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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X

     

 

ARTIGOS

 

Concepções de conselheiros tutelares acerca da infância: interconexões entre risco e proteção

 

Conceptions of guardianship board about childhood: interconnections between risk and protection

 

Concepciones de concejales tutelares acerca de la infancia: interconexiones entre riesgo y protección

 

Conceptions de conseillers de tutelle a propos de la petite enfance : interconnexions entre les risques et la protection

 

 

Jessica Helena Vaz MalaquiasI; Regina Lúcia Sucupira PedrozaII

IPsicóloga, Professora Universitária do Centro Universitário do Distrito Federal e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano e Saúde da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. jessicamalaquiasunb@gmail.com
IIProfessora Adjunta no Curso de Psicologia da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. rpedroza@unb.br

 

 


RESUMO

O processo histórico da construção do lugar social da criança no Brasil pode ser entendido como permeado por ambivalências a respeito das concepções de criança e das políticas públicas voltadas a essa população no país. Tais concepções se materializam nas intervenções dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos. O objetivo deste trabalho consiste em apresentar como profissionais de instituições socioassistenciais compreendem a criança em situação de risco; problematizando-se as contradições presentes nos discursos dos atores sociais envolvidos. Por meio de entrevistas com conselheiros tutelares de uma região do Distrito Federal, empreendeu-se uma leitura crítica dos discursos dos profissionais, apontando-se sentidos construídos acerca da criança como sujeito da falta e à situação de risco como engendrada por famílias empobrecidas e negligentes para com os direitos básicos das crianças. Pontua-se que a emergência política das crianças na sociedade brasileira poderá acontecer via reformulações nos sentidos atribuídos pelos profissionais às crianças atendidas.

Palavras-chave: Infância, Proteção, Política Pública, Risco, Conselho Tutelar.


ABSTRACT

The historical process of childhood social place construction in Brazil can be understood as permeated by ambivalence about the child's conceptions. Such concepts are materialized in the interventions of professionals Rights Guarantee System. The objective of this study is to present how professional social assistance institutions understand the child and the child at risk. Through interviews with tutelary counselors of a region of the Federal District, it was possible to undertake a critical reading of the speeches of professionals, building up towards areas related to the child as the subject of fault and the risk as engendered by impoverished families and neglectful for the basic rights of children. Finally, it points out that the political emergence of children in Brazilian society will happen through reformulations about the meanings constructed by social actors.

Keywords: Childhood, Protection, Public Policy, Risk, Tutelary Council.


RESUMEN

El proceso histórico de la construcción del lugar social de la infancia en el Brasil es permeado por ambivalencias en las concepciones dirigidas a los niños. Tales concepciones si materializan en las intervenciones de los profesionales del sistema de la garantía de los derechos. El objetivo de este trabajo es dar a conocer como los profesionales de los servicios socioassistenciais entienden el niño en la situación del riesgo. En las entrevistas con miembros de un consejo tutelar de una región del Districto Federal, emprendió una lectura crítica de los discursos, construyéndose sentidos referentes al niño como de la carencia y en situación del riesgo según la condición empobrecida de las familias negligentes para con sus derechos fundamentales. El trabajo pontua que la política de la emergencia de los niños en la sociedad brasileña podrá suceder por medio de transformaciones en las concepciones de los agentes sociales acerca de la infancia.

Palabras clave: Infancia, Protección, Políticas Publicas, Riesgo, Consejo Tutelar.


RÉSUMÉ

Le processus historique de la construction du lieu social de l'enfant au Brésil peut être compris comme imprégné par ambivalences sur les opinions de l'enfant et la politique publique face à cette population dans le pays. Ces conceptions se matérialisent dans les interventions du système professionnel de garantie des droits. L'objectif de ce travail est de présenter comment les professionnels des institutions d'aide sociale comprendrent l'enfant en situation de risque; en questionnant les contradictions du discours des acteurs sociaux impliqués. Les entrevues avec des conseillers tutélaires d'une région du District Fédéral ont entrepris une lecture critique du discours des professionnels, indicant des significations construits sur l'enfant en tant que sujet de la faute et de la situation de risque engendré par des familles pauvres et négligentes en face aux droits fondamentaux des enfants. On remarque que l'émergence politique des enfants dans la société brésilienne pourrait arriver à partir de reformulations dans les sens appliquées par les professionnels aux enfants desservis.

Mots clés: Enfance, Protection, Politique Publique, Conseils Tutélaires.


