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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X

     

 

ARTIGOS

 

Futebol, massa e poder: reflexões sobre a "teoria do contágio"

 

Football, crowd and power: reflexions on the "contagion theory"

 

Fútbol, masa y poder: reflexiones acerca de la "teoría del contagio"

 

Football, masse et pouvoir : réflexions sur la « theorie de la contagion »

 

 

Felipe Tavares Paes LopesI; Mariana Prioli CordeiroII

IFilósofo, docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, Sorocaba, SP, Brasil. lopesftp@gmail.com
IIPsicóloga, docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. mpriolicordeiro@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, discutimos os limites da teoria de Le Bon sobre o comportamento das multidões como ferramenta de análise científica da violência no futebol. Entre outras coisas, indicamos que tal violência pressupõe certa racionalidade, e não a falta dela. Também discutimos alguns dos possíveis efeitos políticosideológicos da referida teoria, tais como a denegação da culpa dos torcedores e agentes de segurança envolvidos em ações violentas, a negação da voz da massa torcedora e a legitimação da repressão policial e do controle social. Além disso, defendemos a pertinência de assumirmos outro olhar sobre o comportamento da massa, que considere seus aspectos positivos, como a capacidade de produzir estratégias de resistência ao chamado "futebol moderno".

Palavras-chave: Futebol, Massa, Poder, Violência, Le Bon.


ABSTRACT

In this article, we discussed the limits of Le Bon's theory of crowd behavior as scientific analysis tool of violence in football. Among other things, we indicated that such violence presupposes certain rationality, not the lack of it. We also discussed some of the possible political and ideological effects of that theory, such as the denial of guilt of the supporters and security officers involved in violent actions, the denial of the voice of the mass of supporters and the legitimacy of police repression and social control. Besides, we defended the relevance of assume a different crowd behavior perspective that consider its positive aspects, such as the ability to produce strategies of resistance to the so-called "modern football".

Keywords: Football, Mass, Power, Violence, Le Bon.


RESUMEN

En este artículo, analizamos los límites de la teoría del comportamiento de las masas de Le Bon como herramienta de análisis científico de la violencia en el fútbol. Entre otras cosas, indicamos que este tipo de violencia presupone una cierta racionalidad, no la falta de ella. También discutimos algunos de los posibles efectos políticos e ideológicos de esa teoría, como la negación de la culpa de los hinchas y de los agentes de seguridad involucrados en acciones violentas, la negación de la voz de la hinchada y la legitimación de la represión policial y del control social. Además, defendemos la importancia de asumir otra perspectiva del comportamiento de las masas, que considere sus aspectos positivos, como la capacidad de producir estrategias de resistencia al denominado "fútbol moderno".

Palabras clave: Fútbol, Masa, Poder, Violencia, Le Bon.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous discutons les limites de la théorie de Le Bon sur le comportement des foules comme outil d'analyse scientifique de la violence dans le football. Entre autres choses, nous indiquons que cette violence présuppose une certaine rationalité, et pas son absence. Nous avons également discuté quelques fins politiques et idéologiques possibles de cette théorie, comme le refus de la culpabilité des fans et du personnel de sécurité impliqués dans des actions violentes, le déni de voix de la masse de fans, et la légitimité de la répression policière et du contrôle social. D'ailleurs, nous défendons la pertinence de prendre un autre regard sur le comportement de masse, qui considère ses aspects positifs, comme la capacité de produire des stratégies de résistance à la soi-disant « football moderne ».

Mots clés: Football, Foule, Pouvoir, Violence, Le Bon.


 

 

As violências coletivas são instituídas, não espontâneas.
(Stoetzel).

A elite política tem muito que ganhar se aceita-se uma explicação "leboniana".
(Reicher).

 

Introdução

Embora o número de homicídios relacionados a brigas envolvendo torcedores(as)1 tenha aumentado nas últimas décadas2, a violência no futebol brasileiro não é um fenômeno recente (Lopes, 2012). Conforme observa Bernardo Buarque de Hollanda (2008), há registros de brigas e apedrejamentos nas linhas férreas cariocas já no início do século XX, quando os torcedores dos clubes da zona sul do Rio de Janeiro se deslocavam para assistir a partidas nos subúrbios da cidade, numa recepção pouco amistosa por parte dos moradores da localidade. Em função dos atos de violência e de vandalismo no futebol brasileiro, o diário esportivo carioca, o Jornal dos Sports, passou a promover, na década de 1940, uma campanha pela moralização do esporte, defendendo o fim da impunidade e a imposição de punições exemplares. Na década seguinte, veiculou uma série de matérias que analisavam o comportamento da massa nos estádios e suas relações com a violência. Tais análises baseavam-se, explicitamente, nas ideias de Gustave Le Bon (1895/2008) sobre a psicologia das multidões.

Le Bon foi um dos mais importantes psicólogos sociais do final do século XIX e influenciou, consideravelmente, a "formação de pensadores interessados em investigar as articulações possíveis entre psicologia e política" (Silva & Zonta, 2010:10). Embora suas ideias não fossem exatamente inovadoras - pois, em parte, já se encontravam nos livros de Scipio Sighele (que, inclusive, acusou Le Bon de plágio) e de Gabriel Tarde - sua obra é considerada precursora dos estudos sobre psicologia das multidões, tendo sido debatida por importantes pensadores, como Sigmund Freud e Serge Moscovici (Álvaro & Garrido, 2006). Segundo Marco Aurélio Prado (2005:59), a partir de estudos da neurologia e da nefrologia da época e, também, da ideia de massa psicológica, "Le Bon inaugurou um campo analítico sobre o comportamento coletivo, trazendo no crivo desse debate a linha tênue racionalidade versus Irracionalidade, como marco fundante da divisão dos comportamentos coletivos prépolíticos ou políticos".

Para compreender seu pensamento, todavia, é preciso não perder de vista as condições sociais e históricas de produção da sua obra.

