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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Crianças do Campo: da invisibilidade ao reconhecimento como sujeito de direito

 

Country Children: from invisibility to recognition as a subject of law

 

Niños Campesinos: la invisibilidad al reconocimiento de un sujeto de derecho

 

Enfants Paysans : invisibilité à la reconnaissance en tant que sujet de droit

 

 

Adelaide Alves DiasI; Maria do Carmo de Moura Silva SoaresII; Maria Roberta de Alencar OliveiraIII

IPsicóloga, Mestre em Psicologia Social e Doutora em Educação. Professora e pesquisadora dos Programas de Pós-graduação em Educação e em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas, da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil. adelaide.ufpb@gmail.com
IIPedagoga, Licenciada em Letras, Especialista Gestão e Avaliação da Educação Pública e em Coordenação Pedagógica, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil. mcmoura2@gmail.com
IIIPedagoga, Especialista em Gestão Escolar, Mestre em Educação, Doutoranda em Educação e Professora da Universidade Federal da Paraíba - Campus III, João Pessoa, PB, Brasil. robertaalencaroliveira@hotmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar como processos de silenciamento e de invisibilização que caracterizaram historicamente a construção das culturas infantis das crianças do campo, impuseram-lhe formas subalternas de existência, mediante revisão do conceito de socialização. À luz da sociologia da infância e dos estudos pós-coloniais, partimos do pressuposto de que a infância enquanto categoria social é uma construção que implica uma condição de vida não apenas biológica, mas cultural. Com base em abordagens críticas da perspectiva teórica intercultural, examinamos a existência de uma pluralidade de culturas infantis nas quais as crianças do campo constroem-se e são construídas nas relações estabelecidas com os seus pares, os adultos e o mundo rural ao qual pertencem, considerando o tensionamento entre o rural e o urbano. Após análises desenvolvidas a partir das reflexões teóricas efetuadas, concluímos que as tensões e contradições que permeiam a invisibilidade das crianças do campo, ainda que marcados pela subalternização, expressam também a busca por novos caminhos e referenciais para dar visibilidade a este sujeito social.

Palavras-chave: Culturas Infantis, Crianças do Campo, Sociologia da Infância, Estudos Pós-Coloniais, Interculturalidade Crítica.


ABSTRACT

The aim of this article is to analyze how processes of silencing and invisibilization that historically characterized a construction of the children 's cultures of the rural children, imposed, subaltern forms of existence, by reviewing the concept of socialization. In light of the sociology of childhood and post-colonial studies, we start from the assumption of a childhood as a social category is a construction that implies a condition of life not only biological but cultural. Based on critical approaches from the intercultural theoretical perspective, it examines the existence of a plurality of child cultures in which as rural children are constructed and built in the relationships established with their peers, adults and the rural world to which they belong, considering the tension between rural and urban. After analysis developed from theoretical reflections made, we conclude that as tensions and contradictions that permeate the invisibility of rural children, even if marked by subalternization, also express the search for new ways and referential to the vision of a social subject.

Keywords: Children's Cultures, Children of the Countryside, Sociology of Childhood, Postcolonial Studies, Critical Interculturality.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar como procesos de silenciamiento y de invisibilización que caracterizaron históricamente la construcción de las culturas infantiles de los niños del campo, impusieron formas subalternas de existencia, mediante la revisión del concepto de socialización. A la luz de la sociología de la infancia y de los estudios postcoloniales, partimos del supuesto de que la infancia como categoría social es una construcción que implica una condición de vida no sólo biológica, sino cultural. Sobre la base de enfoques críticos de la perspectiva teórica intercultural, examinamos la existencia de una pluralidad de culturas infantiles en las que los niños del campo se construyen y se construyen en las relaciones establecidas con sus pares, los adultos y el mundo rural al que pertenecen, la tensión entre lo rural y lo urbano. Después de análisis desarrollados a partir de las reflexiones teóricas efectuadas, concluimos que las tensiones y contradicciones que permean la invisibilidad de los niños del campo, aunque marcados por la subalternización, expresan también la búsqueda de nuevos caminos y referencias para dar visibilidad a este sujeto social.

Palabras clave: Culturas Infantiles, Niños del Campo, Sociología de la Infancia, Estudios Postcoloniales, Interculturalidad Crítica.


RÉSUMÉ

L'objectif de cet article est d'analyser comment les processus de silence et d'invisibilisation qui caractérisent historiquement la construction des cultures infantiles des enfants ruraux lui imposent des formes subalternes d'existence, par la révision de la notion de socialisation. À la lumière de la sociologie de l'enfance et des études post-coloniales, nous partons de l'hypothèse que l'enfance en tant que catégorie sociale est une construction qui implique une condition de vie non seulement biologique mais culturelle. Basé sur des approches critiques du point de vue théorique interculturel, nous examinons l'existence d'une pluralité de cultures infantiles dans lesquelles les enfants ruraux sont construits et construits dans les relations établies avec leurs pairs, les adultes et le monde rural auquel ils appartiennent, compte tenu la tension entre rural et urbain. Après une analyse développée à partir des réflexions théoriques réalisées, nous concluons que les tensions et les contradictions qui imprègnent l'invisibilité des enfants ruraux, même si elles sont marquées par la subalternisation, expriment également la recherche de nouvelles voies et références pour donner une visibilité à cette sujet sociale.

Mots clés: Cultures des Enfants, Enfants Ruraux, Sociologie de L'enfance, Etudes Postcoloniales, Interculturalisme Critique.


