Revista Psicologia Política
ISSN 1519-549X
ARTIGOS
Medidas socioeducativas com seus dispositivos disciplinares: o que, de fato, está em jogo nesse sistema?
Socio-educational measures with their disciplinary mechanisms: what, indeed, is at stake in this system?
Medidas socio-educativas con sus dispositivos disciplinarios: de hecho, ¿qué está en juego en este sistema?
Les mesures socioéducatives avec leurs dispositifs disciplinaires : ce qui, en effet, est en jeu dans ce système ?
Jacqueline de Oliveira MoreiraI; Andréa Máris Campos GuerraII; Nathiéle Araújo OliveiraIII; Juliana Marcondes Pedrosa de SouzaIV; Camila Alves Noberto SoaresV
IPsicanalista, Mestre em Filosofia Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, doutora em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Atualmente é bolsista produtividade 2 no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, MG, Brasil. jacqdrawin@hotmail.com
IIPsicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio Janeiro, Brasil e atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia e docente da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, MG, Brasil. andreamcguerra@gmail.com
IIIPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, MG, Brasil. nathiele@task.com.br
IVDoutoranda em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, MG, Brasil. juliana.marcondes@yahoo.com.br
VPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, MG, Brasil. camila.alves.soares@gmail.com
RESUMO
Apresentamos uma reflexão crítica sobre o tema das medidas socioeducativas presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para concretizar este objetivo, foi realizada uma pesquisa bibliográfica nos sistemas Scielo e Pepsic sobre a produção científica nacional, no campo da psicologia, sobre o adolescente autor de ato infracional publicada durante o período entre os anos de 2000 e 2012. Foram encontrados 59 artigos sobre o tema do adolescente autor de ato infracional, e a leitura destes nos permitiu organizá-los em três planos: (1) práticoexperencial; (2) teórico sociocultural; (3) e político-institucional. O foco de nosso artigo é apresentar e discutir o terceiro plano analítico da investigação, a saber, os artigos que apresentam a dimensão de reflexão dos aspectos político-institucionais implicados nas medidas socioeducativas. Foi possível concluir que, apesar do caráter inovador do ECA, por vezes, as políticas públicas podem colocar os adolescentes autores de ato infracional como dejeto da sociedade e, assim, operar por sua exclusão, adaptação e enclausuramento.
Palavras-chave: ECA, Medidas Socioeducativas, Adolescente em Conflito com Lei, Regime Disciplinar, Psicologia.
ABSTRACT
We present a critical reflection on the subject of socio-educational measures present in the Child and Adolescent Statute (ECA). To achieve this goal, we conduct a literature online search on Scielo and the national scientific production system Pepsic, in the field of psychology, with reference to the theme of the adolescent author of offensive Act during the period from 2000 to 2012. Found 59 items on the subject of adolescents and the reading of these allowed us to organize them into three areas: (1) practical-experencial; (2) cultural theorist; (3) and political-institutional. The focus of our paper is to present and discuss the third analytical research plan, namely, the articles that feature the dimension of reflection in political and institutional aspects involved in the socio-educational measures. It was possible to conclude that, despite the innovative nature of the ECA, sometimes, public policy can put across adolescents authors of offensive Act as society's waste and thus operate an exclusion and enclosure.
Keywords: ECA, Socio-Educational Measures, Adolescent in Conflict with Law, Disciplinary Regime, Psychology.
RESUMEN
Presentamos una reflexión crítica sobre el tema de las medidas socio-educativas presentes en el Estatuto de Niños y Adolescentes (ECA). Para lograr este objetivo, realizamos una búsqueda bibliográfica en el sistema Scielo y Pepsic sobre la producción científica nacional, en el campo de la psicología, que se refiere al tema del adolescente autor del acto infraccional en el período 2000-2012. Encontrados 59 artículos sobre el tema del adolescente y su lectura nos permitió organizarlos en tres planos: (1) práctico-experiencial; (2) teórico sociocultural; (3) y político-institucional. El enfoque de nuestro artículo es presentar y discutir el tercer plano analítico de investigación, a saber, los artículos que cuentan con la dimensión de la reflexión de los aspectos político-institucionales involucrados en las medidas socio-educativas. Fue posible concluir que, pese al carácter innovador del ECA, a veces, las políticas públicas pueden poner a los adolescentes autores del acto infraccional como desechos de la sociedad y así operar exclusión y enclaustramiento.
Palabras clave: ECA, Medidas Socio-educativas, Adolescente en Conflicto con la Ley, Régimen Disciplinario, Psicología.
RÉSUMÉ
Nous présentons une réflexion critique sur le thème des mesures sociales et éducatives présentes dans Statut des enfants et des adolescents ( ECA ). Pour atteindre cet objectif, une recherche documentaire a été effectuée dans les systèmes Pepsic SciELO et sur la production scientifique nationale dans le domaine de la psychologie à propos de l'adolescent qui commet une infraction. La recherche sur les articles publiés au cours de la période comprise entre les années 2000 et 2012 a trouvé 59 textes sur le thème de l' adolescent qui commet une infraction, et sa lecture nous a permis de les organiser en trois niveaux: ( 1 ) l'expérience pratique - ; ( 2 ) la théorie socioculturelle ; ( 3 ) et le politico-institutionnel. Notre travail a pour but présenter et discuter le troisième niveau d'analyse de la recherche, à savoir les articles qui ont la dimension de la réflexion sur les aspects politiques et institutionnels impliqués dans les mesures éducatives. Il a conclu que, malgré le caractère novateur de la ECA, les politiques publiques parfois peuvent mettre les adolescents qui commetent une infraction en tant que rejet de la société et donc sujet d'une exclusion et d'une clôture.