 

 

Introdução

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) elaborado em 1990 representam novos modelos para o entendimento da posição social da criança e do adolescente no Brasil. Em 23 anos desde sua criação, o ECA tem feito propostas grandiosas ao trabalho psicossocial oferecido pelas instituições de proteção social à infância e à adolescência no Brasil (Brasil, 1990). Esse Estatuto tem desafiado especificamente as noções acerca do sujeito-criança que fundamentam as metodologias de atendimento a crianças em situação de violação, no trabalho de restituição da proteção devida. O processo de construção histórica, social e também cultural das representações da criança em nosso país, em algumas contraposições ao que o Estatuto vem propondo há duas décadas, nos revela que a condição do infante era caracterizada pela ausência de direitos, pela normatização das famílias de origem, e por uma filantropia que visava gerenciar as camadas populares (Azambuja, 2006; Silva Junior & Garcia, 2010; Zaniani & Boarini, 2011).

Ao assumirmos tal processo histórico permeado por ambivalências a respeito da criança e das práticas voltadas a essa população no Brasil, entendemos a necessidade de apresentarmos as concepções que se materializam nas intervenções dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos. Dessa forma, o objetivo do presente trabalho consiste em apresentar concepções de profissionais que atuam no Sistema de Garantia de Direitos relativas à criança e à infância em situação de risco, assinalando ainda as contradições presentes no trabalho psicossocial dos atores sociais envolvidos.

A criança figurada pela política sociassistencial no Brasil anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente sedimentava as concepções da infância menor, diminuída pela sua vulnerabilidade social e pela ameaça que encarnava em si (Bujes, 2010; Lemos & Scheinvar, 2014; Zaniani & Boarini, 2011). Guirado (2004), em amplo trabalho sobre a condição da criança vinculada à Fundação do Bem-Estar do Menor, pontuava o lugar designado pela sociedade brasileira ao dito menor. Este, na linguagem jurídica, consistia de um sujeito com incompletos 18 anos de idade. No discurso social, entretanto, esse menor figurava como aquele do abandono, da pobreza; e também alvo das políticas tutelares do Estado. Falava-se do menor com os adjetivos que qualificavam a infância abandonada, carente e marginalizada pelas vicissitudes da dinâmica econômica brasileira (Scheinvar, 2000; Silva Junior & Garcia, 2010).

No momento em que as medidas aplicadas às crianças se pautavam pelas irregularidades e ameaças desses sujeitos à sociedade, se justificava uma política de repressão, de polarização entre vítima e agressor, visando-se sempre à culpabilização daquele em situação irregular. Os menores eram considerados ameaças à ordem pública, e não havia diferenciação jurídica entre as crianças em situação de rua, em vulnerabilidade econômica ou ainda em conflito com a lei (Zanella & Lara, 2015). Alvos de todo um aparato médico-higienista e psicopedagógico gerido por especialistas da educação, da medicina, do magistrado, e por autoridades policiais e administrativas, as crianças eram mantidas em um lugar de desapropriação do seu ser social e político (Gadelha, 2015; Santos, Torres, Nicodemos & Deslandes, 2009).

Essa criança, portanto, era entendida como carecendo de condições mínimas de sobrevivência. A composição do contingente de crianças ditas abandonadas no Brasil foi então se delineando a partir de uma cor e de um nível socioeconômico específicos, realidade denunciada pela leitura crítica da história da proteção social à infância e das metodologias de trabalho com essa população (Azambuja, 2006; Bazon, 2007; Dornelles, 2010; Ferreira, 2015; Ferreira & Portella, 2011; Lemos, Scheinvar & Nascimento, 2014; Santos, 2010; Santos & Costa, 2011; Silveira & Yunes, 2010; Rosemberg 1994). Vítima de abandono, ela foi classificada como advinda das famílias desapropriadas - de saúde, de educação, de alimento, de lazer, do direito de brincar. O investimento feito pelo Estado via políticas públicas parece então recair sobre a pobreza. Nesse sentido, o olhar estatal para a condição de perigo denota uma preocupação com a criança que pode, no futuro, se tornar perigosa à sociedade (Donzelot, 1980). Assim, a garantia da vida segura oferecida a essas crianças pelo Estado assume um novo caráter. Trata-se, nesse contexto, de um grande mecanismo biopolítico que tenta assegurar que as famílias das camadas populares se orientassem pelas normas e moral sociais determinadas pelo padrão dominante (Lemos, 2008; Lemos, Scheinvar & Nascimento, 2014; Rizzini, 2008).

Essas mudanças relativas ao cuidado da criança surgem a partir do posicionamento internacional sobre os direitos da criança, iniciado pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. A proposta de garantia desses direitos passou a fazer parte do sistema jurídico brasileiro, em decorrência dos diversos movimentos sociais, tal como o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR). A Doutrina da Proteção Integral passou a ser valorizada pela sociedade brasileira enquanto alternativa para as intervenções arbitrárias administradas aos até então menores.

