Revista Psicologia Política
ISSN 1519-549X
CLÁSSICOS EM PSICOLOGIA POLÍTICA
Processos psíquicos e poder
Psychic processes and power
Procesos psíquicos y poder
Processus psychiques et pouvoir
Ignácio Martín-Baró; Traduzido por Fernando LacerdaI
IPsicólogo e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação (CRISE), Professor Adjunto de Psicologia Social na Faculdade de Educação e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil. Jr.fernandolac@gmail.com
Psicologia e Política: a psicologia política
Em um país como El Salvador, onde o governo norte-americano de Ronald Reagan, ansioso por superar a síndrome do Vietnã, tenta aplicar integralmente a chamada concepção de "conflitos de baixa intensidade", se tornou quase um lugar comum falar de "guerra psicológica". Os próprios chefes militares gostam de afirmar que a guerra é "90% psicológica e somente 10% estritamente militar". Enquanto a guerra militar busca a derrota do adversário, a guerra psicológica busca sua conquista, isto é, ganhar "corações e mentes" do inimigo e de seus simpatizantes.
Geralmente, não fica muito claro o que separa aquilo que é estritamente militar e o que é psicológico, especialmente porque são os próprios militares quem planificam, dirigem e executam os dois tipos de operações. Assim, por exemplo, os lápis e cadernos distribuídos, diante de fotógrafos e cinegrafistas, em um certo dia pelo coronel de uma guarnição aos habitantes de um pequeno povoado em uma das zonas mais conflituosas do país, foram, na semana seguinte, confiscados por meio de uma espetacular operação militar que buscava materiais suspeitos de servir fins "subversivos". Muito menos claro é o que há de especificamente psicológico, por exemplo, em certos métodos de "tortura psicológica" que consistem em questionar ininterruptamente, ao longo de vários dias, a vítima sem permitir que ela durma.
A guerra psicológica é um ramo da psicologia política. Concretamente, é aquela parte dedicada a uma forma extrema de fazer política, de promover certos interesses sociais: a guerra. No entanto, o termo psicologia política é ambíguo e se presta a confusões. Por psicologia política devem ser compreendidos, pelo menos, dois sentidos muito diferentes:
(a) a psicologia da política, isto é, a análise e a compreensão psicológica dos comportamentos e dos processos políticos; e
(b) a política da psicologia ou a psicologia como política, isto é, como a psicologia representa certos interesses sociais e, portanto, serve como instrumento de poder social.
Neste texto nos referimos, fundamentalmente, à primeira acepção, a psicologia da política, e, especificamente, à psicologia da vida política tal como existe nos países latino-americanos. Pretende-se estabelecer bases teóricas que possibilitem analisar a prática política (quehacer político) a partir da perspectiva da psicologia e, mais especificamente, a partir da perspectiva da psicologia social. Assim, uma psicologia da política pode tomar como objeto de estudo desde o comportamento do presidente de um país até o desdobramento da guerra psicológica, passando pela análise de como um conselho de ministros toma decisões ou dos fatores que levam uma pessoa a participar de um processo eleitoral ou a se incorporar em um movimento guerrilheiro.
No entanto, é ilusório acreditar que se pode elaborar uma psicologia da política à margem da política da psicologia, como se fosse possível fazer psicologia a partir de um suposto limbo científico que não é afetado pelos conflitos sociais. Neste sentido, o fato de nos centrarmos na psicologia da política não nos autoriza ignorar a política da psicologia. A psicologia, o fazer psicológico teórico e aplicado, como qualquer outra atividade, está condicionada por interesses sociais em disputa. A sociologia do conhecimento demonstrou que a perspectiva social adotada para examinar as coisas ou para intervir nos processos delimita, de forma essencial, o que é conhecido e como se conhece e, portanto, o que se faz e como se faz. Com razão, é possível afirmar que, majoritariamente, a psicologia que é usada em nossas sociedades latino-americanas está muito próxima da perspectiva das classes dominantes, isto é, aos interesses de classe daqueles que detêm o poder. E se certa funcionalidade política (neste caso, conservadora) está impregnando a prática (el quehacer) dos psicólogos em áreas aparentemente inócuas, como o rendimento escolar ou os transtornos comportamentais, então a política da psicologia (sua funcionalidade e seu impacto políticos) é muito mais importante em áreas em que se evidenciam os conflitos sociais como, por exemplo, a vida política.
Assim, para evitar a reprodução de uma psicologia da política que é apenas mais um discurso ideológico a serviço da ordem estabelecida em nossos países latino-americanos, é necessário construir uma psicologia política da vida política, isto é, uma psicologia sobre a política que é consciente de seus condicionamentos sociais e que, ao invés de assumir uma suposta assepsia científica, parte de uma consciência clara de seus pressupostos, de sua inserção social e, portanto, das possibilidades e dos limites de sua própria perspectiva. Neste sentido, não podemos nos contentar com a aplicação direta de teorias e modelos psicológicos já elaborados ao âmbito da política, mas devemos analisar o que há de psíquico na prática política de nossas sociedades, sabendo que esse exame é parte - uma parte interessada - dos próprios processos e conflitos que estão sendo analisados.
Tomemos alguns acontecimentos reais como ponto de partida para a análise. Utilizaremos três acontecimentos políticos que eram atuais no momento em que estas reflexões começaram a ser elaboradas pela primeira vez. Apresentamos estes acontecimentos tal como apareceram descritos no Diario de Caracas de sábado de 17 de janeiro de 1987. Pelas mesmas razões mencionadas anteriormente sobre a política psicológica, é preciso destacar o filtro ideológico dos meios de comunicação de massas construído na elaboração das informações e o caráter político do jornal utilizado aqui, caráter muito conservador no contexto de um país que se enxerga e se apresenta formalmente como democrático, mesmo quando a realidade dos fatos demonstra muitas contradições com o discurso formal. Os acontecimentos são os seguintes:
a) "A OEA e a ONU iniciaram esforços para a paz [na América Central] [...] Os Estados Unidos se preocupam com a possibilidade de que a missão possa desembocar em um acordo que não se adequa aos objetivos norte-americanos na Nicarágua".
b) "Foi sequestrado por dez horas, pela Força Aérea, o presidente do Equador. Febres foi trocado pelo general rebelde".
c) "A senhora Ligia de Gerbasi, presidenta da Federación de Asociaciones de Comunidades Urbanas (FACUR), declara que, diante do crescente ceticismo eleitoral na Venezuela, teme que os partidos políticos comecem a pressionar os dirigentes comunitários para seguirem "linhas" e orientarem os votos das associações de moradores em algum sentido partidista".