Mots clés: ECA, Mesures Socioéducatives, Adolescents en Conflit avec la Loi, Régime Disciplinaire, Psychologie.
Introdução
Os sobreplanos discursivos que atravessam uma política pública sempre afetam seu alvo, seu público-alvo. Não é diferente esse fenômeno no que tange ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA, instituído pela Lei nº 8.069 de 1990, completa 26 anos e, no decorrer destes anos, foi alvo de diferentes reflexões e críticas. Constituído como um aparato legal de referência para lidar com a criança e o adolescente, prevendo medidas de proteção sem distinção de classe socioeconômica, raça ou etnia, o ECA cria também medidas especiais para aqueles cujos direitos estão ameaçados ou violados em situações de infração ou vulnerabilidade social. A fim de garantir a efetivação dos direitos e regulamentos previstos, o ECA tem sua aplicabilidade por meio das denominadas políticas públicas, que se operacionalizam mediantes programas, projetos e serviços de ordem estatal.
Anterior ao ECA prevalecia o Código de Menores, no qual o pressuposto vigente residia em considerar crianças e jovens pobres e despossuídos como elementos de ameaça à ordem vigente. Sua orientação se dava no sentido de reprimir, corrigir e integrar os supostos desviantes em instituições, as quais se valiam de modelos repressores e correcionais. A criança e o adolescente eram tomados ora como futuro da nação, investimento do Estado, ora como delinequentes e perigosos. Enfatiza-se que era a própria condição de pobreza, e não o ato criminoso em si, que qualificava os indivíduos como em situação irregular e, portanto, passíveis de recolhimento e internação nas instituições. O propósito do Código de Menores se efetiva então não pela proteção ao sujeito e pela garantia dos seus direitos, mas caracteriza-se enquanto um modelo higienista que agia pela criminalização da pobreza.
Atravessado pelo recente processo de redemocratização do país - e baseado no artigo 2271 da Constituição da República Federativa do Brasil (05/10/1998) -, o ECA marca um novo paradigma em relação à concepção de infância e juventude anteriormente vigente, onde está população passa a ser vista enquanto sujeitos de direito aos quais devem estar garantidos à proteção e a condição de cidadão.
Para dizer das crianças e adolescentes - em contraposição ao termo "menor", carregado por uma denotação pejorativa, o ECA insere em seu estatuto o conceito de "pessoa em desenvolvimento". O termo aparece no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 6º, vinculado ao seguinte contexto:
Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (Brasil, 1990)
A noção de "pessoa em desenvolvimento" aplica-se para dizer que crianças e adolescentes apresentam os mesmos direitos e deveres concernentes aos adultos, desde que sejam aplicáveis à sua idade, ao grau de desenvolvimento físico ou mental e à sua capacidade de autonomia e discernimento. O conceito da criança e adolescente como pessoa em desenvolvimento remete a uma construção histórica. A noção de infância e adolescência como fases do desenvolvimento, peculiares e distintas da fase adulta, são conceitos advindos da Idade Moderna, sendo reflexo das mudanças provenientes da modernidade, tais como (1) o novo papel do estado na sociedade, devendo garantir a segurança, a justiça e o bem-estar econômico e social; (2) o deslocamento da vida pública para um fortalecimento da vida privada e (3) a consequente mudança da concepção de família que, antes fundada pelas relações econômicas, passa a ser um lugar constituído por meio da afetividade e intimidade entre seus membros e colocada como a principal influência no desenvolvimento das crianças e adolescentes (Grossman, 1998).
Assim, composto por 267 artigos, o ECA tem por princípio a prioridade absoluta da criança e do adolescente. O documento estabelece diretrizes sobre os direitos fundamentais da criança e do adolescente, sobre as prevenções de ameaça e violação destes direitos, sobre as ações frentes às práticas infracionais, sobre o funcionamento dos conselhos e outras. Neste conjunto de temas, interessa-nos, fundamentalmente, o tema das práticas infracionais e das medidas socioeducativas. O tema da infração e a resposta do estado ao adolescente autor de ato infracional se apresentam como um nó importante no processo de acolhida deste sujeito porque percebemos uma convergência de diversos fios em sua construção. O ato infracional e as medidas precisam ser pensados a partir de um diálogo interdisciplinar, que considera aspectos sociais, políticos, econômicos, jurídicos, sociológicos e psicológicos.
A fim de operacionalizar um recorte sobre o tema, de tal forma complexo, optamos por realizar uma busca no sistema Scielo e no Pepsic sobre a produção científica nacional, no campo da psicologia, relacionado ao tema do adolescente autor de ato infracional, com o recorte temporal de 12 anos, compreendendo os anos de 2000 a 2012. Usamos como palavraschave os seguintes termos: adolescência, medidas socioeducativas, adolescente em conflito com a lei, ECA, adolescente infrator, adolescente autor de ato infracional, infração. Encontramos 59 artigos sobre o tema do adolescente em conflito com a lei. Todos os artigos foram estudados e fichados a partir dos seguintes critérios: ano, estado, método, problema, perspectiva do problema (trabalha questões práticas ou teórico-conceituais), hipótese, principais conceitos, autores de referência, principais ideias, argumentos e conclusão.
