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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Pobreza e políticas sobre drogas: documentos de vigilância e tecnificação

 

Poverty and drugs policies: documents of surveillance and tecnification

 

Pobreza y política de drogas: documentos de vigilancia y tecnificación

 

Pauvreté et politiques sur la drogue: documents de surveillance et de technification

 

 

Nara Gomes RêgoI; Pedro Renan Santos de OliveiraII; Aluísio Ferreira de LimaIII; Renata Bessa HolandaIV

IPsicóloga. Pesquisadora do Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica da Universidade Federal do Ceará (UFC). naragomess@hotmail.com
IIPsicólogo. Doutor em Psicologia. Mestre em Saúde da Família. pe_renan@yahoo.com.br
IIIProfessor Associado I do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), credenciado como Professor Permanente (M/D) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Mestrado Profissional em Saúde da Família (UFC/FIOCRUZ/RENASF). Bolsista de Produtividade do CNPq (PQ2). aluisiolima@hotmail.com
IVPsicóloga. Doutoranda em Psicologia. Mestre em Psicologia. renatabessa_h@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho trata de compreender como a categoria pobreza apresenta-se em documentos que referenciam as atuais Políticas Públicas específicas para o campo do Álcool e Outras Drogas, no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira. A análise de documentos internacionais e nacionais foi perpassada pela perspectiva psicossociológica, situada na tradição materialista histórico-dialética. A discussão se deu através de duas categorias temáticas, refletindo acerca das contradições, por um lado, do paradigma proibicionista, quando relacionada à realidade brasileira de pobreza; e, por outro, da tecnificação do cuidado em saúde. Ficou explicito que a relação da sociedade com as drogas está permeada pelo processo de institucionalização, através da tecnificação das práticas, na qual os sujeitos e os grupos são desconsiderados nas suas necessidades específicas, descontextualizados do seu cenário cultural, ficando àmercê da arbitrariedade institucional e da homogeneização das ações.

Palavras-chave: Pobreza; Política sobre drogas; Psicologia polística; Reforma psiquiátrica; Redução de danos.


ABSTRACT

This study sought to understand how the category of poverty is pre-sented in documents that reference the current local Public Policies in the field of alcohol and other drugs, in the context of the Brazilian Psychiatric Reform. The analysis of international and national documents was crossed by the phytosociological perspective, situated in the materialistic historical-dialectics tradition. The discussion took place through two thematic categories, reflecting the contradiction, on the one hand, the prohibitionist paradigm, when related to the Brazilian reality of poverty, and, on the other hand, on the technicalization of health care. It became evident that the relationship of the society with drugs is permeated by the process of institutionalization through the technicalization of the practices in which individuals and groups are disre-garded in their specific needs, disrespecting the context of the cultural scene, at the mercy of institutional arbitrariness and homogenization of actions.

Keywords: Poverty; Drugs policies; Political psychology; Psychiatric reform; Harm reduction.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar como la categoría pobreza se presenta en los documentos que hacen referencia a las actuales políticas públicas específicas para el abuso de alcohol y otras drogas, en el contexto de la reforma psiquiátrica brasileña. El análisis de los documentos nacionales e internacionales se desarrolló desde la perspectiva psicosociológica, situada en la tradición del materialismo histórico dialéctico. La discusión se llevó a cabo a través de dos categorías temáticas. Por un lado, el paradigma prohibicionista - que se relaciona con la realidad brasileña de la pobreza y por otro lado - la atención a la salud. Se ha hecho explícito que la relación con la sociedad es permeada por el proceso de institucionalización a través de la tecnificación de las prácticas en las que los individuos y los grupos sociales son ignorados en sus necesidades específicas, sin que el contexto cultural y a la merced de la arbitrariedad institucional y homogeneización de las acciones.

Palabras clave: Pobreza; Política contra las drogas; Psicología política; Reforma psiquiátrica; Reducción de daños.


