13 27 
Home Page  


Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X

     

 

A exclusão dos andarilhos de estrada nas políticas públicas de assistência social

 

The exclusion of brazilian highway wanderers in the social assistance public policies

 

La exclusión de andariegos de carretera brasileños en las políticas públicas de asistencia social

 

L'exclusion de errants d'autoroute brésiliens dans les politiques publiques d'assistence social

 

 

Eurípedes Costa Nascimento

Psicólogo e Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, Brasil. nascimentoec@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A errância no contemporâneo é um fenômeno complexo e se expressa com maior radicalidade no caso dos andarilhos de estrada: sujeitos que perambulam a pé pelas rodovias do país com um saco às costas onde carregam todos os seus pertences e sendo praticamente ignorados pelas políticas públicas de assistência social. Esse artigo procura refletir sobre essas políticas públicas tendo como eixo de análise o texto da Resolução 109 publicada no Diário Oficial da União no dia 25 de novembro de 2009 em concordância com a Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993 que aprovou a tipificação nacional de serviços socioassistenciais coordenada pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS). As análises sugerem uma ampla discussão junto ao SUAS e órgãos governamentais para a elaboração e a implementação de novos projetos de gestão onde Estados e municípios possam promover políticas públicas de assistência visando atender também as necessidades dos andarilhos no sentido de garantir pelo menos melhores condições de dignidade em suas jornadas erráticas pelas rodovias.

Palavras-chave: Errância, Andarilhos de estrada, Sistema Único de Assistência Social, Políticas públicas, Exclusão social.


ABSTRACT

The wandering in the contemporaneity is a complex phenomenon and it radically expresses in the case of highway wanderers: individuals that walking on foot and without a destination on the Brazilian highways with a sack on their backs where carry all your meager belongings and excluded of social assistance public policies practically. This paper aims to reflect about these public policies whose analysis is the text of 109 Resolution published on the Union Official Diary on November 25th 2009 according to Law 8.742 on December 07th 1993 that approved the national standardization of Brazilian social assistance services organized by Only Social Assistance System (OSAS). The analysis suggest an ample discussion within OSAS and others government institutions to elaborate and implement new projects of social administration where States and municipalities can promote assistance public policies to attend also the needs of highway wanderers and assure best dignity conditions in their wandering journeys at least.

Keywords: Wandering, Highway wanderers, Only Social Assistance System, Public policies, Social exclusion.


RESUMEN

La errancia en la contemporaneidad se expresa con radicalidad en los andariegos de carretera que deambulan por las carreteras brasileñas con un saco a cuestas donde portan todas sus pertenencias y excluidos por las políticas públicas de asistencia social. Este artículo procura reflexionar sobre esas políticas públicas a partir del análisis del texto de la Resolución 109 publicada en Diario Oficial de la Unión en el 25 de noviembre de 2009 conforme la Ley 8.742 el 07 de diciembre de 1993 que ha aprobado la tipificación nacionalde los servicios de asistencia social coordenada por el Sistema Único de Asistencia Social (SUAS). Los análisis sugieren una amplia discusión junto al SUAS y otros órganos gubernamentales para elaboración e implementación de nuevos proyectos de gestión donde Estados y municipios puedan promover políticas públicas buscando atender también las necesidades de los andariegos que puedan garantizarles por lo menos mejores condiciones de dignidad en sus jornadas erráticas por las carreteras.

Palabras clave: Errancia, Andariegos de carretera, Sistema Único de Asistencia Social, Políticas públicas, Exclusión social.


RÉSUMÉ

Le vagabondage contemporain en Brésil est un phénomène complexe où les errants d'autoroute sont un d'exemples plus radical porquoi marchent à pied et sans une destination sur les autoroutes brésiliennes avec un sac sur leurs dos où emportent toutes les affaires maigres et pratiquement exclu de la politiques publiques d'assistance sociale. Ce papier a l'intention de refléter au sujet de ces politiques publiques dont l'analyse est le texte de la 109 Résolution 109 publié dans le Journal Officiel de la Union sur novembre 25e 2009 selon le Loi 8742 décembre 07e 1993 cela a approuvé la standardisation nationale de services de l'assistance sociaux brésiliens organisée par Système Unique de Assistance Social (SUAS). L'analyse suggère le nécessité de ample discussion dans SUAS et autres institutions du gouvernement pour élaborer et appliquer nouveaux projets d'administration sociale où État et les villes peuvent promouvoir politiques publiques d'assistance pour assister aussi aux nécessités de errants d'autoroute et assurer meilleures conditions de dignité dans leur voyages sur l'autoroute au moins.

Mots clés: Vagabondage, Errants d'autoroute, Système Unique de Assistence Social, Eclusion sociale.


 

 

Introdução

O fenômeno da errância no contemporâneo é uma realidade complexa, marcante e se expressa com maior radicalidade no caso dos andarilhos de estrada: sujeitos que perambulam a pé pela pelas rodovias do país com um saco às costas onde carregam todos os seus pertences e completamente excluídos pelas políticas públicas de assistência social. Inseridos nos corredores das rodovias brasileiras, os andarilhos não possuem qualquer visibilidade social ou espaço de cidadania, sendo relativamente ignorados pelas ciências humanas e pelas políticas públicas de assistência cuja focalização se concentra nas famílias em situação de risco e vulnerabilidade. Os andarilhos vivem numa espécie de "ostracismo", a despeito também da sua importância no cenário social, seja pela condição de desfiliação extrema que apresentam, seja, ainda, por incidir de sobre eles e de maneira avassaladora, as principais vicissitudes da economia e da organização social no mundo contemporâneo.