 

 

Introdução

Esse artigo analisa os processos de socialização e a construção histórica das culturas infantis do campo a partir dos estudos pós-coloniais e da sociologia da infância. Toma por base o pressuposto de que a sociologia da infância, enquanto modelo interpretativo da socialização das crianças e das culturas infantis, encontra-se alinhada com as proposições das teorias decoloniais que permitem visibilizar outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica dominante. Tais teorias, à medida em que aproximam de um posicionamento crítico de fronteira, têm como objetivo a construção de um pensamento-outro (Walsh, 2008, 2009).

Esse pensamento-outro não nega a existência de um pensamento dominante, mas sujeita-o ao constante questionamento e hibridiza-o com outras formas de pensar, problematizando as metanarrativas modernas que trazem em seu bojo uma concepção colonizada e subalternizadora do ser criança, invisibilizando-a como sujeito histórico, social, político e de direitos.

Segundo Quijano (2000, 2007), o padrão de poder perspectivado pela colonialidade está presente nas relações intra e interculturais, na negação dos saberes, dos modos de ser e de existir dos povos subalternizados e também nas suas relações com a natureza, sendo definida por ele como colonialidade do poder, colonialidade do saber, colonialidade do ser. Dessa forma, os discursos e as práticas associados à colonialidade promovem a ideia de universalizar e de validar apenas um tipo de conhecimento, que parte de um determinado lugar de poder considerado como o único legítimo.

Sarmento (2007), ao analisar a negação dos saberes, dos modos de ser e de existir das crianças, identifica três dimensões características dos processos de invisibilização sofridos historicamente pelas crianças: a invisibilidade histórica; a cívica e a científica. A invisibilidade histórica evidencia-se na ausência da criança nos documentos históricos nos quais quando a criança aparece é "ou como memória infiel ou como legatária de uma tradição, de um poder ou de bens a prosseguir como herança familiar". Cabe dizer que mesmo nessa historiografia, a criança das classes populares ainda permanece invisibilizada. A invisibilização cívica diz respeito às crianças continuarem (através da história) como grupo social excluído de direitos políticos expressos e a invisibilidade científica, mais do que uma exclusão produzida por ausência de investigação sobre as crianças e a infância, é produzida pelo tipo dominante de produção de conhecimento.

Dessa forma, pressupomos que tais abordagens teórico-conceituais contribuem para o enfrentamento de questões relativas à compreensão de processos histórico-culturais de silenciamento, de invisibilidade e de subalternalidade desses sujeitos sociais que encontram-se na periferia das ações das políticas públicas, para as quais

[...] a convergência entre a abordagem pós-colonial e a perspectiva da Sociologia da Infância contribui para se pensar a emergência de práticas que reconheçam os sujeitos que se mantém numa colonialidade subjetiva, numa relação de poder que os oprimem e excluem nos âmbitos sociais, culturais, econômicos e políticos, negando suas culturas e identidades, tornando-os invisíveis (Simão, Santos & Barroca, 2015:10).

No caso das crianças campesinas, essa invisibilização/subalternização aparece duplamente: por serem crianças e por serem sujeitos do campo, por isto, o estudo das culturas infantis são uma importante chave de interpretação para nos ajudar a compreender os processos de socialização infantil a partir da compreensão de como as crianças do campo constroem, significam e agem no mundo de forma sistematizada e intencional.

A ideia de revisitar o conceito de socialização infantil orientou toda a construção do nosso objeto: a constituição das crianças do campo enquanto sujeito de direitos. Orientou, também, o percurso metodológico empreendido, que consistiu em uma análise aproximativa do conceito de socialização infantil derivado dos aportes da teoria decolonial latino-americana e da Sociologia da Infância, mediante análise qualitativa e interpretativa dos elementos teóricosconceituais capazes de desvelar a construção histórica dos processos de invisibilização/subalternização das infâncias campesinas e, simultaneamente, as formas de resistência a eles.

Para empreender a tarefa de discutir os processos de socialização das infâncias campesinas, desenvolvemos um movimento de análise em três níveis complementares e interdependentes. No primeiro, procedemos à análise conceitual de processos sócio-históricos de construção das infâncias, incluindo as do campo, desde a condição de invisibilidade até a sua afirmação enquanto categoria social e o consequente reconhecimento da criança como sujeito de direitos. No segundo, com base na sociologia da infância, analisamos a questão da pluralidade das culturas infantis, a partir da noção de que cada criança, em sua singularidade, sente, pensa e vê o mundo de um modo particular, diferente do adulto, e que essa especificidade da criança apresenta-se de forma diversificada, a partir das diferentes condições sociais, históricas e culturais vividas por ela. No terceiro e último nível, fundamentadas nas abordagens teóricas decoloniais, problematizamos a existência de um entre-lugar na sociedade capitalista destinado às crianças do campo no qual os processos históricos de silenciamentos e invisibilizações encontram um campo de tensionamentos e contradições oriundo da possibilidade de construção de espaços, tempos e lugares que busquem romper com processos de deslegitimação dos sujeitos sociais campesinos, notadamente, das crianças do campo.

 

A Socialização da Criança e a Construção da Infância como Categoria Social

A ideia de infância, enquanto consciência da particularidade infantil, não existiu sempre e, quando passou a existir, apresentou-se de formas diferentes, de acordo com o contexto histórico e o cenário sociocultural, como resultado da complexidade de representações produzidas sobre as crianças (Ariès, 1981; Dias, 2007; Kramer, 2003; Sarmento, 2004; 2007).

Nas sociedades antigas, por exemplo, a criança não possuía um status social, nem tampouco autonomia existencial, pois era vista apenas como um ser biológico, cuja existência dependia, em certas ocasiões, da vontade do genitor. Nestas sociedades, a prática do infanticídio era comum, como forma de controle da população. Assim, na sociedade feudal, a criança que sobrevivia a altas taxas de mortalidade, muito comuns naquele momento, era considerada um adulto e assumia imediatamente um papel produtivo direto na sociedade.