É óbvio que poderíamos multiplicar exemplos como estes, utilizando, inclusive, o mesmo exemplar do jornal ou informações proporcionadas por qualquer outro meio de comunicação de massas. Os acontecimentos descritos não são mais significativos do que outros e o único critério usado para sua escolha foi o de demonstrarem diversos aspectos da prática política cotidiana em um dado momento. Assim, o primeiro fato refere-se a um acontecimento da política internacional (os esforços de Contadora, da OEA e da ONU para construir a paz na América Central), o segundo refere-se a um fenômeno político nacional (o sequestro do presidente Febres Cordero no Equador) e o terceiro a um fato de caráter local (as pressões partidárias sobre as associações de moradores de Caracas).
A primeira pergunta que devemos elaborar diante destes três fatos destacados é por que ou para que devem ser estudados pela psicologia. O que a análise política ganha ou como é enriquecida pela contribuição da psicologia? Em princípio, a política deve ser estudada pelas ciências políticas que são apoiadas pela sociologia, pela economia, pelo direito e pela história. Mas o que a psicologia, ciência que, segundo o que se afirma, estuda o individual e o subjetivo pode acrescentar às análises dos fatos sociais?
A resposta por ser óbvia não é menos importante: a psicologia deve estudar esses fatos porque são realizados por pessoas ou grupos. São acontecimentos humanos e os atores, em sua atuação política, estão submetidos aos mesmos determinismos e condicionamentos existentes em processos como a conformação da família, a educação do filho ou a participação em uma equipe de trabalho. Por isso, é necessário perguntar em que medida o caráter desses acontecimentos políticos e a forma concreta que adquirem dependem do fato de terem sido realizados por uma pessoa determinada e não por outra, por terem sido executados por um determinado grupo e não por outro.
É possível que, em alguns casos, os acontecimentos políticos não existam influências, ouinfluências significativas, da mediação comportamental de pessoas ou grupos. É provável que a reação do grupo de Contadora ou da ONU e da OEA não dependia de quem eram os ministros de relações exteriores dos países que participaram de Contadora ou dos secretários gerais da ONU e da OEA. Certamente, neste caso, parece que a personalidade dos atores não desempenhou um papel importante na visita realizada aos países centro-americanos como parte dos esforços para pacificar a região. Mas, em outros casos, fica claro que a personalidade ou a peculiaridade psicológica dos atores constitui um fator de importância primária. A resolução do sequestro de Febres Cordero, com a sua capitulação às exigências dos oficiais rebeldes e a libertação do general Vargas Pazzos, provavelmente está muito relacionada com a sua personalidade, sua percepção particular das circunstâncias e seu esquema de valores. O fato ganha destaque por Febres, quem se gabava por sempre andar armado, ser um homem bem conhecido por seu estilo machista. Em circunstâncias similares, um Fidel Castro ou um Salvador Allende teriam agido de forma muito diferente. Portanto, essa é uma situação em que o fator psíquico, o fato de ser um ator e não outro, é determinante.
Duas conclusões provisórias podem ser apresentadas a partir desta reflexão inicial. Em primeiro lugar, o psíquico pode ser um elemento importante na determinação de certos acontecimentos políticos e, portanto, a psicologia tem uma contribuição para a análise política. Em segundo lugar, a psicologia não pode almejar ser uma hermenêutica da política ou explicar tudo o que é político, porque, entre outras razões, há muitos acontecimentos políticos cujo caráter não é influenciado pela mediação dos atores. A contribuição específica da psicologia deve se limitar à análise do comportamento político (o comportamento como uma mediação da política), isto é, à atuação política de pessoas e grupos.
Todavia, seria um erro pensar que a mediação psíquica dos fatos políticos afeta somente aspectos superficiais ou, especificamente, apenas o como de sua realização; a mediação psíquica afeta também aquilo que se faz, isto é, as diversas atividades políticas. A escolha sobre o que fazer para defender certos interesses políticos pode ser determinada pelo caráter do ator. Por exemplo, os oficiais da Força Aérea equatoriana recorreram à violência e as armas para conseguir o mesmo objetivo que, algumas semanas antes, os membros da Assembleia tentaram alcançar por meio de arranjos e acordos pacíficos e legais. Ambos os grupos perseguiam um mesmo objetivo, a libertação do general Vargas Pazzos, mas buscaram por meio de comportamentos totalmente distintos. Da mesma forma, o fato de que Febres Cordero tenha sido o sequestrado foi algo que, provavelmente, determinou sua claudicação diante das exigências dos oficiais militares, enquanto outro presidente, como Salvador Allende, poderia ter escolhido, tal como ele de fato fez, arriscar sua própria vida ao invés de se render.
O exemplo anterior demonstra um aspecto importante da análise psicológica da política: a necessária imbricação do psíquico e do social. Como atores políticos, as pessoas e os grupos são portadores de interesses sociais: Febres Cordero, os oficiais da Força Aérea ou os membros da Assembleia equatoriana não são meros indivíduos isolados, tal como consideram certas análises psicologistas, mas representam forças sociais determinadas. Enquanto representantes de interesses sociais específicos, tampouco são meras mediações instrumentais. Neste sentido, deve-se recusar a imagem simplista oferecida por certo sociologismo mecanicista ou certas formas de behaviorismo ortodoxo: o que os primeiros atribuem aos determinismos econômicos de classe, os últimos atribuem aos estímulos ambientais, e ambos convertem a pessoa em um mero fantoche das forças externas. Simplesmente, este não é o caso ou, pelo menos, nem sempre é.
Uma vez que se assume que a psicologia pode e, ainda, deve contribuir para a análise política por meio do estudo do comportamento dos atores, cabe perguntar qual é o aspecto específico que deve ser objeto de atenção da psicologia política. Em outras palavras, o que é que define um comportamento como político, o que é que determina que um ato humano tenha caráter político? Em princípio, existem três possíveis respostas: (a) o ato é determinado por quem o realiza, isto é, pelo caráter do ator; (b) o ato é definido pelo que é feito, isto é, pelo caráter do ato realizado; e (c) o ato depende do sentido social do que se faz, isto é, da relação do ator e do seu ato com a ordem social em que é realizado. Examinemos separadamente estas três possíveis respostas.