A leitura destes artigos nos permitiu organizá-los em três planos: (1) o plano práticoexperencial, com vinte cinco artigos que relatam experiências concretas e pontuais de aplicação das medidas (a exemplo de Costa, 2005 e Barra, 2007); (2) o plano teórico sociocultural, com nove reflexões que tentam pensar hipóteses compreensivas do problema da infração entre os adolescentes (Guerra e col., 2010; Moreira e col., 2008; Vorcaro e col., 2008); (3) e o plano político-institucional, com dezesseis trabalhos que constituem avaliações de todo o processo de implementação das leis e de execução das medidas. Ainda temos nove artigos que não respondem a esta tipificação porque se referem a temas divergentes, como o problema do abrigamento ou reflexões panorâmicas sobre a violência (Nascimento e col., 2010; Silva, 2007).
Trabalhamos o material com a análise de conteúdo, orientada pela construção iterativa de explicação (Laville & Dione, 1999). Procedemos, como de hábito nesse estilo de análise, à reestruturação dos conteúdos a partir dos critérios anteriormente apresentados; em seguida, recortamos os elementos, ordenados em conformidade com esses critérios.
Todos os artigos assim reorganizados foram apresentados e discutidos semanalmente junto ao coletivo da pesquisa para, finalmente, extrairmos a categorização dos artigos, a partir do modelo de grade aberta, no qual "as categorias não são fixas no início, mas todas tomam forma no curso da própria análise" (Laville & Dione, 1999:219).
Como se tratava de uma pesquisa exploratória, optamos pela construção iterativa de uma explicação enquanto modelo qualitativo de análise de conteúdo. Nele não se supõe a presença prévia de um ponto de vista teórico, elaborando o pesquisador, pouco a pouco, "uma explicação lógica do fenômeno ou situação estudados, examinando as unidades de sentido, a inter-relação entre elas e entre as categorias em que elas passam, então, a estar inseridas" (Laville & Dione, 1999:227).
Cabe ressaltar, em nossa investigação, os limites das fontes ou arquivos dos quais decidimos nos valer. Construir o estado da arte nacional sobre o tema da adolescência e infração, partindo inicialmente dos periódicos científicos nacionais reunidos em duas bases digitais, implica um primeiro viés que orienta a tomada de vista de um problema que, sabemos, ultrapassa essa fronteira. Temos conhecimento de que, de saída, essa escolha já constrange nosso objeto de análise, tendo em vista o que se escreveu e publicou em outras fontes, tanto quanto o que escapa da legislação, do plano projetivo e operacional das políticas públicas, de sua aplicação concreta, e de suas interpretações teóricas, sociais ou subjetivas, pelo que se fez escrita, traço. Não podemos desconsiderar também o desestímulo à produção científica pelos trabalhadores, cotejado com a exigência de produtividade dos professores/pesquisadores no plano, não apenas nacional, de exigência quantitativa de produção acadêmica. Em razão disso, torna-se impossível não considerar o texto não registrado nas revistas científicas especializadas em nossa análise, posto que essa pesquisa só aconteceu em função do encontro real entre uma demanda de trabalhadores e a universidade.
Roudinesco (2006:8-9), ao tratar do poder arcôntico do arquivo, afirma que seu poder governador e legislador emana de seus próprios limites. Se tudo está arquivado, anotado e julgado, não há possibilidade de criação. Por outro lado, se nada está arquivado, se tudo está apagado e destruído, resta a fantasia ou a soberania delirante do eu. Entre esses dois limites - a interdição do saber absoluto e a interdição da soberania do eu -, o arquivo é a condição da história. Partimos de seus limites como horizonte ético de nossa investigação.
Este trabalho de revisão de literatura possibilitou a produção de alguns textos. O primeiro texto trabalhamos com o primeiro plano de análise e foi publicado na Revista Psychologia Latina intitulado como: Os Desafios da Aplicação das Medidas Socioeducativa no Brasil: Uma Reflexão sobre Diferentes Relatos de Experiências (Moreira e col., 2014). O segundo produto desta revisão de literatura contempla o plano teórico sociocultural é foi intitulado como: Recognition and Indeterminacy: A Psychoanalytic Reading of Illegals Acts in Adolescence (Moreira e col., 2015). O foco deste artigo se concentra na apresentação da revisão de literatura sobre o tema do adolescente na medida socioeducativa, mas especificamente no terceiro plano analítico da investigação, ou seja, os artigos que apresentam a dimensão de reflexão dos aspectos político-institucionais implicados nas medidas socioeducativas. Após a apresentação destes artigos, pretendemos realizar uma análise das contradições presente entre o espaço do da lei e da execução. Nesta análise, utilizaremos de recursos teóricos de autores que trabalharam com o tema do Estado e do poder disciplinar como Arendt e Foucault, buscando novos recursos na psicanálise para analisar o atual estado do sistema socioeducativo.
Estado da Arte
Os artigos pesquisados trazem uma série de críticas e observações que permitem rever a perspectiva habitual com que se concebe e opera com os jovens em conflito com a lei. Aqui os reunimos em torno de seus principais aspectos analíticos. Dessa maneira, Miraglia (2005) enfatiza o intuito de modificar a concepção vigente a respeito da associação entre menor, delinquência e criminalidade, pelo ECA, ao propor a substituição do termo crime pelo termo ato infracional e a utilização do termo adolescente ou pessoa em desenvolvimento, em contraposição à expressão menor ou delinquente juvenil. Segundo o autor, visar-se-ia, desta forma, produzir mudanças no próprio aparato judicial.
Contudo, frente à enunciação dos direitos civis presentes no ECA e da obrigação do Estado de respeitar, proteger, garantir e promover tais direitos, o que se verifica no contexto atual é um desencontro entre aquilo que é promulgado pela legislação e seu cumprimento por parte do poder Executivo. Para Miraglia (2005), as dificuldades de efetivação do ECA - tanto da sua aplicação por parte do Judiciário, quanto na sua concretização enquanto instrumento reabilitador - deriva da percepção equivocada sobre o seu papel na reeducação e reinserção social dos jovens em conflito com a lei.