O estudo clássico de Ariès (1981), demonstra que até o Século XII não havia sequer imagem corporal da criança retratada, fato que demonstra o quanto a ideia de infância era impensada. Durante o período do Renascimento, no Século XV, a imagem social da criança foi retratada nas pinturas artísticas como "anjinho" representando o ser ingênuo, puro, bom, frágil e, por extensão, incapaz de pensar por si mesmo. Percebe-se, pois, que, nesta época, a criança não possuía uma identidade própria e representava uma promessa de futuro, um vir-a-ser que culminaria no ser adulto.

Nos Séculos XVI e XVII, as crianças são retratadas nas obras artísticas como adultos em miniatura, demonstrando ainda a ausência de uma figura social que pudesse ser representativa da criança em suas especificidades. Os Séculos XVIII e XIX foram marcados pelas grandes transformações sociais, resultantes do processo de urbanização, da expansão capitalista e dos avanços científicos, os quais propiciaram o prolongamento da vida humana. E esse conjunto de mudanças possibilitou pensar a criança como sendo parte de uma população, com especificidades e diferenças que a tornava distinta em relação ao adulto, fazendo emergir a noção de inocência, pureza e fragilidade infantil, articulada a um sentimento de proteção da criança contra a maldade e impureza da vida adulta.

A noção de especificidade da infância enquanto ser puro, frágil e inocente desenvolve-se pelo Século XIX em um cenário de ideias iluministas, no âmbito de um contexto social em que a burguesia se firmava enquanto classe dominante, culminando com a sua substituição por um modelo de criança abstrato e universal, atrelado a uma concepção de criança detentora de uma natureza infantil específica e universal, que era determinada em períodos de maturação biológica, independente do seu contexto histórico, social e cultural.

Tal modelo burguês, universal e abstrato de criança, começa a sofrer processos de críticas variados no Século XX. Na origem dessas críticas encontram-se tanto os avanços das teorias sociais científicas quanto a complexificação das relações sociais aliada às lutas de resistência que foram ensejadas em função do avanço do capitalismo industrial. Esse contexto acabou por possibilitar o surgimento a ideia de "cultura infantil" e a visão da criança como sujeito de cultura e de direitos.

No contexto da modernidade, na mesma linha de periodização histórica traçada por Aries, Sarmento (2004), embora divirja em alguns aspectos do historiador francês, vai argumentar que as demandas do contexto moderno produziram duas fases na constituição cultural da infância, denominadas de institucionalização (1ª Modernidade) e reinstitucionalização (2ª Modernidade).

Embora distintos em suas dinâmicas, os processos de socialização infantil representativos tanto da institucionalização (1ª Modernidade) quanto da reinstitucionalização (2ª Modernidade) da infância ocorrem no âmbito da articulação de pelo menos quatro elementos: a emergência da escola para as crianças; a responsabilidade do núcleo familiar pelo cuidado dos filhos; a existência de um conjunto de saberes sobre a criança e a administração simbólica da infância.

A institucionalização da infância por parte da escola se dá mediante a ação do Estado de liberação das obrigações laborais e, ao mesmo tempo, de submissão a um conjunto de exigências e deveres de aprendizagem, os quais têm a finalidade de propiciar a absorção de certa epistemologia inerente à cultura escolar, de um saber homogeneizado, além de uma ética do esforço e de uma disciplina mental e corporal da criança.

Na 1ª Modernidade ainda, segundo Sarmento (2004), verifica-se a retomada da centralidade da família na prestação de cuidados e de estímulo ao desenvolvimento infantil, ainda que seja exercida de forma distinta nas diferentes classes sociais. Na classe média, a criança assume a posição de centro de convergência das relações afetivas, enquanto que nas classes populares, a criança torna-se destinatária de investimentos na formação escolar, a fim de que possa alcançar o objetivo de ascensão e a consequente mobilidade social.

A criança, na primeira modernidade, vira objeto de conhecimento de um conjunto de saberes científicos (psicologia, pediatria, pedagogia, entre outros), os quais exercem grande influência nas ações das famílias e nas práticas das instituições. Decorrente destes saberes, a criança tornase alvo de prescrições e as imagens sociais associadas a ela são representativas do antagonismo de ideias sobre as crianças. De um lado, a identificação com a figura do "anjo", natural, inocente e bela, que precisa da paparicação do adulto para preservá-la da corrupção do meio, e manter a sua inocência. De outro, a identificam como demônio, rebelde e caprichosa, vinculada à ideia de um ser imperfeito e incompleto, que em sua precariedade, necessita ser moralizada pelo adulto, mediante a educação, de modo a fortalecer e desenvolver o seu caráter e a sua razão.

As noções de inocência e razão proporcionam a composição do conceito da criança como natureza, segundo o qual todas as crianças são iguais, refletindo um ideal abstrato de criança e um período da infância definido segundo critérios de idade tendo como referência a criança burguesa, possuidora de uma essência infantil, independente das condições de existência e da classe social a qual a criança pertence. Assim, apresenta-se um modelo universal de criança em consonância com a visão da classe dominante, cuja infância é definida tomando-se como critério a idade e o nível de dependência do adulto.

A administração simbólica da infância caracteriza-se por um conjunto de prescrições atitudinais, procedimentais que condicionam a vida social das crianças que ganhou uma' dimensão muito mais ampla, mediante a criação de novos instrumentos reguladores, resultantes da participação de agências internacionais, como a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a OMS (Organização Mundial de Saúde), na elaboração de ações configuradoras de uma infância global no plano normativo que culminou com a potencialização das desigualdades, inerentes às condições socioculturais onde as crianças se encontram, uma vez que os parâmetros de homogeneização, desconsideram a diversidade de infâncias existentes no âmbito da infância que se pretende global.