Le Bon viveu uma Europa em período de revoluções sem precedentes na história; o século XIX foi marcado pela ascensão de uma nova classe no cenário político e econômico: o operariado. A classe operária pouco a pouco se fortaleceu e as vozes de trabalhadores oprimidos e expropriados se fizeram ouvir para além da Grã-Bretanha - berço da industrialização (Richter & Ortolano & Giacomini, 2014:74).

Na França, terra natal de Le Bon, a mobilização do operariado culminou na Comuna de Paris, considerada o primeiro governo proletário da história, que durou cerca de 40 dias, em 1871. O combate violento a esse novo governo fez com que muito sangue corresse pelas ruas da "Cidade Luz" (Richter e cols, 2014:75) e, como não poderia deixar de ser, esse contexto impactou profundamente o autor. De perfil conservador, ele se preocupava com a perda dos valores tradicionais e das crenças religiosas e responsabilizava as massas (o proletariado, mais especificamente) por isto. Em função desse seu (suposto) poder destrutivo, elas agiriam como os micróbios, dissolvendo o corpo civilizatório, quando debilitado. Nas suas palavras: "quando o edifício de uma civilização está carcomido, as multidões levam-no ao desmoronamento" (Le Bon, 1895/2008:23), já que elas subverteriam a ordem estabelecida. De acordo com Stéfanis Caiaffo, Rosana Silva, Iacã Macerata e Christian Pilz, (2007), ao enfocar exclusivamente o (suposto) poder destrutivo das massas, o autor ocultava sua dimensão política, fazendo sobressair apenas sua dimensão "patológica". Não à toa, os fatores psicológicos são tomados, na perspectiva leboniana, "como independentes e suficientes para explicar o comportamento coletivo de fenômenos políticos como a Comuna de Paris, a Revolução Soviética e outros" (Prado, 2006:208).

As análises de Le Bon sobre o comportamento das multidões contrapunham-se a uma tradição - baseada no pensamento de autores como Karl Marx - que entendia que as revoltas das massas poderiam levar a uma nova ordem social - mais justa, solidária e igualitária. Basicamente, para a referida tradição, tais revoltas constituíam o próprio "motor da história", ou seja, elas seriam o cerne da luta de classes (Caiaffo e col., 2007). Essa tradição mais libertária de pensar o comportamento das multidões, todavia, parece não ecoar nas interpretações feitas acerca das condutas coletivas das torcidas de futebol. Por outro lado, as de Le Bon parecem exercer forte influência sobre alguns analistas. De acordo com Hilário Franco Júnior (2007:195-311), tais analistas consideram que "a vigorosa energia psíquica colocada na tarefa de torcer por um clube provoca aquilo que Gustave Le Bon chamou de fenômeno de contagio, fenômeno que ocorre em todo grupo no qual o vínculo emocional entre seus membros deriva ou é sustentado pelo vínculo emocional entre o grupo e o líder".

Para esses analistas, existiriam dois tipos de contágio: o vertical, no qual os gritos dos torcedores para os jogadores funcionariam de forma análoga ao dos antigos romanos para os gladiadores, podendo induzir jogadas violentas por pura reação mecânica. E o horizontal, que aconteceria graças à psicologia narcísica dos torcedores, que enxergariam a si próprios nos demais torcedores do mesmo clube (Franco Júnior, 2007). Em outras palavras, para eles, certas práticas - como a violência - teriam o poder de se difundir de um torcedor a outro, contagiando toda a coletividade torcedora. Cabe destacar que, embora a ideia de contágio seja apenas um dos mecanismos explicativos do pensamento leboniano, a centralidade dessa ideia faz com que vários autores o rotulem de "teoria do contágio" (Justicia & Sixto, 2002).

Diante da influência dessa teoria para as análises das condutas coletivas dos torcedores, optamos por tomá-la como objeto de reflexão teórica. Segundo Prado (2007), a volta dos estudos sobre massas e multidões tem sido de fundamental importância para analisar uma série de fenômenos - como a emergência da nova direita europeia. Entre aqueles que têm recuperado a obra de Le Bon, há filósofos e cientistas políticos, mas poucos psicólogos sociais. Diante disto, parece ser particularmente oportuno recuperar sua obra no contexto da Psicologia Social ou, neste caso, da Psicologia Política. No entanto, não podemos perder de vista que, conforme observa o autor, recuperar um pensamento não significa, necessariamente, concordar com ele. Sendo assim, neste texto, discutimos os limites da referida teoria como ferramenta de análise científica da violência no futebol (parte I), assim como alguns de seus (possíveis) efeitos políticos-ideológicos (parte II). Além disso, defendemos a pertinência de assumirmos outro olhar sobre a massa torcedora, que considere seus aspectos positivos (parte III).

 

Limites Explicativos da "Teoria do Contágio"

Ao longo da história, as multidões que o futebol tem arrastado para os estádios têm sido vistas, ao mesmo tempo, com fascínio e temor. Por um lado, os torcedores costumam celebrar os "feitos" de sua própria torcida. Lotar o próprio estádio e "invadir" o dos adversários é um motivo de orgulho e uma forma de obter status. Não à toa, na sua pesquisa de campo em Buenos Aires, André Martins (2014:42) percebeu que os hinchas (torcedores) estudados estavam imersos "em um ambiente discursivo fortemente autorreferencial, em que a presença da multidão era um elemento central". Prova disto é que eles valorizavam muito fotos da própria torcida. "Da mesma forma, a ampla maioria dos grafites e pichações fazia referência às torcidas, e não aos jogadores." Seguindo as reflexões de Franco Júnior (2007), podemos supor que essa imersão deve-se ao fato de que ser torcedor implica, de certa forma, compor uma personalidade coletiva, ou seja, implica projetar a imagem de si mesmo nos demais torcedores da mesma torcida.

