinal, embora a política necessite da diferença para emergir como dissenso, ela o faz a partir da igualdade ou, mais especificamente, pela verificação da igualdade entre os seres falantes (não entre identidades partilhadas). A subjetivação política, nesta perspectiva, é um processo capaz de questionar os atributos de uma identidade suspendendo, durante o ato enunciativo, o próprio sentido da categorização social que engendra identidades. Como apontam Blanco & Martí (2003:10), o sujeito político será, portanto, "um operador que une e desune identidades", e tem como "horizonte regulador a ideia de igualdade", fazendo com que a política seja "a igualação dos que, desiguais, devem ser igualados".

 

Considerações Finais

A partir da obra de Jacques Rancière, avançamos sobre o conceito do político e traçamos uma abordagem teórica para analisar o lugar das identidades nos processos de subjetivação política, e como isto engendra um ato que articula paradoxalmente igualdade e diferença em um processo de (des)identificação. Desta feita, podemos destacar alguns pontos nevrálgicos para a psicologia política no Brasil.

Em primeiro lugar, é importante destacar o imperativo da verificação da igualdade para a constituição de uma enunciação política que seja capaz de superar a ênfase que é dada ao direito à diferença nos debates políticos contemporâneos (Blanco & Martí, 2003)11. Para Rancière (2010; 2006), a possibilidade de verificação da igualdade entre quaisquer seres falantes é constitutiva da política. Isto oferece uma abordagem interessante para a análise das "políticas de identidade" (Bernstein, 2005) que articule a lógica da igualdade com a lógica da diferença, reposicionando o conceito de identidade de forma não essencialista, mas que não menospreze o trabalho identitário cotidiano das "minorias" e grupos organizados, em suas operações policiais e políticas. Importante recordar que uma das ciladas da diferença apontada por Pierucci (1998) é exatamente que os discursos políticos fundamentados na diferença elitizam teoricamente o campo da política, o que acaba por afastar aqueles que "não tem voz" das possibilidades de interpretação de sua própria experiência, o que Rancière é preciso em desconstruir, sem abandonar a igualdade como horizonte de universalidade.

Além disto, a partir de Rancière (2010), a ideia de classe social pode aparecer como construção teórica, e não como um dado da realidade, sem que isto signifique secundarizar as desigualdades econômicas que a noção de conflito de classes já descreveu com propriedade. Para que as crescentes desigualdades econômicas possam ser analisadas frente aos processos de (in)diferenciação próprios da contemporaneidade, Rancière (2010) nos adverte quanto aos equívocos de um retorno ao discurso de classes tradicional para a compreensão da política:

A luta de ricos e pobres não é a realidade social com a qual deveria contar a política. Não constitui senão uma unidade com sua instituição. Há política quando há uma parte dos que não tem parte, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se oponham aos ricos. Antes disso, há que dizer sem dúvidas que é a política - isto é, a interrupção dos meros efeitos da dominação dos ricos - a que faz existir os pobres como entidade. A pretensão exorbitante do demos a ser o todo da comunidade, não faz mais que realizar a sua maneira - a de um partido - a condição da política. A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parte dos que não tem parte. Esta instituição é o todo da política como forma específica de vínculo. A mesma define o comum da comunidade como comunidade política, quer dizer, dividida, fundada sobre uma distorção que escapa à aritmética dos intercâmbios e das reparações. À margem desta instituição, não há política. Não há mais que a ordem da dominação ou a desordem da revolta. (Rancière, 2010)

A luta política, nesta perspectiva, não se confunde nem com a domesticação do ativismo, nem com a violência ou o terrorismo. A subjetivação política deve ser analisada por uma compreensão das lutas sociais que passe por um reordenamento sensível das formas de ser e estar no mundo, o que não se limita à produção de novas leis, decretos e políticas públicas, nem se subscreve a noções revolucionárias que neguem a partilha do sensível que constitui uma comunidade política ou a autonomia dos sujeitos políticos em se afirmarem como tal12. Em um momento histórico no qual supõe-se que qualquer mudança social deve remeter-se à "sociedade global", Rancière (2010) recupera a importância da subjetivação e dos sujeitos políticos engendrando processos de transformação de suas realidades. A política emerge das relações sociais, dos modos através dos quais os indivíduos atribuem sentido às experiências que vivenciam, o que ressalta a importância do âmbito local:

Existe uma polícia mundial e em algumas ocasiões pode trazer alguns benefícios. Mas não há uma política mundial. O 'mundo' pode alargar-se, mas o universal da política não se alarga. Segue sendo a universalidade da construção singular dos litígios, a qual não tem que esperar mais de uma mundialidade mais essencialmente mundial, que a mera identificação do universal com o império da lei. [...] A política, em sua especificidade, é rara. Sempre é local e ocasional. (Rancière, 2010:173)

Ao recolocar o local no centro da política, o conceito de político que aqui apresentamos leva-nos também a reposicionar o Estado e o espaço público a partir de uma compreensão mais ampla e radical da ideia de democracia que, associada a uma abordagem não essencialista e contingente das identidades, oferece um alicerce epistemológico sobre o qual edificar uma análise das interações entre as mudanças institucionais e a constituição dos sujeitos políticos. Isto se torna ainda mais premente se observarmos, por um lado, a gestão de identidades como forma de governo e a assimilação dos movimentos sociais (Machado, 2013) e, por outro lado, a complexidade das novas formas de mobilização. Este contexto desafia a psicologia política brasileira a superar os moldes teóricos que limitam nossa visão da sociedade e suas instituições e nos convida à um olhar renovado para as divisões escandalosas que estão, a despeito da cegueira da intelectualidade ilustrada, ampliando o campo da experiência sensível.