RÉSUMÉ

Ce travail a la tâche de comprendre comment la catégorie pauvreté se présente dans des documents qui font référence aux politiques publiques actuelles spécifiquement pour l'alcool et dautres drogues, dans le cadre de la réforme psychiatrique brésilienne. L'analyse des documents nationaux et internationaux a été imprégné par la perspective psychosociologique, situé dans la tradition matérialiste historique-dialectique. La discussion a été élaborée selon deux catégories thématiques, réfléchissant sur les contradictions d'une part, le paradigme prohibitionniste, en rapport avec la réalité brésilienne de pauvreté; et d'autre part, la technification des soins de santé. C'était explicite que la relation de la société avec les drogues est imprégné par le processus d'institutionnalisation, vers la technification des pratiques, où les individus et les groupes sont ignorés en leurs besoins spécifiques, décontextualisés dans sa scène culturelle, restant soumis à l'arbitrage institutionnelle et l'homogénéisation des actions.

Mots-clés: Pauvreté; Politique pharmaceutique; Psychologie politique; Réforme psychiatrique; Réduction des dommages.


 

 

O dispositivo ideológico básico do capitalismo - podemos chamá-lo de "razão instrumental", "exploração tecnológica", "ganância individualista" ou do que quisermos - é separado das condições socioeconômicas concretas (relações de produção capitalistas) e concebido como vida autônoma ou atitude "existencial" que deve (e pode) ser superada por uma nova postura mais "espiritual", conservando intactas essas mesmas relações capitalistas. (SLAVOJŽIŽEK, 2011, p. 39).

 

Introdução

O presente manuscrito tem como campo de estudo a interface entre a pobreza e as políticas relacionadas às drogas. Sendo resultante de pesquisa monográfica, e como parte de estudo maior desenvolvido no Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica da Universidade Federal do Ceará-UFC. O artigo tem por objetivo compreender como a categoria pobreza apresenta-se em documentos que referenciam as atuais Políticas Públicas específicas para o campo do Álcool e Outras Drogas, no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Para o alcance de tal objetivo, foi realizado um levantamento de documentos de referência das Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas e uma análise posterior sobre como estes referenciam os marcos teórico-técnicos concernentes às questões das drogas e da pobreza, refletindo as aproximações e as contradições sobre o cuidado à população pobre.

Partiu-se da premissa de que o campo híbrido das práticas profissionais e políticas públicas que produzem interface entre a pobreza e políticas sobre drogas é marcado por lógicas morais naturalizantes e estigmatizantes dos fenômenos que dizem respeito à relação dos sujeitos com as substâncias psicoativas. Afinal, o consumo de substâncias não tem sido algo discutido a partir da autonomia dos sujeitos em relação às mesmas, mas a partir da necessidade de regulamentação, normatização, vigilância, diagnóstico, ao mesmo tempo que as drogas e seus diversos consumos são estimados e propagandeados. Algumas drogas são proibidas e perseguidas, outras são permitidas e exaltadas.

Do mesmo modo, existem consumidores de drogas em todas as classes sociais: "o que os diferencia, eventualmente, são a qualidade e os tipos de drogas consumidos, em decorrência das capacidades aquisitivas e das distinções sociais" (Lima, Gonçalves Neto & Lima, 2011, p. 136). A forma como os sujeitos são reconhecidos em sua capacidade de decisão frente ao consumo de drogas é determinada pelas condições sociais e históricas da sociedade capitalista, onde a própria lógica de reprodução baseia-se na exaltação do consumo de mercadorias. Afinal, como bem assinala Passetti (2004), o uso de drogas não leva apenas ao adoecimento e à morte, ele pode levar também a movimentos libertadores, a agenciamentos inevitáveis que ultrapassam o campo das resistências, "movimentos que inventam formas de vida, expressam suas artes, comportamentos, deslocamentos, instabilidades e suas preciosas éticas anunciadoras do inominável, o que é impossível conter. (...) Estes movimentos afirmam a impossibilidade da domesticação, do controle definitivo" (p. 08). Portanto, torna-se ainda maior o desafio de abordar a interface da pobreza e das políticas relacionadas às drogas de forma desnaturalizante e crítica, sustentando a necessidade de um posicionamento ético-político de não perpetuação dos discursos e das práticas convencionais envolvidas nesse campo.

