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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.33 São Paulo ago. 2015

 

ARTIGOS

 

Ação direta do capital: o poder do capitalismo contemporâneo

 

Direct capital action: the power of contemporary capitalism

 

Acción directa del capital: el poder del capitalismo contemporáneo

 

L'action directe de capital : la puissance du capitalisme contemporain

 

 

Dennis de Oliveira

Doutor em ciências da comunicação pela Universidade de São Paulo, Brasil. Coordenador da Rede Latinoamericana Quilombação. É docente nos cursos de graduação em Jornalismo e de Pós-Graduação em Direitos Humanos e de Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. dennisol@usp.br

 

 


RESUMO

Este ensaio propõe o conceito de "ação direta do capital" como definição da nova configuração do poder no capitalismo contemporâneo. Esta nova configuração é resultante dos legados político-ideológicos da guerra fria, do modelo de acumulação de riquezas do capitalismo na era da produção flexível e das reconfigurações do Estado capitalista. A ação direta do capital se centra no tripé do monopólio das armas, do dinheiro e da voz e impõe à sociedade uma experiência de vivência centrada na hegemonia do consumismo.

Palavras-chave: Capitalismo Flexível e Política, Poder e Capitalismo, Estado e Capitalismo Contemporâneo.


ABSTRACT

This artcile proposes the concept of "direct action of capital" as a definition of the new configuration of power in contemporary capitalism. This new configuration is the result of political and ideological legacies of the Cold War, the wealth accumulation of capitalism in the era of flexible production and reconfiguration of the capitalist state model. The direct action of capital focuses on tripod monopoly of weapons, money and voice to society and imposes an experience of living centered hegemony of consumerism.

Keywords: Flexible Capitalism and Politics, Power and Capitalism, State and Contemporary Capitalism.


RESUMEN

En este artículo se propone el concepto de "acción directa del capital" como una definición de la nueva configuración del poder en el capitalismo contemporáneo. Esta nueva configuración es el resultado de los legados políticos e ideológicos de la guerra fría, la acumulación de riqueza del capitalismo en la era de la producción y la reconfiguración del modelo de Estado capitalista flexible. La acción directa del capital se concentra en el trípode monopolio de las armas, el dinero y la voz de la sociedad e impone la experiencia de vivir la hegemonía centrada del consumismo.

Palabras clave: Capitalismo Flexible y la Política, Poder y Capitalismo, Estado y Capitalismo Contemporáneo.


RÉSUMÉ

Cet article propose le concept de « l'action directe du capital » comme une définition de la nouvelle configuration du pouvoir dans le capitalisme contemporain. Cette nouvelle configuration est le résultat de l'héritage politique et idéologique de la guerre froide, du capitaliste modèle d'accumulation de richesse dans l'ère de la production et de reconfigurations de l'Etat capitaliste flexible. L'action directe de capital se concentre sur le monopole de trépied d'armes, de l'argent et de la voix et impose à la société une expérience de l'expérience axée sur l'hégémonie du consumérisme.

Mots clés: Le Capitalisme Flexible et Politique, Le Pouvoir et le Capitalisme, Le Capitalisme d'Etat et Contemporain.


 

 

Legados Políticos da Guerra Fria

Nas últimas décadas do século passado, o sistema de mundo bipolar construído após a II Guerra Mundial, com a confrontação do chamado bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos e o bloco "socialista", liderada pela extinta União Soviética termina com a vitória do primeiro. O marco simbólico deste final do mundo bipolar foi a queda do Muro de Berlim, em 1989.

As características da Guerra Fria ajudam a entender o seu desfecho e a construção do que se convencionou chamar de "nova ordem mundial". Para o pensador Noam Chomsky, a guerra fria não passou de uma retórica utilizada pelas duas superpotências com o objetivo dos poderes instituídos, cada um a sua maneira, manter uma ordem em que as nações mais ricas comandam o cenário internacional e, dentro de todas as nações, os mais ricos em cada uma delas comandam o cenário nacional.

Os homens ricos das sociedades ricas são os que dirigem o mundo, competindo entre si por uma maior porção de riquezas e poder e impiedosamente suprimindo aqueles que ficam em seu caminho, auxiliados pelos homens ricos das nações famintas que dão o seu lance. Os outros servem e sofrem. (Chomsky, 1996:16)

Para tanto, Chomsky considera que "a Guerra Fria forneceu pretextos e não razões" (Chomsky, 1996:91) mudando "a estrutura em que as políticas de longo alcance eram executadas." (Chomsky, 1996:91). Assim, Chomsky considera que não há uma mudança significativa na ordem mundial pós-guerra fria, uma vez que os interesses permanecem iguais, apenas e tão somente os pretextos e discursos de legitimação se modificam.