Nossas pesquisas realizadas sobre a errância radical dos andarilhos têm investigado as razões que levam esses sujeitos a abandonarem o sedentarismo supostamente estável e partir para a vida nas estradas, sem destino certo, sem morada fixa ou qualquer forma de permanência em determinado lugar. Em tais pesquisas foram apontados a existência de fatores socioeconômicos (desemprego, ausência de moradia, migração e desestrutura familiar) interrelacionados com fatores socioafetivos (desilusão amorosa, morte dos pais, violência familiar e uso de álcool) como um dos principais elementos constitutivos para a ruptura desses sujeitos com a vida sedentária (Justo & Nascimento, 2012; Nascimento, 2008; Nascimento & Justo, 2000, Justo, 2011).

Essas pesquisas apontaram, também, que as instituições assistenciais destinadas ao acolhimento desses sujeitos acabam produzindo um "efeito sanfona", estimulando ainda mais a perambulação dos andarilhos num vai-e-vem interminável pelas estradas e rodovias do país. Nesse sentido, Albergues Noturnos, Casas de Passagem e demais instituições assistenciais públicas ou filantrópicas parecem funcionar como pontos de permanência provisória ou de passagem para outras localidades geográficas do país e da América do Sul, perpetuando, assim, a errância incessante e interminável desses sujeitos pelos acostamentos das principais malhas rodoviárias.

Ademais, parece não haver qualquer política pública destinada a possibilitar alguma alternativa para aqueles que queiram sair desse modo de vida on the road e restabelecer certa fixação em algum lugar concreto de ancoragem. Vale destacar que muitos sujeitos na condição de andarilhos preferem não recorrer a algumas instituições assistenciais alegando terem passado por diversas situações constrangedoras dentro delas como, por exemplo, humilhação pela situação sociopsicológica em que se encontram (miseráveis e alcoolistas), além do preconceito pela aparência apresentada (sujos e mal vestidos). Outros alegam, ainda, que são impedidos de adentrarem as cidades pela própria polícia ou pelas equipes de contenção mantidas pela política municipal, principalmente as cidades de pequeno a médio porte (Nascimento, Justo & França, 2009).

Mediante tais considerações esse artigo tem por objetivo analisar, a partir da intersecção entre a psicologia, a política e exclusão social dos andarilhos de estrada, algumas descrições dos serviços socioassistenciais contidas no texto da Resolução 109 publicada no Diário Oficial da União no dia 25 de novembro de 2009 em concordância com a Lei nº 8.742/1993, que aprovou a tipificação nacional desses serviços sob gestão do Sistema Único de Assistência Social. Vale esclarecer que por psicologia política, compreendemos o estudo da interação entre os processos políticos com os fenômenos psicológicos presentes no espaço social. Esse artigo está dividido em dois tópicos: no primeiro, apresentamos uma panorâmica geral dos andarilhos de estrada na contemporaneidade e, no segundo, analisamos parte dapolítica de gestão do Sistema Único de Assistência Social acerca da descrição e dos objetivos estabelecidos para os serviços assistenciais.

 

Andarilhos de Estrada e Contemporaneidade

A sociedade contemporânea, pelo alto nível de sofisticação tecnológica, vem se tornando cada vez mais uma sociedade competitiva, seletiva e fragmentada onde o individualismo e as concorrências para alcançar sucesso e status social se apresentam como uma de suas marcas registradas. A busca pelo reconhecimento e admiração dos outros parece se tornar a razão de ser para a maioria dos indivíduos, pois, o que parece estar em jogo nesse cenário objetificante é a performance narcísica do eu na demanda de autocentramento (Birman, 2000). Assim, os modos de comportamento que se enraizaram no imaginário social das culturas ocidentais pautados pela aparência, levaram muitos indivíduos a inventarem um personagem de si mesmo para desempenhar determinados papéis numa verdadeira encenação nessa sociedade do espetáculo (Debord, 1991).

Se a contemporaneidade pode ser considerada como um lugar onde se encena a teatralização da vida em que cada sujeito individualiza suas ações em busca do reconhecimento e dos aplausos por suas realizações "grandiosas" aos olhos do mundo, estamos diante, portanto, de uma sociedade mediada pelos modos capitalistas de produção que valoriza a imagem e as aparências dos indivíduos, levando-os a um processo de alienação na vida e no trabalho. Ehrenberg (1991) é quem nos dá as primeiras dicas dessa encenação do indivíduo contemporâneo em seu fascinante ensaio sobre o culto da performance onde analisa a busca insana pela grandeza e necessidade constante de aplausos e admirações no competitivo universo business. Segundo suas análises, vivemos numa sociedade onde a norma de conduta é a eleição de si mesmo frente às concorrências que se apresentam para o indivíduo no mundo, pois, é ele próprio quem precisa criar condições para sua visibilidade no cenário social e se distinguir dos demais por suas qualidades exteriores altamente brilhantes e magnificamente valorativas e impressionáveis na qual a essência ou interioridade de si são descartadas a favor da própria aparência.

Desse modo, é o investimento em si mesmo quem determina as novas relações do indivíduo com o meio social num verdadeiro culto da performance onde o que importa é a realização pessoal em nome de si mesmo, mediante um processo de individualização cuja aparência ou exterioridade de si é o principal mecanismo para a manutenção e aceitação da própria existência. Nesse contexto, o indivíduo exibicionista e sempre autorreferente se torna o único responsável por suas ações no cenário sociopolítico, pois, cabe a ele administrar sua própria vida e tornar visível sua identidade singularizada numa sociedade que elegeu a cultura do narcisismo como atributo para o sucesso e excelência do eu (Lasch, 1979).