A escolha da categoria pobreza para essa discussão é estratégica, uma vez que ela assume proposições diversas no mundo social contemporâneo, haja vista a sua naturalização, a partir de discursos e práticas que são legitimados em torno dela, mantendo situações muitas vezes degradantes da dignidade e davida humana, as quais têm sido uma estratégia crucial para perpetuar situações opressivas (Accorsi, Scarparo Guareschi, 2012). Essas compreensões de pobreza voltadas para responsabilidade individual e inerentes à capacidade ao trabalho, como nos afirmam autores do campo dos estudos sobre a pobreza (Moura Jr., Ximenes & Sarriera, 2014), estão situadas historicamente no contexto de surgimento do capitalismo, do liberalismo e do neoliberalismo, os quais pregavam que os pobres eram sujeitos de má índole que não queriam trabalhar, sendo responsáveis pela sua condição de pobreza. Assim, a forma como a pobreza é tomada nesse trabalho segue alinhada às preocupações do campo teórico-conceitual e de intervenção social que tem buscado explicações sobre a emergência, persistência e sua ampliação globalizada.

A pobreza não pode ser atribuída a uma criação específica ou exclusiva do sistema capitalista. Entretanto, é depois dele que se observa sua exponencial expansão, sobretudo com as transformações econômicas, com o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a centralidade do mercado financeiro

(Moura Jr. & Ximenes, 2016). Destaca-se, entretanto, que diferente das relações contemporâneas, na Idade Média se explicava o fenômeno da pobreza (assim como também a riqueza) como uma destinação determinada pela divindade, assim, sem relação com a lógica de produção e reprodução social.

Dessa maneira, uma das primeiras características que constitui a identidade social de pobre é o papel social de conformado ou resignado frente à sua posição na sociedade. Os pobres, então, nesse período histórico,

(...) eram vistos como desafortunados e como representação humana de Jesus Cristo, sendo geralmente posicionados com fins de caridade. Assim, à identidade social de pobre como conformado e de crente em Deus, como responsável por tudo, é somado o papel social de mártir como atitude de sacrifício em prol de um bem maior oferecido por Deus (Moura Jr. & Ximenes, 2016, p. 78).

Dado histórico importante para entender o delineamento que a pobreza ganha na relação com o Estado é a denominada Lei dos Pobres de 1938, uma das primeiras políticas públicas implantadas no mundo ocidental, especificamente na Inglaterra, cujo caráter mais flagrante era a punição daquele sujeito que se enquadrava como pobre (Moura Jr. & Ximenes, 2016). Com contornos da corrente teórica - o higienismo - vigente à época, a lei naturalizava as características sociais do sujeito (como a sujeira e o estado de saúde - os sujos e doentes) proibindo-os da aproximação com a elite vigente. Nas palavras dos pesquisadores Moura Jr. e Ximenes (2016, p. 79), "a identidade social de pobre foi ainda mais associada ao papel social de causa das mazelas sociais, sendo reconhecidos como deturpadores da sociedade estruturada nos moldes elitistas". Uma prática social, portanto, era inevitável segundo essa concepção higienista expressa na Lei inglesa: limpar as cidades dos pobres e higienizar a sociedade era necessário como combate à pobreza, ou melhor, ao sujeito pobre.

No Brasil, a partir do século XX, a modernização conduzida pelo Estado trouxe ampliação da já existente fragmentação social, produzindo êxodo rural sem precedentes na história do país (sobretudo entre as décadas de 1950 a 1970), repercutindo no desenvolvimento urbano desordenado, além da falta de infraestrutura adequada para o crescimento das cidades, e no aumento da pobreza com a elevação do número de favelas (Moura Jr., Ximenes & Sarriera, 2014). A literatura indica, então, que no Brasil os pobres foram culpabilizados pela sua própria condição de pobreza, sendo reconhecidos como as causas para os principais problemas do país (Moura Jr.e cols., 2014; Moura Jr. & Ximenes, 2016; Ximenes, Moura Jr, Cruz, Silva & Sarriera, 2016). Ou, em outras palavras, no Brasil, as compreensões sobre pobreza centram-se numa ideia de criminalização do pobre e de responsabilização individual pela sua condição (Moura Jr.ecols., 2014; Siqueira, 2014).

A pobreza, longe de ser um aspecto circunstancial ou natural dos sujeitos em sociedade, é fenômeno complexo, situado historicamente e marcado por fatores não só econômicos, mas também culturais, políticos e mesmo psicológicos. Enquanto objeto de políticas públicas, no Brasil, é marcante a perspectiva assistencialista, além das já descritas compreensões culpabilizantes e individualizantes do fenômeno. No entanto, a pobreza somente se torna realmente central nas políticas públicas nacionais quando da construção da 5ª Constituição, aprovada pela Assembleia Constituinte, em 1988. Nesse marco jurídico-legal e de marcante momento de efervescência política é que a pobreza, paulatinamente, passa a ser ligada aos marcos dos Direitos Humanos e à perspectiva da igualdade social (Moura Jr.e cols., 2014).