Por outro lado, as multidões também são percebidas como uma fonte de perigo. Afinal, teme-se que essa projeção seja tão intensa que "a agressão feita ou sofrida por um torcedor isolado ou um pequeno grupo [seja] o bastante para incendiar muitos alter egos que vestem a mesma camisa clubística" (Franco Júnior, 2007:312), isto é, teme-se o efeito de contágio. Independentemente de tal efeito ter sido, de fato, o responsável pelos distúrbios e tragédias ocorridos ao longo da história do futebol, o fato é que ela está repleta delas e que sua ocorrência contribuiu, significativamente, para alimentar o medo da massa torcedora.

Uma das tragédias mais conhecidas foi a de Hillsborough, em 1989, na partida entre Liverpool e Nothtingham Forest, quando noventa e seis torcedores morreram pisoteados ou comprimidos no alambrado do estádio. Embora a imprensa sensacionalista tenha, num primeiro momento, atribuído essas mortes a ações de hooligans, elas foram ocasionadas pela superlotação da arquibancada, por decisões equivocadas da polícia e pela estrutura inadequada do estádio, ainda que ele fosse considerado um dos mais modernos do período. Tais conclusões, apontadas no famoso Relatório Taylor, impactaram profundamente a estrutura e a organização dos eventos futebolísticos no Reino Unido (Giulianotti, 2002).

A análise desses impactos escapa ao escopo deste artigo. Mas é importante destacar que, longe de apenas retratar fidedignamente a realidade, como habitualmente supõe o senso comum, os meios de comunicação têm desempenhado um papel central na construção do medo do comportamento da massa torcedora. Com a chamada "crise moral" que afetava os jovens das classes populares no início dos anos 1960, a imprensa britânica começou a enviar repórteres para os estádios especialmente para cobrir as ações promovidas pelos hooligans, amplificando significativamente a exposição pública das brigas e dos atos de vandalismo nos eventos de futebol. Com essa ampliação, o Poder Público e a população passaram a perceber os hooligans como uma gravíssima "patologia social", criando uma espécie de "pânico coletivo" (Dunning, Murphy & Willians, 1993; 1994). Pânico que chegou ao seu auge nos anos oitenta, mas que parece não mais existir como antigamente. Afinal, de acordo com Eric Dunning (2014), a mídia tem subestimado a violência no futebol britânico - o que tem contribuído para fazer crer, erroneamente, que ela não existe mais, ainda que ela tenha, efetivamente, diminuído.

No Brasil, a violência no futebol foi alçada mais fortemente, pelos meios de comunicação, à condição de problema social brasileiro no final da década de 1980, tornando-se objeto de preocupação pública constante. Em meados da década de 1990, ela ganhou uma dimensão midiática ainda maior - em especial, depois da chamada "batalha campal do Pacaembu", quando torcedores do Palmeiras e do São Paulo invadiram o gramado e se enfrentaram violentamente, resultando na morte de um torcedor e numa centena de feridos (Lopes, 2012). Hoje em dia, tal violência segue muito presente na agenda dos meios de comunicação. Por meio de chamadas como "Arquibancadas do Ódio", "É possível torcer sem matar ou morrer?" e "Estádio de Sítio", jornais, revistas e emissoras de televisão têm associado a imagem das massas torcedoras à violência, à irracionalidade e à barbárie3.

Para os nossos propósitos, contudo, é importante destacar que algumas matérias fazem menção, direta ou indiretamente, ao pensamento de Le Bon. Rodrigo Constantino, por exemplo, escreveu em sua coluna no site da revista Veja (2013) que falaria do torcedor que, normalmente, não gosta de brigar, mas que "parte para cima dos outros, tomado por algo que lhe escapa, que não controla." Partindo dos pressupostos da teoria do contágio, Constantino afirma que:

[...] as massas "pensam" com o coração, e o indivíduo pensa através do cérebro. Um exemplo prático e popular que podemos dar é justamente o futebol. Em um jogo clássico, estádio lotado, o ser mais inteligente se iguala ao mais ignorante naquele determinado momento de fúria. A emoção das massas ofusca a lógica individual. Pela mesma causa, naquele momento, todos se unem, mas depois retornam à sua individualidade. Nas palavras de Le Bon: Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas... O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.

Em sua coluna na Folha de S. Paulo (24/06/2010), Contardo Calligaris também faz referência à ideia de contágio e ao caráter irracional das massas. Para ele, as torcidas de futebol:

são vítimas dos piores efeitos do grupo sobre o pensamento e os critérios morais do indivíduo... Vamos agora a um jogo entre São Paulo e Corinthians (ou qualquer dupla de rivais da mesma cidade). O torcedor corintiano, que está do meu lado, bem antes que a bola role, já roga pragas à torcida do São Paulo, que são "a bicharada" ou "os bambis". Nosso corintiano, uma vez extraído de sua torcida, não imagina, obviamente, que todos os são-paulinos, jogadores e torcedores, sejam "viados". Tem mais: na grande maioria dos casos, na sua vida "real", fora do estádio, ele tampouco pensa que a opção sexual de alguém possa servir de insulto, ou seja, ele não acredita que os são-paulinos sejam bichas e não acredita que "bicha" seja um insulto. Meu amigo torcedor, aliás, poderia ser ele mesmo homossexual; tanto faz, não por isso ele deixaria de gritar "bicha-raaaada". O mesmo vale para um são-paulino e seus gritos contra a torcida corintiana. Resumindo, por fazer parte da torcida e para se integrar nela, o torcedor diz ou grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando pensa sozinho (que, cá́ entre nós, é o único jeito de pensar).

Conforme nos indicam os trechos supracitados, ambos os autores compartilham da tese de Le Bon (1895/2008) de que a característica mais importante de uma massa é o desaparecimento das individualidades e a aparição de uma "alma coletiva". Para o autor, independentemente das características pessoais das pessoas que compõem a massa, essa "alma coletiva" faria com que elas pensassem e agissem de um modo totalmente diferente caso estivessem isoladas. Em outras palavras, a simples aglomeração de pessoas, sem qualquer objetivo determinado, não constituiria uma massa. Afinal, a seu ver, essa noção pressupõe uma mudança qualitativa nas relações, que envolve o compartilhamento de desejos, pensamentos, afetos e atos.