Segundo Castel (1998), esse processo de "narcisilação" ou individualização na sociedade contemporânea apresenta alguns efeitos contrastantes. Se por um lado reforça o individualismo positivo mediado pela imagem, onde o sujeito é estimulado a investir em si mesmo para concorrer com os outros e conquistar reconhecimento, sucesso e status social, por outro, dá origem a um individualismo negativo constituído pela dificuldade de uma camada menos favorecida economicamente e sem condições de competirem, em relação àqueles com recursos para o autoinvestimento, de forma justa e democrática. Nesse sentido, os mendigos, os moradores de rua, os andarilhos de estrada e tantos outros em situações semelhantes de miserabilidade socioeconômica podem ser tomados como um de seus exemplos mais significativos.

Nesse contexto, esquecidos pelas políticas socioassistenciais do governo, os andarilhos vivem de maneira extremamente precária à beira da sociedade, sem cidadania, ignorados, banalizados e discriminados pela maioria da população que parece compreendê-los como indivíduos marginais ou vagabundos (Castel, 2008; 1998; Justo & Nascimento, 2012; Nascimento, 2008; 2012). De acordo com Castel (2008), os conceitos de vagabundagem e marginalidade, enraizados no imaginário social, podem contribuir, inclusive, para o assentamento de dois tipos de "discriminação" nas próprias políticas públicas de assistência: uma "positiva" que consiste em fazer mais para aqueles que têm menos e outra "negativa" caracterizada por fazer menos àqueles que precisam mais como no caso dos andarilhos de estrada em questão.

Desse modo, a "discriminação positiva" define com precisão a clientela a ser socorrida pelas políticas públicas de assistência por ser a mais visível aos olhos da sociedade e elevar a imagem do Estado como provedor social "preocupado" com os problemas de seus cidadãos. Por sua vez, a "discriminação negativa" marca seu portador com um defeito quase indelével associado a um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que os saberes sociais constroem e determinam para ele se enquadrar (Castel, 2008).

Vale destacar que os andarilhos de estrada se diferenciam de outros grupos que também se encontram em transitoriedade nas estradas: os itinerantes, sujeitos que migram de uma cidade a outra em busca de trabalho ora a pé, ora com recursos assistenciais; os trecheiros, sujeitos que circulam pelas rodovias, de cidade em cidade a pé, sobrevivendo de trabalhos temporários e de eventuais ajudas filantrópicas e os "pardais", indivíduos que circulam em grupo a pé para outra cidade sem se distanciarem de seus lugares de origem num trajeto delimitado e circunscrito a uma determinada região geográfica (Justo, 2011; Nascimento, 2008). Os andarilhos diferem-se, ainda, de outros grupos característicos das cidades como os moradores de rua que sobrevivem das chamadas "bocas de rango" e da assistência social e os vacilantes que se encontram em situação de rua sem serem, necessariamente, moradores de rua (Di Flora, 1987; Nasser, 2001; Rosa, 2005; Snow & Anderson, 1998; Vieira, Bezerra & Rosa, 2004).

Vale ressaltar, também, que nem todos os andarilhos utilizam os serviços das instituições assistenciais, sejam elas públicas ou filantrópicas. Uma parte deles evita, inclusive, adentrar as cidades e procura manter distância do espaço urbano, pois, veem nelas uma ameaça à sua forma de ser e viver que merece ser respeitada por ser uma opção de vida ou ruptura com a ordem sociopolítica estabelecida (Justo, 2011; Justo & Nascimento, 2012; Nascimento, 2008, 2012). A grande maioria tenta sobreviver através dos trabalhos temporários ou eventuais quando encontram pelo caminho e admitem pedir comida nos postos de combustíveis situados à beira das rodovias apenas em casos de extrema necessidade. Nessas condições, a estratégia mais utilizada é a narração de uma história de vida de caráter dramático e comovente, conhecida entre eles por mangueio, acharque, um-sete-um que, segundo Bognoli (1997), são gírias utilizadas para pedir dinheiro e comida.

A história de vida dos andarilhos testemunha, ainda, uma conjugação de várias dificuldades que incidem de forma candente em suas vidas desalojando-os de nichos sociais supostamente estáveis na cultura do capitalismo. Migrações constantes da família, (principalmente deslocamentos do nordeste para o sudeste); baixa escolaridade; desqualificação da mão de obra; uso abusivo de álcool e drogas; conflitos familiares que incluem a morte dos pais ou desentendimentos conjugais; o desemprego prolongado, a falta de seguridade social e tantos outros acontecimentos impulsionam muitos desses sujeitos a buscar na estrada alguma chance de minimizar as agruras e os sofrimentos que não conseguem nos serviços assistenciais do município (Justo, 2011; Nascimento, 2008).

Desfiliados dos nichos de fixação social ou das redes que conectam os indivíduos entre si, provendo uma sustentabilidade e uma ancoragem mínima, os andarilhos acabam movimentando-se a esmo tanto no plano geográfico como no psicossocial. O que existe à sua volta é a rodovia, a transitoriedade, as idas e vindas dos veículos, os postos de combustíveis, as guaritas da polícia rodoviária, as praças de pedágio, as matas, as plantações e eventualmente uma casa de moradores situados na zona rural.