Dessa forma, os vetores do cenário internacional, as repercussões sociais da Constituição de 88 e a posterior elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 consubstanciaram legalmente a Doutrina da Proteção Integral. O Estatuto eleva as crianças à condição de sujeitos de direitos dignos da proteção do Estado, da família e da sociedade. Na perspectiva dos Direitos Humanos a que o ECA se abre, tal instrumento normativo objetiva estabelecer uma nova dinâmica de inserção da criança na sociedade, reconhecendo a primazia de seus direitos e a necessidade de ser protegida, e não mais culpabilizada e punida (CONANDA, 2007). Assim, o direito da criança visa abrigar as condições para o exercício da infância em sua plena subjetividade (Dantas, 2009).

O nosso Estatuto objetiva romper com o paradigma da criança-objeto alvo de intervenções jurídicas, passando a compreendê-la como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. A proteção integral pronunciada ambiciona proteger crianças de situações de abuso e exploração sexual, tortura, tráfico, pornografia, maus-tratos, abandono, negligência, crueldade, opressão e discriminação (Santos, Torres, Nicodemos & Deslandes, 2009). Nessa linha, essa Doutrina se configura também como a orientação que os profissionais devem integrar ao seu trabalho nas áreas de garantia de direitos da criança, fornecendo os pressupostos para que as intervenções sejam as mais fidedignas às concepções de direito inerentes a essa parcela da sociedade.

 

Surge o Incômodo:os paradoxos presentes no exercício da proteção integral no Brasil

A legislação e os parâmetros de atuação para os serviços da rede de atenção à infância estabelecem com clareza o princípio nuclear da proteção integral a ser executado na política brasileira de atenção à infância. No entanto, as complexas dimensões da realidade de violação de direitos impõem contenções às ações necessárias para a garantia da devida proteção à criança (Malaquias, 2013; Marra, 2004).

O processo de construção do lugar da criança no país é marcado por contraditórios momentos históricos da inserção da criança na sociedade, dada a heterogeneidade da infância no país (Alboz, 2012; Ferreira, 2015; Pulino, 2001; Rizzini, 2008; Rizzini & Gondra, 2014). A infância retratada por Donzelot (1980) era a negligenciada, a abandonada e entregue às decisões das práticas disciplinares e corretivas dos juízes, dos médicos e dos trabalhadores sociais (Donzelot, 1980). A conquista do ECA nos faz esperar um novo olhar e novas práticas que estejam orientadas por princípios que entendam a criança como um sujeito de direitos e que lhe garantam lugar de proteção e cuidado, bem como um lugar de visibilidade para aspolíticas públicas pensadas para elas. É necessário, entretanto, que essas práticas de proteção e os atuais discursos sobre a criança em situação de risco sejam problematizados. Dadas as condições históricas de nossa sociedade que erigiram o lugar político a ser ocupado pela criança, é preciso levantar-se questionamentos acerca de visões normativas e reguladoras que dificultam a real transformação social da criança no Brasil (Gonçalves, 2010).

O discurso que se elaborou acerca da representação da infância em risco no Brasil se construiu enquanto um discurso polarizado. Enquanto um polo visava a criação de uma infância protegida pela esfera intimista da família burguesa, e a quem era garantida a não interferência do Estado; no outro polo, as famílias brasileiras das camadas populares se tornavam alvo das intervenções estatais a partir do controle, das práticas higienistas, do regramento e da organização de suas habitações. Neste segmento da população, a infância deveria, portanto, ser controlada, a fim de que no futuro não se tornasse uma ameaça e um perigo à sociedade (Lemos, 2003; Rizzini, 2008). Crianças consideradas alvo das políticas assistenciais seriam aquelas em situações de risco, marcadas pela irregularidade do funcionamento familiar, bem como pela falta de saúde, segurança e educação.

O período da transição do regime monárquico para o regime republicano foi marcado por transformações no pensamento social sobre a infância enquanto o grande amanhã da nação (Rizzini, 2008). Nesse período, os especialistas em nome da medicina higienista já discursavam sobre os investimentos necessários para que a infância empobrecida e enferma pudesse advir como o futuro do país. Atuando em dois grandes eixos, pedagógico e psicológico, a higiene das crianças se fazia pela interferência na sua educação - por meio das instituições reformatórios a que eram enviadas; e nos espaços domésticos, intervindo-se assim nas famílias e no seu espaço privado.