No segundo estágio denominado de reinstitucionalização da infância (2ª Modernidade) é possível identificar implicações sérias "no estatuto social da infância e nos modos, diversos e plurais, das condições atuais de vida das crianças". Como consequência, há um deslocamento do lugar social das crianças (Sarmento, 2004).

Se no processo de institucionalização da infância da 1ª Modernidade buscou-se, em tese, a preservação da criança do mundo produtivo, no processo de reinstitucionalização da infância torna-se nítida a participação ativa da criança na esfera econômica, seja pela produção (trabalho infantil); seja pelo marketing (imagem da criança para vender produtos); seja pelo consumo (mercado de produtos para a criança).

A escola da 2ª Modernidade ao invés de afirmar-se como suposto lócus de "socialização para a coesão social", transforma-se em lócus de "trocas e disputas culturais". Trata-se de uma escola heterogênea, na qual o choque de culturas é inevitável, haja vista a diversidade sociocultural dos alunos que se inter-relacionam no interior e fora dela. No âmbito dessas tensões, surge um cenário de turbulências, que provoca inquietações e dificuldades para os sujeitos envolvidos no processo, caracterizando uma crise educacional. Na busca por alternativas à crise, emergem as perspectivas educacionais de "centralidade da criança", de "educação para a cidadania" e de "participação educativa", as quais podem ser caracterizadas como polifônicas e polissêmicas, uma vez que são dependentes de quem e de como são apropriadas, de tal sorte que " 'cidadania' pode significar 'disciplinação social' e 'autonomia' subordinação aos programas periciais das ciências legitimadoras dos novos modos de administração simbólica" (Sarmento, 2004:9). Por conseguinte, as escolas constituem-se em uma arena de luta político-cultural, com vistas a produzir sentidos para a ação educativa e transformá-la em um instrumento de planejamento social.

A reinstitucionalização da infância, no âmbito das relações familiares, se apresentam como tensas, em função das transformações estruturais ocorridas, tanto no que se refere à sua formação quanto em relação aos papeis e lugares geracionais que tem se modificado entre os membros da família de forma a possibilitar cada vez mais a ocupação dos espaços domésticos pelos adultos (em função do desemprego, da aposentadoria, etc.) e a saída das crianças para as instituições em que seu tempo é ocupado e regulado por adultos, tendo como consequência, a limitação do tempo de descoberta e de liberdade das crianças (Sarmento, 2004; 2007).

O surgimento de um mercado de produtos culturais infantis em escala mundial produziu uma verdadeira globalização da infância de modo a impor-lhes processos de socialização diferentes daqueles vivenciados na 1ª Modernidade. Quando as crianças utilizam os mesmos objetos, brinquedos, artefatos culturais em todos os lugares do planeta, partilham dos mesmos gostos forjando a ideia da existência de uma infância universal. Todavia, como sujeitos ativos, as crianças reinterpretam esses produtos culturais, tendo como base a cultura local, comunitária e de pares. Ou seja, embora as crianças dos diferentes lugares tenham acesso aos mesmos produtos culturais, ao utilizarem esses produtos, elas articulam aos processos simbólicos e culturais inerentes à sua condição infantil e à condição sociocultural em que se encontra.

Isto significa que mesmo subjugada a uma ordem mundial, as culturas das infâncias não se dissolveram nas culturas dos adultos. As crianças permanecem em sua posição de atores sociais, de modo que "a infância está em processo de mudanças, mas mantém-se como categoria social", mediante certas características que lhes são próprias, destacando-se a ideia de que as construções, significações e ações das crianças no/do mundo, expressam-se e fundam-se em modos de ser e de existir de grupos culturais diferentes. Ou seja,

[...] as crianças estão imersas em várias culturas e singularizam essas informações culturais em seus pequenos grupos de convívio e também individualmente. As crianças têm competência para agir e, desde muito pequenas, aprendem por meio do convívio social. (Barbosa, 2014:657)

Por isso, não há como se falar de uma perspectiva de monocultura infantil e de crianças como categoria apenas geracional1, mas trata-se, sobretudo, de perceber que:

[...] a pluralização do conceito (de cultura) significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por relações de classe, de género e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não obstante, a "marca" da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural. (Sarmento, 2002:4)

A ideia de pluralidade de culturas infantis e o reconhecimento da criança enquanto categoria social ganha força na segunda metade Século XX, fazendo emergir movimentos de luta pela conquista e garantia dos direitos das crianças, cujas ações culminaram com adoção de um conjunto de medidas protetivas que buscavam salvaguardar a condição de sujeito de direito das crianças, sendo a mais emblemática delas a promulgação, pela Organização das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 20 de Novembro de 1959.

Concebida como sujeito de direitos, as crianças, de uma condição de invisibilidade histórica e social, passam a ser alvo de políticas públicas capazes de conferir-lhes status de dignidade humana. Todavia, as políticas, para serem efetivas, precisam voltar suas ações para os sujeitos reais que as materializam (no nosso caso, as crianças do campo), para as quais o debate sobre seus processos de socialização e de construção/produção de culturas torna-se imprescindível.

 

Processos de Socialização e as Culturas Infantis: um diálogo com a perspectiva intercultural

O debate sobre socialização e culturas infantis e suas variadas formas de apropriação por estes sujeitos sociais nutre-se da discussão sobre as articulações existentes entre as representações do mundo elaboradas pela criança e as representações adultas dominantes com as quais a criança se inter-relaciona. É nessa dinâmica entre a cultura específica da criança e a cultura da sociedade na qual a criança está inserida que ocorre a afirmação das culturas infantis em sua pluralidade e diversidade, sendo estas a base de referência para o mundo de vida das crianças e para a delimitação de sua ação concreta. Isto implica em considerar as representações que a sociedade adulta faz sobre o período inicial de vida dos seres humanos e as relações estabelecidas entre os adultos e as crianças. Para se conhecer a pluralidade das infâncias, fazse necessário, portanto, a análise das relações que as crianças estabelecem entre elas, com os adultos e com a sociedade, mediadas pela cultura que as produz e das quais elas são, simultaneamente, produzidas.