(a) Uma primeira possibilidade define o caráter político de um comportamento pelo caráter do ator que o realiza. Assim, são políticos aqueles comportamentos realizados por quem ocupa cargos governamentais ou cumpre funções no aparato estatal. Esta visão tende a coincidir com aquela que identifica a política com o Estado. Certamente, os mais diversos comportamentos podem adquirir caráter político pelo fato de serem realizados por pessoas que ocupam um cargo no aparato estatal ou em algum organismo paraestatal ou interestatal, como a ONU ou a OEA. Visitar a América Central pode ser a atividade de um simples turista, de um homem de negócios ou de um jornalista buscando notícias para a primeira página. Todavia, se a visita à América Central é realizada pelo secretário geral da ONU ou o da OEA, então ela possui caráter político. Daí a dificuldade ou mesmo impossibilidade de pessoas que ocupam cargos políticos importantes - por exemplo, o presidente ou o chanceler de um país - manterem sua vida pessoal privada ou realizarem outras atividades que não estão associadas ao seu cargo (como tirar férias viajando pela América Central) sem que essas ações adquiram significado político.
Todavia, muitos atos políticos podem ser realizados por quem não ocupa um cargo no aparato estatal. A dirigente de uma associação de moradores realizar declarações contra as pressões partidárias é, por si só, um ato político. Também pode ser um ato político a greve ou a manifestação de um sindicato, a atividade de um grêmio empresarial, a pregação religiosa de um sacerdote ou a educação comunitária de um grupo de marginalizados. Mas o sindicato, o grêmio empresarial, o sacerdote ou o grupo de marginalizados não possuem um posto estatal. Assim, se há atos que ganham sentido político por causa de quem os executa, há muitos outros atos que são políticos independentemente de quem os realiza. Por isso, é preciso afirmar que a especificidade política de um comportamento não é proveniente de quem o executa, ou, ao menos, nem sempre ou necessariamente.
(b) Uma segunda possibilidade afirma que o caráter político depende do tipo de comportamento realizado. Em outras palavras, seriam políticos certos atos específicos e que independem de quem os realiza. Por exemplo, votar em uma eleição presidencial ou participar em uma plenária partidária sempre são atos políticos. Mas, quais seriam esses atos? Como é possível determinar seu caráter político, senão identificando-os como políticos depois que são produzidos?
Uma resposta possível, uma alternativa à problemática institucionalista apresentada no ponto anterior, é a de que são políticos apenas aqueles atos relacionados tão somente com o funcionamento do aparato estatal e seus diversos órgãos. Todavia, esta visão resulta nas mesmas dificuldades e deficiências do tópico anterior, reduzindo o caráter político ao comportamento de determinados atores, só que de uma forma inversa. Assim como há comportamentos políticos em que não importa quem os realiza (como o ato de votar em uma eleição presidencial), há, também, como vimos, atos que adquirem caráter político por causa do ator que os executa. Qualquer ação, até a mais inócua, pode adquirir caráter político se quem a realiza é o presidente de um país. Outra possível resposta é a afirmação de que são políticos os atos que envolvem poder, isto é, atos em que há exercício de poder. Esta resposta goza de muita aceitação entre muitos politicólogos que tendem a equiparar os conceitos de política e de poder. Noentanto, esta resposta parecer dar ao ato político uma amplitude excessiva. É difícil pensar em algum comportamento humano que não requer ou que não põe em jogo alguma forma de poder. Além disso, não é possível identificar o peso ou o impacto político de todo comportamento, a não ser em um sentido muito amplo. O poder, como será visto mais adiante, é um diferencial de recursos que pode ser produzido em qualquer relação humana, desde a brincadeira entre crianças em um jardim de infância, até a organização de atividades em um asilo de idosos, passando pelo namoro de dois jovens ou pelo desenvolvimento de uma cooperativa agrícola. Assim, não parece ser adequado identificar como político todos estes atos e processos. Se, ao se identificar a política com o poder, o que se pretende afirmar é que todo ato em que há exercício de poder é político, então há apenas uma referência à identificação do caráter político.
Qualquer que seja a resposta que se dá para a questão sobre quais são os atos políticos, os três exemplos citados mostram que o caráter político de um comportamento não deriva, necessariamente, da especificidade do ato. As atividades políticas podem ser muito diversas: uma viagem, um sequestro e declarações para a imprensa. O político abarca atos normais e cotidianos, como uma reunião de partido ou declarações públicas, e atos anormais e extraordinários, como o sequestro violento de um presidente ou uma guerra civil. Se alguns comportamentos são essencialmente políticos e independem de seus atores e da especificidade das circunstâncias, outros adquirem caráter político por conta dos atores ou das circunstâncias.
É importante, ainda que brevemente, destacar que a unidade comportamental sobre a qual estamos refletindo não é uma mera "resposta" no sentido técnico do esquema "Estímulo-Resposta" (um comportamento isolado tal como postula o behaviorismo), mas é um conjunto complexo de comportamentos, uma atividade ou série de atividades que possui uma unidade de sentido pessoal e/ou social. A análise de um comportamento político aparentemente simples, como votar, perde de vista aspectos essenciais, caso seja reduzida ao momento do depósito do voto na urna ou se é reduzida ao seu resultado. Compreender um voto - todo o processo amplo que resulta em um determinado resultado na urna - demanda levar em conta todas as circunstâncias e todos os condicionamentos, individuais e sociais, que dão sentido ao votar: votar é, portanto, um conjunto de atos, uma atividade e não é uma mera resposta comportamental.
(c) A terceira possibilidade situa a especificidade política de um comportamento em sua relação de sentido com as forças e a ordem existente em uma determinada formação social. Na medida em que uma atividade promove os interesses de um determinado grupo social e que afete ou influencie o equilíbrio de forças sociais na ordem social tal como se encontra em um determinado momento, essa atividade possui um caráter político. Para este enfoque, uma atividade será tanto mais política quanto mais influenciar ou condicionar a ordem estabelecida ou os processos que se dão entre as forças sociais existentes. Neste sentido, o sequestro de Febres Cordero é uma atividade com maior impacto do que as declarações de uma dirigente de associações de moradores e, até mesmo, que a visita à América Central realizada por secretários da ONU e da OEA. Para conquistar o impacto político em benefício dos interesses sociais representados ou canalizados por atores sociais, estes efetivam comportamentos que conformam ou utilizam alguma forma de poder diante de outros atores; portanto, o poder é um instrumento da política, não o seu fundamento.
Esta concepção nos parece mais adequada do que as anteriores. Não são os atores ou os atos em si que determinam o caráter político, mas sim a relação de qualquer ato realizado por qualquer ator com a ordem estabelecida em uma sociedade. Na medida em que esse ato exerça influência - favorável ou contrária, buscando a manutenção oua mudança - sobre o sistema existente, ela possui caráter político. É claro que o caráter de totalidade característico de toda sociedade resulta na consideração de que, a partir de um ponto de vista muito abrangente, todo comportamento é político, pois, de alguma maneira, contribui para a manutenção ou alteração de uma ordem social, seja indiretamente ou pelo que se deixa de fazer. Mas é óbvio que esta generalização do político em nada ajuda a compreender sua especificidade, pois se tudo é político, nada é especificamente político. Por isso, os comportamentos políticos devem se limitar àqueles que possuem um efeito verificável e significativo na configuração e no funcionamento de qualquer ordem social. Isto não quer dizer que é impossível errar no momento de identificar que atividades políticas ou que comportamentos aparentemente sem relação direta com a ordem social (uma homilia religiosa, o funcionamento da vida familiar) podem ter mais impacto político do que atos visivelmente relacionados com a ordem social (por exemplo, reuniões de um partido político). Isto quer dizer que é necessário estabelecer critérios, qualitativos e quantitativos, que determinam que atividades são políticas e quais não.