Na perspectiva econômica, o capitalismo pós-guerra se assentou sob a base do crescimento da indústria bélica. Chomsky afirma a este respeito que:

Os líderes empresariais reconheceram que os gastos sociais poderiam estimular a economia, mas muitos preferiram a alternativa militar keynessiana - por razões que têm a ver com o privilégio e o poder, não com a racionalidade econômica. Essa abordagem foi adotada rapidamente, a Guerra Fria servindo como justificativa. Em 1948, com a economia afundando na recessão, os 'gastos com a Guerra Fria de Truman foram vistos pela imprensa comercial como uma fórmula mágica para os bons tempos sem fim. (Chomsky, 1996:129)

A abordagem chomskyana aponta que os gastos militares não foram apenas produto de uma corrida armamentista dada por um conflito geopolítico, mas uma opção de crescimento econômico, de reprodução do capital. De forma mais profunda, ele afirma em seguida que:

O sistema do Pentágono foi considerado ideal para esses propósitos [reconstruir as sociedades capitalistas externamente e dispor a base para a expansão das corporações transnacionais norte-americanas]. Ele se estendeu para muito além do establishment militar, incorporando também o Departamento de Energia, que produz armas nucleares, e a agencia espacial NASA convertida pela administração Kennedy em um componente importante do subsídio público direcionado pelo Estado à indústria avançada. Esses arranjos impõem ao público um grande encargo sobre os custos da indústria (pesquisa e desenvolvimento) e fornecem um mercado garantido para o excesso de produção, um amortecedor útil para as decisões de gerenciamento. Além disso, esta forma de política industrial não tem os efeitos colaterais indesejáveis dos gastos sociais direcionados às necessidades humanas. (Chomsky, 1996:130)

Chomsky considera que uma política econômica centrada na redistribuição de renda, embora tecnicamente pudesse ser interessante para alavancar o crescimento do capitalismo a medida que constrói um mercado consumidor potente e estável, traria problemas por que "as políticas posteriores (a medidas redistributivas) tendem a interferir nas prerrogativas de gerenciamento", como por exemplo, regulamentações das relações de trabalho e do próprio mercado. Além disto, gastos sociais, segundo Chomsky, podem "suscitar o interesse público e a participação, acentuando desta forma a ameaça à democracia; o público se preocupa com hospitais, estradas, vizinhança, mas não tem nenhuma opinião acerca da escolha de mísseis ou de tecnologia nuclear" (Chomsky, 1996:130).

Por estas razões, a preferência pelos investimentos na indústria bélica não decorrem de uma "deformação" moral ou ética, mas sim de uma opção política calculada tanto em termos econômicos (expansão do capital) como políticos (contenção das demandas das classes subalternas).

Nesta conjuntura, destaca-se como se deram as relações entre o centro e a periferia do sistema capitalista global para que se compreendam os dilemas que o continente latinoamericano passou e passa atualmente.

Em sua obra "Era dos Extremos", Eric Hobsbawm (1995) mostra como o mundo se organizou após as duas guerras mundiais. Segundo ele, as duas guerras entre 1914 e 1945 marcam o início do que ele chama "breve século XX" que se caracteriza pela decadência dos grandes impérios europeus do século XIX e a constituição de um equilíbrio "instável" entre o bloco liderado pelos EUA e pela União Soviética. Mas para além da questão da bipolaridade do mundo, Hobsbawm apresenta outras questões importantes que têm reflexos na configuração do mundo hoje.

A primeira ordem de coisas é relativa ao que resultou da Guerra Fria. Este conflito geopolítico que opôs as duas grandes superpotências marcou o debate ideológico do período, fazendo com que as superpotências líderes investissem pesado nas suas estratégias políticas de manutenção das suas áreas de influência. Deste conflito, Hobsbawm (1995) apresenta as seguintes consequências: primeiro, a eliminação dos conflitos entre as potências europeias que eram marcantes antes das guerras mundiais e são dirimidos devido à filiação delas a um dos lados (o norte-americano ou o soviético). Hobsbawm afirma que:

Poucos no Ocidente se preocuparam seriamente com o sensacional retorno a status de grande potência da Alemanha e Japão, armados, embora não com artefatos nucleares, uma vez que os dois eram aliados subordinados da aliança americana. Mesmo a URSS e aliados, embora denunciassem o perigo alemão, do qual tinham amarga experiência, o faziam mais por propaganda do que por medo de fato. O que Moscou temia não eram as Forças Armadas alemãs, mas os mísseis da OTAN em solo alemão. (Hobsbawm, 1995:248-249)

Assim, antigas divergências foram mascaradas e unificadas sob o conflito geopolítico central "capitalismo versus comunismo". A filiação a um ou outro bloco unificava as diferentes nações e diferentes povos "por cima". Os conflitos ficaram obliterados pela bipolaridade.

A segunda consequência apontada por Hobsbawm da Guerra Fria foi o "congelamento" da situação internacional de forma que eventuais mudanças de alianças de blocos eram combatidas com vigor pelas superpotências, como as ações dos EUA em Cuba e em países da América Latina ou o envio de tropas por parte da URSS à Tchecoslováquia.

A terceira consequência foi encher o mundo de armas. Para Hobsbawm:

Era o resultado natural de quarenta anos de competição constante entre grandes Estados industriais para armar-se com vistas a uma guerra que podia estourar a qualquer momento; quarenta anos de competição das superpotências para fazer amigos e influenciar pessoas distribuindo armas por todo o globo, para não falar de guerras de baixa intensidade com ocasionais irrupções de grande conflito. (Hobsbawm, 1995:250)

Esta disseminação do armamento pelo mundo afora é o encontro dos interesses geopolíticos com a alavanca de desenvolvimento econômico no pós-guerra já demonstrado anteriormente por Chomsky.

A segunda ordem de coisas que ficaram da ordem mundial pós-guerra é o surgimento de novos Estados nacionais com a emancipação política das antigas colônias dos impérios europeus, principalmente na África e na Ásia. Além destes novos estados nacionais, Hobsbawm destaca o fato de que o crescimento demográfico nestas nações era superior ao dos países da Europa e EUA.