De acordo com Juan Muñoz Justicia e Félix Vasquez Sixto (2002), a concepção leboniana de massa apresenta três características fundamentais: primeira, no meio da massa, as pessoas adquiririam um sentimento de poder invencível, que as levaria a ceder a instintos, que, sozinhas, teriam refreado. A capacidade de refrear os instintos tornar-se-ia ainda mais difícil na medida em que, sendo a massa (supostamente) anônima e irresponsável, o sentimento de responsabilidade que, habitualmente, detém as pessoas tende a desaparecer.

Segunda característica: nesse contexto, as pessoas também seriam mentalmente contagiadas umas pelas outras, tal como ocorre na hipnose. Nas palavras de Le Bon (1895/2008:35), "em uma multidão4, todo sentimento, todo ato é contagioso, e contagioso ao ponto de que o indivíduo sacrifique muito facilmente seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Essa é uma propensão contrária à sua natureza, da qual o homem torna-se capaz apenas quando faz parte da multidão".

Terceira característica: as pessoas se comportariam de modo diferente ao integrar uma massa, desaparecendo sua personalidade consciente - inclusive, às vezes, elas se comportariam de forma oposta ao comportamento que teriam isoladamente. Na metáfora "leboniana", "o indivíduo na multidão é um grão de areia no meio de outros grãos de areia que o vento agita a seu bel-prazer" (Le Bon, 1895/2008:37). Isto é, na massa, as pessoas seriam irracionais (não pensariam por si mesmas) e, por conseguinte, também seriam capazes de transformar qualquer ideia em atos de barbárie e violência.

Desse modo, podemos dizer que Le Bon (1985/2008) entende a influência das massas sobre o comportamento do indivíduo como um processo unidirecional - processo esse caracterizado por seu caráter degenerativo, resultante de um estado primitivo de inconsciência coletiva (Álvaro & Garrido, 2006). Ao caracterizar o comportamento de massa dessa forma, sua teoria apresenta alguns problemas para a compreensão da violência no futebol.

Comecemos pela tese de que o que ocorre dentro de campo contagia os torcedores - o que explicaria a violência entre eles. Para entender tal tese, é preciso não perder de vista que ela pressupõe, de alguma maneira, que o futebol é uma guerra simbólica, ou seja, que ele é a continuação (ou prevenção) da guerra por outros meios (Franco Júnior, 2007). Por exemplo, ainda que, em 1986, a Argentina e a Inglaterra não estivessem realmente em guerra, fala-se, com frequência, que, em tal ano, foi travada uma "batalha" épica entre ambos os países no gramado do Estádio Azteca, no México. Em tal batalha, Maradona e "las manos de Dios" teriam vingado o povo argentino pela derrota sofrida na Guerra das Malvinas, em 1982.

Partindo, então, da ideia de que todo jogo de futebol possui uma atmosfera belicosa, a tese em questão sustenta que essa atmosfera tende a contagiar os torcedores, estimulando-os a "guerrear" uns contra os outros, sendo que essa "guerra", às vezes, deixaria de ser meramente simbólica e se transformaria em física, dependendo do que ocorre dentro de campo. Neste sentido, o que explicaria a violência nas arquibancadas seria a dinâmica da partida. Ocorre que, hoje em dia, a grande maioria dos confrontos entre torcedores se dá fora dos estádios e antes de as partidas acontecerem - alguns deles, inclusive, em dias em que não há jogos de futebol. Conforme observa Anastassia Tsoukala (2014:28), trata-se de "rixas organizadas entre torcedores acordadas e ocorridas tão longe quanto possível do olhar público, muitas vezes fora do quadro esportivo".

Mas se a tese supracitada não encontra respaldo empírico, o que dizer daquela que afirma que a violência no futebol seria explicada pela (suposta) irracionalidade da massa torcedora? Será que, no anonimato dessa massa, nos sentiríamos invencíveis e, por isto mesmo, faríamos coisas que não faríamos sozinhos? Evidentemente que não se trata, aqui, de negar que a participação numa ação (inclusive, violenta) junto à massa torcedora possa ser prazerosa - e não apenas para os "morbidamente nervosos", os "semiperturbados", mas para todo tipo de pessoa, como demonstra Bill Buford (1992).

Tampouco se trata de negar que o anonimato possa estimular práticas ilegítimas, tanto do ponto de vista moral quanto legal. Afinal, o medo tende a operar como um poderoso mecanismo de controle social. Mas se trata sim de, em primeiro lugar, chamar a atenção para o fato de que esse tipo de explicação tende a enfocar o comportamento "patológico" de apenas uma das partes. Muitos dos conflitos no futebol são desencadeados ou agravados por conta do comportamento das forças de segurança - aspecto que, geralmente, é ocultado nessas análises. Com isso, não estamos sugerindo que a violência se situe unicamente do lado da polícia, mas que, para sua compreensão, não podemos perder de vista seu caráter de interação intergrupal (Justicia & Sixto, 2002).

Em segundo lugar, se trata de destacar que a massa torcedora não é, necessariamente, inerte e indiferenciada, formada por integrantes que são, passivamente, por ela contagiados. Afinal, como observa John B. Thompson (2000), as pessoas não são esponjas que absorvem indiscriminadamente o que lhes é apresentado, mas estão engajadas ativamente e, algumas vezes, criticamente na apropriação das mensagens. Caso contrário, não haveria espaço para a discórdia, para o desacordo e para tensões dentro de uma mesma torcida - tão comuns nos estádios de futebol.