A partir das reflexões anteriores podemos definir a psicologia política como o estudo dos processos psíquicos pelos quais as pessoas e os grupos conformam, lutam e exercem o poder necessário para satisfazer determinados interesses sociais em uma formação social. Esta definição contém três elementos essenciais:
(1) interesses sociais em uma formação social;
(2) mediação dos interesses por meio de processos psíquicos;
(3) conformação, luta e exercício de poder.
Examinaremos cada um destes elementos específicos a seguir.
Interesses Sociais
Os países latino-americanos são sociedades divididas em classes sociais que possuem interesses contrapostos. Isto não quer dizer que as classes sociais são as mesmas em todos os países e que seu número ou o seu caráter são idênticos, pois tudo isso depende da formação social particular de cada país. O que há de comum é, como em toda sociedade de classes, a existência de interesses opostos entre as classes sociais e, mais ainda, que a oposição de interesses - a luta de classes - dá origem à manifestação concreta das classes sociais. Portanto, são estes interesses sociais aqueles que, em última instância, colocam em jogo a atividade política.
Por que, então, ao invés de usar o termo mais genérico e, talvez, menos preciso teoricamente, de interesses sociais, não falar de interesses de classe? Porque a dialética histórica faz com que as próprias classes sociais se articulem em outros níveis de agrupamento que são mais concretos e que não são menos influentes no momento de ativar interesses classistas apenas porque são secundários em relação às divisões básicas e estruturais. Na política há tanto a intervenção dos grandes interesses das classes sociais existentes em uma determinada formação social, quanto de interesses setoriais, gremiais, conjunturais e até familiares e pessoais. Todos esses interesses são mediações dos interesses de classe, aos que, em última instância, remetem; mas nem todo interesse presente na atividade política corresponde aos interesses de classe e, algumas vezes, não são, nem mesmo, a maior parte.
Um comportamento é definido como político porque desempenha um papel na confrontação social de interesses de classe e grupais. A compreensão última de seu caráter político demanda demonstrar a conexão de um comportamento, de uma atividade ou de processos com os interesses sociais que se explicitam em uma determinada formação social em um momento histórico. Que interesses Febres Cordero representa e em que medida estes interesses sociais se opõem aos representados pelos oficiais da Força Aérea equatoriana realizaram seu sequestro? Em que medida os interesses sociais promovidos pelos militares são interesses de classe e em que medida são interesses próprios de seu grêmio ou mesmo pessoais de um grupo particular de oficiais? A esta pergunta não se pode dar resposta sem uma análise profunda das peculiaridades da sociedade equatoriana, de sua formação social e da particular conjuntura histórica em que se produziu o sequestro de Febres Cordero.
Articulação em Processos Psíquicos
Os interesses sociais são efetivados em cada situação e circunstância por atores concretos, sejam eles pessoas ou grupos: Febres, oficiais militares, chanceleres em Contadora ou a senhora Ligia de Gerbasi. Os atores e seus atos são políticos porque defendem, por meio de seu comportamento, interesses sociais determinados nos marcos do confronto social existente em um dado sistema. É essa mediação comportamental que interessa à psicologia política. Há um momento processual, no qual os interesses sociais se traduzem em esquemas cognitivos ou valorativos das pessoas (como princípios, valores e atitudes), em formas concretas de falar ou decidir e/ou em comportamentos específicos que são efetivados de uma dada maneira.
Quando Febres Cordero, sob o domínio de oficiais rebeldes, assina a anistia do general Vargas Pazzos justificando seu ato como uma forma de "salvaguardar a paz e a democracia em Equador", ele expressa uma compreensão muito peculiar do que é paz e democracia e uma visão muito particular sobre o papel que ele mesmo desempenha como presidente de uma democracia. Assim, há uma hierarquia axiológica que indica para Febres Cordero que valores devem ser preservados em um momento de conflito. Estas mediações psíquicas - a forma de perceber e compreender, de raciocinar e valorizar, de pensar e decidir, de responder e atuar - constitui, com todos os seus fatores concomitantes, o objeto específico da psicologia política.
As pessoas e os grupos articulam interesses sociais por diversas causas e razões: algumas vezes, elas são parte da classe ou dos grupos cujos interesses defendem (por exemplo, o latifundiário que se incorpora a um agrupamento patronal para barrar qualquer tipo de reforma agrária); em outras ocasiões, as pessoas e os grupos representam certos interesses não porque são seus, mas por razões de outra índole (por exemplo, o advogado que trabalha para o grêmio patronal de latifundiários, não porque interessa ao seu grupo social barrar a reforma agrária, mas apenas para obter ganhos financeiros com a disputa); finalmente, em outros casos, as pessoas e os grupos defendem instrumentalmente certos interesses sociais sobre os quais não possuem consciência e que podem até ser contrários aos seus interesses pessoais ou de sua própria classe social (por exemplo, os camponeses que, constituídos em grupos paramilitares, hostilizam e atacam aqueles que defendem a reforma agrária). Por isso, não se pode mecanicamente remeter a articulação de um conjunto similar de interesses sociais por pessoas ou grupos a motivações psicológicas semelhantes.
Mais ainda, a articulação psíquica dos interesses sociais deve ser sublinhada, porque eles não são se refletem mecanicamente na vida social e nem as pessoas ou os grupos constituem mediações passivas das forças sociais. Tal como destaca Althusser (1968), certamente as pessoas e os grupos experimentam a vida na ideologia e por meio dela, só que não como instâncias passivas, mas como instâncias ativas que podem modificar, mais ou menos, a mediação ideológica da existência. Concretamente, o comportamento das pessoas não pode ser mera expressão pura dos interesses da burguesia ou do proletariado ou de qualquer classe existente em uma determinada formação social, mas é expressão peculiar, parcial e complexa de interesses classistas. Em alguns casos, o comportamento é, até mesmo, uma expressão contraditória, isto é, possui dimensões que beneficiam setores opostos.