O número de Estados internacionalmente reconhecidos como independentes na Ásia quintuplicou. Na África, onde havia um em 1939, agora eram cerca de cinquenta. Mesmo nas Américas, onde a descolonização do início do século XIX deixara atrás umas vinte repúblicas latinas, a de então acrescentou mais uma dúzia. Contudo, o importante nelas não era o seu número, mas seu enorme e crescente peso demográfico e a pressão que representavam coletivamente. (Hobsbawm, 1995:337)

O surgimento destes novos Estados colocava para as elites políticas locais o dilema de como eles deveriam ser formatados. Muitos deles simplesmente adotaram sistemas políticos derivados dos antigos senhores imperiais, outros, em função de serem produtos de revoluções sociais, adotaram o modelo do Estado soviético. Estas formatações indicavam a que blocos mais novos Estados gostariam de se filiar.

Entretanto, o crescimento demográfico e a necessidade de se afirmar internacionalmente colocava para as elites políticas destes novos Estados o desafio de se implementar políticas de desenvolvimento. E a condução destes projetos desenvolvimentistas foi realizado, a princípio, de forma centralizada e fortemente controlada por grupos militares que, na ausência de uma elite capitalista fortalecida ou mesmo de instituições burocráticas sólidas que permitissem tais nações entrarem no jogo do capitalismo mundial, ocuparam os espaços de liderança política e econômica.

As condições para a intervenção militar no Terceiro Mundo eram muito mais convidativas, sobretudo nos novos, fracos e muitas vezes minúsculos Estados onde umas poucas centenas de homens armados, reforçados ou às vezes até substituídos por estrangeiros, podiam ter peso decisivo e onde era provável que governos inexperientes ou incompetentes produzissem recorrentes estados de caos, corrupção e confusão. (Hobsbawm, 1995:342)

Para Hobsbawm, a inspiração dos modelos desenvolvimentistas tocado por governos militares era a experiência da URSS que, saída bastante fragilizada da primeira guerra mundial e cercada na construção do seu projeto "socialista", viu-se obrigada, primeiramente, a implementar uma verdadeira economia de guerra na primeira fase da revolução bolchevique e, posteriormente, implantar um modelo de "capitalismo de estado" com a Nova Política Econômica, de 1921.

Quando ficou claro que a Rússia ia ser por algum tempo, que certamente não seria curto, o único país onde a revolução proletária triunfara, a política lógica, na verdade a única convincente para os bolcheviques, era transformar sua economia e sua sociedade atrasadas em avançadas o mais breve possível. [...] O comunismo soviético passou então a ser um programa voltado para a transformação de países atrasados em países avançados. Essa concentração de crescimento econômico ultra-rápido não deixava de ter apelo mesmo no mundo capitalista desenvolvido na sua era de catástrofe, desesperadamente em busca de uma maneira de recuperar seu dinamismo econômico. Era ainda mais diretamente relevante para os problemas do mundo fora da Europa Ocidental e América do Norte, a maior parte do qual podia reconhecer sua própria imagem no atraso agrário da Rússia soviética. A receita soviética de desenvolvimento econômico - planejamento econômico estatal centralizado, voltado para a construção ultra-rápida das indústrias básicas e infraestrutura essencial a uma sociedade industrial moderna - parecia feita para eles. Moscou não era apenas um modelo mais atraente que Detroit ou Manchester porque enfrentava o imperialismo [americano]: ao mesmo tempo, parecia um modelo mais adequado sobretudo para países sem capital privado nem um grande corpo de indústria privada com fins lucrativos. O 'socialismo', nesse sentido, inspirou vários dos países recém-independentes após a Segunda Guerra Mundial cujos governos rejeitavam o sistema econômico comunista. (Hobsbawm, 1995:367)

Chomsky afirma que a Guerra Fria escondia, na prática, as relações desequilibradas e de verdadeiro colonialismo entre as potências e as nações da periferia. Por isto, ao invés de se pensar este período apenas na lógica do conflito Leste-Oeste, as assimetrias de poder se assentam nas relações Norte-Sul. Para o pensador estadunidense, a lógica do conflito Norte/Sul tem como pressupostos:

Primeiramente, o nacionalismo independente ("ultranacionalismo", "nacionalismo econômico", "nacionalismo radical") é inaceitável, qualquer que seja a sua coloração política. A função do Terceiro Mundo é fornecer serviços para os ricos, oferecendo trabalho barato, recursos, mercado, oportunidades para investimento e (ultimamente) exportação de poluição, juntamente com outras mercadorias (refúgios para lavagem de dinheiro das drogas e outras operações financeiras irregulares, turismo, etc). Em segundo lugar, o "ultranacionalismo" que parece ter sucesso em termos que podem ser significativos para os povos pobres em todos os lugares, é ainda um crime mais hediondo; o réu é denominado um vírus que pode espalhar a infecção por todos os lugares, uma maçã podre que pode estragar o barril, como o Guatemala de Arbenz; o Chile de Allende, a Nicarágua sandinista e muitos outros. (Chomsky, 1996:99)

O quadro abaixo sintetiza as heranças deixadas pela ordem mundial do período da Guerra Fria e sinaliza para os conflitos seguintes no chamado período da globalização com as devidas ressignificações.