O discurso da atenção voltada à criança, que agora tem seu destaque na sociedade brasileira, se confunde com o exercício da normalização e da contenção. Afinal, ofereciam-se recursos sociais à criança em situação de vulnerabilidade a fim de que ela, vista até então como o gérmen da crueldade, da perversão e da imoralidade, não fizesse também vulnerável a sociedade como um todo (Rizzini, 2008).

Os problemas da infância que justificariam as políticas assistenciais são produzidos pela mesma sociedade que elabora discursos de proteção (Zaniani & Boarini, 2011). Vale retomar que o país começou a pensar as políticas sociais especialmente voltadas para a criança no início do século XX. À medida em que a sociedade brasileira passou a usufruir do desenvolvimento capitalista, tais serviços de distribuição de recursos para os grupos mais vulneráveis tomaram forma a fim de que a desigualdade social fosse manejada. Nessa interação dialética estabelecida pela dinâmica socioeconômica, elucidar a continuidade entre desenvolvimento econômico e desigualdade social favorece uma leitura da infância fundada nas condições concretas ocupadas historicamente por esses sujeitos (Gonçalves, 2010).

A mesma desigualdade e vulnerabilidade social engendradas pelo capitalismo terminam por precisarem de tratamento desse mesmo sistema econômico, político e ideológico. Nesse contexto, as intervenções tanto do Estado quanto dos profissionais voltam-se para a infância em risco e delinquente. Uma nova leitura acerca da situação de risco a que essa criança estaria submetida aponta que o uso atual da expressão criança em situação de risco, ou até mesmo das aplicações do termo risco, aparece como eufemismo que encobre a verdadeira situação da criança que já está exposta a uma série de violação de direitos. A ideia de risco, portanto, vem encobrindo as reais situações de vulnerabilidade ao afirmá-las apenas como prováveis (Sêda, 1999 citado por Hillesheim & Cruz, 2008).

Como paradoxo presente na efetivação das políticas estabelecidas pelo Estado para proteção da infância, identificam-se duas facetas que coexistem dialeticamente no que se refere ao contexto político da proteção. Por um lado, há uma espécie de ausência das ações estatais no cotidiano dos trabalhadores sociais. Observa-se que faltam recursos exigidos pelo próprio trabalho psicossocial das instituições do Sistema de Garantia de Direitos. E por outro lado, o Estado comparece impondo limitações das quais os trabalhadores sociais reclamam como sendo empecilhos à proteção e à atenção imediata devidas à criança vítima de violência (Fuziwara & Fávero, 2011).

As violações que ocorrem no próprio Sistema de Garantia de Direitos estão relacionadas à carência de ações estatais mais pontuais e acessíveis aos atores sociais; ao pouco recurso oferecido pelo profissional à família; e à burocracia com o excesso de documentos que não operam as medidas necessárias (Malaquias, 2013). Quando o agente público figura como protagonista da violação de direitos, depara-se com uma situação que deve gerar novas preocupações na medida em que a ausência do Estado produz novas violências.

A análise das práticas dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos que executam a política pública para a infância incluirá uma leitura crítica das continuidades entre a proteção e a desproteção das crianças acolhidas pelas instituições de restituição de direitos. A proteção que se idealiza nos discursos normativos que orientam as ações dos práticos deve ser problematizada a fim de que essas mesmas ações sejam desnaturalizadas, e se passe a questionar de que ordem é a proteção à infância no Brasil, a quem serve e ainda, de que dispositivos sociais se serve para atingir seus objetivos.

A insuficiente clareza acerca do que é proteger e como proteger diminuem os recursos disponibilizados para que se concretize uma proteção que favoreça a real emancipação da condição individual e social das crianças em violação de direitos. A elucidação dos paradoxos presentes nas práticas do Sistema de Garantia de Direitos deve se estender aos discursos enunciados pelo Estado de Direito e pelos profissionais que atuam junto às famílias que recorrem às instituições de proteção social.

A proteção das crianças e adolescentes em situação de violação de direitos compreende, portanto, as práticas cotidianas de trabalhadores sociais do Sistema de Garantia de Direitos. Ali, nas relações estabelecidas nos contextos das instituições de restituição de direitos, os profissionais e as famílias se encontram e buscam efetivar as medidas que a política pública enuncia. Assim, a vida das famílias atendidas também está em relação com o contexto de maior amplitude em que se concretizam as políticas públicas.

As diretrizes que orientam as ações de proteção no contexto público junto às crianças coexistem com as concepções que os diversos profissionais elaboram no contato mesmo com os sujeitos que participam das intervenções. Assim, é preciso buscar as concepções dos profissionais do sistema de proteção à infância; para além dos discursos normativos já conhecidos, tais como o ECA. Tal debate, suscitado pelas concepções desses profissionais, pode fazer emergir os sentidos construídos por eles a respeito da criança e das situações de risco em que se encontra no momento das intervenções. Essas concepções que se materializam nas práticas podem revelar outras facetas da dinâmica das ações públicas de cuidado à infância que estão em jogo quando trabalhadores sociais intervêm.