Na rodovia, circulam também andarilhos com pensamentos delirantes de si e do mundo sem que estejam, contudo, incapacitados para viver nessas condições de deambulação. Apesar de não termos clareza se tais vivências delirantes sejam provenientes do abandono ou do descuido familiar, algumas pesquisas indicaram pelo menos que as desestruturas sociopsicológicas de algumas famílias têm sido de importância fundamental para muitos desses sujeitos viverem seus delírios pelas estradas sem a interferência do saber médico ou das conotações pejorativas do senso comum (Justo, 2002; Justo & Nascimento, 2005; 2012; Nascimento, 2008, 2012). Entretanto, seja qual for a maneira de o andarilho viver suas experiências pelas estradas, é necessário ponderar que a errância se coloca como uma condição peculiar na contemporaneidade onde a circulação no imprevisível pode proporcionar, senão uma narrativa delirante, pelo menos um contato anônimo com a heterogeneidade capaz de provocar diálogos de si para consigo mesmo sem o incômodo e as contrições presentes em qualquer regime de confinamento e disciplina comandados pela sociedade de controle.

Embora possa haver tangências entre as populações de rua e os andarilhos de estrada, sobretudo quanto às instituições assistenciais destinadas à gestão dessas populações, elas não se confundem, como também não se confundem as políticas e práticas específicas destinadas a elas. As populações de rua possuem maior visibilidade e há tempo já se transformaram em objeto de conhecimento das ciências humanas e das políticas assistenciais conduzidas pelos órgãos governamentais ou entidades filantrópicas, enquanto que os andarilhos propriamente ditos continuam esquecidos tanto pelas ciências sociais quanto pelas políticas públicas de assistência de Estados e municípios.

No entanto, não devemos compreender o fenômeno da errância no contemporâneo apenas como um problema de "exclusão" social no que se refere ao seu conceito semântico. Castel (1998) é quem nos dá a dica sobre esta conceitualização equivocada ao apontar que o termo "exclusão" não deve ser empregado em estudos de natureza sociopolítica porque não há, segundo ele, ninguém desligado do sistema que opera, controla e distribui a vida dos indivíduos na sociedade. Segundo esse autor, o conceito de exclusão remete a uma ideia de não pertencimento social incondizente com a realidade histórica vivida pelos sujeitos. Uma vez que todos estão inseridos e fazem parte indissociável dela, Castel prefere utilizar o conceito de desfiliação para se referir aos considerados "excluídos" por compreender que há uma distensão social e jamais um rompimento definitivo entre esses sujeitos e aqueles considerados incluídos pela força produtiva de trabalho no mundo capitalista.

[...] a exclusão não é uma ausência de relação social, mas um conjunto de relações sociais particulares da sociedade tomada como um todo. Não há ninguém fora da sociedade, mas um conjunto de posições cujas relações com o centro são mais ou menos distendidas... É do centro que parte a onda de choque que atravessa a estrutura social... Os "excluídos"... encontram-se desfiliados, e esta qualificação lhes convém melhor do que a de excluídos: foram desligados, mas continuam dependendo do centro que, talvez, nunca foi tão onipresente para o conjunto da sociedade (Castel, 1998:568-569 - grifo do autor).

Conforme podemos apreender no enunciado desse autor, o conceito de desfiliação, em substituição ao termo exclusão, pode ser compreendido aqui como um sistema de categorização social que inclui desde o business man bem sucedido das classes mais elevadas até o homeless man das classes miseráveis e dependentes dos serviços de assistência social cuja diferenciação entre ambos é apenas conjuntural ou distendida. Portanto, o que se considera "exclusão" lato sensu precisa ser relativizado no contexto psicopolítico uma vez que não há ninguém fora do espaço social, mas formas diversas de se estar ou não visível nos modos capitalistas de produção.

Nesse sentido, a errância dos andarilhos de estrada não escapa a esses processos de classificações pejorativas presentes nessa sociedade do espetáculo. A movimentação desses indivíduos pelas rodovias parece representar, ainda, a caricatura mais radical de abandono e descaso das próprias políticas públicas elaboradas pelo Sistema Único de Assistência Social. Assim, além de confinados aos corredores de circulação formados pelas rodovias e sem projetos socioassistenciais que garantam pelo menos suas necessidades básicas de sobrevivência, os andarilhos acabam sendo "excluídos" das políticas públicas de assistência encarregadas de prover os mínimos sociais aos mais desamparados.

Nesse caso, a única alternativa que lhes restam é se sujeitarem aos direcionamentos de suas rotas impostas pelas instituições municipais de assistência encarregadas de fazer escoar suas movimentações por todo o território nacional, tal como acontece em algumas cidades do interior cujas políticas locais procuram impedir, inclusive, a entrada desses indivíduos no perímetro urbano no sentido de manter o equilíbrio e a "ordem" estabelecida (Nascimento, 2008; 2012; Nascimento, Justo & França, 2009). Portanto, apesar do fenômeno da migração ser reconhecido em quase todo o país, pouco se conhece sobre uma política pública direcionada especialmente para o problema da errância dos andarilhos, pois, os programas assistenciais do governo federal voltados aos mais necessitados priorizam apenas as famílias em situação de vulnerabilidade e risco a partir dos programas de gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que incide nas diretrizes dos serviços socioassistenciais nas instituições e albergues administrados pelas prefeituras.

 

Andarilhos de Estrada e Sistema Único de Assistência Social

O SUAS refere-se a um sistema de gestão pública não contributiva, descentralizada e participativa cabendo a coordenação e normas gerais à esfera federal e a coordenação e execução dos respectivos programas, projetos, serviços e benefícios aos Estados e municípios que elaboram suas prioridades assistenciais nos projetos institucionais. O SUAS foi criado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e é coordenado pela Secretaria Nacional de Assistência Social. Surgiu a partir de três antecedentes fundamentais: a aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei nº 8742, de 07 de dezembro de 1993, as publicações da nova Política Nacional de Assistência Social em outubro de 2004 e a NormaOperacional Básica do Sistema Único de Assistência Social em julho de 2005 (Silva, 2002).