 

 

A globalização

A vitória do bloco estadunidense deu um contorno próprio ao fenômeno que se chamou de globalização. Esta pode ser definida como um processo civilizatório marcado pela universalização de três paradigmas:

a) a economia de mercado;

b) a democracia liberal;

c) a liberalização e desregulamentação dos fluxos de capitais.

Este processo civilizatório conformou um modelo de mundo "conectado" garantido pelo extraordinário desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. As infovias garantiram tanto uma possibilidade de irradiação ideológica deste processo civilizatório como nunca visto antes na história da humanidade, como também possibilidades novas para a expansão do capital tanto na indústria da cultura e da mídia, e ainda na organização das novas estruturas produtivas que se configuraram como uma linha de montagem global.

Este processo civilizatório significou também um momento de avalanche ideológica conservadora sem precedentes. Os projetos utópicos foram colocados em xeque, principalmente com a ideia de fim das "grandes narrativas" e "crise dos paradigmas". Alguns conceitos como o de pós-modernidade foram apropriados como qualificativos ideológicos no sentido de serem sustentadores da ideia de uma era do fim dos projetos, da emergência do "homem astuto" em lugar do "homem planejador".

Contraditoriamente, o processo civilizatório da globalização neoliberal fez emergir novos conflitos, principalmente no campo das perspectivas culturais e identitárias. O fundo desta contradição é de origem social embora seja transmitida como de "conflito de civilizações", próximo a ideia do pensador ultradireitista Samuel Huttington (2009).

A guerra das civilizações profetizada pelo ideólogo estadunidense serve como justificativa para a manutenção da poderosa indústria bélica da única superpotência do planeta. No nível macro, o projeto geopolítico das grandes potências capitalistas vai ao sentido de dissuadir pela via das ameaças bélicas qualquer projeto soberano que emerge de nações do chamado Terceiro Mundo. A justificativa ideológica é sempre o desrespeito a qualquer dos valores presentes no tripé do modelo da globalização neoliberal: ou a não existência de um sistema de democracia liberal clássico (por isto, os inimigos são sempre chamados de "ditadores", "autoritários", "opressores") e, contrariamente, os que são autoritários, opressores e ditadores, mas amigos do império têm sua existência justificada pelo papel que desempenham na sustentação do modelo econômico hegemônico (como o caso das monarquias autocráticas do Oriente Médio, caso da Arábia Saudita e do Kuwait).

O poder global contemporâneo é sustentado por um tripé de monopólios: o monopólio do dinheiro, o monopólio das armas e o monopólio da voz (mídia).

Ideologicamente, o sistema de comunicação de massa ocupa um papel central. Primeiro, é ele que faz a ponte e constrói este cenário mundial - o mundo, hoje, é acessível pelas disponibilidades de acesso às informações via o sistema de comunicação. Segundo, porque a comunicação se transformou no principal "intelectual orgânico" deste processo de globalização neoliberal, conforme afirma Octávio Ianni (2001). E, terceiro, que a própria indústria da comunicação e da cultura se transformaram na mais recente fronteira de expansão e reprodução do capital, sendo ela própria, um "grande negócio".

As heranças do período da Guerra Fria, discutidas no tópico anterior, deram os contornos da forma que se organizou o mundo nesta globalização. A primeira coisa que efervesceu foi a explicitação de conflitos internos mascarados pelo "grande conflito geopolítico mundial" que era a Guerra Fria. Estes conflitos internos explicitaram as intolerâncias étnico-culturais, as divisões internas de grupos entre outros.

As preocupações com o problema das intolerâncias étnico-culturais contribuiu para um deslocamento dos conflitos do campo ideológico para o das "diferenças culturais", surgindo, principalmente nos EUA, o que se convencionou chamar de "esquerda cultural". No campo acadêmico, alguns pensadores passaram a tratar o problema das diferenciações culturais como elemento chave para refletir sobre os conflitos contemporâneos. O pensador português Boaventura Sousa Santos propôs a chamada "hermenêutica diatópica" como uma metodologia de compreensão e pactuação que articula o direito à diferença e o respeito à dignidade humana (Santos, 1997).

Este debate chegou ao âmbito das Nações Unidas, com a aprovação na Unesco da Convenção de Proteção à Diversidade Cultural, em 2005 e a publicação do Relatório "Investir no Diálogo Intercultural", em 2009.

Estas ações da Unesco mobilizaram pensadores de vários países, a convenção foi assinada por pouco mais de 100 Estados (os EUA não assinaram) e trouxe um novo conflito para a arena geopolítica: o tratamento dos bens culturais como commodities e, portanto, com sua circulação regulada pelos pactos comerciais da OMC (Organização Mundial do Comércio) ou como patrimônios sujeitos, portanto, a políticas regulatórias soberanas dos países. O debate ganha contornos importantes principalmente porque atinge os interesses de um dos pilares de sustentação da nova ordem global, que é a indústria cultural e midiática.

O Relatório de 2009 da Unesco constata que os contatos interculturais acontecem objetivamente independente da nossa vontade, em função de um capital que se globaliza rapidamente e que, na expansão de novos mercados e fronteiras, depara-se com experiências culturais distintas. Além disto, o fluxo global de informações que cresce em função do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação conecta o mundo todo e explicita as diferenças culturais.