Falar em culturas infantis é assumir uma perspectiva epistemológica que pressupõe a existência de uma ruptura com um modelo que:

[...] enfatizava a lógica da reprodução social e colocava as crianças no papel de destinatários das políticas educativas e das práticas pedagógicas orientadas pelos adultos, para [...] considerar a categoria social infância como susceptível de ser analisada em si mesma, que interpreta as crianças como actores sociais de pleno direito e que interpreta os mundos de vida das crianças nas múltiplas interacções simbólicas que as crianças estabelecem entre si e com os adultos. (Sarmento, 2005:18)

Portanto, as infâncias e culturas infantis são compreendidas como fenômeno social, o que implica ir além dos reducionismos biológicos e sociológicos, entendendo que "não existe uma única, e sim, em mesmos espaços têm-se diferentes infâncias, resultado de realidades que estão em confronto" (Demartini, 2001:4).

Para Qvortrup (2011), a infância não é um fenômeno natural, mas constrói-se social e culturalmente, portanto, não "define-se" como uma fase da vida em que o ser humano ainda não existe plenamente. De modo mais amplo, a visão de Qvortrup é compartilhada por Sarmento, para quem:

[...] a consideração das crianças como actores sociais de pleno direito, e não como menores [...] implica o reconhecimento da capacidade simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas [...]. (Sarmento, 1997:20-22)

O reconhecimento da pluralidade das infâncias e a afirmação da criança como categoria social se expressa também na forma de entender a multiplicidade dos tempos-espaços, lugares e territórios nos quais essas crianças e suas infâncias são construídas. Isto implica na compreensão do território rural como local de múltiplos grupos e de múltiplas culturas e na forma de entender que não podemos tratar apenas da "infância do campo", mas de infâncias do campo.

[...] crianças assentadas e acampadas da reforma agrária, quilombolas, ribeirinhas [...], por exemplo, vivem relações sociais, identitárias e com o ambiente construído e natural de formas diferenciadas, compondo assim possibilidades que, se olhadas de perto, recortam e estruturam sentidos particulares de existência, de possibilidade de ação no mundo, de constituição e expressividade de si, por meio de diferentes linguagens (Silva, 2013:16).

Para Sarmento e Fernandes (2007), essa forma de conceber as crianças do campo e suas infâncias, associada a renovação da concepção jurídica da criança como sujeito de direitos e aos avanços nos processos societais de ampliação da noção de cidadania, trazem, consequentemente, em seu escopo, uma nova ideia de cidadania para as crianças

[...] a redefinição da cidadania da infância é o efeito conjugado da mudança paradigmática na concepção de infância, da construção de uma concepção jurídica renovada, expressa sobretudo na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, e do processo societal de ampliação das formas de cidadania, a partir de uma acção assertiva e contra-hegemónica, onde têm lugar nomeadamente agentes e organizações não governamentais (ONGs) centradas na infância. Tal redefinição constitui, por consequência, um espaço tenso, não isento de ambiguidades e em processo de construção. Não obstante, exprime-se como uma das mais prometedoras possibilidades de interpretação dos vínculos sociais das crianças. (Sarmento e Fernandes, 2007:89)

De acordo com Sarmento (2004), a característica singular da infância é a capacidade de deslocamento das normas axiológicas e gnosiológicas postas pelos adultos no âmbito da sociedade. Tal característica é própria de todas as crianças, pois, mesmo que carreguem consigo as marcas do mundo em que vivem, simultaneamente trazem a possibilidade do "novo", vislumbrando a continuidade ou a reinvenção do mundo.

Nessa perspectiva, falar de interculturalidade é falar das interrelações estabelecidas entre os modos culturais que os adultos "dirigem" e transmitem para as crianças e entre os modos culturais que as crianças constroem entre si mesmas (formas culturais autônomas) em um mesmo grupo cultural ou entre grupos culturais diferentes. Ou seja,

[...] as crianças pertencem a diferentes classes sociais, ao gênero masculino ou feminino, a um espaço geográfico onde residem, à cultura de origem e uma etnia, em outras palavras, são crianças concretas e contextualizadas, são membros da sociedade; atuam nas famílias, nas escolas, nas creches e em outros espaços, fazem parte do mundo, o incorporam e, ao mesmo tempo, o influenciam e criam significados partir dele. (Simões e col., 2011:41)

Assim, a perspectiva teórica da interculturalidade se propõe a não só analisar as diferentes construções culturais envolvendo diferentes grupos étnicos e culturais, mas também a questionar os lugares das culturas em uma sociedade de classe, além de se fundar na ideia de uma nova síntese dessas culturas de grupos diferentes e diversos. Um movimento complexo que considera o que a tradição cultural tem como elemento de conservação de uma determinada cultura e o que é elemento de superação que pode ser ressignificado no coletivo.

Esse movimento é dialético e fundamental para se compreender a constituição das diferentes infâncias. No horizonte da interculturalidade, as identidades pessoais e sociais são concebidas como resultantes de lutas, embates e confrontos entre valores construídos e ressignificados pelos diferentes grupos étnico-culturais e geracionais, com pertencimento a diferentes classes sociais e diferentes territorialidades. Desse modo, as tensões e diferenças geracionais entre crianças e adultos de tempo-lugar-espaço entre as crianças urbanas e rurais representam possibilidades de desconstrução da perspectiva adultocêntica e urbana de crianças e de culturas infantis, favorecendo a emergência de uma concepção em que as crianças do campo são vistas como sujeitos de pleno direito e capazes de produzir culturas no diálogo entre os seus pares e entre os adultos, do mesmo grupo cultural e de outros grupos, rompendo assim com a lógica de que as mesmas são apenas reprodutoras culturais e não sujeitos ativos que produzem cultura, significam e ressignificam o mundo e, consequentemente as tradições culturais, enquanto sujeitos políticos capazes de transformar a realidade que as cerca.