Soma-se a este fato, o imaginário sobre a inimputabilidade como uma permissão e não punição dos adolescentes autores de ato infracional. Na posição de Miraglia (2005), a demanda punitiva se configura em valores sociais que penetram o ambiente das audiências e, por conseguinte, o universo dos juízes. Disputando espaço com a tecnicidade da aplicação da lei, criam um rito discriminatório que atende a estereótipos e preconceitos.
Numa segunda linha analítica, Minahim e Sposato (2011) supõem que a negação da índole penal das medidas socioeducativas e a proposital alusão à educação e proteção, como suas únicas finalidades, contribuem para a aplicação indiscriminada da medida de internação -que, em muitos casos, não se aplicariam - unicamente pelo caráter privativo e, consequentemente, punitivo destas medidas. Dessa forma, as medidas socioeducativas constituem-se, não como instrumento de reinserção social, mas enquanto ferramenta na dupla exclusão destes adolescentes.
Mello (1999) e Balaguer (2005), na mesma linha de raciocínio referente às contradições intrínsecas ao próprio exercício do ECA, defendem que, anterior à violência cometida pelos adolescentes autores de ato infracional, o que se verifica é a violência do Estado na privação do acesso destes sujeitos aos seus direitos civis. Omisso em relação às camadas mais pobres da população, o Estado os priva de seus direitos civis mais básicos, colocando-os em uma fronteira para aquém da cidadania.
Balaguer (2005) entende ainda que a violência exercida pelo Estado em relação aos adolescentes autores de ato infracional encontra-se na dimensão do reconhecimento, na medida em que o Estado e a sociedade civil não os reconhecem enquanto sujeitos de direitos. O Estado se ausenta nas políticas públicas universais que deveriam garantir os direitos fundamentais - à saúde, à educação, à convivência familiar, ao lazer, em suma, o direito à vida -, e mantém a polícia como única força representativa de sua presença entre os pobres.
Hannah Arendt (1950/1990), em As origens do totalitarismo, aponta que, por encontrarem-se fora da jurisdição das leis, uma vez que não havia Estado ou nação que os representasse, os apátridas, visando à sobrevivência, tinham que viver em constante transgressão da lei, passando ao status não mais apenas de apátridas, mas de criminosos. A transgressão da lei sempre marca a privação de algum direito, contudo, nenhuma transgressão confere a perda do direito mais fundamental, o direito humano, ou seja, o reconhecimento do outro enquanto humano. A transgressão da lei pelo crime confere, então, forma de ser amparado pela lei, pois o apátrida, enquanto criminoso, retoma seu direito jurídico, não estando mais subjugado ao domínio desregrado do outro. Trata-se da transição entre um estado de anomalia não previsto legalmente, para um estado de anomalia previsto e, portanto, regulamentado pelo Estado.
A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do âmbito da lei é perguntar se, para ela, seria melhor cometer um crime. Se um pequeno furto pode melhorar a sua posição legal, pelo menos temporariamente, podemos estar certos de que foi destituída dos direitos humanos. Pois o crime passa a ser, então, a melhor forma de recuperação de certa igualdade humana, mesmo que ela seja reconhecida como exceção à norma. [...] Só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela lei (Arendt, 1950/1990:320).
Arendt (1950/1990), ao dizer da incapacidade do Estado-nação em prover leis àqueles que se encontram na condição de apátridas, marca a transferência do poder governamental do Estado para a polícia, ou seja, àqueles em situação de apatriamento encontram-se não mais sob a responsabilidade do Estado, mas das forças policiais, marcando uma transição do estado da lei para um estado policial. Frente à ausência de legislação que pudesse inscrever estes sujeitos, estes eram entregues, sem nenhuma lei que os amparasse, ao poder e autoridade policial. A condição de apátridas e a situação dos jovens em conflito com a lei se aproxima precisamente no ponto em que, em ambas as situações, exprimem a exclusão da esfera pública e a privação do direito à liberdade. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, muitas vezes sua segregação não se encontra associada ao ato infracional, mas à sua condição individual, refletindo uma ausência de reconhecimento destes jovens por parte do Estado e da sociedade, pois, ao nomeá-los como criminosos, exclui-se a dimensão política de sua existência. O que se verifica na história de vida destes jovens é justamente este abandono pelo Estado - condicionada não pela relação do adolescente com o crime, mas marcado pela condição socioeconômica, racial e territorial na qual estes sujeitos estão inscritos - e sua substituição por um estado de polícia em detrimento ao Estado de direito.
Para Balaguer (2005), a privação dos direitos se coloca ainda, para os adolescentes autores de ato infracional, de forma dupla, primeiro em relação à privação à vida pública e política mediante a ausência dos direitos fundamentais; e, segundo, mediante a condenação e ao cumprimento das medidas socioeducativas que ainda manteria o caráter repressor, violento e punitivo característico do Código de Menores. Dessa forma, a violência dos atos transgressores dos adolescentes se colocaria enquanto resposta ao estado de barbárie gerado por uma sociedade que reparte "o mal-estar na civilização" (Freud, 1930) de modo desigual.