Não temos aqui espaço para apresentar exemplos de como os conceitos de Rancière podem nos ajudar a compreender os fenômenos políticos atuais13, mas vale destacar dois pontos que consideramos cruciais para o presente momento. Em primeiro lugar, estamos no terceiro mandato presidencial de um partido político, supostamente de esquerda, que refaz as partições oligárquicas e aristocráticas da sociedade brasileira, operando com vigor, apesar de seus dissensos, as equações aritmética e geométrica na assimilação dos movimentos sociais a partir de arranjos participativos. Este cenário nos coloca frente a um enrijecido maniqueísmo direita/esquerda, conservador/progressista, onde criticar ou discordar com uma "parte" da sociedade parece implicar em anuência com seu contrário. Rancière (2010c) nos será aqui providencial, pois nos alerta que a política ocorre justamente nas "bordas" de qualquer ordenamento policial, abrindo o campo sensível a novas possiblidades de ordenamento.

Em segundo lugar, em junho de 2013 vimos um levante popular de rara proporção nas principais cidades do Brasil, constituindo um fenômeno complexo, contraditório e heterogêneo que, exatamente pela incapacidade de sua classificação, nos sugere estarmos frente um processo de subjetivação política singular da contemporaneidade. Frente aos aparatos teóricos que a intelectualidade ilustrada nos oferece, será muito fácil transformarmos qualquer análise psicopolítica deste fenômeno em uma cama de Procusto, que tenderá a limitar o potencial político às equações de ganho e perda do pragmatismo do discurso único contemporâneo, que tende a traduzir qualquer dissenso em questões técnicas da ordem da gestão dos corpos, ou, em outras palavras, que tende a dissipar toda performatividade da política. Este fenômeno, se tomado em seu contexto mais amplo, que incluiria os diversos movimentos de ocupação ao longo do mundo e a diversificação dos protestos globais, nos apresentam novos elementos para repensarmos as ações coletivas atuais e, com os quais devemos ser cuidadosos, sobretudo se considerarmos a importância cada vez mais marcante da reflexividade entre a produção de conhecimento e o senso comum na sociedade atual.

Frente à estas questões, a obra de Jacques Rancière pode ser esclarecedora. Por um lado, não podemos reduzir a ordem policial ao Estado e suas instituições, pois ela atravessa a partilha do sensível. Por outro lado, tampouco podemos ignorar o âmbito institucional como sendo resultados cristalizados de um comum compartilhado. A subjetivação política, que emerge como a enunciação polêmica de um dissenso, deve ser capaz de denunciar a contingência de um dano que contrapõe partes de um comum compartilhado, o que implica em uma rearticulação da própria partilha, e não apenas em um reequilíbrio contábil destas partes, como tenderíamos a pensar se associássemos a democracia ao espaço do consenso.

Neste contexto, o conceito de subjetivação política joga luz sobre a crise das sociabilidades e a mercadorização da vida que enfraquecem as "propostas da soberania nacional em favor das propostas da globalidade e na qual se obscureceram os direitos dos povos diante dos direitos dos indivíduos", o que desenha um discurso político global tendente ao individualismo que, "em vez da libertação propõe a inserção ou a integração, e, em vez da luta social, a solidariedade humanitária ou empresarial" (Casanova, 2008:46). Rancière (2010:169) argumenta, neste sentido, que "o fazer político se encontra atualmente atenuado entre as polícias estatais da gestão, e a polícia mundial do humanitário", que redunda em expulsar a política dos âmbitos nos quais operam os litígios políticos, e estabelecê-la "no terreno de uma mundialidade do humano que é mundialidade da vítima, definição de um sentido de mundo e de uma comunidade de humanidade a partir da figura da vítima". Aqui nos cabe parcimônia teórica, para não congelarmos identidades, prescrevermos jogos identitários ou demandarmos dos "sem parte" que sejam experts de sua própria exclusão ou se afirmem como vítimas de uma realidade perversa da qual não participam. Mas também, nos cabe coragem e criatividade, pois, como argumenta Ruby (2011:106), buscando responder às dificuldades de se ser um pensador rancieriano, "o filósofo 'democrata' tem a vocação de inquietar-se pela sua desidentificação, em benefício da reinvenção e da verificação sem fim dos 'limites da igualdade'".

Esta discussão nos ajuda inclusive a repensarmos a própria definição de psicologia política, oferecendo pontos de tensão que caracterizam a política e o alargamento do campo sensível. Seria possível pensar a política sem considerar seus aspectos psicológicos? Existe uma psicologia que não esteja condicionada pelo político? Mais que a análise de comportamentos políticos, a interseção entre aspectos psicológicos e políticos encontra nos processos de (des)identificação, caracterizados pelo conceito de subjetivação política, um contundente diapasão analítico.