Em terceiro lugar, se trata de indicar que a violência no futebol faz parte de conflitos que possuem uma história e um sentido, não podendo ser entendida, portanto, como o simples resultado de impulsos cegos da massa. Conforme nos indica Jose Garriga Zucal (2010), em determinados grupos de torcedores, essa violência serve para afirmar um princípio de masculinidade, que diz que, para ser "homem de verdade", é preciso aguentar a dor. Assim, participar de um embate físico é, dentro desses grupos, uma forma de obtenção de reconhecimento e de status, garantindo algum tipo de pertencimento aos seus atores - algo que instituições tradicionais (como os sindicatos, os partidos, a escola e o mundo do trabalho) não conseguem mais oferecer como antes. Além disso, ela é uma forma de inseri-los numa rede de favores, que pode ajudá-los a obter recursos materiais - tais como ingressos, viagens e, até mesmo, trabalho.

Diante disto, pode-se dizer que a violência no futebol pressupõe certa racionalidade, e não a falta dela. Essa racionalidade, todavia, acaba não sendo percebida quando essa violência é descontextualizada, ou seja, quando seu caráter social, cultural, econômico e histórico é eclipsado. Reforçando a ideia de que a violência no futebol pressupõe certa racionalidade, vale destacar que muitos dos embates são planejados com antecedência, possuem um caráter competitivo e estão sujeitos a "regras de desordem".

Embora isto nem sempre tenha êxito, existem tentativas, em diversas partes do mundo, de se definir as armas, os atores e as circunstâncias legítimas desses confrontos. Por exemplo, conforme nos foi dito em pesquisa de campo realizada na Alemanha, o uso de armas (sobretudo de fogo) é proibido pelos próprios torcedores engajados nas brigas. Ao analisar o contexto italiano, um dos mais problemáticos do mundo, José Paulo Florenzano (2010) observa que o sociólogo Antonio Roversi teve acesso, no final dos anos setenta, a uma espécie de "circular interna" do movimento ultra local5 que proibia agredir mulheres, velhos, pessoas que não tivessem relação com o referido movimento e quem não tivessem possibilidade de se defender. Essa "circular interna" foi divulgada depois de um trágico acidente, em que um pai de família, torcedor da Lazio, morreu ao lado da esposa, nas arquibancadas do Estádio Olímpico, atingido por um razzo atirado por um torcedor da Roma.

Por sua vez, ao analisar o contexto argentino, Verónica Moreira (2013) observa que, nos dias de hoje, existe uma espécie de disputa moral em torno do uso das armas de fogos. Os integrantes mais velhos das barras locais6 condenam os mais jovens pelo uso generalizado e extensivo dessas armas a situações que antigamente se limitavam à intimidação verbal, trocas de socos e, no máximo, arremesso de pedras. Para os integrantes mais velhos, esse uso é legítimo somente quando ele é necessário para proteger a própria vida ou resguardar o material da torcida (bandeiras, instrumentos musicais, faixas etc.).

 

(Possíveis) Consequências Político-Ideológicas da "Teoria do Contágio"

Uma vez indicadas algumas limitações explicativas da "teoria do contágio", cabe, agora, indicar algumas de suas (possíveis) consequências político-ideológicas. Afinal, conforme observam Alessandro Silva e Jefferson de Mello (2007:02) não podemos nos esquecer de que "garantir a irracionalidade alheia e nunca por em xeque a própria racionalidade é uma estratégia clássica de manutenção do poder, de perpetração da lógica dominante que busca garantir a permanência de uma estrutura que nomeia, constrói e consolida lugares marginais". Tampouco podemos nos esquecer de que, ao abordar a questão da força dos líderes e da sugestionabilidade das multidões, a psicologia das massas deu importantes subsídios teóricos para alguns dos grandes ditadores do século XX - Hitler, por exemplo, chega até mesmo a mencionar Le Bon em sua autobiografia. Não estamos dizendo aqui, obviamente, que o autor deva ser responsabilizado pela ascensão de governos nazistas, autoritários e violentos, mas que devemos refletir sobre a dimensão política-ideológica inerente a toda construção teórica (Caiaffo e col., 2007).

A primeira consequência da teoria do contágio é a denegação da culpa. Afinal, se a irracionalidade é uma característica natural do comportamento de massa, não podemos responsabilizá-la pela mesma (Justicia & Sixto, 2012). Como responsabilizar algo ou alguém por seguir sua natureza? Poderíamos culpar uma planta por fazer fotossíntese? Um cão por latir? Um bebê por golfar? Uma faca por cortar? Notemos, aqui, que essa linha de raciocínio não vale somente para a massa torcedora, mas, também, para os agentes de segurança. Afinal, em grupo, esses agentes também tendem a formar uma massa. Assim, sendo esta considerada naturalmente irracional, seus excessos só podem ser vistos como um resultado inevitável. Como, por exemplo, julgar um policial por atirar, covardemente, contra a multidão? Ou por lançar bombas de gás lacrimogêneo como quem joga serpentina no carnaval?

Segunda consequência: uma negação da voz. Afinal, se quando as pessoas agem em massa o fazem de forma irracional - "se as multidões acumulam não a inteligência, mas a mediocridade", como diria Le Bon (1895/2008:34) -, então elas não têm nada a dizer, nada de significativo para expressar (Justicia & Sixto, 2012). Diante disto, um protesto contra os preços abusivos dos ingressos ou contra a falta de transparência na gestão de clubes e federações não deve ser considerado digno de apoio. Tampouco, como ocorreu em 2013, em Istambul, a participação dos grupos ultras dos três principais clubes da cidade (Besiktas, Fenerbahce e Galatasaray) nos protestos que "sacudiram" a Turquia naquele ano (Istanbul United, 2014). Sendo assim, ao deslegitimar a voz da massa torcedora, a "teoria do contágio" pode contribuir com a manutenção do status quo e, consequentemente, com permanência das injustiças existentes no universo do futebol, em particular, e na sociedade, de uma forma geral.