Monteiro e col. (2006), por seu turno, alertam acerca da ineficácia das medidas socioeducativas quando aplicadas em ambiente que reproduz a situação de violência, colocando ainda que as medidas não devem ser aplicadas enquanto instrumento disciplinatório2 - que visa adequação do sujeito às normas sociais vigentes, enquanto única possibilidade de devolver-lhe a liberdade. Mas que devem respeitar o desejo do próprio adolescente, enfatizando que, para tal, é necessário que este seja escutado. Além disso, enfatiza a necessidade em ampliar a aplicação das medidas para além das instituições, devolvendo e reinserindo o sujeito ao espaço público que lhe é de direito. Nesta mesma linha, Brito (2007) defende que as ações e responsabilidades concernentes às medidas socioeducativas e aos adolescentes autores de ato infracional devem ser ampliadas à comunidade e à família, trabalhando como uma rede de apoio a ela.
Ainda sobre o caráter disciplinatório das medidas, Sartorio e Rosa (2010) alertam sobre o agravamento da violência que tal aparato repressivo produz, colocando que as medidas, baseadas em uma ideologia repressiva e de controle social, não produzem uma reinserção do sujeito ao espaço público, mas seu deslocamento para o sistema penal. Descrevem, ainda, como o discurso jurídico acerca dos adolescentes autores de ato infracional é carregado de estereótipos e aspectos discriminatórios, frequentemente associando à infração a situação de pobreza e como os adolescentes são tidos, para o sistema jurídico, não como sujeitos de direitos, mas objetos que devem ser excluídos a fim de proteger a sociedade produtiva e civilizada. Ao mesmo tempo em que são localizados como fora da sociedade por não partilharem dos mesmos direitos civis, são tidos como ameaça aqueles que se encontram inseridos no espaço público da política e dos direitos e, portanto, devido ao seu não pertencimento são submetidos a políticas repressivas e punitivas de caráter excludente.
Localizados em uma posição de anormais (Foucault apud Silva e col., 2011), por não se adequarem ao discurso social vigente - em que ser sociável não implica apenas ter direitos, mas seguir a ordem posta e tornar-se dócil politicamente e economicamente produtivo - estes jovens, representantes do resíduo que o capitalismo produz, são os indisciplinados (Foucault apud Silva e col., 2011), que por não terem acesso à lógica do consumo prometida, não tiveram os corpos docilizados. Contudo, o Estado e a sociedade não os reconhecem nem enquanto sujeitos e nem enquanto seu produto atribuído, pois, a responsabilidade do ato transgressor fica exclusivamente com o jovem, seja por conta de suas "famílias desestruturadas", seja por sua "inata periculosidade" (Silva e col., 2011).
A desresponsabilização do Estado para com o seu produto encontra-se refletida nas próprias medidas socioeducativas, que em seu caráter restritivo e punitivo, por meio do isolamento dos jovens, evoca não uma forma de tratamento, mas uma contínua exclusão desses jovens da esfera político-social. Segundo Silva e col. (2011), mesmo a tríade famíliaeducação-trabalho, proposta pelo ECA, enuncia a intenção do Estado em promover um assujeitamento destes jovens às práticas disciplinatórias como única forma de garantir-lhe o acesso à esfera pública enquanto cidadãos.
Verifica-se ainda o distanciamento entre o que a lei anuncia, neste caso, o ECA, e a sua execução. Muitas vezes ainda sob forte influência do Código de Menores, em que prevalecia uma lógica meramente coercitiva, a contenção, representada pela medida privativa de liberdade, e a repressão ainda são colocados como prevalentes em relação à ressocialização e ao caráter pedagógico proposto pelo ECA nas medidas socioeducativas. Ou seja, visa-se mais uma manutenção da ordem do que a garantia dos direitos dos sujeitos (Menicucci; Carneiro, 2011; Minahim; Sposato, 2011).
Já Rosário (2004) revela que, frente à ausência de reconhecimento mútuo na relação estabelecida entre Estado e sociedade civil e os adolescentes em conflito com a lei, o crime se coloca como possibilidade de existência ao trazer visibilidade para estes sujeitos. O crime é glorificado e exerce fascínio, pois adquire uma dimensão de status perante os semelhantes. É ofertado como resposta identificatória, dando ao sujeito um lugar de autoridade e respeito dentro do grupo (Rosário, 2004) e uma posição diante da partilha dos sexos. O crime confere acesso ao outro sexo, aos objetos e à lei própria, ilustrando uma possibilidade de existência - em uma sociedade marcada pelo individualismo e pelo consumo - frente à impossibilidade de existir enquanto sujeito de direitos.
Contudo, a resposta que o crime coloca à própria identidade ecoa prejuízos também na dimensão jurídica ao se fazer cumprir a legislação regulamentada pelo ECA. Reduzido ao ato infracional, a nomeação que a instituição e a sociedade faz do sujeito retira sua dimensão humana, e consequentemente, política e subjetiva. O que se perpetua dentro das instâncias legislativas é a legitimação do imaginário acerca da periculosidade e da irrecuperabilidade, veiculadas pela mídia e reafirmadas pela sociedade civil. Fato que não apenas fere o conceito de "pessoa em desenvolvimento" cunhado pelo ECA, como também dificulta a saída destes sujeitos do lugar de criminalidade. Para Rosário (2004), a produção da identidade se esgota com o ato infracional, ou seja, passa de identidade em construção para uma identidade plenamente constituída enquanto marginal. O sujeito é tido não mais como em desenvolvimento, mas, mediante o ato infracional, tem sua identidade colada ao significante do crime. Esta identidade cristalizada e estanque tem como uma das consequências a ação de imposição da internação deste sujeito identificado como criminoso.