 

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Recebido em 19/06/2013
Aceito em 25/08/2013

 

 

1 Agradeço ao professor Carlos Steil pelo salutar embate acadêmico cujas críticas e sugestões me incentivaram escrever este artigo. Agradeço também aos professores Pieter de Vries e Marco Aurélio Máximo Prado pelas discussões que me ajudaram a compreender melhor alguns pontos que abordo neste texto
2 Todas as traduções de citações foram feitas por nós
3 Podem ser encontrados bons trabalhos com este objetivo, tais como Ruby (2011), Galende (2012), Deranty (2010). Para se ter uma visão abrangente desta obra também pode-se acessar Rancière (2011), que traz uma rica coleção de entrevistas do autor
4 Sobre este ponto da teoria de Carl Schmitt, Lima (2011:166) argumenta que "se na esfera moral, as diferenciações extremas são o bom e mau; no estético, o belo e o feio; no econômico, o útil e o prejudicial, etc.; na esfera do político, para Schmitt, a fim de resguardar sua autonomia, é fundamental a diferenciação de algo especificamente político"
5 A influência do pensamento deleuziano ressalta a dimensão ontológica na noção de política que subjaz o pensamento destes autores, na medida em que a definição da realidade se faz de forma conflituosa. Talvez a frase que melhor ilustre este ponto seja a de abertura do livro Mil Platôs: "Antes do ser, há a política" (Deleuze e Guattari, 1996:78)
6 Swyngedouw (2011:373) classifica estes autores como representantes de um pensamento pós althusseriano, e argumenta que eles se baseiam na diferença entre "politics/polic(e)y (la politique) and the political (le politique)" que foi, segundo ele, o que Paul Ricouer chamou de "o paradoxo democrático" e o "leitmotiv de grande parte do pensamento político pós-fundacional". Para uma diferenciação precisa acerca das diferenças entre o pensamento de Rancière e o de Althusser ver Galende (2012), especialmente o capítulo 1
7 Em um sentido semelhante, mas não equivalente, Laclau & Mouffe (1985) fazem a distinção entre o político e a política. A política pode ser considerada como o conjunto de instituições e relações formais públicas que sustentam não só o Estado, mas as próprias ações da sociedade civil. Define-se como um conjunto de regulações, leis, normas e modos institucionais que permitem que um contrato entre os diferentes grupos sociais seja estabelecido. O político, por sua vez, diz respeito às posições antagônicas que se constituem como formas e tentativas de limitar a objetividade do social, não sendo reguladas pela política imediatamente, mas se transformam em formas de política negociada. O político pode ser assim entendido como aquilo que é antissocial, definindo os limites da objetivação social, enquanto a política é definida como as práticas sociais que derivam de antagonismos e conflitos, e que competem por uma nova significação da realidade
8 O termo dissipação, utilizado por Rancière (1996), recupera um conceito da física que descreve a perda de energia sem produção de trabalho em modelos mecânicos. A perda de "energia", no caso da política, é descrita pelo autor da seguinte forma: "se a política é um desvio singular do curso 'normal' da dominação, isso quer dizer que está sempre ameaçada de se dissipar. Ora, a forma mais radical dessa dissipação não é o simples desaparecimento, é a confusão com seu contrário, a polícia. O risco dos sujeitos políticos é confundir-se de novo com partes orgânicas do corpo social ou com esse próprio corpo" (Rancière, 1996:378)
9 A este respeito, Melucci (2001:36) afirma que "somente a presença de um conflito não basta para qualificar uma ação coletiva como movimento social. Se o conflito não ultrapassa os limites do sistema de referência, encontramo-nos diante da competição de interesses no interior de uma certa ordem normativa"
10 Este ponto foi trabalhado separadamente em Machado (no prelo)
11 Esta ênfase na diferença vem sendo abordada por diversos autores, tais como Pierucci (1998), que nos fala das ciladas da diferença, ou Fraser (2002) e seu dilema da substituição. Mais recentemente, autores como Tejerina, Perugorria, Benski & Langman (2013) argumentam que a perplexidade do pensamento sociológico atual frente a onda de protestos que assolou o mundo a partir da primavera árabe se deve, entre outras coisas, pela ênfase, após a segunda guerra mundial, nos processos de diferenciação/afirmação manifestados pelos movimentos de direitos civis e feministas. Segundo estes autores, a proliferação das diferenças foi dificultando cada vez mais a abordagem dos aspectos estruturais e socioeconômicos no âmbito dos movimentos sociais
12 Afinal, um sujeito político não é apenas a constituição de um "nós" ou o reconhecimento de um ator social, mas passa pela subjetivação política, que "é o processo de construção de si como sujeito a partir da pressuposição de igualdade e da apropriação dos instrumentos para afirma-la" (Ruby, 2011:100)
13 O autor já traz muitos exemplos em quase todos os seus textos. Ver especialmente Rancière (2011b), que reúne algumas análises sobre acontecimentos políticos contemporâneos