Diante disto, o Relatório da Unesco defende que os vetores por onde podem fluir os diálogos interculturais são a educação, a língua, a economia e a comunicação. Esta perspectiva da "esquerda cultural" é criticada por Bauman, quando afirma que:

A nova indiferença à diferença apresenta-se, em teoria, como uma aprovação do "pluralismo cultural". A prática política constituída e apoiada por esta teoria é definida pelo termo multiculturalismo. Ela é, aparentemente, inspirada pelo postulado da tolerância liberal e do apoio aos direitos das comunidades à independência e à aceitação pública das identidades que escolheram (ou herdaram). Na realidade, contudo, o multiculturalismo age como uma força socialmente conservadora. Seu empreendimento é a transformação da desigualdade social, fenômeno cuja aprovação geral é altamente improvável, sob o disfarce da diversidade cultural, ou seja, um fenômeno merecedor do respeito universal e do cultivo cuidadoso. Com esse artifício linguístico, a feiura moral da pobreza se transforma magicamente, como um toque de varinha de condão, no apelo estético da diversidade cultural. (Bauman, 2013:46)

Neste debate, há diferentes conceituações de cultura. Nos EUA, a chamada esquerda multicultural surge em oposição a uma direita fundamentalista em que prega que o conflito atual é a Guerra de Civilizações (Samuel Huttington). O Relatório da Unesco cita a obra de Huttington e faz uma crítica de caráter conceitual, ao afirmar que o erro dela reside no fato de que considera as culturas como entes fechados, autóctones e que, portanto, não são permeáveis a qualquer tipo de diálogo.

Bauman (2013), porém, chama a atenção para um aspecto importante que é a transformação de todos os conflitos atuais em dilemas culturais, o que traz o debate político para uma polêmica, a seu ver incorreta, de mono ou multiculturalismo, de unicidade ou diversidade cultural. Retomando as heranças do período da Guerra Fria, o que ficou foi uma assimetria interna e externa no mundo causada não por diferenças étnicas (embora elas possam a ser a expressão mais dinâmica disto e funcionam como arcabouços ideológicos de legitimação das desigualdades) mas por uma brutal concentração de poder e recursos.

Os projetos nacional-desenvolvimentistas, identificados com a "esquerda socialista" do Terceiro Mundo, no período da Guerra Fria, são substituídos por formas distintas de inserção na nova ordem global. Os Estados nacionais destes países se enfraquecem e as elites autocráticas, algumas delas identificadas com estes projetos desenvolvimentistas, ou se rendem a esta nova lógica de articulação com as forças de poder globais ou perdem espaço.

Assim, nos períodos iniciais do mundo pós-Guerra Fria, a avalanche ideológica conservadora pasteurizou de tal forma o debate político que as antigas divisões ideológicas direita/esquerda ficaram fragilizadas. Várias nações da América Latina se democratizaram, após anos de vigência de ditaduras militares, mas as esferas públicas recém-constituídas foram tomadas por esta configuração cinzenta do debate político-ideológico.

Tudo isto fruto de um deslocamento dos fluxos de poder para instituições herdadas do período anterior, mas fora das estruturas normativas do Estado-nação. É, assim, que se percebe a edificação do novo tripé do poder centrado nos monopólios do dinheiro, das armas e da indústria midiático-cultural.

 

A Ação Direta do Capital

Zygmunt Bauman caracteriza o momento atual como a fase da "modernidade líquida". Segundo ele, a modernidade líquida pode ser definida pelas seguintes características:

Organizações sociais não podem mais manter sua forma por muito tempo pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que para moldá-las;

Separação e divórcio entre Poder e Política;

Retração da segurança comunal garantida pelo Estado;

Colapso do pensamento e do planejamento a longo prazo;

Responsabilização do indivíduo.

Estes processos apontados por Bauman obrigam a redefinição dos elementos constantes nos enquadramentos institucionais, principalmente no que tange a evanescência das organizações sociais. A aparente "tolerância" no campo político a transgressão de determinadas normas sociais é resultante tanto de uma incorporação sistêmica das demandas do movimento contracultural dos anos 1960 como também o esvaziamento do seu conteúdo de conflito de posições. Por isto, determinadas bandeiras - principalmente as referentes a comportamentos tidos como "desviantes" dos padrões morais - são ressignificadas como práticas possíveis dissociadas de um viés político.

Um problema decorrente disto é que normas sociais mais fluídas dificultam relações baseadas nas expectativas de comportamentos. Intensificam o que Bauman chama de "estranhamentos". Também problematizam as internalizações de papéis.

É por esta razão que esta liquefação de que fala Bauman tem como resultado uma fragilização das relações humanas a medida que os sujeitos são atravessados por uma gama maior de possibilidades de ação - deslocando-o de uma perspectiva autocentrada e linear - e gerando temores quanto as incertezas nas relações com outros sujeitos.

Estes temores da incerteza levam tanto a uma tipologia de relações marcadas pela descartabilidade (o "aqui-agora") e/ou pela metáfora da conexão (expressa, principalmente, pelas possibilidades de contato pessoal disponíveis pelas tecnologias de informação). As conectividades permitem - ao contrário das relações contratuais - performances pontuais expressas por sujeitos esquizoides. Os papéis são construídos, assim, não por mecanismos de internalização marcados por um enquadramento macroinstitucional, mas sim por desejos expressos pontualmente.