Em análise da aplicação das medidas de internação nos Tribunais de Justiça, Minahim e Sposato (2011) verificaram que a imposição desta medida é fundamentada nas condições pessoais do adolescente, e não no ato infracional, utilizando-se de argumentos como desajuste social e moral, propensão à violência, oferta de risco para terceiros, desvio de personalidade e inadaptação ao meio, como justificativa de implementação da medida de internação, demonstrando uma visão estereotipada dos adolescentes acusados e sentenciados.
Mediante sujeitos privados de seus direitos e colados ao significante da criminalidade, as medidas aplicadas aos jovens que cometem atos infracionais se inserem não mais em seu caráter socioeducativo, mas carcerário. Trata-se não da reinserção política e social, mas deuma dupla exclusão social. Àqueles que, mediante a violência do Estado ao privá-los de seus direitos fundamentais respondem com o crime, priva-se agora da liberdade. As medidas socioeducativas acabam, então, por se colocarem como medidas disciplinatórias dos corpos, centrando-se no treinamento do comportamento, na obtenção de novos hábitos e na limitação dos corpos. O caráter punitivo das medidas efetua, assim, uma passagem do estado de sujeito de direito para o estado de objeto a ser disciplinado, e a liberdade se coloca como possível mediante a disciplinarizaçao dos corpos (Rosário, 2004).
A punição retira ainda a possibilidade de responsabilização do sujeito por seus atos, pois coloca o crime como inerente à identidade do sujeito, e não como um ato de escolha. Para Rosário (2004), é necessário considerar o adolescente infrator como sujeito inscrito em uma história, o que corresponde a colocá-lo em questão com o ato que o levou à internação. Para tal, é necessária uma aproximação que implique em uma escuta isenta de prescrições e de justificativas, que considere seu mundo, suas referências e seus valores. Quando esse adolescente é colocado em questão, torna-se o sujeito de sua história, adquirindo dimensão de responsabilidade por suas atitudes. Dessa forma, o adolescente infrator terá que responder pelo seu ato, produzindo sentido para suas escolhas (Rosário, 2004).
Análise dos Dados
Na análise que sucedeu à discussão dos textos acima reunidos, dois aspectos se destacaram: (1) o controle dos corpos a que o sistema socioeducativo pode se prestar, docilizando e "reciclando" o jovem para novo uso social; (2) a dificuldade da sociedade em assumir seus excessos, seus restos, como produtos pertinentes ao corpo social, posto denunciarem a lógica de seu sistema e o fracasso da tentativa de sua universalização.
Quanto ao primeiro aspecto, retomamos Foucault, em "Vigiar e Punir" (1975/2008) ao descrever como os saberes da norma entram no campo das práticas jurídicas a partir da preocupação em analisar a biografia dos corpos que foram classificados como delinquentes por meio de práticas de exame. Utilizar a história de vida pregressa ao ato infracional de um jovem como parte do julgamento implica pensar a punição não apenas como privação de liberdade, porém, também como transformação de personalidade e abandono de uma história marcada por desvios, por outra guiada pela obediência às normas.
Foucault (2008) marca o lugar das prisões nos processos de punição e dominação, em que o sistema carcerário é justificado por sua função disciplinatória dos corpos. Ao estabelecer como princípio a utilização da privação de liberdade enquanto meio de pagamento da dívida que o sujeito estabelece com a sociedade pelo cometimento de um delito, o sistema carcerário insere o uso do tempo enquanto variável que visa incidir de forma igualitária e universal, pois o tempo e a liberdade seriam variáveis que apresentariam o mesmo valor para todos e, portanto, a punição enquanto privação de liberdade caracterizar-se-ia enquanto um castigo igualitário.
Contudo, a funcionalidade da prisão não se coloca apenas nos processos punitivos que a esta compete, mas também aos processos de dominação e disciplinarização que o isolamento, pelo controle do tempo e do espaço, possibilita. A prisão, constituída de forma a exercer o máximo controle do outro, estabelece, por meio da disciplina, sua função reformatória e corretiva na produção de sujeitos dóceis e socialmente produtivos. Para Foucault, "o isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exerce sobre ele" (Foucault, 2008:200).
Dentre os dispositivos de punição inerentes ao sistema carcerário, exerce função também o dispositivo do trabalho. Segundo dados do Infopen (2014), o trabalho da pessoa privada de liberdade tem a finalidade educativa e produtiva, e que deve ser remunerado, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo. Entretanto, Foucault alerta que a função do trabalho nas prisões não é de ordem econômica, mas de ordem disciplinatória. O trabalho, pelo movimento que lhe é intrínseco, modela os corpos e insere uma lógica de comportamento que vai sendo internalizada pelos condenados, velando a hierarquia e a vigilância que se estabelece pela lógica prisional. O efeito econômico do trabalho se dá não por sua mais valia, mas pela transformação do condenado em um operário dócil moldado segundo as normas de uma sociedade, hoje, pós-industrial.
A utilização do trabalho penal? Não é um lucro, nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de um ajustamento a um aparelho de produção (Foucault, 2008:204).
Contudo, ainda que o trabalho se verifique enquanto uma forma de punição e de controle dos corpos, a Lei de Execução Penal (LEP) também aponta seu caráter de dever social e condição de dignidade humana, além de poder ser utilizado enquanto critério de remissão do tempo de execução da pena. Apesar disso, verifica-se que apenas 16% da população prisional brasileira trabalha (Infopen, 2014). Apesar das determinações legais, comprova-se que nem todos os estabelecimentos penais oferecem trabalho aos detentos, violando assim seus direitos e deveres. Há, portanto, uma subutilização desse direito e recurso processual no plano jurídico, e um sistema de dominação por ele próprio engendrado no plano político.