Não por acaso, a interface da discussão sobre a pobreza será com as políticas públicas relacionadas às drogas, uma vez que, orientadas pelo paradigma neoliberal, nas suas diferentes variações e explicações, essas políticas têm sido reduzidas às ações residuais ou marginais, compensatórias, tendo em vista apenas certa minimização ou regulação da situação de pobreza, já que esta é necessária para a manutenção do sistema de produção capitalista (Silva, 2010). É típico de nossa história, cujas políticas sociais sempre foram fortemente marcadas pelo autoritarismo, pelo clientelismo e pela fragmentação institucional, configurando-se de forma paradoxal sobre o cenário brasileiro, na medida em que favorecem uma baixa capacidade de alcançar maiores transformações sociais. Embora, evidentemente, inovações políticas e organizacionais tenham desenvolvido a expansão, por exemplo, dos direitos sociais, o país enfrenta níveis inaceitáveis de pobreza e exclusão social (Magalhães, Burlandy & Senna, 2007).

No caso das Políticas sobre Drogas, no Brasil, essas contradições se tornam ainda mais explicitas, conforme assinalado por Alarcon (2012, p. 53):

Regida pelo espectro internacional antidrogas, toda uma subcultura se desenvolveu no Brasil, unindo uma gama de ações aparentemente contraditórias, mas no fundo dependentes umas das outras, que transformaram as drogas no ponto central de sua racionalidade. Nessa subcultura podemos incluir uma série de acontecimentos, como o tráfico de armas, a criminalização da pobreza, a produção de insegurança, a obsessão por segurança.

Ou seja, de um lado as políticas sobre drogas, articuladas diretamente com a justiça, reiteram a lógica da ilegalidade, fazendo com que, assim, uma grande parcela da população que consome determinadas substâncias se torne passível de punição. Conforme bem assinalado por Rodrigues (2004), a condenação moral "fornece a legitimidade necessária para que o Estado se aproprie da função repressora a um problema que, todavia, não se extingue com esse esforço da perseguição" (p. 163). Assim, os sujeitos, sobretudo aqueles dos setores estigmatizados, pobres e marginalizados, ficam àmercê da capacidade governamental de classificação, perseguição, punição, tratamento e encarceramento.

Os acordos antidrogas internacionais impõem os limites sociais, culturais e até morais quanto ao comércio e consumo de drogas, definindo o que será considerado lícito e ilícito (Fonseca & Bastos, 2012). O que se percebe, na verdade, é o interesse da razão sendo invertido em uma razão interesseira do Estado, no qual as ações/ideias servem apenas para justificar a desigualdade, não considerando as contradições sociais, políticas e econômicas, desconsiderando os reais interesses em proteger a saúde dos indivíduos e da população.

E se, por um lado, a política sobre drogas no Brasil originou-se alinhada ao denominado paradigma proibicionista, que concentra esforços na redução da oferta e da demanda de drogas, com intervenções de repressão e criminalização da produção, do comércio, porte e consumo de drogas ilícitas, ela ainda tem como vantagem o reforço do discurso veiculado pelo modelo biomédico, especialmente em suas derivações do conceito de doença, que patologiza as relações do indivíduo com a droga. Com isso, a assistência à saúde passa a se caracterizar como de "alta exigência", pois, entendendo que o consumo de drogas, necessariamente, causa danos à saúde, nenhum padrão de uso é percebido como aceitável, de modo que a abstinência se torna o único objetivo do tratamento (Alves, 2009).

Por outro lado, o movimento da Redução de Danos aparece como a maior contradição dessa Política de Drogas. Isso porque a Redução de Danos é um campo político e prático de Saúde Coletiva que está em sintonia com uma posição ética de defesa da vida e mais preocupada em oferecer o cuidado de acordo com as necessidades dos usuários (Lancetti, 2012). Seja porque compreende a droga como um problema social e o usuário de drogas como um cidadão que tem direito de usar o que lhe convier, mas que deve se conscientizar de sua situação de risco e das implicações para sua rede de relações, quebrando com o ideário de uma sociedade livre de drogas (Alves, 2009), ou, ainda, porque mesmo em meio à hegemonia do paradigma proibicionista, desde 2003 tornou-se a Política Pública de Saúde Mental oficial a partir da Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (Ministério da Saúde [MS], 2003).