Terceira consequência: uma legitimação da repressão policial e do controle social. Afinal, se, no meio da massa, as pessoas agem irracionalmente (e, às vezes, violentamente), então, neste contexto, elas devem ser rigidamente controladas e submetidas às ordens das autoridades (Justicia & Sixto, 2002). Mais ainda, a própria formação da massa deve ser impedida, já que ela em si mesma configuraria um risco. Não à toa, hoje em dia, a maior parte dos estádios de futebol (e arredores) assemelha-se à figura arquitetônica do Panóptico (Foucault, 1975/2013).

Tal como ocorre num Panóptico, os torcedores são induzidos a um estado consciente e permanente de visibilidade. Para tanto, em primeiro lugar, busca-se individualizá-los - através, por exemplo, do encadeiramento das arquibancadas, da numeração dos assentos e da exigência do cadastramento de torcedores organizados. Em segundo lugar, busca-se inspecioná-los - tal como ocorre durante as revistas policiais na entrada dos estádios e, às vezes, nos deslocamentos para o estádio. Em terceiro lugar, busca-se vigiá-los constantemente - através das câmaras de segurança e dos olhares atentos da polícia e dos seguranças privados. Com isto, em última instância, objetiva-se limitar a circulação de corpos, de gestos e, também, de ideias.

Esse objetivo joga luz sobre o principal problema da legitimação da repressão e do controle social: estes, frequentemente, acabam violando as liberdades públicas e os direitos dos torcedores - que, independentemente de terem ou não cometido atos infracionais, estão sempre sujeitos, por exemplo, a inalar o gás lacrimogêneo vindo das frequentes (e numerosas) bombas atiradas pela polícia para dissipar qualquer tumulto. Ou, ainda, a ter a pele rasgada pelo instrumento que ela habitualmente utiliza para "organizar" a fila nas entradas dos estádios: o cassetete. Termo que, não custa nada recordar, vem do francês e significa "quebrar-cabeças" (Alvito, 2014). Assim, pode-se dizer que, neste contexto, o controle social e a repressão, na melhor das hipóteses, protegem a ordem pública em detrimento da ordem democrática (Tsoukala, 2014).

No entanto, nem a ordem pública, o controle e a repressão parecem conseguir proteger. Afinal, eles têm agravado - ao invés de reduzir - o fenômeno da violência no futebol. Em primeiro lugar, porque têm, conforme já foi sugerido, contribuído para o deslocamento espaço-temporal do referido fenômeno. A fim de fugir do olhar dos agentes da polícia, os torcedores, cada vez mais, marcam de brigar fora dos estádios e, às vezes, em dias em que não ocorrem jogos, tornando ainda mais difícil a manutenção da ordem, com resultados aleatórios e custos crescentes.

Em segundo lugar, porque o aumento do controle e da repressão tem "forçado" os torcedores violentos a usarem armas brancas ou de fogo, a fim de provocar o maior dano no menor tempo possível (Tsoukala, 2014). Embora, conforme já foi antecipado, esse uso não seja consensual entre tais torcedores - sendo visto por parte deles como um ato de covardia -, ele foi o responsável por mais da metade (79 ou 59,4%) das 133 mortes relacionadas ao futebol brasileiro até março de 2012 (Nery, 2012).

Em terceiro lugar, porque, ainda que grande parte do público de futebol seja constituída por pessoas a priori pacíficas e respeitadoras da lei, elas tendem a ser responsivas a qualquer forma de desrespeito contra elas. Com isto, a violência policial - sobretudo quando excessiva e injustificada - tende a incitar torcedores não violentos a agirem violentamente. Da mesma forma, tendem a incitá-los as falhas organizacionais, como a lentidão na entrada dos estádios (Tsoukala, 2014). Por diversas vezes, por exemplo, os autores deste artigo, mesmo tendo chegado com antecedência ao estádio (somos frequentadores assíduos), só conseguiram entrar quando o jogo já havia começado. Além de ser uma violência contra o torcedor, este tipo de situação tende a trazer sérios problemas de segurança. Afinal, irritados e ansiosos, os torcedores tendem a pressionar os da frente, além de ameaçar às forças de segurança, caso não acelerem o processo de revista.

Cientes da importância de se criar uma atmosfera mais "amigável" e menos belicosa nos eventos de futebol, autoridades policiais de alguns países da Europa têm rejeitado a lógica da confrontação e buscado reintroduzir o "fator humano" na relação entre as forças de segurança e os torcedores. Adotada pela primeira vez na Euro 2000 e, posteriormente, na Euro 2004, essa nova abordagem foi concebida por especialistas holandeses e tem apostado na sociabilidade e na fraca visibilidade das referidas forças no espaço público. É importante destacar, aqui, que, diferentemente do que sempre apregoaram os paladinos da "tolerância zero", a ampliação do teto de tolerância (no caso de delitos menores) prevista nessa abordagem tem se mostrado muito eficaz como modo de gestão da multidão, conforme ficou provado com a ausência de incidentes mais graves nos referidos eventos. Também é importante destacar que essa nova forma de gerir a multidão tem ajudado a veicular um valor fundamental no universo do futebol: o do respeito ao cidadão (Tsoukala, 2014).

 

Por Outro Olhar Sobre o Comportamento da Massa Torcedora: o contágio como afirmação da vida (e de outras formas de vida)

Diante das possíveis consequências políticas (negativas) da teoria do contágio, propomos, neste último tópico, um novo olhar sobre o comportamento da massa, que destaque, também, sua positividade. Em publicação recente, Renzo Taddei (2014:46) sustenta que, imerso na multidão, o torcedor pode ter aquilo que Kant denominou de experiência do sublime. De acordo com ele, "é essa experiência do sublime, a possibilidade de vivê-la com recorrente frequência, o fator que aglutina multidões em estádios". Por sua vez, Martins (2014:81), baseando-se na filosofia de Espinosa, sustenta que o pertencimento a uma massa torcedora pode fornecer "uma sensação de comunhão, de identificação com o outro e com o todo. Um religare". Assim, no estádio, poder-se-ia "experimentar a comunhão da camisa 12, essa experiência da univocidade de sermos ao mesmo tempo singulares e parte do todo".