Em reunião ordinária realizada pelo Conselho Nacional de Assistência Social nos dias 11 e 12 de novembro de 2009 e publicada no Diário Oficial da União (DOU) sob a Resolução nº 109, de 25 de novembro de 2009, foi aprovada a tipificação nacional de serviços socioassistenciais organizando a política de gestão do SUAS por níveis de proteção social compreendidas em proteção social básica e proteção social especial de média e alta complexidade. A proteção social básica visa prevenir a violação de direitos e reduzir vulnerabilidades e riscos procurando promover a convivência social, familiar e comunitária, além de assegurar às crianças, jovens, adultos, idosos e suas famílias, as condições mínimas para o exercício de cidadania.

A proteção social especial de média complexidade é voltada para indivíduos e famílias que vivem situações de negligência, abandono, ameaça, maus tratos, violações físicas e ou psíquicas, discriminações sociais e transgressão aos direitos humanos visando à restauração de vínculos familiares e sociais, bem como condições para o alcance de autonomia e independência. A proteção social especial de alta complexidade tem como meta oferecer atenção às famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou em situação de ameaça onde necessitam de ações de proteção especial temporária fora de seu núcleo familiar ou comunitário. Esses serviços socioassistenciais são oferecidos em abrigos, casas de passagem, repúblicas, família acolhedora, albergues, alojamentos, abrigos especiais, moradias provisórias, dentre outros.

A unidade executora das ações de proteção social básica é o Centro de Referência da Assistência Social e a unidade executora das ações de proteção social especial é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Segundo a definição do MDS (2007:18), a proteção social "[...] se ocupa do enfrentamento de vulnerabilidades, riscos, vitimizações, fragilidades e contingências ocasionais a indivíduos e famílias na trajetória de seu ciclo de vida por decorrência de questões sociais, econômicas, políticas e de ataques à dignidade humana". Entretanto, se observarmos detalhadamente o texto da Resolução 109 publicada no DOU que aprova os mecanismos de gestão do SUAS, podemos verificar que a ênfase contida nesse documento é direcionada às famílias em situação de risco e vulnerabilidade, bem como a indivíduos em situação de rua ou sobrevivendo nas ruas, carecendo, portanto, de projetos voltados àqueles que se encontram na perambulação a esmo pelas rodovias brasileiras como acontece no caso dos andarilhos de estrada. Vejamos o que prescreve os artigos 1º e 2º dessa referida Resolução:

O CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL - CNAS, em reunião ordinária realizada nos dias 11 e 12 de novembro de 2009, no uso da competência que lhe conferem os incisos II, V, IX e XIV do artigo 18 da Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993 - Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS...

RESOLVE:

Art. 1º. Aprovar a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, conforme anexos, organizados por níveis de complexidade do SUAS: Proteção Social Básica e Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, de acordo com a disposição abaixo:

I - Serviços de Proteção Social Básica:

a) Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF;
b) Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos;
c) Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosas.

II - Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade:

a) Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos - PAEFI;
b) Serviço Especializado em Abordagem Social;
c) Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade;
d) Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos(as) e suas Famílias;
e) Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua.

III - Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade:

a) Serviço de Acolhimento Institucional, nas seguintes modalidades:
- abrigo institucional;
- Casa-Lar;
- Casa de Passagem;
- Residência Inclusiva.
b) Serviço de Acolhimento em República;
c) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;
d) Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências.

Art. 2º. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Convém destacar aqui alguns pontos específicos que merecem atenção no Artigo 1º dessa Resolução: o Inciso II, alíneas "b" e "e" e o Inciso III, alínea "a", apresentados detalhadamente nos anexos dessa referida Resolução que definem como usuários desses serviços, as crianças, os adolescentes, jovens, adultos, idosos e famílias circunscritas no espaço urbano das cidades. Isso sugere que todas as diretrizes das políticas públicas de assistência elaboradas pelo SUAS desconhecem outros indivíduos em situação de precariedade e miséria que não habitam os espaços urbanos das cidades, sendo, portanto, ignorados das prioridades contidas no artigo 1º da LOAS que define a assistência social como "um direito do cidadão e dever do Estado" visando à garantia de atendimento às suas necessidades emergenciais.

Nesse sentido, será que os andarilhos de estrada e tantos outros sujeitos em situação semelhante não são considerados como cidadãos com direito à cidadania e aos mínimos sociais? Esse questionamento se faz necessário porque não se menciona em momento algum o sujeito andarilho na definição dos usuários desses serviços, mas apenas sujeitos que utilizam os espaços públicos como forma de sobrevivência, sujeitos que estão em situação de rua, em migração, transitoriedade, dentre outros. Nesse caso, transitoriedade e migração, por exemplo, não caracterizam, obrigatoriamente, perambulações a pé pelas rodovias.

Assim, essas definições de usuários dos serviços podem ter uma influência decisiva nas políticas municipais de assistência, pois, ao adotarem as diretrizes elaboradas pelo SUAS, acabam por negligenciar ou desconsiderar outros indivíduos em situação de desamparo socioeconômico e familiar. Para que possamos ter uma ideia dessa problemática, no Quadro 1, a seguir, apresentamos a descrição de alguns serviços elaborado pelo SUAS referentes aos incisos mencionados anteriormente e que compõem o eixo analítico de nossas reflexões.

 

 

Conforme podemos verificar no Quadro 1, parece ficar claro na redação das descrições dos serviços elaborados pelo SUAS que as políticas públicas de assistência social não incluem os andarilhos de estrada em seus projetos de resgate à cidadania. A ênfase é voltada para as famílias vulneráveis ou em situação de risco, assim como indivíduos que se encontram em situação de rua ou que sobrevivem, migram ou transitam no espaço urbano e delimitado das cidades.