A política que normatiza as ações em redução de danos do Ministério da Saúde

(...) reconhece cada usuário em suas singularidades, traça com ele estratégias que estão voltadas não para a abstinência como objetivo a ser alcançado, mas para a defesa de sua vida. Vemos aqui que a redução de danos oferece-se como um método (no sentido de methodos, caminho) e, portanto, não excludente de outros. Mas, vemos também, que o método está vinculado à direção do tratamento e, aqui, tratar significa aumentar o grau de liberdade, de coresponsabilidade daquele que está se tratando. Implica, por outro lado, no estabelecimento de vínculo com os profissionais, que também passam a ser coresponsáveis pelos caminhos a serem construídos pela vida daquele usuário, pelas muitas vidas que a ele se ligam e pelas que nele se expressam (MS, 2005, p.10).

Entendemos, portanto, que a Redução de Danos é um conjunto teórico que favorece a prática de cuidado que se pretende não objetificadora do outro. Ou seja, que considera o sujeito em sua integralidade, do ponto de vista da organização da assistência à saúde e das complexidades das necessidades em saúde dos sujeitos, e que também leva em consideração sua autonomia em relação ao modo como se relaciona com as substâncias psicoativas. Alguns programas de expressão nacional foram criados seguindo esta perspectiva, como, por exemplo, o Programa de Braços Abertos (São Paulo), Projeto Caminhos do Cuidado (em todo o território nacional) e o Consultório na Rua, especificamente no âmbito da atenção primária.

Diante dessas constatações, observamos, assim, a importância de se discutir quais os marcos institucionais e diante de qual dinâmica social brasileira, além das suas implicações para estas, a questão das drogas tem se construído e se legitimado, entendendo que as políticas públicas não são criadas em um vazio social e que a organização dos serviços e práticas está endossada por tais políticas. Acreditamos na construção de políticas e práticas mais alinhadas à transformação da realidade, à autonomia, ao cuidado integral e às necessidades dos usuários, e com o compromisso da Psicologia com essas questões.

 

Delineamento Metodológico

A referente pesquisa apresenta uma configuração qualitativa, no contexto das Ciências Humanas e da Saúde, pois está preocupada em entender como o objeto de estudo acontece e se manifesta, seja ele pelas narrativas e discursos de sujeitos, seja pela análise de textos produzidos por atores sociais. As abordagens qualitativas, conforme assinala Minayo (2014), "se conformam melhor às investigações de grupos e segmentos delimitados e focalizados, de histórias sociais sob a ótica dos atores, de relações e para análises de discursos e de documentos" (p. 57).

Nessa direção, seguindo o objetivo de compreender como a categoria pobreza apresenta-se em documentos que referenciam as atuais Políticas Públicas específicas no campo do Álcool e Outras Drogas, no contexto pós-institucionalização da Reforma Psiquiátrica Brasileira - instaurada pela Lei 10.216, de 2001 (Brasil, 2004) -, realizamos uma Pesquisa Documental de caráter intencional. A opção pela Pesquisa Documental se deu por entendermos que ela possibilita a problematização mais aprofundada do que tem sido entendido como documentos de referência para a área das políticas sobre drogas, com alto índice de referências nas políticas públicas brasileiras e notória interface de material bibliográfico que produz subsídio teórico e prático no campo estudado.

Segundo Richardson, R. J.; Peres, J. A. S.; Vieira, J. C.; Martins, W. L. & Peres, M. H. (1999): "a análise documental consiste em uma série de operações que visam estudar e analisar um ou vários documentos para descobrir as circunstâncias sociais e econômicas com as quais podem estar relacionadas" (p. 230). Além disso, Gil (2008) elenca vantagens desse tipo de método: possibilita o conhecimento do passado, a investigação dos processos de mudança social e cultural, permite a obtenção de dados com menor custo e sem o constrangimento dos sujeitos.