 

Método

O caráter da pesquisa qualitativa propõe que o pesquisador se dirija às questões concretas que emergem do contato com a realidade e de sua problematização, em situações específicas e contextualizadas social e historicamente (Denzin & Lincoln, 2008). O papel da pesquisadora na realidade dos trabalhadores sociais se delineou tanto no contexto dialógico da construção das informações por meio das entrevistas realizadas; quanto no seu método de análise. As três entrevistas realizadas foram apreciadas por meio de indicadores levantados e posteriormente pela interpretação que construiu as zonas de sentido elaboradas. Os indicadores consistem de elementos que ganham significação por meio da interpretação oferecida pelo pesquisador. Presentes nas informações trazidas pelos participantes da pesquisa, os indicadores são momentos hipotéticos que, unidos aos outros sentidos produzidos, geram uma construção teórica de crescente complexidade. As zonas de sentido posteriormente elaboradas emergem da síntese e da organização dos indicadores do sentido trazidos pelos participantes e levantados a partir das informações (González Rey, 2005).

Participantes

Participaram deste estudo três profissionais da rede de serviços do Sistema de Garantia de Direitos, do Distrito Federal - DF, inseridos em um Conselho Tutelar de Região Administrativa do DF, com cerca de 125.123 habitantes, e conta com mais uma unidade do Conselho para a comunidade. A renda domiciliar média mensal foi levantada, no ano de 2015, em torno de 4,03 salários mínimos, de acordo com Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios, no mesmo ano de 2015. Entre os três profissionais, dois haviam sido eleitos para o cargo de conselheiro tutelar da Região para a gestão trienal compreendida entre os anos de 2013 a 2015. Um deles possuía formação superior em Psicologia, e a outra conselheira dava andamento à sua formação em Serviço Social. O terceiro profissional integrado ao Conselho Tutelar em questão, com formação em Psicologia, participava de reuniões técnicas no Conselho e de projetos voltados à comunidade, em caráter voluntário.

Instrumentos

Como instrumento, utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada. As questões apresentadas aos participantes objetivavam compreender suas concepções acerca da criança, da configuração e da identificação de situações de risco em que esta se encontra; bem como as emoções suscitadas pelo encontro com as vítimas com direitos violados.

Análise das Informações

As entrevistas foram posteriormente transcritas e analisadas a partir do levantamento de indicadores de sentido. Estes revelaram concepções acerca da criança, acerca das noções de risco e vulnerabilidade social; bem como a respeito da identificação dos riscos sociais pelo profissional em seu trabalho. Posteriormente, as informações foram reunidas nas seguintes zonas de sentido:

1) Criança entendida como sujeito da falta; e,

2) Criança em situação de risco: criança pobre, criança sem direitos.

 

Resultados e Discussão

Um dos grandes sentidos que emergiu na fala dos profissionais aponta para uma concepção de criança que pode ser problematizada, tendo em vista o novo sujeito de direitos que o Estatuto da Criança e do Adolescente considera em seu discurso (Brasil, 1990; Monteiro & Castro, 2008). Coexistindo com o sentido que confere à criança o novo lugar de sujeito nas políticas públicas de proteção à infância, há outro que comparece mediante a escuta de determinados trabalhadores sociais. Estes, quando falam sobre a criança que recebem em sua instituição, descrevem-na como um sujeito da falta. Um sujeito que ainda está por acontecer; ou ainda um pequeno adulto a quem faltam determinados atributos.

Nesse discurso, a criança está classificada como quem ainda precisa ser preenchido em suas lacunas - "então seria muito bom se as nossas crianças, se a caixinha das nossas crianças fosse cheias só de coisas boas", "tem mais complexidade que um adulto, e ao mesmo tempo é menos que isso" - e, preferencialmente, preenchido com elementos que não a pobreza, a vulnerabilidade e a violência.

A criança comparece adjetivada pela passividade, tal como um receptáculo. A infância construída nesta zona de sentido se desenvolve em função das ações dos adultos, não sendo vista como um sujeito protagonista de seu desenvolvimento - "criança é um ser em desenvolvimento que precisa ser... que precisa de instrução, precisa de orientação". As ações dos adultos comparecem no discurso associadas à orientação, à instrução e à educação, conforme discutido pelos trabalhadores sociais entrevistados neste estudo. Assim, esse adulto que convive com a criança continua tentando gerenciá-la (Dornelles, 2010), mesmo afirmando executar práticas ditas de cuidado e de atenção. Percebemos que os verdadeiros atores da infância e do desenvolvimento infantil não as próprias crianças, mas sim (ainda) os adultos responsáveis pelo preenchimento das suas supostas faltas.