Vale enfatizar, novamente, que os andarilhos não podem e jamais deverão ser compreendidos como sujeitos migrantes, moradores de rua ou em situação de rua que utilizam os espaços públicos das cidades como forma de sobrevivência, pois, sua condição existencial é a perambulação a pé pelas estradas e sem destino definido, diferenciando, portanto, do conceito de migração e transitoriedade (contidas na descrição do SUAS) que pressupõem uma rota definida e pré-determinada.

Isso nos leva a considerar que parece não haver uma política assistencial verdadeiramente compromissada com a promoção da cidadania e com a conscientização histórica desses sujeitos. A maioria dos andarilhos é lançada nas rodovias rumo a outras localidades distantes independente de sua situação sociopsicológica, fortalecendo, assim, o caráter de uma política pública de assistência social generalizada e perpetrada pela focalização, seletividade e fragmentação dos serviços prestados.

Isso implica, portanto, numa política assistencial caracterizada por uma prática alienada e alienante que perpetua uma discriminação em relação a esses sujeitos. A focalização e seletividade nos indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade e risco, endossam, ainda, a ideia de exclusão nas próprias políticas públicas de assistência, conforme podemos verificar no Quadro 2, a seguir, que apresenta os objetivos traçados pelo SUAS referentes às descrições de serviços apresentados no Quadro 1.

 

 

Conforme podemos constatar no Quadro 2, não há qualquer objetivo voltado especificamente para os andarilhos de estrada nesses serviços delimitados o que fortalece a tendência de uma política assistencial seletiva e exclusiva apenas para indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade, risco ou sobrevivendo nas ruas das cidades. Isso se deve, talvez, pelo fato dessas populações possuírem maior visibilidade junto às instituições assistenciais de Estados e municípios e por ser politicamente correto enfatizar aquilo que é mais visível e gritante aos olhos da sociedade. O princípio dessa prática não é condenável na medida em que se trata de fazer algo por aqueles circunscritos nessa situação, mas seria oportuno ampliar ou estender essa rede de serviços para os outros indivíduos que se encontram em perambulação a pé pelas estradas, sobrevivendo de maneira absolutamente incerta, precária e imprevisível em cada trecho do caminho.

Nesse contexto, Estados e municípios ainda parecem permanecer indiferentes ou desconhecem a realidade de outros segmentos miseráveis da população e sem vínculos familiares, como no caso dos andarilhos que acorrem aos serviços das instituições assistenciais dos municípios para manutenção da própria subsistência. Consequentemente, isso implica na falta de projetos socioassistenciais e perpetua uma política pública caracterizada pelo continuísmo de ações alienadas e sem o compromisso ético-moral com o resgate da cidadania desses sujeitos que seguem suas perambulações pelas rodovias, submissos às imposições traçadas pela sociedade capitalista.

Se por um lado o SUAS proporcionou um avanço relativo nas políticas públicas do governo federal ao romper com a cultura assistencialista fundamentada na ideologia da caridade e do filantropismo alienante que caracterizou a prática do serviço social ao longo da história brasileira, por outro lado permanece, ainda, sem políticas de gestão voltadas para determinados indivíduos que não se inscrevem nos objetivos e nem se enquadram nas descrições desses serviços, tal como sucede com o caso dos andarilhos de estrada em questão. É nesse sentido que a política de gestão do SUAS tem revelado uma acentuada tendência à focalização, seletividade e fragmentação, comprometendo, portanto, o princípio de universalidade, continuidade e sistematicidade das ações socioassistenciais.

[...] a amplitude do seu público alvo envolve um leque de situações tão diversa que pode, inclusive, comprometer o processo de normatização e padronização dos serviços prestados. Creditamos às categorias vulnerabilidade e risco, ambas indicadoras dos níveis de exclusão, uma relativa fragilidade na delimitação dos usuários e dos próprios serviços a serem prestados para atender aos níveis de proteção propostos. Os eixos estruturantes do sistema são a matricialidade sociofamiliar; a definição do território como locus da descentralização... além de inúmeros quesitos que repercutem na política de recursos humanos. (Mota, Maranhão & Sitcovsky, 2009:191, grifos dos autores)

Conforme podemos depreender nos comentários desses autores, parece ficar claro que, mesmo com os avanços das políticas socioassistenciais do SUAS, pouca coisa mudou na operacionalidade de suas ações. A centralidade apenas na matriz sociofamiliar revela um desconhecimento da realidade social mais ampla e complexa no tocante àqueles que não têm a quem se socorrer ou não mantêm mais contatos com a família de origem como os andarilhos que, nesse caso, podem estar vivenciando uma discriminação negativa por parte dos Estados e municípios. A esse respeito, Castel (2008) enfatiza que essa discriminação negativa junto àqueles em situação de desamparo extremo se constitui numa negação dos próprios direitos garantidos por lei constitucional e substanciais ao exercício da própria cidadania. Isso equivale a dizer que a preocupação do Estado na gestão de políticas assistenciais aos menos favorecidos e circunscritos no espaço urbano das cidades, funciona como medida paliativa no falseamento do processo de descrição exata do real, permeada pelos antagonismos presentes nos contrastes sociais, uma vez que parece não haver objetivos e interesses na elaboração de projetos a outros segmentos miseráveis e invisíveis aos olhos da sociedade.