A partir disso, realizamos um recorte de pesquisa, selecionando quatro (4) documentos oficiais que orientam às políticas sobre drogas na atualidade, sendo 1 internacional, 2 nacionais e 1 estadual. A escolha por esses documentos específicos (os quais serão detalhados a seguir), além de ter se dado pela apreensão de suas funções estratégicas na produção das práticas assistenciais dos profissionais, nas organizações dos serviços e na montagem das políticas para as drogas nos âmbitos locais (através da menção que fazem não somente a problemáticas que envolvem o uso de substâncias, mas articulando-as continuamente com o campo da Saúde e as ações por este exercidas), levou também em consideração um recorte temporal, tendo a busca abrangido o período compreendido entre os anos de 2010 a 2015. Outra questão que orientou a escolha por esses documentos foi sua acessibilidade, que, no momento de realização da pesquisa, se encontravam públicos e de simples localização.

Dessa forma, obtivemos como documento internacional: as Normas Internacionais Sobre a Prevenção do Uso de Drogas (United Nations Office on Drugs and Crime [UNODC], 2013), sendo formulado pelo UNODC. Esse órgão competente tem influência global, na medida em que é assistido por setores sociais representantes de vários países, com o objetivo de apoiar os países-membros na implementação e ratificação dos acordos firmados na Comissão de Narcóticos e na formulação e aplicação da legislação doméstica em drogas, crimes e terrorismo, aí incluso o Brasil (Fonseca & Bastos, 2012). O referido documento reúne evidências científicas atualmente disponíveis, a partir de dados e provas, descrevendo, debatendo, avaliando e orientando a implementação de intervenções e políticas que resultaram em medidas de prevenção positivas em sistemas nacionais de prevenção (UNODC, 2013).

No que se refere aos documentos brasileiros em nível nacional, foram selecionadas duas políticas, no âmbito da segurança e da saúde, que historicamente têm influenciado o contexto sobre drogas. São elas: a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (Brasil, 2003) e a Política Nacional de Drogas (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas [SENAD], 2010). O primeiro, produzido pelo Ministério da Saúde, parte do reconhecimento do uso de drogas como problemática de saúde pública e assinala assumir o compromisso com a atenção integral ao usuário de drogas, em consonância com princípios e orientações do SUS e da reforma psiquiátrica. Dessa forma, a política do Ministério da Saúde engloba o campo da saúde, a Política de Atenção Integral, a Redução de Danos e a rede de saúde como local de conexão e de inserção, buscando desconstruir certos estigmas, como a premissa do senso comum de que todo usuário de drogas é doente e requer internação ou prisão (Brasil, 2003). O segundo documento, denominado Política Nacional de Drogas - PND, é resultante do processo de realinhamento no que concerne às questões das drogas, promovida pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas - SENAD, que tem função importante na articulação das políticas públicas que envolvem tal temática. Esse órgão também é responsável por coordenar e integrar ações do governo relativas à redução de demanda. A política, no âmbito da segurança pública, tem como um dos seus pressupostos básicos o ideal de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas (SENAD, 2010).

O Plano de Ações Integradas de Enfrentamento às Drogas do Estado do Ceará (Assembleia Legislativa do Ceará, 2011) foi escolhido como o documento estadual a ser analisado, especificamente porque se tratava de um documento do Estado do Ceará, situado no Nordeste brasileiro, local de realização do estudo. Esse documento visa sintetizar os compromissos assumidos nas diferentes esferas - municipal, regional e estadual - com diversos atores envolvidos na problemática das drogas, resultado das discussões promovidas pelo Pacto pela Vida (Ceará, 2011). O Plano do Estado do Ceará foi criado pelo Governo do Estado, nas áreas da Segurança e da Saúde, seguindo a influência do Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e à Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD), lançado em 2009, e O Plano Crack - Plano de Integração das Ações voltadas para a prevenção, tratamento e reinserção social de usuários de crack e de outras drogas, lançado em 2010, pelo governo Federal (Andrade, 2011).

Após a escolha dos referidos documentos, foi realizada leitura exaustiva dos mesmos a fim de realizar as indagações que permitissem responder a objetivos mais específicos do estudo, como: a) identificar a categoria pobreza nos documentos de referencia às Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas; b) analisar como tais documentos referenciam os marcos teórico-técnicos sobre as questões das drogas e a categoria pobreza; e c) refletir as aproximações e as contradições sobre o cuidado à população pobre presentes nos documentos estudados.