Seguindo essa linha de pensamento, consideramos que a inserção na massa torcedora pode ser uma intensa experiência de afirmação da vida. Essa experiência, no entanto, conforme defende Martins (2014), depende, até certo ponto, de condições favoráveis. Essas condições, todavia, não são favorecidas pelos novos estádios. Hoje em dia, o evento futebol tem sido pensando como um espetáculo para ser olhado, em que os torcedores devem permanecer sentados, sem interagirem entre si. No Reino Unido, por exemplo, "os seguranças expulsam aqueles que se levantam e obstruem a visão dos outros. Os torcedores que gritam nas partidas de futebol podem ser acusados de transgredir a ordem pública de acordo com a legislação recente" (Giulianotti, 2002:110). Em função disto, Richard Giulianotti entende que os estádios de futebol se parecem, cada vez mais, com as casas de ópera.

Casas que são espaços sociais tipicamente burgueses e se enquadram no modelo atual de futebol, que o concebe, antes de tudo, como um meganegócio. Não à toa, esse esporte tem sido utilizado para vender os mais diversos produtos - tais como jogos eletrônicos, revistas especializadas, álbuns de figurinhas, roupas, toalhas, relógios, lençóis de cama, bonecos, canecas e canais pay-per-view (Alvito, 2006). Neste contexto, os novos estádios de futebol são projetados para operarem como grandes centros comerciais. O Maracanã, por exemplo, foi inicialmente concebido como um espaço de inclusão, buscando, até certo ponto, garantir a participação democrática de um número máximo de espectadores (Curi, 2012). No entanto, ao longo dos anos, foi se transformando, gradativamente, num espaço de exclusão.

Primeiramente, fechou-se seu setor mais emblemático e popular: a geral. Este fechamento ocorreu após uma série de discussões sobre as condições estruturais do Maracanã, após ter ocorrido um grave acidente na final do Campeonato Brasileiro de 1992 entre Flamengo e Botafogo, quando parte do alambrado da arquibancada superior ruiu, fazendo com que dezenas de torceres despencassem de metros de altura. Embora tal acidente não tenha ocorrido na geral, argumentou-se que, desde a década de 1980, tratava-se de um lugar muito inseguro, por conta da ocorrência de "arrastões". Todavia, devido à enorme popularidade do setor, ele foi posteriormente reaberto por alguns anos (Hollanda, 2014).

Já em 2000, por conta do primeiro Campeonato Mundial Interclubes da FIFA, resolveu-se encadeirar todo o estádio e dividir a arquibancada em cinco setores, com hierarquia de preços. Com isto, buscava-se impedir os deslocamentos dos torcedores briguentos. No entanto, de acordo com Hollanda (2014:340), "a decisão não deixou de ter uma consequência perversa: progressivamente controlada dentro do estádio, a briga migrou para fora dele". Tempos depois, por conta da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014, o Maracanã foi novamente reformado. Entre outras coisas, eliminou-se o vão entre os dois patamares do estádio, o que reduziu, ainda mais, sua capacidade, tornando seus assentos mais escassos e, consequentemente, mais caros.

A transformação dos estádios em grandes centros comerciais ajuda a proporcionar valiosas receitas para os clubes. Por exemplo, nos próximos anos, os dirigentes do Corinthians esperam aumentar significativamente a arrecadação do clube com a comercialização dos diversos espaços do seu novo estádio. Não à toa, o arquiteto contratado para projetá-lo foi um profissional do mercado de shopping center. O aumento do controle sobre o torcedor, todavia, tem "esfriado" o clima nas arquibancadas, dificultando a formação de massas fervilhantes, que favorecem a experiência da univocidade. No estado de São Paulo, nem mesmo as tradicionais bandeiras com mastro de bambu podem ser mais vistas tremulando nas arquibancadas, já que uma lei estadual as proíbe (Lopes, 2012). Diante deste contexto, tem crescido, no Brasil, o movimento contra o chamado "futebol moderno", que luta contra a intensificação do processo de mercantilização, elitização, espetacularização e militarização dos eventos de futebol. Este movimento começou na Europa e tem sido levado a cabo, não sem ambiguidades, pelos grupos ultras locais (Hollanda, 2014).

Na Alemanha, os grupos ultras e as associações independentes de torcedores - tais como a Federation Active of Football Fans (BAFF) - têm exercido forte pressão contra a repressão policial e contra o aumento do preço dos ingressos, bem como tem reivindicado mais liberdade para a festa nas arquibancadas. Slogans como "pirotecnia não é crime!" (Pyro is not a crime!), por exemplo, podem ser vistos em adesivos estampados nas arquibancadas de todo o país. Devido à pressão exercida, o futebol alemão possui, hoje em dia, ingressos com valores acessíveis e estádios com (amplos) setores sem cadeiras. Não à toa, a Bundesliga (primeira divisão alemã) possui a maior média de público do mundo e é invejada em toda a Europa pela atmosfera vibrante das suas arquibancadas.

A manutenção dos setores sem cadeira, no entanto, é o resultado de um longo processo de negociação. Devido às (enormes) repercussões da tragédia de Hillsborough e os frequentes confrontos entre hooligans alemães nos anos oitenta e começo dos noventa -, os políticos e dirigentes esportivos do país propuseram o fechamento de tais setores, indignando os torcedores locais. Para realizar a moderação entre as partes, foi fundamental o papel desempenhado pelo Fan Project Coordination Centre (KOS) - responsável por fornecer apoio aos projetos desenvolvidos pelos chamados Fan Projects. Além de realizarem trabalhos educativos com os torcedores alemães (especialmente com os jovens), esses projetos buscam apresentar os interesses desses torcedores para as autoridades públicas e esportivas e trazê-los, de forma construtiva, para o debate. Graças a esse trabalho de moderação, tem se tornado cada vez mais frequente a integração de grupos de torcedores nos processos de planejamento dos estádios alemães (Gabriel, 2013).