Nesse contexto, podemos considerar que o SUAS, ao discriminar e excluir os andarilhos das políticas públicas de assistência, torna um reprodutor alienado dos interesses da classe dominante, se destituindo de uma identidade própria que promova a transformação do sujeito da alienação em sujeito da práxis que, na perspectiva marxista, pode ser entendida como um conjunto de atividades humanas voltadas para as condições indispensáveis à existência da sociedade a partir de ações sociopolíticas que conscientizem os sujeitos de sua importância no processo de construção histórica de um mundo mais justo e igualitário. Portanto, é a partir do conhecimento criterioso dos processos históricos, por parte dos profissionais atuantes nas políticas públicas de gestão, que a assistência social poderá construir uma identidade própria e promover ações conscientizadoras nas camadas menos favorecidas visando sua participação no processo de transformação social.

A esse respeito, Martinelli (2001) complementa nossas reflexões ao destacar que a prática do serviço social nas instituições públicas de assistência sempre esteve subordinada aos interesses políticos do Estado porque sempre se submeteu docilmente à ideologia dos modos capitalista de produção que transforma os seres humanos em seres coisificados e absolutamente alienados, além de criar a ilusão de status social a ser conquistado pela força produtiva de trabalho. Desse modo, podemos considerar que o Estado parece ter encontrado no serviço social e nas políticas públicas de gestão do SUAS, uma importante ferramenta de operacionalidade no falseamento da miséria, pois, boa parte desses profissionais, ao se entregar às práticas alienantes, endossa a ideologia de dominação subordinada aos interesses do capitalismo e abstém-se do compromisso ético-moral para a transformação do próprio processo histórico.

Martinelli (2001) enfatiza, ainda, que o interesse do Estado sempre foi concentrar esforços para impor o mundo das aparências enganadoras no sentido de petrificar as condições históricas, tornando-as imutáveis, inatingíveis e fantasiosamente impossíveis de concretizações para o sujeito comum. Nesse sentido, a prolongada convivência do serviço social com as práticas conservadoras e as alianças historicamente construídas com a classe dominante, acabaram por incidir nas políticas de gestão do SUAS que reproduz e naturaliza a prática assistencial como uma prática caritativa burguesa e permeada de alienações e fetichismos.

Construída com base na experiência pré-capitalista, tal prática visualizava a assistência como uma forma de controlar a pobreza e de ratificar a sujeição dos trabalhadores aos interesses da classe dominante, expressando-se como um mecanismo de controle social, essencialmente. O que a burguesia desejava, ao se aproximar da prática social, era dela se apropriar para submetê-la aos seus desígnios. Não era seu objetivo produzir nenhuma alteração substancial na ordem social vigente, mas apenas amoldá-la às exigências do capital, mantendo-a sob seu rigoroso controle. (Martinelli, 2001:155)

Portanto, o SUAS, nessa perspectiva analítica, parece ser uma política de gestão pública articulada com um projeto capitalista de dominação e poder hegemônico do Estado, além de ser uma importante ferramenta estratégia de controle social, pois, na ilusão de servir a classe mais carente e necessitada da população, proporciona outras ilusões criadas pelo capitalismo, garantindo-lhe sua efetividade e permanência histórica. Desse modo, a ausência de projetos socioassistenciais visando à conscientização histórica dos sujeitos desfiliados e discriminados negativamente, na qual se incluem os andarilhos de estrada, faz com que a gestão de políticas públicas do SUAS reproduza uma prática alienada, alienante e alienadora cujo resultado é a incapacidade de responder às contradições e aos antagonismos encravados no cerne da cultura brasileira.

Nesse sentido, podemos conjeturar que o SUAS ao subordinar-se aos interesses políticos de poder do Estado, desempenhando atividades meramente administrativas, burocráticas, seletivas e discriminatórias, acaba por se submeter à ditadura dos modos capitalistas de produção e deixa de exercer sua função essencial no resgate da cidadania das classes miseráveis. Desse modo, para que possamos potencializar projetos sociais voltados para a práxis do sujeito coletivo, torna-se fundamental, além de avaliarmos criticamente o pseudoassistencialismo presente no modelo de gestão do SUAS, promover a conscientização política dos próprios profissionais das instituições estaduais e municipais de assistência no sentido de romper com o imobilismo tecnocrático e reprodutor incessante de alienação.

Assim, para se pensar na avaliação das ações constitutivas da política de assistência social, nesta perspectiva, é preciso fazer uma leitura do real em sua totalidade, abordando as bases universais sobre as quais se constitui a sociedade capitalista, considerando-a em sua expressão atual, decodificando seus rebatimentos no Brasil e nos contextos particulares das regiões e micro-localidades onde são executados os programas, projetos, serviços e benefícios da assistência social... Portanto, os processos de avaliação da política social devem propiciar a "dessingularização" dos fenômenos sociais para a ultrapassagem de sua aparência imediata inicial, aproximando-se da totalidade social, mas em um movimento dialético de retorno à esfera do singular, como "concreto pensado", com todas as suas determinações essenciais. (Alves, 2009:261)

Isso implica, necessariamente, numa leitura sócio-histórica crítica e aprofundada das especificidades de cada contexto cultural e geográfico onde se situam as relações de força, poder e subordinação das instituições assistenciais cujos desdobramentos incidem nas condições de vida das classes menos favorecidas e à mercê desse assistencialismo a serviço dos interesses políticos do Estado. Portanto, as políticas de gestão do SUAS precisam repensar seus projetos socioassistenciais e incluir uma análise para além das aparências fantasiosas que o próprio sistema capitalista fomenta no imaginário social e retroalimenta nos processos de alienação, impossibilitando o engajamento ético-moral dos próprios profissionais na conscientização política de si mesmos e na construção histórica de uma sociedade com o seu verdadeiro significado de democracia.