Ainda que na modernidade fosse conferida à criança um lugar na vida afetiva e nos cuidados presentes nas relações com os adultos (Ariès 1981; Donzelot, 1980), a mesma permanecia submetidas ao olhar do adulto; aos sentidos que esses, em uma relação nada horizontal, ainda lhes conferiam. Era de acordo com os padrões dos adultos que a educação, a saúde e o afeto eram direcionadas a elas. Os especialistas vêm, portanto, para corroborar a sistemática das práticas direcionadas à infância, e também às famílias responsáveis por sua tutela. Mesmo as teorias psicológicas e pedagógicas emergentes no século XIX, se as considerarmos criticamente em seu sentido político, contribuíram para as necessidades dos adultos em acompanhar e auxiliar o desenvolvimento infantil (Donzelot, 1980; Ferreira, 2015; Foucault, 2015).

Retomando o que é trazido pelos trabalhadores sociais entrevistados, questiona-se os mecanismos que sustentam as concepções de criança que a entendem como "uma caixa vazia que precisa ser preenchida" ou como um sujeito que precisa ser "compreendido, instruído, educado". Tais concepções trazem novamente a ideia de um sujeito infante (sem fala), passivo e objeto das práticas dos adultos, em função das normas necessárias à sociedade, como a própria escolarização. Os sentidos que permeiam o olhar para a criança parecem continuar sustentando-a como alvo de uma certa normalização e disciplinarização. Neste cenário, vemos a ambivalência entre as concepções relativas às crianças como menores e como sujeitos de direitos, da maneira que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece (Monteiro & Castro, 2008).

Há, portanto, um discurso paradoxal que ora defende o espaço sociopolítico da criança, ora desacredita de seu papel social, apostando em sua vulnerabilidade e na necessidade de controle. Assim, proteção e normalização da criança são dois sentidos, que dialética e historicamente, vem sustentando a prática dos profissionais. É a proteção integral que se justifica para o governo e para a disciplina da criança. É o olhar que transforma a criança em sujeito importante da sociedade, mas também a coloca como alvo das práticas higienistas e moralizantes (Fonseca & Cardarello, 1999; Lemos, 2003; Rizzini, 2008; Silveira, 2015).

Profissionais que intervém com a criança pensando-a sem lugar como sujeito de fato concebem a infância como um grupo desprovido. Trata-se de um sujeito despojado, seja de um desenvolvimento completo, de um ambiente familiar saudável ou ainda de sua própria vida: "o que é falar da vida pra uma criança de 6, 7, 8 anos? ela teoricamente não tem vida!", tal como afirma um conselheiro tutelar entrevistado. A criança retratada é vista pela perspectiva da "menoridade", que põe em questão até os mínimos direitos civis e políticos desse grupo social (Castro, 2001; Monteiro & Castro, 2008). Nesse sentido, torna-se tarefa árdua a concretização de um trabalho psicossocial que que considere a criança na condição outra de sujeito de direitos, tendo em vista o processo histórico das concepções que vieram embasar as práticas de atenção à infância; bem como os paradoxos que a realidade encerra.

A respeito do construto "fator de risco" ou "risco" situado no instrumento de entrevista, elaboraram-se saberes que qualificam as vítimas e suas famílias em atendimento. Questionados acerca da definição da expressão "criança em situação de risco", os profissionais participantes trouxeram significados que serão retratados por meio de um tripé, uma composição cujas pontas se intercomunicam e contribuem umas com as outras na sustentação da estrutura.

Esse tripé apresenta os componentes Pobreza, Família e Ausência de Direitos Básicos. Há interconexões entre cada um desses elementos, que possuem suas nuances e que, ao mesmo tempo, sustentam o polo oposto. A grande estrutura que se forma a partir desses três constituintes é o construto denominado Criança em Situação de Risco. Portanto, a noção de uma infância em risco se estrutura por meio de outros sentidos relacionados à condição de Pobreza socioeconômica; à Família, em sua suposta desestrutura e (des)organização vincular; bem como à Ausência das Direitos Básicos, considerada pelos trabalhadores sociais como as insuficiências na educação, na segurança, na saúde e na alimentação dessas crianças.

