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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X

     

 

RESENHA

 

'Infâncias perdidas' de ontem e de hoje: a atualidade de uma pesquisa

 

'Lost childhoods' yesterday and today: the actuality of research

 

'Infancias perdidas' de ayer y de hoy: la actualidad de la investigación

 

'Enfances perdues' d'hier et d'aujourd'hui: la pertinence de la recherche

 

 

José César Coimbra

Doutor em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. arcoim@yahoo.com.br

 

 

Infâncias Perdidas: o Cotidiano nos Internatos-prisão (3ª ed.)
Autor: Sonia Altoé
Rio de Janeiro: Revinter, 2014.
277 páginas.
ISBN: 8537205176

Sônia Altoé publicou seu livro "Infâncias Perdidas" na década de 1990, fruto de pesquisa realizada para o seu doutorado obtido em 1988 na Universidade Paris VIII. Em 2014 o livro foi relançado pela editora Revinter em uma edição revista e ampliada.

Ao olharmos para o lugar da infância na sociedade brasileira, em particular para a infância socioeconomicamente desfavorecida, percebemos alguns dos motivos pelos quais a nova edição do livro é bem-vinda e porque faz-se necessário voltar ao cenário que a pesquisa de Sônia Altoé continua a desvelar para nós: o Brasil ainda apresenta elevada taxa de homicídios para a faixa etária 14 - 21 anos (Waiselfisz, 2014; 2014a); temos quase 40.000 crianças e adolescentes institucionalizados e um pouco menos de 10% desse total está apto à adoção (CNJ, 2008; 2011).

Se é certo que o contexto econômico, social e legal é distinto nos dois momentos históricos que o livro acaba por tocar - o da pesquisa original e o do seu relançamento - é igualmente correto percebermos que existem questões e problemas que perduram, que se estendem, mesmo que modificados, de um momento a outro.

Assim, ao percorremos as páginas do livro somos convidados insistentemente pela autora para que dividamos com ela suas preocupações e indagações acerca da infância. Como Sônia Altoé assinala, seu envolvimento com o tema iniciou-se no mestrado, igualmente realizado na França. Ali, o Ano Internacional dos Direitos da Criança, celebrado em 1979, também sinalizou à autora o quanto estávamos distantes das questões urgentes que a garantia de direitos impunha a todo o mundo. Naquele momento, os saberes da Psicologia, da Psicanálise e da Análise Institucional já se encontravam mobilizados para o mergulho no campo que a levaria às perguntas sobre os efeitos da institucionalização sobre crianças e adolescentes.

O livro conta com apresentação da professora Ligia Costa Leite, nome de destaque no estudo do campo da infância abandonada. O prefácio é de René Lourau, um dos teóricos da Análise Institucional e do conceito de implicação, que nos brinda com um enunciado que guiará o leitor para além das páginas do livro: por não querermos saber, aprisionamos. Por não querermos saber das demandas efetivas das crianças e adolescentes que Sônia Altoé nos mostra, elas são lançadas em estabelecimentos que se fecham a qualquer olhar exterior.

A pesquisa de Sônia Altoé analisa sete internatos na periferia da cidade do Rio de Janeiro, os quais reúnem de recém-nascidos a adolescentes de 18 anos incompletos. Ela nos descreve sua trajetória de funcionária contratada a pesquisadora, bem como os embates entre a realidade que se descortinava à sua frente e as exigências institucionais que sobre ela desabavam. Esse jogo de forças, que redundou em sua exoneração da Fundação que geria o conjunto de internatos na cidade do Rio de Janeiro, acabou por determinar também, mais uma vez, seu envolvimento com o tema e o seu esforço para retornar a mesma Fundação, meses depois, como pesquisadora.

'O cotidiano nos Internatos-Prisão' é o subtítulo do livro e é também um enunciado que se alinha àquele de Lourau visto acima. Entre um e outro encontramos o eco do significante prisão. Ainda que não seja um tópico ligado diretamente à pesquisa, é importante registrar que agora, em 2015, quando as discussões sobre alterações na maioridade penal encontram seu auge, é ainda o significante prisão que paira sobre tudo, como que a querer fornecer um único sentido para a vida daqueles que, em outro contexto, puderam ser vistos por Sônia Altoé.

É sob a lente da 'prisão' que somos levados aos internatos, cada um deles ocupando o capítulo que lhe é próprio, com uma introdução que prepara o leitor para as questões principais confrontadas nas páginas futuras. Nesse minucioso deslocamento no qual acompanhamos a autora, somos apresentados aos rituais de entrada no estabelecimento, os efeitos subjetivos da adaptação da criança ao novo regime, a disciplina a que todas são submetidas, o lugar do asseio e da higiene quase que a tornar o corpo pura massa a ser manipulada, não restando espaço para que a linguagem instale o desejo e com ele novas possibilidades de existência.

Ao passarmos de um capítulo a outro, o fio da prisão mostra-se firme sendo com ele que acompanhamos os efeitos da transferência entre estabelecimentos sobre as crianças, suas especificidades e motivos, sua incessante rotina. O controle do tempo, o vazio do tempo, o que a autora denomina 'tempo de espera': o controle e os muros invisíveis que cercam o brincar das crianças, impedindo a emergência dos lampejos da vida e da criatividade. Nas linhas que seguimos notamos também a impossibilidade de que se possa vislumbrar no estabelecimento a criança por si e não como mais um corpo a alimentar e guardar. Tudo isso está descrito e analisado no livro à forma de uma etnografia que nos transporta para aquele território também com base no uso de fotografias que formam painéis que ilustram nosso percurso e que orientam expectativas e interrogações.