 

Conclusão

As análises e reflexões aqui apresentadas, sucintamente, nos permitem concluir que as políticas públicas de gestão do SUAS funciona como mecanismo de legitimação do poder do Estado, além de perpetuar uma prática de serviço social atrelada a um modelo técnico e burocrático de assistência, pois, sobreleva os objetivos institucionais em detrimento ao compromisso ético-político com as classes mais carentes da população e que não se enquadram nas descrições e prioridades de suas diretrizes socioassistenciais. Nesse caso, como pensar em políticas públicas de assistência voltadas aos andarilhos de estrada completamente esquecidos numa sociedade narcísica, perversa e tendenciosa ao preconceito e à discriminação? Será que esses indivíduos não merecem uma assistência que lhes garantam pelo menos condições dignas para o enfrentamento de suas adversidades sociopsicológicas e subsistenciais? Nesse caso, será que o SUAS não serve apenas para perpetuar e camuflar as desigualdades de classe e com isso atuar como ferramenta de manobra a serviço do poder do Estado no controle, na vigilância, na distribuição e na administração dos indivíduos na sociedade?

Se o SUAS funciona como ferramenta de manobra a serviço da ideologia dominante do poder do Estado, podemos considerar, então, suas políticas de "inclusão" social como um subproduto de fachada, pois, ao se inserir nos modos capitalista de produção assume uma função de prestador de serviços ao invés de promotor social das classes mais inferiorizadas e discriminadas econômica e psicologicamente. Isso nos leva a concluir, portanto, sobre a necessidade de uma ampla discussão junto ao SUAS e órgãos governamentais para a elaboração e a implementação de novos projetos de gestão onde Estados e municípios possam promover políticas públicas de assistência visando atender também as necessidades dos andarilhos de estrada no sentido de lhes garantir pelo menos melhores condições de dignidade em suas jornadas erráticas pelas rodovias.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alves, Adriana. A. F. (2009). Assistência social: história, análise crítica e avaliação. Curitiba: Juruá         [ Links ].

Birman, Joel. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Birman, Joel. (2000). Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Brognoli, Felipe. F. (1997). Trecheiros e pardais: trajetórias nômades. Travessia, 27,29-32.         [ Links ]

Castel, Robert. (2008). A discriminação negativa. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Castel, Robert. (1998). As metamorfoses da questão social. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Debord, Guy. (1991). A sociedade do espetáculo. Lisboa: Mobilis in Móbile.         [ Links ]

Di Flora, Marilene C. (1987). Mendigos: por que surgem, por onde circulam, como são tratados. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Ehrenberg, Alain. (1991). Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lèvy.         [ Links ]

Justo, José S. (2011). Andarilhos e trecheiros: errância e nomadismos contemporâneos. Maringá: Eduem.         [ Links ]

Justo, José S. (2002). Saúde mental em trânsito: loucura e condição de itinerância na sociedade contemporânea. Em Maria Lúcia Boarini (Org.), Desafios na atenção à saúde mental. Maringá (PR): Eduem.         [ Links ]

Justo, José S., & Nascimento, Eurípedes C. (2012). Road wanderers in Brazil: a study on modern psychosocial human mobility. International Journal of Sociology and Anthropology, 4(5),165-171.         [ Links ]

Justo, José S., & Nascimento, Eurípedes C. (2005). Errância e delírio em andarilhos de estrada. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(2),177-187.         [ Links ]

Lasch, Christopher. (1979). A cultura do narcisismo: a vida americana numa época de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Martinelli, Maria L. (2001). Serviço social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Ministério do Desenvolvimento Social. (2007). SUAS: Sistema Único de Assistência Social. Brasília, DF. Autor.         [ Links ]

Mota, Ana E., Maranhão, Cezar H., & Sitcovsky, Marcelo. (2009). As tendências da política de Assistência Social, o Suas e a formação profissional. Em Ana E. Mota (Org.), O mito da assistência social: ensaio sobre Estado, política e sociedade. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Nascimento, Eurípedes C. (2012). Errância no contemporâneo: um estudo sobre a percepção de dirigentes e profissionais de instituições assistenciais em relação a andarilhos de estrada. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Sociedade. Assis: Universidade Estadual Paulista.         [ Links ]

Nascimento, Eurípedes C. (2008). Nomadismos contemporâneos: um estudo sobre errantes trecheiros. São Paulo: Editora da Unesp.         [ Links ]

Nascimento, Eurípedes C., Justo, José S., & França, Sonia A. M. (2009). Errância e normalização social: um estudo sobre andarilhos de estrada. Psicologia em estudo, 14(4),641-648.         [ Links ]

Nascimento, Eurípedes C., & Justo, José S. (2000). Vidas errantes e alcoolismo: uma questão social. Psicologia: Reflexão e Crítica, 13(3),529-538.         [ Links ]

Nasser, Ana C. A. (2001). Sair para o mundo: trabalho, família e lazer na vida de excluídos. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. (2009). Brasília, DF: Conselho Nacional de Assistência Social / Diário Oficial da União.         [ Links ]

Rosa, Cleisa M. M. (2005). Vidas de rua. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Silva, Maria O. S. (2002). Contextualizando o serviço social no processo histórico brasileiro. Em Maria O. S. Silva (Org.), O serviço social e o popular: resgate teórico-metodológico do projeto profissional de ruptura. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Snow, David, & Anderson, Leon. (1998). Desafortunados: um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Vieira, Maria A. C., Bezerra, Eneida M. R., & Rosa, Cleisa M. M. (2004). População de rua: quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

 

 

Recebido em 05/06/2012
Revisado em 17/10/2012
Aceito em 22/11/2012