A análise dos elementos encontrados foi perpassada pela perspectiva psicossociológica, com a compreensão teórico-metodológica da pesquisa situada na tradição materialista histórico-dialética. Nessa perspectiva, que segue a influência marxiana, os fenômenos humanos são estudados em seu processo de transformação e mudança, portanto, em seu aspecto histórico. Nossa delimitação teve como foco, portanto, uma análise dialética da conjuntura política no âmbito internacional, nacional e local dos documentos, haja vista o conhecimento das influências históricas entre elas, de forma a enriquecer e ampliar o debate. Além disso, uma postura crítica foi priorizada, buscando penetrar nos significados sociais construídos na história e evitar reducionismos da realidade.

Assim, após as leituras e reflexões oriundas do processo de análise dos textos, a partir das contradições que se engendram na análise dialética da realidade, os resultados foram divididos em duas categorias temáticas que revelam elementos das dinâmicas sociais envoltas, por um lado, com a lógica de intervenção no âmbito das políticas públicas na realidade brasileira de pobreza, e, por outro, com a dimensão das práticas tecnicistas do cuidado e ação em saúde, oriundos desses documentos. A saber, as categorias: 1) Vigilância no Cuidado: controle x proteção; 2) Tecnicismo na ação: homogeneização x singularização. Para realizar as discussões, seguindo o método selecionado, recorremos à compreensão aprofundada da categoria pobreza e dos aspectos históricos da formulação das políticas específicas de drogas.

 

Discussão

Vigilância no Cuidado: Controle x Proteção

Das contradições existentes na questão das drogas, as engendradas pelo paradigma proibicionista, imanentes de uma estrutura político-organizacional militarizada para enfrentamento de tal questão, representam grande valia para buscar a compreensão do que hoje se qualifica como o problema das drogas no contexto brasileiro. Os acordos supranacionais, resultados de determinados momentos políticos e econômicos, definem as linhas que distinguem o que é lícito e ilícito, impondo limites sociais, culturais e morais ao comércio e ao uso de substâncias psicoativas (Fonseca & Bastos, 2012).

Seguindo a lógica proibicionista, a qual concentra esforços na redução da oferta e da demanda de drogas através de intervenções de repressão e criminalização da produção do tráfico, porte e consumo de drogas ilícitas (Alves, 2009), a repressão é adotada como política forte de Estado no Brasil, como estratégia de redução de oferta, por meio, sobretudo, do combate ao tráfico de drogas ilegais, como se pode perceber nos trechos abaixo. No âmbito de política nacional:

Ações contínuas de repressão devem ser promovidas para reduzir a oferta das drogas ilegais e/ou abuso, pela erradicação e apreensão permanentes dessas substâncias produzidas no país, pelo bloqueio do ingresso das oriundas do exterior, destinadas ao consumo interno ou ao mercado internacional, de identificação e do desmantelamento das organizações criminosas (Brasil, 2010, p. 21).

E também em âmbito estadual:

A repressão ao tráfico não será apenas um caso de polícia, porque em ação tão complexa como a repressão, a polícia coloca em prova sua competência e lisura. Daí a necessidade de fortalecer-se estratégica e moralmente através de profunda interação com a sociedade. E é claro interagindo a repressão ao tráfico aos outros eixos de enfrentamento das drogas no Ceará (Ceará, 2011, p. 15).

Isto, porém, se dá por algo de caráter histórico. Para Passos e Souza (2011), vivemos, no Brasil, na década de 80 e no começo da década de 90, o fracasso do "milagre econômico", o alto índice de inflação, a explosão demográfica nos grandes centros urbanos (o que aumentou os cinturões de pobreza nas periferias e favelas), o desemprego conjuntural, o sucateamento da educação pública, o aumento da violência urbana e a falência do modelo econômico nacional, o que acabou por acompanhar o aumento do mercado ilícito.

É nesse contexto que o tráfico de drogas toma repercussões nacionais e internacionais. As disputas por pontos de venda de drogas e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao mercado de drogas o mercado de armas, dando início a uma guerra civil não declarada. No âmbito internacional, as drogas e o terrorismo passaram a substituir gradativamente o comunismo como figura ideológica de ameaça à democracia, o que gerou uma política de "guerra às drogas", liderada pelos Estados Unidos, primeiramente, mas depois dissipada por vários outros países (Passos & Souza, 2011). Há, portanto, uma aposta permanente na guerra como forma de manter a ordem social, destituída de seu caráter de exceção.