No filme "Todas as cores do amor!" (Goldfish memory, de Elizabeth Grill, 2003), os temores das incertezas de uma relação que implica contratos com expectativa de longo prazo são expressos pela excessiva mobilidade e instabilidade de vontades e de desejos de parceiros, até mesmo na variação das orientações sexuais. Uma frase de duas personagens lésbicas traduz este pensamento: "Você topa ser minha namorada fixa por uma semana com possibilidade de renovarmos por mais uma semana?" A tese de um dos personagens, um professor universitário conquistador, é que a memória dos peixinhos dourados de um aquário tem duração de apenas três segundos: a cada volta no aquário quando ele re-encontra sua parceira(o) é como se fosse uma pessoa nova.

As subjetividades que emergem deste processo são, assim, fragmentadas, temerosas, descartáveis, esquizoides e tendentes a não relação com o outro. O estranhamento deixa de ser algo distante - tanto espacial, como temporalmente - para se tornar um fantasma que ronda o espaço relacional.

O medo da incerteza é refletido por Bauman quando faz uma releitura da obra clássica de Freud (2011), O mal-estar da civilização. Nesta obra, Freud fala do dilema humano entre a certeza da segurança e a incerteza da liberdade que Bauman afirma ter sido solucionado com a privatização da liberdade. A incerteza é, então, afastada do domínio da liberdade a medida que esta é exercida não a partir da busca de um espaço para a sua manifestação pública, mas sim da retração da sua expressão na segurança do domínio privado e de suas conexões.

Esta situação leva a, também se referindo a Freud, o que Marilena Chauí chama de "infantilização da sociedade". Para ela, a transformação dos desejos em impulsos fortalecidos pela sociedade de consumo, via os meios de comunicação de massa, faz desaparecer a diferença temporal entre o desejo e a sua satisfação - definição freudiana de infantilidade. Assim, querer ter passa a ter o mesmo significado de ter, perdendo-se a referência das ações necessárias - com as devidas consequências - para a satisfação deste desejo. A ideia de trabalho, no sentido de uma ação construtora e potencialmente viabilizadora de satisfação de desejos, perde sentido.

Uma sociedade marcada pelo esvaziamento e fragilidade das relações e seu deslocamento para as conexões descartáveis, pela emergência de performances esquizóides e pela infantilização praticamente destrói qualquer possibilidade de emergência de uma esfera pública, ainda que mediada por uma racionalidade instrumental. Entretanto, esta permanece existindo, mas não mais como um arcabouço legitimador da esfera pública. Ela é totalmente deslocada e fica confinada para o domínio dos sistemas de ação racional e teleológica na esfera privada do capital e, por esta razão, há também um deslocamento do poder que deixa a esfera política.

A separação e o iminente divórcio entre poder e política de que fala Bauman é percebido empiricamente com o poder decisório, até em termos mundiais, dos grandes conglomerados transnacionais. Os faturamentos de vários destes conglomerados superam, e muito, os PIBs (Produtos Internos Brutos, medida de riqueza de uma nação) de muitos países. Mais que isto, a concentração de riquezas e o enfraquecimento das estruturas políticas praticamente colocam determinados Estados nacionais como reféns das estruturas decisórias destes grandes conglomerados.

Este poder decisório não se restringe apenas à política. Os problemas sociais decorrentes deste sistema são deslocados de uma perspectiva de direitos não atendidos para "carências". Os segmentos sociais atingidos por estas "carências" tornam-se potenciais atendidos por projetos de assistência social e não cidadãos com direitos desrespeitados. Há, desta forma, um deslocamento deste campo de debates da esfera política para a esfera privada.

Na esfera política, a ideia de direitos não atendidos gera os conflitos políticos cujos protagonistas são os movimentos sociais, entendidos estes como sujeitos coletivos formados para a busca de mudanças e transformações no contrato social - portanto, a esfera do dissenso. Na esfera privada, a ideia de carências gera a demanda por projetos pontuais de atendimento cujos protagonistas são organizações privadas - não na sua caracterização institucional necessariamente, mas sobretudo na sua perspectiva organizacional - na qual os elementos constantes da dimensão de um sistema de ação racional com determinadas finalidades. Assim, o problema sai de uma possibilidade de reflexão crítica e intervenção transformadora para uma ação eficiente e resolutiva.

Com tudo isto, consolida-se o que se pode chamar de uma ação direta do capital, isto é, o esvaziamento das estruturas de intermediação e legitimação do poder do capital perante a sociedade. Reserva ao Estado o poder único da repressão física ou da reserva da repressão em casos de ameaça.

A ideia de "ação direta" vem da ideologia do anarcossindicalismo que previa que a classe operária prescindia de organizações mediadoras e poderia agir autonomamente contra o capital por meio de ações insurrecionais. A teoria da ação direta, segundo William Mellor (1970), pode ser definida como o uso de algumas formas de poder econômico para garantir os objetivos pretendidos. Na proposta do ativismo de inspiração anarquista, a ação direta se compõe de métodos imediatos com a finalidade de produzir mudanças ou impedir práticas indesejáveis. A ação direta tem como uma de suas principais características o imediatismo que significa a negação da mediação, por isto as lutas operárias de inspiração anarquista se desenvolviam única e exclusivamente por ações como greves, passeatas, boicotes, insurreições e não por ações dentro do espaço político-institucional.

O conceito que aqui se propõe de ação direta do capital tem uma proximidade discursiva com a proposta anarquista, de crítica e negação do Estado, mas se distancia para outra ponta a medida que propõe a total desintermediação e desregulação nas ações do capital. Não se trata apenas e tão somente do projeto do "Estado mínimo", embora este o componha, mas de uma privatização radical de todas as esferas da vida. Tal perspectiva se expressa ideologicamente no discurso midiático por meio da deslegitimação das instituições de Estado, de uma crítica de caráter moral da política e da oposição qualitativa entre a eficiência da "sociedade civil" e ineficiência da "sociedade política".