No Brasil, também temos relatos de reivindicações e lutas políticas encabeçadas por grupos de torcedores. Por exemplo: em 1979, os Gaviões da Fiel, principal torcida organizada do Corinthians, desfraldaram pela primeira vez em grande público uma faixa pela anistia no Brasil. Isso se deu num jogo entre Corinthians e Santos, quando mais de 110 mil pessoas lotaram as arquibancadas do Morumbi (Kfouri, 1983). No relato de seu ex-presidente Douglas Deúngaro, mais conhecido como "Metaleiro" (citado por Santos, 2004:36),

[...] numa época de ditadura, a Gaviões foi a primeira entidade que abriu uma faixa - "anistia ampla e irrestrita" - para cem mil pessoas. Na época o pessoal que estava saindo do país veio pedir para a Gaviões, porque eles aceitaram a idéia Gaviões. Eles disseram que ninguém tinha coragem de abrir uma faixa para cem mil pessoas: "vocês vão ter que abrir" e os Gaviões compraram a briga... Na época foi todo mundo para o banquinho do Doi-Codi. O presidente na época era o Julião e os policiais vieram aqui e pegaram todo mundo. Ninguém tinha feito isso na época da ditadura, então, os Gaviões deram uma força diferente das outras torcidas.

Já no final de 2014, foi criada a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (ANATORG), que, seguindo a filosofia do movimento ultra alemão - "fale conosco e não sobre nós" -, tem como um dos seus objetivos articular e dialogar com o Poder Público soluções para os problemas do futebol brasileiro. No Rio de Janeiro, já existe há alguns anos a Federação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ), que foi criada "com o objetivo de promover o diálogo entre as instituições sediadas no Estado e as autoridades" (http://ftorj.wordpress. com/sobre/). A FTORJ inspira-se nos trabalhos da Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (ASTORJ), criada em 1981 e dissolvida no final dos anos oitenta.

Exemplos como esses deixam claro que não podemos pensar as multidões apenas a partir de seu caráter patológico, mas que temos de levar em consideração sua capacidade de subverter a ordem social, ou seja, sua capacidade de desencadear estratégias de resistência e propor novas formas de vida (Caiaffo e col., 2007:32). Mais exatamente, outras formas de participar dos eventos futebolísticos, que não reduzam o torcedor à condição de mero consumidor, nem o convertam em um corpo disciplinado. Em um corpo que, quanto mais obediente, mais útil é. E quanto mais útil, mais obediente é (Foucault, 2013). Mas que, pelo contrário, mantenha viva (e, portanto, sempre em transformação) uma cultura popular de torcer, em que a massa torcedora surge como uma possibilidade de fortalecimento, ao mesmo tempo, da potência do coletivo e de cada um de seus integrantes (Martins, 2014).

 

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Recebido em 23/02/2015.
Revisado em 09/06/2015.
Aceito em 20/08/2015.

 

 

1 A partir daqui, a fim de aliviar o corpo do texto, abandonaremos a fórmula "o(a)"e passaremos a adotar o genérico masculino.
2 De acordo com Mauricio Murad (2008), entre 1999 e 2008, o Brasil foi o país com o maior número de mortes de torcedores do chamado "primeiro-mundo" do futebol – com uma média de 4,2 mortes por ano. Para agravar a situação, nos anos subsequentes, esse número não parou de crescer, tendo chegado a 23 assassinatos em 2012.
3 Cabe destacar que os meios de comunicação costumam fazer esse tipo de associação entre massa e irracionalidade também em outros contextos. Ernesto Richter, Fábio Ortolano e Adriana Giacomini (2014) mostram, por exemplo, como isto foi feito nas manifestações de junho de 2013, que tomaram as ruas dos grandes centros urbanos do país.
4 Aqui, é importante observar que foule é traduzido pela edição portuguesa como "massa" e pela edição brasileira como "multidão". Neste texto, trataremos as duas noções como sinônimas. No entanto, é importante observar que, para autores como Michael Hardt e Antonio Negri, "há uma questão epistemológica, que coloca ambas em uma posição antitética. Se por um lado as massas seriam concebidas como homogêneas e manipuláveis, por outro as multidões não obliterariam as singularidades de seus integrantes, o que propiciaria o desenvolvimento de suas potencialidades" (Richter e col., 2014:77).
5 Os ultras constituem o principal movimento de torcedores da Itália e um dos principais da Europa, apresentando a defesa de certo estilo de vida. Tais torcedores costumam transformar o espetáculo futebolístico numa experiência estética altamente estimulante – com o uso de bandeiras, papéis picados, sinalizadores, instrumentos musicais, megafones e mosaicos – e possuem uma relação ambígua em relação à violência. Hoje em dia, são os protagonistas na luta contra a hiper-mercantilização do referido espetáculo, buscando preservar uma forma romântica e idealizada de futebol (Giulianotti, 2002; Merkel, 2012).
6 As barras são grupos organizados de torcedores muito populares nos países hispano-americanos, que costumam ficar atrás dos gols, acompanhar os jogos de pé, cantar durante todo o jogo e realizar uma grande festa nas arquibancadas. Desde o começo do século XXI, assiste-se a emergência de grupos de torcedores brasileiros que se identificam culturalmente com as barras – sobretudo no sul do país. Embora não seja nosso objetivo aprofundar aqui esse tema, é preciso destacar que as barras possuem algumas diferenças em relação às torcidas organizadas brasileiras no que diz respeito ao modo de se organizar, vestir, torcer e, até certo ponto, de se relacionar com o clube e com a violência (Lopes & Cordeiro, 2011).

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