Constituição, Luta e Exercício de Poder
Dado que o comportamento político ou o comportamento que possui dimensões políticas busca defender interesses sociais em uma formação social, ele demanda poder, isto é, capacidade de impor certos interesses sobre outros contrários ou antagônicos que existem na mesma formação social. A articulação psíquica envolve três aspectos: a constituição, o exercício e a luta por poder envolvendo diferentes forças sociais.
Constituição do poder. A psicologia política busca examinar em que medida a mediação de pessoas e grupos contribui, positiva ou negativamente, para potencializar a satisfação de certos interesses sociais. Por exemplo, em que medida a personalidade de Febres Cordero e a sua compreensão particular sobre os acontecimentos em Equador, contribuíram para reduzir o seu poder diante das pretensões e dos interesses mediados pelos militares rebeldes. De fato, o humor popular brincou com o nome do presidente equatoriano, afirmando que ele entrou no quartel como "Leão" e saiu como "Cordeiro" (Cordero). O psiquismo é, portanto, um recurso de poder: o caráter das pessoas, suas fortalezas ou debilidades, a consistência ou inconsistência de suas atitudes, converte-se em fonte que dá ou reduz poder no processo de articulação dos interesses sociais.
Exercício do poder. Os atores podem defender interesses sociais por meio de comportamentos que colocam em jogo distintas formas e quantidades de poder. Por exemplo, os militares equatorianos rebeldes utilizaram a força das armas (comportamento fisicamente violento) para conquistar os mesmos objetivos que congressistas do mesmo país tentaram por meio da lei (comportamento fisicamente não-violento). Desde o ponto de vista da psicologia política, o que interesse é identificar em que medida a mentalidade militarista fez com que o presidente Febres fosse pressionado por meio da violência, enquanto uma mentalidade mais pacífica tentou convencer sobre a importância da concessão de anistia ao general Vargas Pazzos. Não se trata apenas de uma questão de utilizar os recursos disponíveis, mas de analisar qual a relação entre a utilização de certos recursos e a mentalidade (mediação psíquica) dos atores no momento em que defendem os interesses que representam.
Luta por poder. A busca por satisfazer interesses sociais supõe a confrontação com outras forças sociais que pretendem defender outros interesses sociais. Mas este confronto de interesses, que articula a luta de classes em diversos níveis de interação social, passa também, pelo menos parcialmente, por mediações psíquicas. O fato de uma dirigente comunitária recorrer à opinião pública para preservar os interesses das associações de bairros de Caracas e agitar a bandeira do necessário "apoliticismo" dessas associações diante das pressões partidárias expressa a opção por uma certa forma de confronto político. Da mesma forma, antes de realizar sua visita à América Central, o secretário da OEA teve que vencer forte oposição do governo norte-americano contra a interferência de outras forças políticas em sua política militarista no espaço que é considerado como seu "quintal" particular. O argumento usado pelos estadunidenses era que o secretário estava extrapolando suas atribuições, isto é, seria uma atividade ilegal. Fica claro que a mediação psíquica desempenha um papel mais significativo no caso da luta por poder da dirigente comunitária do que no caso da OEA. Outro dirigente comunitário poderia tentar negociar privadamente com os partidos políticos, fazer aliança com outros grupos ou escolher outra forma de atuação. Ao mesmo tempo, não é possível afirmar que se o secretário da OEA fosse outro indivíduo haveria uma mudança na disputa de poder entre a organização pan-americana e os Estados Unidos. A influência dos valores e das atitudes, dos princípios e das formas preferidas de comportamento na luta por poder que envolve múltiplos interesses sociais depende dos atores, dos processos, das circunstâncias e dos assuntos que estão em disputa.
A definição de psicologia política que apresentamos é uma aplicação da definição de psicologia social ao âmbito específico do comportamento político. Se a psicologia social deve analisar o que há de ideológico no comportamento humano, ou seja, todos elementos que remetem aos fatores sociais históricos (Martín-Baró, 1983), então cabe à psicologia política analisar o que há de ideológico no comportamento político. Cabe perguntar se isto não é incorrer em uma redundância, pois o comportamento político é, por definição, ideológico: tanto sua intencionalidade objetiva, isto é, o fim para o qual tende o comportamento, quanto sua intencionalidade subjetiva, isto é, a finalidade buscada pelo ator, consistem precisamente em buscar a satisfação de certos interesses sociais que, inclusive, contrariam outros interesses alternativos ou opostos.
Mas a redundância é somente aparente: o que ocorre é que a psicologia política é um ramo da psicologia social. Em outras palavras, toda psicologia política é psicologia social, ainda que nem toda psicologia social seja psicologia política. O fato de que a psicologia política seja, por excelência, ideológica quer dizer que ela é, por excelência, âmbito da psicologia social. Dito de outra maneira, a atividade política é aquela que com mais propriedade deve ser analisada desde a perspectiva da psicologia social, pois, por definição, é uma atividade que busca promover interesses sociais, ou seja, é ideológica. A delimitação do que pertence à psicologia política em relação ao resto da psicologia social pode ser estabelecida pelo caráter dos comportamentos no sistema social, ou seja, serão tomados como objeto de análise psicopolítica somente os comportamentos que possuem um impacto significativo na estrutura ou no funcionamento da ordem social estabelecida (aqueles comportamentos que definimos como políticos).
Pablo Fernández Christlieb (1987) faz uma proposição similar. Segundo o autor "se a psicologia social é a análise de uma determinada dinâmica da sociedade, o momento da psicologia política é o da análise das possibilidades e das condições de possibilidade dos diversos sujeitos sociais (indivíduos, grupos e coletividades) nessa dinâmica social". As "possibilidades e condições de possibilidade" apontam para o problema do poder dos atores ou sujeitos em uma determinada formação social, isto é, para a capacidade comportamental real deles se afirmarem e defenderem historicamente determinados interesses, seus e de sua classe ou de outros indivíduos, grupos e classes. Essa capacidade comportamental não é algo que pode ser mensurado abstratamente, mas deve ser considerada nas relações concretas entre os atores no interior de cada ordenamento social. Por isso, é necessário clarificar o que é o poder político na perspectiva psicossocial.
Análise Psicossocial do Poder Político
Natureza e Elementos do Poder
O caráter fundamental do comportamento político reside em sua finalidade objetiva de defender interesses determinados no interior de um sistema social servindo-se do poder. Falase de finalidade objetiva do comportamento político para indicar sua independência em relação à consciência subjetiva dos atores. Em outras palavras, o caráter político de um comportamento não depende da intencionalidade consciente de quem atua e efetiva o comportamento e nem depende de uma reflexão aprofundada sobre a finalidade pela consciência do ator. Frequentemente, é parte do jogo político negar sua finalidade, isto é, alcançar a pretensão ideológica de estar acima de interesses setoriais ou de não utilizar o poder para satisfazer interesses sociais. Por isso mesmo é fundamental realizar uma análise psicossocial do poder e, especialmente, do poder político tomado como processo comportamentalmente mediado. Retomemos os três exemplos utilizados neste texto fixando nossa atenção na dimensão do poder.