Estes conceitos, presentes no pensamento de Gramsci, são transfigurações. Gramsci considera que sociedade civil e sociedade política são apenas dimensões distintas de operação do poder capitalista e não estruturas antitéticas, tanto é que chama a sociedade civil de "Estado ampliado" e sociedade política de "Estado stricto-sensu". Percebe-se, assim, que o discurso hegemônico do capitalismo contemporâneo ressignifica conceitos revolucionários, como a ação direta (dos anarquistas) e de sociedade civil (da tradição marxista gramsciana) dentro de outros parâmetros1.

A realpolitik se transforma em mero jogo cênico nem tanto para ser apenas um processo de referendo de situações já consolidadas pela razão instrumental como afirma Habermas (1987) mas, em uma performance de debate político no qual interesses privados se escondem de um palavrório com pouca substância.

É por esta razão que o processo civilizatório da globalização neoliberal combina uma concentração brutal de poderes com a consolidação de um modelo de democracia liberal. A necessidade de regimes repressivos fisicamente para a imposição desta nova ordem mundial é relativa. Ela pode fluir tranquilamente por dentro de mecanismos aparentemente liberais e democráticos. Isto porque ele implica na destruição da esfera pública.

A revista The Economist publicou em setembro de 2011 uma reportagem especial sobre o futuro do emprego no mundo capitalista. Mathew Bishop, em um dos artigos da reportagem, constata que a globalização atingiu em cheio os empregos do setor manufatureiro nas economias ricas, em função das indústrias transferirem parcelas significativas da linha de produção para os países da periferia, onde há uma mão de obra em maior abundância e mais barata. Ficaram concentradas nos países centrais as atividades administrativas e de cunho de planejamento e direção, que exigem um melhor preparo intelectual.

Entretanto, Bishop observa que já há também um deslocamento de parte das atividades de cunho administrativo para os países periféricos por meio de um processo de terceirização mais agressivo.

Para entender por que essas mudanças são tão excitantes para algumas pessoas e tão assustadoras para outras, um bom lugar para começar é a seção oConny do site oDesk, um dos vários vibrantes mercados on line para trabalhadores free lance. Em julho deste ano, cerca de 250 mil empresas contrataram em torno de 1,3 milhão de autônomos registrados que oferecem seus serviços lá para, aproximadamente, 1,8 milhão de horas de trabalho, quase que o dobro que no ano anterior. O oDesk, fundado no Vale do Silício em 2003 mudou o jogo, diz Gary Swart, executivo-chefe. Seu site leva a terceirização, adotada amplamente pelas grandes empresas na última década, para o nível do trabalhador individual. De acordo com Swart, esta mão de obra como serviço satisfaz tanto os empregadores, que dispõem de trabalhadores de reserva sempre que necessário, como os empregados que ganham dinheiro sem todos os inconvenientes de trabalhar para uma grande empresa ou até mesmo sem ter de sair de casa. (The Economist, 2011 - T. do A.)

Efetivamente, o impacto que esta organização da produção tem é grande em termos de percepção grupal e até mesmo como pertencimento de classe. Fragmentado, isolado e colocado dentro de uma situação em que se oferece - ou se vende - para obter trabalho, dentro de uma lógica de concorrência acirrada, as estruturas de solidariedade e de pertencimento de classe social se evanescem. A fragmentação da ocupação faz com que este sujeito-trabalhador volte a si próprio e quando colocado dentro de um circuito de produção transnacional, até mesmo a sua percepção identitária nacional sofre impactos.

O jogo colocado em termos de mercado profissional chega ao nível de uma disputa cruel, em que o colega é visto como potencial inimigo. Com a tendência à desregulação e o esvaziamento do espaço público, consolida-se a transfiguração da sociedade em mercado, como afirma Otávio Ianni, porém, além do que ele afirma de que o cidadão se transforma em consumidor, percebe-se também uma transfiguração do sujeito em mercadoria - fetichizada na perspectiva teórica apontada por Marx.

O sujeito-mercadoria-fetiche passa a desenvolver estratégias de conexão e de representação perante um espaço coletivo em que a lógica do mercado impera e que as estruturas de solidariedade coletiva se enfraquecem. Fechado em si próprio e diante da responsabilização individual dos problemas, há um deslocamento da contradição heteronomia/autonomia para a autarquização do indivíduo.

A busca pela autonomia do sujeito é parte das discussões pós-período Iluminista, da passagem de uma humanidade teocêntrica para antropocêntrica. A razão esclarecedora, a medida que possibilita ao ser humano poder desvendar a realidade sem a necessidade de recorrer a explicações divinas ou extra-naturais, garantiria esta autonomia. Adorno e Horkheimer discordaram desta utopia iluminista com a demonstração de que uma razão colonizada pelo capitalismo e dissociada de uma ética - a razão instrumental - ao contrário de garantir a emancipação, aperfeiçoa os mecanismos de opressão2.