A não garantia da educação, da saúde, da alimentação, do acompanhamento dos adultos, de cuidados básicos; e a falta de infraestrutura no ambiente em que vive e a privação foram apontados pelos profissionais do SGD como os descritores da situação de pobreza que marca a vida das crianças que são recebidas pelos equipamentos institucionais em pauta. Tendo perdido seus direitos, se está diante de uma criança na condição pobre. A ausência dos direitos básicos na vida das crianças faz dela uma criança pobre, carente de uma série de recursos que lhe foram privados - "fator de risco para uma criança é aquela situação onde ela é privada, independente qual for o motivo, das condições mínimas pro [sic] desenvolvimento dela enquanto criança", "que a pobreza vai gerar uma falta de acesso à educação, à saúde, que esses são fatores de risco". Encontrando uma criança pobre, veríamos também essa ausência de direitos? O raciocínio parece encurralar, uma vez que estar-se-á sempre se fazendo referência a uma comunidade localizada na pobreza socioeconômica, que precisaria das intervenções para a restituição dos direitos que lhes foram perdidos por conta de sua própria condição de pobreza.

Famílias de outros status socioeconômicos do país, ou mesmo da capital federal em que se localizam, não foram mencionadas pelos trabalhadores sociais deste estudo. Está estabelecido, portanto, um sentido que conecta apenas a pobreza à falta de direitos, e deste modo, um dos requisitos para a configuração de uma situação de risco na vida de uma criança.

A pobreza que produz e, ao mesmo tempo, faz parte da ausência dos direitos para as crianças, é uma condição que também marca a existência das famílias com que os nossos trabalhadores se envolvem no cotidiano institucional. São famílias que não se encontram plenamente filiadas à uma estrutura social, por meio do trabalho - que é um suporte de inscrição do sujeito na estrutura social; ou ainda por meio da inserção relacional (Castel, 2015). Existem níveis que vão desde a integração à desfiliação, no caso de sujeitos e famílias que se encontram desempregadas ou sem filiações relacionais, seja com a comunidade, com a rede familiar ou com serviços de assistência (Castel, 2015). De fato, o construto da desfiliação nos ajuda a compreender como ainda mais relevantes as relações das famílias pobres com as instituições de referência socioassistencial.

De que ordem são tais relações entre as instituições do Sistema de Garantia de Direitos e as famílias? Será que são relações que destacam apenas "pobreza", "desestrutura", a "negligência" [sic]? Novamente, o discurso dos trabalhadores sociais aponta para a lacuna, para o desvio, para o que a família pobre faz, ou deixa de fazer, e que viola os direitos da criança.

As famílias que incorrem em suas faltas - seja pela negligência, pela drogadição, pela falta de acompanhamento do adulto para com a criança, de acordo com a realidade dosparticipantes - são as que promovem as maiores violações de direitos. É estabelecida, a partir dos sentidos construídos pelos profissionais, a correlação entre a ausência de direitos, a pobreza e as faltas cometidas por essas famílias. Ao receberem o adjetivo pobre, essas famílias passam a receber os encargos da negligência e dos desacertos no cuidado à infância. Assim, esses núcleos familiares, qualificados como pobres, são ainda responsabilizadas pela ausência dos direitos básicos na vida de suas crianças.

A família pobre por seus excessos ou negligências está, na visão dos profissionais do campo psicossocial, intimamente ligada ao que vem faltando para a criança. Esse raciocínio remonta ao que Donzelot (1980) e Foucault (2015) explicam a respeito da tutela exercida sobre as famílias pelo Estado e por seus mecanismos assistenciais. A família é obrigada a, ela mesma, vigiar e zelar por seus membros se não quiser ser "ela própria, objeto de uma vigilância e de disciplinarização" (Donzelot, 1980:81). Tal mecanismo de tutelarização entra em cena em vistas da desqualificação da família. Uma vez incompetente e negligente, o Estado a classifica como incapaz de exercer o poder que lhe é próprio. Nesse momento, o Estado emana como protetor e assume o poder dentro família, auxiliado pelas técnicas e pela prática dos técnicos e especialistas (Scheinvar, 2000).

No universo dessas intervenções no campo social, o princípio da responsabilidade da família, do Estado e da sociedade na garantia de direitos de crianças e adolescentes presente na Constituição Federal e, posteriormente detalhado no ECA, termina por reiterar e justificar a suposta necessidade de um governo sobre as famílias que não fazem a gestão esperada de seus membros. Assim, a realidade se configura de maneira que Estado e sociedade continuem estabelecendo a ordem nessas famílias; e posteriormente esperando que as mesmas reparem os desvios.