Os oficiais da Força Aérea do Equador, usando as armas que possuíam, conseguem se impor sobre o presidente Febres Cordero e obrigam-no a conceder liberdade ao general Vargas Pazzos, cuja anistia tinha sido vetada pessoalmente pelo presidente dias atrás.
O grupo de Contadora fez com que sua visita aos países centro-americanos fosse apoiada pelos secretários gerais da OEA e da ONU, ainda que existisse oposição do governo norte-americano. Pode-se dizer que Contadora teve, até o momento da visita, poder suficiente diante dos Estados Unidos para conseguir impedir a generalização da guerra ou uma intervenção militar mais intensa e mais direta dos norte-americanos na Nicarágua. Todavia, o grupo de Contadora não teve poder frente aos Estados Unidos para conquistar a paz na área, o que demandaria o reconhecimento do regime nicaraguense, isto é, algo inaceitável para o governo de Ronald Reagan.
Há uma clara luta para que um ou outro partido utilize as associações de bairros da Venezuela, utilizando formas de cooptação e de instrumentalização de dirigentes locais. Frente às tentativas partidárias, a direção da FACUR tenta se defender utilizando sua força moral perante a opinião pública.
Como são comportamentos expressamente políticos, o poder que se expressa neles também é de caráter político. Porém, nem todo poder é simplesmente político, ou seja, nem todo poder está, de forma direta ou imediata, a serviço de interesses sociais específicos no contexto de uma ordem estabelecida. Por exemplo, pode-se fazer a seguinte afirmação: ainda que tenha perdido muito poder nos últimos anos, o pai de família continua sendo a instância mais decisiva (com mais poder) na maior parte das famílias latino-americanas. O poder do pai de família não é, a princípio, um poder político e o seu exercício não repercute diretamente na ordem existente; isto não significa que, quando tomado globalmente, o caráter hierárquico e machista da família latino-americana não tenha repercussões e sentidos políticos ou que sua modificação não poderia resultar em sérias consequências para a ordem social da América Latina.
O poder não é uma coisa que se possui, tal como se possui uma casa ou são adquiridas ("possuídas") certas qualidades humanas. Neste sentido, é importante diferenciar o poder dos recursos que, em determinada circunstância e para determinados objetivos e atividades, proporcionam poder. O poder não é propriamente algo que os oficiais equatorianos possuíam nos seus arsenais de armas ou que Febres perdeu ao entrar na base aérea em que foi sequestrado. O poder também não é algo que se encontra nos arquivos do grupo de Contadora, nos bairros da FACUR ou que está guardado no bolso da calça do pai de família. Em uma perspectiva psicossocial, o poder é uma característica que surge nas relações sociais, tanto naquelas que ocorrem entre indivíduos, quanto naquelas que ocorrem entre grupos. Os oficiais equatorianos tiveram poder diante do presidente Febres para conseguir a liberação do general Vargas e o presidente Febres, alguns dias depois, teria poder para levar os oficiais a julgamento. Mas isto não quer dizer que o poder emerge como algo criado no aqui e agora de cada relação, mas sim que o poder surge precisamente a partir dos recursos que, em cada relação, são aportados pelos distintos atores - o que possibilita afirmar que tal ator tem mais poder que outro em relação a determinado objetivo, inclusive antes de certa relação ser efetivada. Portanto, o poder não é algo extrínseco às relações, mas o próprio caráter das relações humanas é, em boa medida, definido pelo poder que atua nelas. Deste modo, tanto as relações, quanto os atores que se relacionam são constituídos a partir do exercício do poder social.
Consequentemente, podemos compreender o poder a partir de quatro elementos: (a) seu caráter relacional; (b) seu fundamento objetivo; (c) sua natureza intencional; e (d) seu efeito constitutivo (ver Martín-Baró, 1984).
(a) O poder é uma característica das relações entre pessoas ou grupos. Toda relação é definida, em boa medida, pelo poder que se dá na confluência política dos atores e dos interesses que são expressados.
Assim, muito se discute sobre se o poder é algo que reside nos atores ou se é simplesmente algo que se dá na relação enquanto tal. Acreditamos que tal distinção é analiticamente incorreta, pois não é possível existir uma relação sem sujeitos ou atoresda relação. É claro que o poder reside nos atores, não quando estes são tomados como indivíduos isolados, mas quando há relação. Os atores não "carregam" seu poder de uma relação para outra, pois o poder ou sua falta de poder surge precisamente quando atores entram em relação com outros, fazendo o poder variar de acordo com a relação concreta. A Força Aérea do Equador não possui um poder abstrato; mas possui poder frente ao presidente Febres Cordero ou diante de alguns indivíduos e atores, mas não diante de outros. De fato, os oficiais e soldados envolvidos no sequestro direto de Febres foram desarmados e isolados dois dias depois pelas Forças Armadas do Equador.
O que é essa característica das relações humanas que chamamos de poder? Em queconsiste esse caráter da relação entre atores? É a condição que possibilita alguns atores imporem sua vontade, seus objetivos ou, no caso do poder político, os seus interesses sociais sobre a vontade, os objetivos ou os interesses sociais dos demais atores. O pai tem poder sobre a mãe, os oficiais da Força Aérea sobre o presidente Febres Cordero, o governo dos EUA sobre o grupo de Contadora e não é difícil prever que os partidos políticos venezuelanos farão prevalecer, ao menos a curto prazo, seus interesses sobre a vontade autônoma da FACUR.
(b) O poder se baseia nos recursos que os atores dispõem em uma determinada relação. É importante insistir que os recursos não são o poder, mas a base do poder. É óbvio que quanto maior for a quantidade e a diversidade de recursos possuídos, maior será a probabilidade de se conquistar poder nas relações sociais. Mas dizer que os oficiais da Força Aérea equatoriana possuem poder é uma afirmação abstrata; eles podem ter poder para realizar imposições sobre Febres Cordero (e este para se impor em outra circunstância e com determinado objetivo), mas não possuem poder para, por exemplo, realizarem imposições sobre o exército peruano - seu tradicional inimigo histórico - e muito menos sobre o exército norte-americano. O irmão mais velho pode ter recursos (por exemplo, força física ou conhecimentos) para se impor sobre o irmão mais novo, mas não para enfrentar o pai ou a mãe. O pai de família possui recurso para se impor sobre sua própria família, mas não sobre seu patrão ou seu chefe no trabalho. Gissi Bustos (1976), com razão, destaca, por exemplo, que a "impotência" ou a falta de poder social do macho latino-americano em suas relações trabalhistas o converte em uma pessoa prepotente em suas relações com a mulher no interior do lar. Assim, o desmoronamento do machismo habitual de Febres Cordero frente às violentas pressões dos oficiais militares foi psicologicamente muito coerente.