Nessa perspectiva, o lugar da criança do campo é um entre-lugar, isto é, consiste em um espaço localizado entre o que é herdado dos adultos e do mundo urbano o que é reinventado no mundo rural da criança. Por isso, pode-se afirmar que este lugar está localizado entre dois tempos: o passado herdado e o futuro passível de reinvenção. Trata-se de um entre-lugar socialmente constituído e, portanto, com uma existência renovada pela ação coletiva das crianças campesinas, mas tal renovação está sujeita às possibilidades e aos constrangimentos históricos.

Nesse entre-lugar em que se encontram, as crianças do campo constroem seu mundo de vida, sua identidade pessoal e social, além das formas próprias culturais das suas infâncias rurais. É, pois, no âmbito dessa tensão entre o que é próprio de toda criança e o que específico de cada criança, que emerge o debate sobre o diálogo intercultural.

A polissemia advinda da pluralidade de sentidos implicados no emprego do termo interculturalidade remete à necessidade de utilizá-lo atribuindo-lhe adjetivações, a fim de delimitar, na diversidade de concepções e vertentes, como a interculturalidade permeia as relações socioculturais e como tal noção ajuda a tornar visíveis as infâncias do campo.

A interculturalidade apresenta-se como uma perspectiva que considera a importância da inter-relação dos diferentes grupos socioculturais. Assim, reivindica a superação de visões que desvalorizam as diferentes culturas, como se apenas a cultura hegemônica tivesse valor e, simultaneamente, defende a ruptura com processos radicais de formação de identidade, pois considera que as raízes culturais são construídas na dinamicidade histórica das relações dos sujeitos.

As proposições da interculturalidade, por sua vez, situam-se no contexto das lutas contra os processos de subalternização, promovidos pelas relações assimétricas e verticalizadas de poder entre culturas diferentes. Estas relações foram construídas sob a égide da perspectiva hegemônica monocultural imposta pela modernidade eurocêntrica aos povos colonizados. Destacam-se, nessas lutas, os povos indígenas latinoamericanos, que adotaram uma postura de resistência e enfrentamento à perspectiva monocultural, ao exigirem que a educação bilingue fosse contemplada nos seus espaços de educação formal. Nesse sentido, os indígenas foram os primeiros povos da América Latina a experienciar, nos seus currículos, uma proposta de educação intercultural.

Para Walsh (2001), a interculturalidade se configura como:

[...] um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença. Um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados. Uma tarefa social e política que interpela o conjunto da sociedade, que parte de práticas e ações concretas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e solidariedade. Uma meta a alcançar. (Walsh, 2001:10-11)

De acordo com Walsh (2010), podemos identificar nos discursos da interculturalidade três vertentes que se distanciam nos seus princípios e práticas: a) a interculturalidade relacional; b) a interculturalidade funcional; c) a interculturalidade crítica.

A interculturalidade relacional, defende que as relações entre culturas são inevitáveis, à medida em que todas elas, colonizadas ou colonizadoras, relacionam-se independentemente das condições de igualdades ou desigualdades entre elas, limitando, dessa forma a "interculturalidade ao contato e à relação, muitas vezes a nível individual, encobrindo ou deixando de lado as estruturas da sociedade" (Walsh, 2010:77). Esta vertente da interculturalidade está estreitamente ligada à perspectiva da interculturalidade funcional e, podemos dizer, não se dissocia desta.

Com relação às proposições da interculturalidade funcional, dirigem-se no sentido de incluir nas políticas estatais os povos "anteriormente excluídos". No entanto, esta inclusão é proposta tomando, como ponto de partida, a adaptação dos povos silenciados pela colonialidade ao modelo neoliberal de Estado e às suas políticas. Esta adaptação se dá através da oficialização da diferença.

Para promover a oficialização da diferença, o Estado baseia a construção das políticas públicas na ideia de tolerância às diferenças culturais, nomeando-as de "políticas da diversidade". Assim, afirma-se o lugar do sujeito de direitos dos "povos excluídos" nas mesmas, mas não se garantem os meios necessários para a sua implementação e execução. Nesse sentido, a interculturalidade funcional "assume a diversidade cultural como eixo central [...] responde e parte dos interesses e necessidades das instituições sociais" (Walsh, 2010:9).

Seguindo de perto Walsh (2010), podemos então afirmar que os discursos e as práticas suscitados pela interculturalidade funcional configuram-se muito mais como uma maneira de adaptar os excluídos ao projeto societal hegemônico, através das políticas públicas de Estado, do que como promotor de críticas ao sistema-mundo moderno colonial. Portanto, os discursos e práticas assumidos com base na interculturalidade funcional, configuram-se como úteis para o poder hegemônico e subalternizante e, ao mesmo tempo, respondem aos interesses e às necessidades das instituições que regulam o meio social.

Não há, no âmbito da perspectiva da interculturalidade funcional, uma preocupação com as causas da assimetria cultural, econômica, política e social (Walsh, 2009). Sendo assim, não questiona os princípios, as causas, os objetivos e os desdobramentos da exclusão histórica de que são vítimas os povos dos países e dos territórios periféricos e semiperiféricos, que é o caso dos territórios do campo no Brasil. Tampouco há um questionamento sobre os processos de silenciamento e de invisibilização das crianças do campo, inclusive, nos próprios territórios do campo.