Ainda que a prisão, por seu caráter correcional, tenha se configurado enquanto um espaço de punição e disciplinarização dos corpos (Foucault, 2008), o que se verifica é não a aplicação de dispositivos disciplinares para um melhor controle da população carcerária3, mas um abandono desta população. O sistema carcerário não se coloca mais como espaço onde a ênfase é pela disciplinarização para a correção dos corpos, mas caracteriza-se enquantoespaço onde os sujeitos ali presentes perderam seu caráter humano. É o espaço não mais da disciplina, mas da plena violação de direitos, é o espaço da desumanização do outro.
O controle da população carcerária pela gestão de sua alimentação, saúde e condições de higiene, espaço físico, socialização, assistência jurídica e social, trabalho e educação passa a ser utilizado não mais apenas no sentido correcional, visando a reeducação e a ressocialização destes sujeitos de acordo com uma normatividade vigente, mas pela privação. A punição é colocada pela privação e indiferença às condições básicas tanto de sobrevivência quanto da própria dignidade humana.
Sobre a privação de liberdade, enquanto função de troca, atenta-se ainda ao poder dado ao sistema carcerário enquanto instância moduladora da pena. A duração da pena, estabelecida pelo sistema judicial de acordo com o ato infracional, passa a ser regulada pelo sistema prisional não de acordo com o ato em si, mas com o histórico do indivíduo enquanto submetido à penalidade. Dessa forma, a privação da liberdade tem sua função estabelecida não mais em relação ao ato, mas em relação à submissão do sujeito aos processos disciplinatórios.
Estaria o ECA também subsumido por essa lógica penalista e prisional? Não nos parece ser esse seu intento. Ao operar com nossos dispositivos socioeducativos, em contraposição aos antigos, retributivos; unidade de internação em lugar da prisão; medida em lugar de pena, o ECA visou, em sua origem, reintegrar o jovem sob o manto de um novo discurso. O que, então, nas denúncias reunidas no material aqui analisado se revela sob esse manto?
A disseminação do conceito de delinquência visa encobrir ainda outro tipo de criminalidade, a criminalidade própria à riqueza e a miséria social que lhe é inerente e que é tolerada pelas leis. Este aspecto político do problema não pode ser negado, em qual direção operar?
Verificamos na contemporaneidade a solidão de crianças e jovens de diferentes origens numa espécie de negligência que ora aloca esses sujeitos ao topo de um ideal, ora ao lócus de um objeto que sustenta a cadeia do controle e da gestão dos corpos. Esse enlace não se faz sem o jovem ou a criança, suas peças fundamentais. Analisemos sua lógica. De saída, o poder deve ser analisado pela periferia. Não se analisa o poder por sua intenção, por seu lado interno, mas por seu lado externo. Assim, formularmos a questão de maneira invertida: como se constituíram seus súditos, não seus soberanos! Como as vontades das periferias se uniram em torno de uma vontade única, soberana?
O que esse ciclo esconde é o fato de que, sob o manto da criança ideal, do ideal coletivo erigido em torno da potência da juventude, reside seu contrapeso, seu contraponto, seu fracasso, em relação ao qual, nossa civilização não sabe o que fazer. Inúmeros sistemas são reiteradamente criados e revistos para pensar e operar com esse resto social, da equação simbólica do bem comum, da felicidade a todo custo, do ideal. Padecem da mesma posição recorrente que localiza o jovem como objeto dejeto, rejeitado da cena pública por ocasião de seu ato infracional.
Não se encontra fórmula social que equacione presença da violência, da criminalidade, da pobreza, em tempos de avanço capitalista. Atende-se a uma demanda social implícita de ordem e limpeza da cena pública. Sobre esse tema, Lacan (1968), em conferência em Bordeaux, fala dos dois grandes problemas da humanidade: (1) a evacuação de seus excrementos, seus dejetos e (2) a pretensa redução da linguagem à comunicação. Nesses problemas, Lacan aponta para o embaraço de toda a sociedade em eliminar seu excesso e para a pretensão de toda sociedade em estabelecer um discurso de verdade, ignorando a função de exceção que toda língua comporta ao ser adotada por cada sujeito - e que ganha, com a psicanálise lacaniana a alcunha de lalíngua4.
Se entendemos que os jovens denominados infratores se colocam para a sociedade como elementos do real, do que, na experiência humana, não se reduz à linguagem, mas ultrapassa sua habilidade de significação, podemos pensar que eles dizem de um excesso que a sociedade não consegue significar, o dejeto que a própria sociedade produz e que não consegue eliminar. O problema da sociedade na evacuação de seu excedente se encontra exatamente em seu tratamento. Estes jovens, ao serem identificados como resto, como população supérflua, são desapropriados de seu caráter de sujeitos de direito e de desejo, em que, frente ao fracasso da tarefa educativa de adequá-los a um padrão social, as medidas sociais em relação a estes jovens encontram-se vinculadas apenas a tentativas de fazer desaparece-los. Os textos analisados, assim, ratificam um fato social de difícil equacionalização.
Conclusão
Este manuscrito visou apresentar e discutir o plano crítico de uma investigação mais ampla da bibliografia brasileira atual sobre o campo socioeducativo. De três planos identificados, aquele aqui discutido foi denominado pelos autores deste texto como políticoinstitucional. Através da análise de dezesseis artigos, que constituem avaliações de todo o processo de implementação das leis e de execução das medidas, ou seja, artigos que apresentam a dimensão de reflexão dos aspectos político-institucionais implicados nas medidas socioeducativas, foi possível isolar dois aspectos centrais à análise dos dados aqui desenvolvida: a função de docilização e isolamento dos corpos pelo enclausuramento e a dificuldade da sociedade em tratar do próprio resto que produz.