O que importa nas relações sociais não é tanto a quantidade de recursos que os atores dispõem. Ainda que ela seja pertinente, o que importa é a relação entre os recursos. Que ator pode colocar mais recursos em jogo em cada caso e situação? Portanto, o poder surge da diferença estabelecida entre os recursos de diversos atores que se relacionam em determinada circunstância. Assim, se explica, por exemplo, a derrota militar no Vietnã dos EUA, país com um poderio militar (tomado abstratamente) incomparavelmente maior.
Existe uma grande diversidade de recursos: materiais, pessoais, simbólicos. É clássico o estudo de French e Raven (1971) sobre as bases do poder. Nem todos os recursos são igualmente úteis em todas as circunstâncias e nem todos os recursos são equiparáveis. Diante do poder imediato das armas, pouco poder pode ter a razão ou o conhecimento, tal como demonstra o destino dos intelectuais latino-americanos nas ditaduras militares. Tal como expressa uma frase já um tanto desgastada: diante da "razão da força" de pouco serve a "força da razão". Obviamente, existem recursos mais universais que outros e que são mais facilmente generalizáveis a diversas situações. O caso do poder econômico é o exemplo mais ilustrativo, tal como pode ser atestado pela configuração de nossas sociedades, estruturalmente organizadas de acordo com os interesses das minorias oligárquicas. Por isso, com razão, afirma-se que toda economia é, por princípio, economia política. As oligarquias latino-americanas podem carecer de recursos morais ou intelectuais, mas seu dinheiro permite comprar inteligências e consciências para defender seus interesses de classe.
(c) O poder é definido a partir de objetivos concretos. O poder surge em uma relação social e se estrutura de acordo com um fim. Sem dúvida alguma, o poder político busca o controle social em sentido mais amplo, isto é, a submissão da ordem social a determinados interesses grupais ou de classe. O poder atua em diversas áreas e de distintas maneiras determinando fins políticos parciais ou setoriais. Os atores possuem poder em suas relações para atingir fins concretos: podem impor sua vontade, isto é, fazer prevalecer os interesses sociais que representam em certos casos e não em outros. Da mesma forma, um ator pode ter poder sobre outro quando se trata de um determinado objetivo ou fim, mas não ter poder quando se trata de outro objetivo ou fim. O pai de família pode ter poder sobre a mãe para determinar onde vão morar, mas não para determinar em que escola os filhos serão matriculados. O grupo de Contadora teve poder (sobretudo moral) para impedir uma guerra generalizada na América Central, mas não teve poder (por razões, fundamentalmente, econômicas) para conquistar a paz na região contra os interesses do governo norte-americano. Esta complexidade nas relações humanas torna ainda mais difícil a análise do poder político e torna obrigatório nunca perder de vista o sentido totalizador da prática política, isto é, a necessária e essencial vinculação de todos os aspectos da vida humana em sua concretude histórica.
(d) Finalmente, o poder não é externo à relação, configurando essencialmente o caráter da relação e, até mesmo, o caráter dos atores que se relacionam. Geralmente, as relações humanas não são simétricas, pois nelas é produzido o diferencial de recursos que dá poder a certos atores em detrimento de outros. Por isso, a maior parte das relações humanas são de natureza hierárquica, de superioridade e inferioridade, de dominação e submissão, de exploração e proletarização. Além disso, o caráter da relação define os próprios atores: frente ao outro se é superior ou inferior, dominador ou dominado, explorador ou explorado, opressor ou oprimido. Somente em poucas relações humanas o diferencial de recursos não é um mecanismo discriminante e o caráter humano das pessoas prevalece sobre os interesses que representam em sua prática social.
Max Weber (1925/1964:180) definiu o poder como a "probabilidade de impor a própria vontade em uma relação social, mesmo contra toda resistência, seja qual for o fundamentodessa probabilidade". À luz das reflexões anteriores, podemos propor uma definição a partir da perspectiva psicossocial que efetiva uma pequena mudança na definição de Weber: o poder é aquele diferencial favorável de recursos produzido nas relações humanas que possibilita um dos atores impor seus objetivos e interesses sociais sobre os dos outros (ver Martín-Baró, 1984). Coincidimos com Weber na tese de que o poder é mais um potencial do que um ato e que esse potencial se dá nas relações humanas. A nossa mudança reside em especificar em que consiste o potencial (diferencial de recursos), assim como em precisar que o poder serve mais aos objetivos e interesses canalizados pelo ator do que a sua vontade.
Poder Político
Todo poder pode ser considerado político em um sentido amplo e, em todo caso, pode ser usado politicamente. Mas, em um sentido mais restrito, o poder político é aquele diferencial de recursos que surge nas relações sociais pelo qual se faz com que o ordenamento social e/ou seu funcionamento correspondam aos interesses sociais de um determinado grupo ou classe social. Assim, quando se fala da luta por poder ou de exercício de poder está se aludindo à situação em que um ator (pessoa, partido, grupo ou classe) conseguiu o controle dos recursos estatais necessários para orientar o sistema social em benefício dos interesses que ele representa ou canaliza.
Analisar concretamente o poder político demanda examinar quatro aspectos constitutivos do poder: a relação entre os atores, seus respectivos recursos, os objetivos e interesses almejados e o efeito histórico produzido tanto sobre os atores, quanto sobre a relação.
(a) Os atores políticos.
É preciso analisar quais são os principais grupos ou pessoas envolvidos em cada relação política sem se limitar ao dado positivo ou aparente. De fato, o dado mais importante do comportamento político são os interesses sociais promovidos pelos atores, ou seja, não se pode compreender quem são os atores se eles não são analisados a partir dos interesses que ativam e/ou representam em cada circunstância. Assim, por exemplo, não se compreender o sequestro do presidente Febres Cordero se este processo é analisado como confronto pessoal dele com um grupo de oficiais da Força Aérea equatoriana; é necessário analisar Febres e os oficiais como atores que expressam interesses sociais em uma circunstância concreta no interior da formação social do Equador. Este requisito analítico obriga a psicologia política a levar em conta a totalidade da formação social na qual são produzidos os comportamentos políticos, assim como relações, alianças, agrupamentos e contradições secundárias que os atores estabelecem em cada circunstância e conjuntura de um momento histórico.
(b) Recursos disponíveis (e ativados) na relação.