Se Sônia Altoé insere uma introdução em cada capítulo, ela também opta por fazer anteceder essa introdução pela descrição do internato analisado. Essa descrição cobre o número máximo previsto de crianças e adolescentes que ali poderiam estar institucionalizadas, bem como a faixa etária e esquemas gráficos referentes à organização do internato e sua organização espacial. Encontram-se nesse momento fragmentos de testemunho dos internos que acabam por se constituir em novas lentes pelas quais acabamos por nos lançar nas páginas que se seguem. Por vezes, é por esse testemunho registrado por Sônia Altoé que se nota a contraposição entre castigos e fugas, rigidez disciplinar e tentativas de escape a ela.

O saber especializado mobilizado pela disciplina está presente no livro e com ele observamos de que forma os comportamentos, sobretudo aqueles tidos como desviantes, são tomados como resultado de desajustes individuais, como se a própria estrutura, física e organizacional, não fizesse parte da construção do resultado que se espelha nos laudos epareceres. É assim que os atos violentos dos jovens entre si, as dificuldades de aprendizagem, tudo acaba por encontrar um rótulo que adere exclusivamente na criança ou no adolescente que passa a ser por ele representado.

Essa perspectiva de individualização da fonte dos problemas enfrentados no estabelecimento tem como contrapartida a figura que encarna a salvação, que coloca o estabelecimento como aquilo que recupera o jovem e que só pôde fazê-lo porque desde sempre esse jovem esteve ali. A margem é um lugar e os marginais, aqueles que não teriam sabido aproveitar as oportunidades que desde cedo lhes teriam sido concedidas. Nessa perspectiva o ideal do trabalho comparece como quase única alternativa a guiar os jovens por parte do estabelecimento. Essa alternativa retroativamente talvez possa ser entendida como ditando a expressão da disciplina que, 'desde sempre', estaria a inculcar regras e normas sociais a todos eles.

Como Sônia Altoé constata em seu posfácio, a situação atual da infância institucionalizada mudou de modo significativo. O Estatuto da Criança e do Adolescente, particularmente a partir das alterações advindas da Lei nº 12.010/2009, propiciou maior segurança jurídica para crianças e adolescentes institucionalizados. A previsão legal de ter o caso analisado semestralmente, o tempo máximo de institucionalização previsto para dois anos, a definição de um número muito menor de crianças e adolescentes institucionalizados por estabelecimento do que os vistos por Sônia Altoé, tudo isso, ao menos no plano formal, implica mudanças importantes que devem ser saudadas.

Contudo, como Circe Vital Brazil apontou na resenha que teve por título 'Morte Branca' (Brazil, 1990), quando da publicação original de 'Infâncias Perdidas', algo da anulação do sujeito (e das resistências a isso) está estampado no desenho que Sônia Altoé nos faz ver. A reversão desse quadro, na linha que o posfácio nos assinala, não tem como resposta apenas o aperfeiçoamento do funcionamento dos estabelecimentos ou o incremento da presença crescente dos Direitos Humanos nas diretrizes legais a eles associados.

A mobilização de forças em prol da articulação dos atores envolvidos na esfera da infância e juventude, sob a égide do Sistema de Garantia de Direitos - SGD (Conanda, 2006), é um passo necessário, embora menos simples do que talvez possa parecer a princípio. O funcionamento dessa articulação pode ter como resultado maior transparência das ações, melhor divisão das responsabilidades e diminuição de redundâncias que no cotidiano acabam por drenar recursos em um campo que notoriamente não os têm em abundância.

A transparência, outro resultado possível da articulação prevista no SGD, implicaria da mesma forma para os atores diretamente envolvidos e, talvez, para toda a sociedade, a interrogação sobre o que queremos oferecer às crianças e aos adolescentes que precisaram contar com o apoio de estabelecimentos de acolhida em algum momento de suas vidas: quanto investimos? Quem investe? O que fazemos? Como fazemos? Por que fazemos?

Retomando o prefácio de Lourau para 'Infâncias Perdidas', queremos saber o que se passa com essas crianças e esses adolescentes. E porque o queremos, talvez tenhamos outras respostas a oferecer que não a 'prisão'. Vamos torcer para que a longa vida do livro 'Infâncias Perdidas' tenha como um de seus efeitos o adensamento de alternativas e caminhos que deixem a prisão, em todos os seus sentidos, bem longe das crianças e dos adolescentes. E que nós, de fato, queiramos saber o máximo possível do que se passa com eles.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Brazil, Circe. (1990, 18 de agosto). Morte Branca. Jornal Do Brasil, [Rio de Janeiro]         [ Links ].

CNJ. (2008). Cadastro Nacional de Adoção. Brasília: Autor. Acessado em: 22 de Janeiro de 2015, de: <http://www.cnj.jus.br/cna/View/index.php>         [ Links ].

CNJ. (2011, 26 de dezembro). Levantamento mostra que 36,5 mil crianças e adolescentes vivem em abrigos. Acessado em: 20 de janeiro de 2015, de: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/58118-levantamento-mostra-que-365-mil-criancas-e-adolescentes-vivem-emabrigos>         [ Links ].

Conanda. (2006). Resolução 113. Acessado em: 25 de janeiro de 2015, de: <http://bit.ly/1Gj8J2p>         [ Links ].

Waiselfisz, Julio. (2014). Mapa da Violência 2014: Homicídios e Juventude no Brasil. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da República. Acessado em: 23 de janeiro de 2015, de: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_AtualizacaoHomicidios.pdf>         [ Links ].

Waiselfisz, Julio. (2014a). Mapa da Violência 2014: Os jovens do Brasil. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da República. Acessado em: 24 de janeiro de 2015, de: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf>         [ Links ].

 

 

Recebido em 21/11/2014.
Aceito em 12/01/2015.

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