Em contraposição aos discursos e às práticas da interculturalidade funcional, situa-se a vertente da interculturalidade crítica. Esta se preocupa com o nascedouro das questões que deram poder aos colonizadores brancos para dizer da sua superioridade "racial" e impor como válidas apenas as suas formas de produzir conhecimentos, de ser e de existir. Embasando-se nos princípios da decolonialidade, a interculturalidade crítica é definida como

[...] un trabajo que procura a desafiar y derribar las estructuras sociales, políticas y epistêmicas de la colonialidad -estructuras hasta hora permanentes- que mantienen patrones de poder enraizados en la racionalización, en el conocimiento eurocêntrico y en la inferiorización de alguns seres como menos humanos. (Walsh, 2009:12)

A interculturalidade crítica questiona, sobretudo, o discurso hegemônico de visão colonial/moderna e capitalista de sociedade, configurando-se como uma proposta de enfrentamento às desigualdades impostas pela hegemonia do pensamento colonial/moderno e capitalista, do qual a cultura adultocêntrica é herdeira, quando subalterniza as culturas infantis, relegando-as a um entre-lugar.

Com relação às infâncias do campo, o processo de subalternização é duplo: pela cultura urbana adultocêntrica hegemônica e pelos processos de silenciamento e invisibilização ocorridos também nos seus próprios territórios campesinos.

Ao assumir o enfrentamento das desigualdades por meio da ideia da decolonialidade, a interculturalidade crítica parte de um posicionamento crítico de fronteira que pode ser entendido como um processo que se constrói e se ressignifica constantemente, questionando e propondo enfrentamentos à colonialidade. É pois, neste movimento de crítica que as crianças do campo têm a possibilidade de construir suas culturas infantis, mediante interação com os modos de vida da sua comunidade e, ao mesmo tempo, de transgressão dos espaços de conformação ao que fora colonialmente estabelecido. Ao fazerem isto, as crianças do campo adotam uma perspectiva político, cultural, social e epistêmica que pode se assemelhar a um posicionamento crítico de fronteira que tem como objetivo a construção de um pensamento-Outro (Walsh, 2008; 2009).

Ao questionarem e enfrentarem as relações de poder assimétricas, as crianças adquirem possibilidade de compreender que as relações de poder não desaparecem, mas podem ser reconstruídas ou transformadas ganhando uma nova conformação. Isso significa tornar visível outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica do pensamento hegemônico moderno adultocêntrico2, colonial e capitalista. Este posicionamento não nega a existência de um pensamento hegemônico, mas promove enfrentamentos a ele, sujeita-o ao constante questionamento e hibridiza-o com outras formas de pensar (Walsh, 2008).

Para Mignolo (1995), este movimento pode ser considerado uma ruptura com as visões dicotomizadas e as interpretações dicotômicas de mundo, o que possibilita a criação de novas comunidades de interpretação e de discursos, que é a ideia central do posicionamento crítico de fronteira traduzido como o conhecimento construído em uma perspectiva de resistência dos subalternizados, neste caso, as crianças do campo.

As proposições dessas ideias apontam para a possibilidade de construção de uma constituição cultural das infâncias do campo que questione os lugares enunciativos dos discursos legitimados pelo padrão de poder da colonialidade. Este padrão de poder, com relação às políticas destinadas aos povos campesinos no Brasil, atuou inclusive no estabelecimento dos territórios do campo, a partir da sua negação, ao dar-lhes oficialmente o tratamento de "zonas não-urbanas".

O tratamento de "não-urbano", longe de ser despretencioso e desinteressado, trouxe/traz em si a ideia do que era/é atrasado, já que o urbano historicamente no país foi entendido e privilegiado como o lugar do desenvolvimento e como o lugar da produção de conhecimentos. E é justamente o lugar da subalternidade reservado para o "não-urbano" que irá permitir a concretização do duplo processo de invisibilidade das infâncias do campo e de suas culturas.

 

Notas Conclusivas: o lugar das infâncias do campo (um Entre-Lugar ou um Não-Lugar?)

O processo de crítica à colonização e à invisibilização dos povos campesinos do país encontra-se em um campo de tensões e de contradições, expressas pela sua subalternização histórica. Mas, não só. Estas tensões e contradições expressam também a busca por novos caminhos e referenciais para dar visibilidade ao sujeito social criança do campo. Por isto, buscase entender que novos lugares de enunciação de discursos são construídos a partir das periferias; como estes discursos deslocam-se para os centros hegemônicos de produção de conhecimentos e de práticas sobre as infâncias do campo.

Ao defenderem o lugar de enunciação dos discursos das periferias como um lugar de resistência contra-hegemônica e de enfrentamentos às metanarrativas da modernidade colonial, os estudos pós-coloniais posicionam-se contra os processos de subalternização dos povos campesinos e, por extensão, das crianças do campo.

De acordo com Mignolo (1995; 2003), Santos (2002) e Hall (2003), os estudos pós-coloniais questionam em primeiro lugar, a representação do Outro-colonial definido pelas estruturas do sistema-mundo moderno (Wallerstein, 1998); e, em segundo lugar, a representação e a legitimação do Outro-colonial. Reivindicam, principalmente, a ressignificacão dos sujeitos póscoloniais como sujeitos de direitos.

O quadro geopolítico colonial visa construir e validar um pensamento único, com pretensões de universalização e monolítico. Nesse sentido, o processo de conquista de territórios-Outros, se dá através de uma dinâmica desumanizante de silenciamento das vozes dos povos-Outros.

Tais processos de colonização se materializam nas formas de silenciamentos e subalternizações através das violências promovidas pela cultura imposta a eles, nas quais a diferença é passível de ser tolerada, folclorizada, e quase nunca considerada como forma legítima de existência do Outro. Tal violência patrocinada pela colonialidade está presente nas relações intra e interculturais, na negação dos saberes, dos modos de ser e de existir das crianças do campo e também nas suas relações com a natureza.