A compreensão do poder político de um determinado ator demanda analisar os recursos disponíveis e que podem ser utilizados pelo ator em cada relação e circunstância específicas. Cabe sublinhar a distinção entre recursos disponíveis e utilizáveis ou ativados, pois um ator pode dispor de mais recursos que outros, mas pode, por uma razão ou outra, não utilizar parte deles, o que significa que há uma desvantagem circunstancial que pode ser aproveitada por outros atores em seu benefício. Neste sentido, a análise do poder político deve observar os recursos em cada conjuntura e não apenas um potencial abstrato do qual se pode dispor permanentemente. A maquinaria bélica norte-americana era imensamente superior à do Vietnã do Norte ou àquela usada pelo vietcongue e, todavia, os EUA não puderam fazer uso pleno desses recursos e foram derrotados. De maneira semelhante, o governo norte-americano não conseguiu utilizar abertamente todo o seu poder para impor sua vontade no conflito centroamericano, pois não conta com a anuência da maioria dos governos do mundo e, nem mesmo, dos governos latino-americanos, o que obriga o governo estadunidense a adotar posturas ambíguas e/ou ambivalentes diante do grupo de Contadora produzindo permanentes contradições em suas decisões políticas na área.
Outro ponto importante é a necessidade de analisar o tipo de recursos que os diversos atores dispõem em cada relação. Por exemplo, nos confrontos de ordem trabalhista, os patrões podem dispor de certos recursos (por exemplo, econômicos e legais) muito diferentes daqueles que os grupos operários e sindicais dispõem (principalmente humanos e morais). Os recursos com os quais Febres Cordero e os oficiais equatorianos contavam eram, obviamente, muito diferentes (de um lado, as armas, de outro, a lei) e não era fácil predizer abstratamente ou de antemão para onde se inclinaria o equilíbrio de poder em um eventual confronto. Além disso, desconhecemos as forças que respaldavam Febres e os oficiais no processo de liberação do general Vargas, ainda que saibamos que um amplo setor das próprias forças políticas tentou promover legalmente a anistia do general rebelde. Frequentemente, pode ocorrer situações em que os atores possuem recursos equivalentes e não há um diferencial claramente favorável a nenhum deles. Nestes casos, a relação pode obrigar os atores a produzirem um acordo ou a buscarem novos recursos fora da relação (por exemplo, aliança com um terceiro ator) que permitam definir a situação em favor de interesses próprios.
(c) Objetivos almejados.
Para compreender um comportamento político é necessário problematizar o que está em jogo, que objetivos os atores pretendem realizar ou conquistar. Os diversos atores buscam os mesmos objetivos ou possuem metas distintas? Esses objetivos são compatíveis ou incompatíveis, criando uma situação em que a satisfação de certos objetivos demanda a insatisfação de outros? Obviamente, aqui é preciso vincular o objetivo concreto que cada ator busca com os interesses sociais que expressa. Nem sempre ou, talvez, raramente os interesses aparecem claramente, pois podem ser ocultados e negados, tal como se tende a ocultar e negar o exercício do poder. A finalidade política verdadeira de cada objetivo só pode ser claramente compreendida a partir da vinculação com interesses sociais, isto é, os objetivos são uma instância concreta pela qual uma classe social explicita seus interesses. Os partidos políticos venezuelanos podem prometer aos dirigentes comunitários o apoio aos seus planos imediatos de melhorar os serviços urbanos, mas, ao fundo, o que buscam é cooptar suas forças e capitalizar o processo organizativo de um agrupamento em benefício de interesses partidários. Em diversas vezes se comprovou que o apoio aparentemente incondicional oferecido inicialmente acaba convertendo, mediatizando e anulando a possibilidade de ação autônoma das associações de bairro.
Um aspecto adicional é a complexidade que pode surgir a partir da discrepância entre, de um lado, o que é objetivamente almejado ou a tendência do ato realizado (compreendidos a partir da totalidade do sistema social) e, de outro, o que o ator busca ou acredita buscar subjetivamente. Objetividade e subjetividade podem divergir drasticamente, revelando a alienação política de certos atores. Também é importante ver o que a subjetividade de cada ator e as instâncias concretas que representa podem modificar e acrescentar aos objetivos últimos de classe. Há comportamentos políticos que, sem deixar de ter sentido e intencionalidade objetiva de classe (que, em última instância, são promovidos), respondem mais imediata e claramente a perspectivas de grupos funcionais (por exemplo, um grêmio militar) ou, ainda, interesses familiares e individuais. Neste sentido, é preciso considerar a importante diferença objetiva e subjetiva dos comportamentos, assim como sua significação distinta para os interesses de classe subjacentes. Por exemplo, uma eleição nacional não é o mesmo que uma eleição local e a aprovação do orçamento nacional do país é um processo diferente da isenção de impostos para uma atividade beneficente.
(d) Efeito histórico do poder.
O surgimento do poder nas relações políticas definirá fundamentalmente o caráter das relações, assim como dos atores que participam delas. O que é um presidente de um país, o que são os oficiais de um exército ou o que é a relação entre um e os outros é definido pela existência do poder. Constitucionalmente, um presidente pode ser o comandante das Forças Armadas de seu país, mas, na prática, pode não ter poder real frente a elas e ter que, continuamente, se submeter ao seu juízo e aos interesses que os militares articulam. Este é o caso, por exemplo, de alguns governos centro-americanos (El Salvador ou Honduras), cujo presidente constitucional não possui quase qualquer poder real diante das forças armadas, instrumento central dos interesses do governo norte-americano na região. Assim, o caráter das relações políticas pode ser definido como relações de colaboração ou imposição, de pluralismo ou domínio, de liberdade ou opressão. Talvez um dos aspectos mais importantes do poder no processo de definição das relações e dos próprios atores reside no fato de que possibilita quem possui poder (quem consegue um diferencial favorável de recursos) definir as "regras do jogo", isto é, o âmbito em que a relação pode se dar (o que é possível fazer politicamente) e o caráter dos atores (quem pode atuar politicamente).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Weber, Max. (1925/1964). Economía y sociedad. México, D.F.: F.C.E. [ Links ]
Recebido em 13/06/2014.
Aceito em 19/06/2014.
Manuscrito produzido em 1987 e que foi publicado, pela primeira vez, em 1994 no livro organizado por Adrianne Aron e Shawn Corne com um conjunto de textos de Ignácio Martín-Baró traduzidos em inglês: Aron, A. & Corne, S. (Orgs.). Writings for a liberation psychology. Cambridge: Harvard University Press.
A tradução e a publicação foram autorizadas pelo Centro Monseñor Romero da Universidad Centroamericana "José Simeón Cañas", El Salvador.