Entretanto, o que se observa atualmente não é mais o dilema autonomia/heteronomia. A transfiguração dos espaços de relações humanas implementou um ser humano autárquico, fechado em si mesmo e que se apresenta socialmente na mesma perspectiva de uma mercadoria fetichizada e que se expressa não mais racionalmente (ainda que em uma razão instrumental) mas sim sedutoramente. É por esta razão que a proliferação da chamada "autoajuda" se direciona para a forma de representação destes sujeitos e se aproximam cada vez mais do chamado marketing pessoal.

Desta forma, os seres humanos se autarquizam e se expressam publicamente por meio de representações imagéticas que ganham autonomia perante as referências, na mesma perspectiva que Jean Baudrillard chama de simulacros. A este respeito, Marilena Chauí afirma o seguinte:

Simulacrum é uma palavra latina que vem de similis, que significa o semelhante. De similis vêm as palavras simul, fazer junto, mas também competir, rivalizar, e similitudo, semelhante, analogia, comparação. De similis vem o verbo simulare, que significa representar exatamente, copiar, tomar a aparência de; este último significado leva o verbo a significar também fingir, simular. Ou seja, simulacrum tanto pode significar uma representação ou cópia exata como um fingimento, uma simulação (Chaui, 2006:82).

O simulacro não é apenas uma representação, mas se legitima pela sua iconicidade e a relação com o referente é mimética. Por mimese, entendem-se as experiências estéticas catárticas e alienantes centradas apenas na imitação ou repetição, limitando ou negando as possibilidades criativas (Landowsky, 1997).

Diante disto, o simulacro vira uma reserva estratégica que potencializa a ação humana autárquica em um espaço coletivo marcado pela conexão e pela emergência das sensibilidades.

As configurações dos espaços urbanos das grandes metrópoles são produtos desta nova tipologia de ser humano que emerge - e não o contrário como alguns supõem, de que esta configuração urbana que cria tais sujeitos. O isolamento na vida cotidiana e a transformação dos espaços privados da casa em lugares de trabalho e de construção das estratégias de expressão são produtos disto.

No tocante aos meios de comunicação de massa, é notável o papel cada vez maior que vem ocupando os programas de entretenimento, de shows e outros, bem mais que os produtos voltados para a informação jornalística. Em todo o mundo, nos últimos anos há uma queda significativa em termos relativos do consumo de produtos noticiosos, ao mesmo passo em que há um crescimento da absorção de produtos midiáticos. Não é a informação jornalística que coloniza a esfera pública hoje, mas o discurso midiático nas vertentes do show, do espetáculo, da publicidade, discursos estes que se legitimam socialmente pela sedução. Mesmo os produtos aparentemente noticiosos são contaminados por esta nova forma de discurso hegemônico. Não há mais persuasão e sim sedução.

Este cenário acontece, porém, dentro de um sistema de produção e consumo que se sustenta por mecanismos de exclusão. A brutal concentração de riquezas, consequência deste paradigma de produção e consumo, é visível per si e também pelo fato das riquezas concentradas manifestarem-se publicamente pela midiatização da sociedade.

Bauman lembra o mito grego de Tântalo, em que um mortal descobre um segredo dos deuses do Olimpo e o dissemina entre os seres humanos. Irado com isto, os deuses do Olimpo castigam Tântalo da seguinte forma: amarram-no em um lago com água até o umbigo e com uma árvore com frutas na altura da sua cabeça. Quando Tântalo tem fome e tenta alcançar os frutos da árvore, um vento balança os seus galhos e levam as frutas para fora do alcance da boca do castigado. Quando ele tem sede e tenta beber a água do lago, esta abaixa e fica fora do alcance da sua boca. A moral deste mito é que existem coisas que se pode ver e saber que existem mas o seu usufruto é um privilégio - mais que isto, a fruição seletiva deles é que criam as hierarquias. Por Tântalo quebrar esta fruição seletiva ao disseminar um conhecimento privativo dos deuses, quebrou a hierarquia entre deuses e mortais, daí este castigo ser simbólico.

Em uma sociedade imagética, de disseminação desenfreada de mercadorias associada a um consumo extremante seletivo delas, a agonia de Tântalo é a metáfora mais adequada para visualizar a situação da sociedade contemporânea.

Um indivíduo autarquizado colocado dentro de uma estrutura de agonia de Tântalo, e ainda impulsionado por uma relação de infantilização na qual se evanesce a diferença entre desejo e satisfação, o resultado disto é uma angústia permanente e crescente que leva, em vários momentos, a explosões de revoltas. Tais explosões e revoltas, embora originárias de um sistema marcado pela forte injustiça social, em nada se assemelha a uma revolta política, uma crítica sistêmica, mas sim a uma ação de "turbas".

O Estado, assim, se transforma única e exclusivamente em espaço de polícia e não de política (Rancieri, 2010). Os discursos na esfera da realpolitik se transformam cada vez mais em narrativas assertivas que pouca margem dá a discussão pública. Enfim, embora a democracia liberal representativa se consolide como mecanismo societário na esmagadora maioria dos países do mundo, os processos de opressão social não só se aperfeiçoam, mas também se legitimam por uma demanda por autoritarismo que contamina o cotidiano. Em outras palavras, há um esgotamento das possibilidades civilizatórias do capitalismo.

 

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Recebido em 08/02/2015.
Revisado em 07/06/2015.
Aceito em 24/08/2015.

 

 

1 Este pode ser um dos motivos da mobilização de determinada parcela da intelectualidade de "esquerda" para o projeto neoliberal.
2 Ver Adorno e Horkheimer (1984).

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