Trazendo a reflexão sobre este padrão da colonialidade para a realidade das infâncias do campo, destacamos sua incidência no âmbito geracional. Historicamente, a construção da infância foi pensada por adultos com base nos paradigmas adultocêntrico e urbanocêntrico, deixando de "fora" as crianças campesinas, suas singularidades e suas diferenças.

Para compreender os enredos da colonialidade, com relação às infâncias do campo no Brasil é bastante observar as políticas destinadas a este segmento populacional até a década de 1980, nas quais existe uma invisibilidade do campesinato e nas quais a criança do campo tem que se adaptar à lógica de uma estrutura político-social e econômica urbanocêntrica. Os povos do campo são silenciados nos projetos e políticas educacionais do país, são o "outro". Este "outro" é o outro desvalorizado, subalternizado em seus saberes e fazeres, o "não-urbano" que ocupa também um "não-lugar" no mundo.

A ideia deste "não-lugar" no mundo é expressão tanto dos processos colonizadores quanto dos enredos da colonialidade. Tal ideia de "não-lugar", de "não-existência, se materializa nas relações de poder configuradas pelos padrões da modernidade colonial capitalista, mostrando a face mais perversa da subalternização e do silenciamento dos povos das periferias, dentre os quais destacamos, neste estudo, as crianças campesinas do Brasil (Dussel, 1990; Mignolo, 2003; Santos, 2002).

Nessa ótica, os povos campesinos do Brasil, são "seduzidos" a assumir o fetichismo epistêmico desenvolvido a partir dos mecanismos da colonialidade. O fetichismo espistêmico expressa-se como o mecanismo que tende a provocar um sentimento de "admiração" das crianças campesinas com relação aos conhecimentos produzidos pelas crianças do meio urbano.

O fetichismo epistêmico é uma das expressões da colonialidade que reforça nos povos subalternizados o sentimento e o desejo de assumir como legítimo, válido e desejável apenas o conhecimento produzido pelos colonizadores. Este processo provoca, por exemplo, o sentimento de inferioridade dos povos e das crianças campesinas, com relação à validade dos seus conhecimentos e à forma de produzi-los e, ao mesmo tempo de necessidade de se "igualizar" ao que é urbano para poder pertencer ao mundo.

Para além dos discursos e das práticas colonizadoras de subalternização das culturas infantis das crianças do campo, faz-se necessário promover o diálogo entre as culturas adultas e infantis nos diferentes territórios campesinos e entre estes e os territórios urbanos, considerando que o diálogo intercultural se entrelaça e é tecido interna e externamente nessas diferentes culturas, buscando principalmente a possibilidade de intercâmbio, de interdependência e de interaprendizagem entre crianças de uma mesma cultura e também entre culturas diferentes (Fleuri, 2001; Freire, 1992;1993).

Além dos estudos pós-coloniais, a sociologia da infância, ao enfrentar a questão do dialogo necessariamente intercultural envolvido na construção das culturas infantis, aponta a existência, por um lado, de processos de silenciamentos e, por outro, de transgressão emancipatória.

Isto porque, o diálogo intercultural não é estabelecido de forma harmônica e ordenada, mas se constrói e se constitui em uma rede complexa, entre tensões, conflitos, rupturas e enfrentamentos. Faz-se a partir e na criação de zonas de convivência entre os diferentes tipos de culturas (Freire, 1992) e entre sujeitos de uma mesma cultura.

Assim, as perspectivas teórico-conceituais trazidas pela interculturalidade crítica e pela sociologia da infância configuram-se, para as crianças campesinas do Brasil, como uma possibilidade de expressar sua voz e de ocupar espaços nos lugares de enunciação discursiva e prática na sua comunidade, à medida em que qualquer diálogo requer, como condição para acontecer, o estabelecimento e a negociação de relações horizontalizadas de poder (Fleuri, 2001).

A tarefa de se debruçar sobre possibilidades de construção de espaços, tempos e lugares que busquem romper com os processos de deslegitimação dos sujeitos sociais campesinos, notadamente, a criança do campo, e, assim, reinventar espaços-outros para a compreensão da infância do campo como uma expressão cultural plural e historicamente situada, está posta.

Estes espaços-outros são construídos em oposição à negação dos direitos dos povos do campo, inclusive do direito das crianças do campo ao pertencimento e à convivência humana familiar e comunitária situada e pensada no e para o campo. Logo, são espaços que se constroem nas lutas e enfrentamentos à negação e à subalternização das construções identitárias desenvolvimentistas e etapistas e a consequente construção de práticas sociais emancipatórias destes sujeitos sociais duplamente invisibilizados ao longo da nossa história, a fim de que sejam plenamente reconhecidos como sujeitos de direitos.

É, pois, na confluência destes espaços simultâneos de transgressão e conformação que o sujeito social criança do campo resiste às imposições da monoculturalidade hegemônica na direção da conquista de sua cidadania, negando ativamente o aprisionamento a um não-lugar da subalternidade, ao tempo em que avança no protagonismo de sua construção histórica enquanto sujeito de direitos, construindo sua própria história e cultura.

 

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Recebido em 20/02/2017.
Revisado em 18/09/2017.
Aceito em 16/10/2017.

 

 

1 Sobre isso, ver: Imaginário e culturas da infância (Sarmento, 2002).
2 Para Sarmento (2007), o modelo adultocêntrico é aquele que caracteriza a criança pelo viés da negatividade, ou seja, "a criança é considerada como o não adulto e este olhar sobre a infância registra especialmente a ausência, a incompletude ou a negação das características de um ser humano 'completo'" (p. 33).

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