E quais seriam as possibilidades, as competências e os recursos nos quais as intervenções socioassistenciais podem investir? Da mesma forma que as crianças são vistas em suas lacunas e por suas insuficiências; também a leitura da situação do risco enfoca apenas o que já faltou, o que já sobreveio e impediu o acesso aos direitos. Essas informações se assemelham ao que Silveira e Yunes (2010) encontraram com os profissionais do sistema judiciário. Nesse contexto, também se expressam leituras pautadas pelo pessimismo, pela desestrutura, pela carência, pela drogadição e violência.

 

Considerações Finais

O recorte da realidade a que se teve acesso neste trabalho nos ajudou a reunir informações e a construir os sentidos presentes na lide cotidiana dos profissionais do campo da proteção social à infância, especificamente em um Conselho Tutelar do Distrito Federal. As pesquisas e os aprofundamentos realizados para a compreensão da política pública para a infância têm trazido para a área uma complexa teia de novas perspectivas para a garantia de direitos. Nesse sentido, esta pesquisa se coloca em uma perspectiva mais crítica sobre os mecanismos sociais de proteção, a atuação dos profissionais envolvidos e a experiência concreta de famílias e instituições na execução do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.

A problematização dos discursos de proteção apropriados pelos trabalhadores sociais entrevistados demonstra a necessidade de uma compreensão dialética dessa realidade, admitindo-se a constante dissolução das certezas e as tentativas de se encontrar os sentidos imbricados na prática profissional com a violação de direitos. Os sentidos imiscuídos ao fazer dos atores, ainda que paradoxais, anunciam a ordem que pretendem preservar. Assim, os discursos que produzem a infância dita em risco hoje referem-se mais aos jogos de poder, à sustentação de prescrições às famílias e da norma do que propriamente apresentam uma nova perspectiva sobre a infância e seus direitos. Os aparatos sociais de acolhimento às crianças em situação de risco direcionam-se também a suas famílias, com objetivo de delatar aqueles grupos familiares que não conseguiram oferecer as condições básicas à criança. Vemos a possibilidade de que o conjunto das instituições proposto para a garantia de direitos da criança na sociedade brasileira se funda em práticas profissionais que atestam a falha e a negligência de famílias pobres.

No bojo das concepções trazidas pelos profissionais entrevistados, se resgata também a ideia de que proteção e violação de direitos da criança estão correlacionados. Os mecanismos institucionais - públicos ou privados - oferecem atenção à infância, sim. Mas a uma infância congelada no status de menor, de menoridade. A criança hoje compreendida pelas ações de proteção social no Brasil, nesse presente recorte da realidade, é alvo de práticas que mais se assemelham ao controle do governo e à condução da infância a um determinado lugar na cultura do que propriamente à proteção integral pretendida por uma política de Estado.

Há que se materializar o sujeito de direitos a que a política pública da infância tem se dirigido. Para tanto, é preciso primeiramente que a criança seja redescoberta sob o estatuto do acontecimento, de um fenômeno que escapa aos limites de uma existência ideal e fictícia, tal como estabelecido por um modelo idealizado e normatizante.

Longe dos modelos que impõem limites ao que a criança pode vir a ser, a infância exige considerarmos sua heterogeneidade, nas variadas experiências de ser criança no Brasil. Quando a criança é concebida como não sujeito de seu desenvolvimento e que só alcança todas as capacidades ao atingir os norteadores postos pelos adultos, ela deixa de vista como sujeito de direitos e desejos e permanece sob os discursos da subjugação e da vulnerabilidade. Quando vista como sujeito de direitos de fato, as ações de proteção passam a almejar o resgate à condição de dignidade e respeito e não a perpetuação da condição de vítima.

Vitimizada pela situação de risco, essa criança experiencia a ausência de direitos, provocada pela pobreza e por uma família que também já a feriu pela desestrutura, pelas relações abusivas, pela negligência ou pela drogadição, como dito pelos participantes. Mantém-se a estigmatização e a culpabilização associadas aos grupos ditos pobres. Há um olhar que marca a família empobrecida e que a culpabiliza por uma suposta incompetência e desestrutura no estabelecimento de seus vínculos.

Parece haver pouco espaço para reflexão, da parte dos profissionais envolvidos na proteção à infância, acerca das questões aqui discutidas. Na medida em que predomina o discurso da tutela e da disciplinarização, o modo como esses profissionais operam está constituído por essa ordem e pelas concepções que diminuem a criança enquanto sujeito. Uma leitura acerca da ausência de direitos na infância poderá ser mais complexa caso inclua o discurso presente no agir profissional dos agentes públicos de proteção, tal como o Conselho Tutelar. Assim, a emergência política das crianças na sociedade brasileira poderá acontecer por meio de reformulações nos sentidos construídos pelos atores sociais.

 

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Recebido em 23/10/2015.
Aceito em 29/12/2015.

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