Entre os principais aspectos dos textos examinados, destacam-se: (1) o desencontro entre aquilo que é promulgado pela legislação, tendo seu representante o ECA, e seu cumprimento por parte do poder Executivo; (2) a manutenção do caráter repressor, violento e punitivo característico do Código de Menores - expondo os jovens o um ciclo reprodutor de violência - e a crescente demanda punitiva se que equaciona sob o imaginário da inimputabilidade; (3) a manutenção dos estereótipos discriminatórios, que associam criminalidade e pobreza e que ainda permanecem como ranço no novo sistema socioeducativo advindo com o ECA; (4) o controle dos corpos a que o sistema socioeducativo pode se prestar, docilizando e "reciclando" o jovem para uso social; (5) a dificuldade da sociedade em assumir seus excessos, seus restos, como produtos pertinentes ao corpo social, posto denunciarem a lógica de seu sistema e o fracasso da tentativa de sua universalização; (6) e finalmente, sobre a condição do crime como forma de afirmação da própria existência para estes jovens, apontamos para a necessidade de escuta e intervenções políticas com esses sujeitos, a fim de que, para além do caráter punitivo, seja possível responsabilizá-los por seus atos.
Podemos, assim, concluir que o ECA trata de um marco legal que, baseado na Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e da Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1979, fundamenta-se na defesa da ideia de que crianças e adolescentes são também sujeitos de direitos, pessoas em desenvolvimento e merecem acesso à cidadania e proteção. Através de seus pressupostos legislativos, foi possível priorizar os direitos da criança e do adolescente, minimizando processos de exclusão da sociedade e possibilitando a formação de cidadãos.
Contudo, o cumprimento da lei ainda é um desafio no Brasil, uma vez consideradas as características históricas que marcaram as ações de atenção à criança e ao adolescente no país e enfatizaram os aspectos repressivos, em detrimento da garantia de direitos básicos de cidadania para a população infanto-juvenil. O jogo polifônico de forças que se estabelece entre gestores e agentes do Estado, população civil, movimentos sociais, mídia, jovens e suas comunidades, evidencia o quanto a complexidade da função do sistema socioeducativo reflete uma lógica de dominação que atravessa os dispositivos disciplinares, mas se sustenta nos corpos ativos que a efetivam e realizam.
Ainda que o ECA explane um novo discurso em relação ao Código de Menores, que se desloca da repressão para a ressocialização, promovendo, com sua promulgação, uma vívida mudança na qualidade concreta da assistência e no respeito à condição do jovem, o que se verifica na execução das políticas públicas se traduz por uma vontade de poder que se manifesta pela eliminação, exclusão e controle dos corpos da população juvenil jovem. Assim, mesmo que a execução do Estatuto encontrasse novos meios de solidificar-se, restaria ainda a crítica a sua própria estrutura que, tal qual o poder de polícia, carece rever sua função de isolamento e adestramento.
O que é comum nessa indústria que se vai regulamentar por normas, leis, um mercado e zonas não comerciais é o desejo de produção de uma criança sem defeito algum - zero defeito, como para os carros. [...] Essa vontade de zero defeito implica uma proliferação enlouquecedora de controles e normas [...]. Esse processo de infinitização é uma das maiores razões da crise desse sistema de controle nos Estados de Direito (Laurent, 2013:40).
Conviver com esse paradoxo poderia implicar em uma posição derrotista de quem sempre está sob enquadramentos que a tudo visam normatizar. Porém, numa outra perspectiva, podemos localizar aí, no paradoxo, o ponto de suspensão que permite, do insolucionável, fazer avançar. É desse horizonte, diante da complexidade do tema, atravessado por todas essas contradições, e do avanço do ECA, como legislação inovadora a sua época, que não podemos deixar de nos perguntar sobre os efeitos do mal-estar que uma demanda excessiva de adequação social pode produzir. Parece-nos, por vezes, que a demanda que se inscreve no eixo família-escola-profissão é idealizada e nasce de uma experiência que pode ser muito comum para uma classe média adaptada, mas certamente não seria esta a realidade desses jovens. Tal desconexão entre os ideais normativos colocados pelas medidas e a realidade verificada na história de vida dos jovens desponta como ponto promissor de interrogação que a revisão teórica da bibliografia nacional e atual acerca das medidas socioeducativas nos oferta enquanto legado, servindo de bússola para novas experimentações e estratégias dentro da cena pública no atendimento ao adolescente em conflito com a lei.
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Recebido em 05/11/2014.
Revisado em 25/04/2015.
Aceito em 20/06/2015.
1 É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar a criança e o adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a consciência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão.
2 A disciplina, segundo Foucault (1975/2008), é a técnica que toma os indivíduos como objetos e instrumentos de seu exercício.
3 Não negamos aqui a caráter disciplinar da prisão, que se reflete, entre outros, no controle do tempo, dos espaços, dos meios de socialização e nos comportamentos dos detentos, buscamos apenas enfatizar o abandono destes sujeitos, destinados a um encarceramento compulsório que visa não a correção para reinserção, mas a pura exclusão na forma de isolamento.
4 Lalíngua se refere a um neologismo inventado por Lacan para dizer de um substrato sobre o qual se elabora a língua comum, possibilitando a relação do sujeito com o Outro e sua entrada na civilização. Utilizar-se de lalíngua refere-se a uma tomada de posição frente à língua, ou seja, de uma utilização e apreensão particular de um discurso pré-existente para nomear e falar de si.