Somado a isso, Machado e Miranda (2007) discutem que as abordagens, ações e políticas que caracterizam a história das intervenções dos governantes brasileiros na área das drogas originaram-se e predominaram na área da Justiça e da Segurança Pública. A partir de um determinado momento da história, o aparato jurídico-institucional passou a ser influenciado também com subsídios tecno-científicos da medicina. O usuário passou a ser identificado como doente/criminoso. Porém, os meios utilizados para a prevenção e o combate à oferta de drogas no país fracassaram (Alarcon, 2012), pois não deram conta de coibir a produção e o consumo de drogas.

A partir disso, esta discussão visa compreender que impactos possíveis essa lógica tem produzido no Brasil. Alarcon (2012), por exemplo, evidencia fatores contraditórios, como o grande número de homicídios, que embora seja vinculado diretamente à guerra às drogas ilícitas, acontece em um país que não é grande produtor ou consumidor - se comparado aos números da Europa e EUA, que consomem e produzem drogas em maiores quantidades, mas apresentam números bem reduzidos no tocante aos homicídios. Diante de tal fato, torna-se urgente a compreensão das relações entre o comércio ilícito, sua repressão e as legislações que legitimam a ilicitude sustentada pelos países da Europa Ocidental e dos EUA como uma das principais causas da atual violência urbana brasileira.

Alarcon (2012) nos revela, ainda, a partir da declaração de Giovanni Quagli, representante do UNODC, que aproximadamente quinze mil jovens brasileiros perdem suas vidas anualmente por causa da guerra decorrente do tráfico de drogas. Ele põe em questão a motivação que produz essas mortes, num processo insidioso de extermínio de uma determinada população, com a justificativa de proteger a saúde dessa mesma população, o que está diretamente relacionado às ações de repressão à oferta e demanda de drogas tornadas ilícitas. Destaca que o grupo mais afetado por estas violências são, geralmente, negros ou pardos, de classes populares, com idade média de 29 anos e que moram em regiões metropolitanas ou favelas de grandes centros urbanos. No Brasil, esse cenário é constante, onde se interseccionam os ditos perfis de pessoas negras, pobres, com baixo nível de escolaridade, moradores de favelas com sujeitos usuários de drogas, perigosos, traficantes, que não possuem controle sobre suas ações e se tornam, consequentemente, sujeitos imprevisíveis que devem ser evitados pela população de forma geral e para os quais as políticas públicas devem se direcionar de forma incisiva, como se pôde observar.

Assim, a criminalização da pobreza tem sido umas das formas de se combater a pobreza, dentro de um contexto individualista, que concebe as causas para tal fenômeno como uma opção individual ou um desajuste do indivíduo ou dos grupos (Siqueira, 2014). O que pode acontecer, diante dessa problemática, é a ocorrência da naturalização da pobreza, a qual tem sido uma estratégia recorrente e eficaz para a manutenção de situações opressivas (Góis, 2008). Conforme assinalado por Góis (2008), na discussão que trata dos processos de construção do fatalismo e das ideologias de submissão e resignação impostas ao povo pobre, há a produção de uma série de práticas sociais que limitam os modos de viver por meio de negações de processos de construção de identidade, contribuindo para o desamparo, fragilidade e violência do pobre.

As justificativas utilizadas para manter ações que visem à redução de consumo e de oferta, através da repressão, podem ser compreendidas a partir das concepções, por exemplo, da SENAD (Brasil, 2010, p. 21): "A redução substancial dos crimes relacionados ao tráfico de drogas ilícitas e ao uso abusivo de substâncias nocivas à saúde, responsáveis pelo alto índice de violência no país, deve proporcionar melhoria nas condições de segurança das pessoas".

Concepções como essa se baseiam na relação simplista causal entre o consumo de drogas e as consequências nocivas à saúde e à segurança. Contudo, um dos dilemas mais complicados dos problemas-drogas está no impasse expresso nos eventuais danos (orgânicos) produzidos pelo uso de psicotrópicos quando comparados aos danos provocados pelos mecanismos de gestão de riscos, expostos especialmente no combate ao comércio ilegal de drogas e ao uso de drogas ilícitas.

Alarcon (2012) entende que uma prática baseada no controle de risco, que busca, de maneira inflexível, apenas abolir as ameaças com a intenção de anular completamente os danos, pode significar, ao mesmo tempo, uma obsessão por controle, prescrevendo ações capazes de minimizar ao máximo a probabilidade de um evento danoso acontecer. Podemos pensar, partindo desse pressuposto, qual a intenção e quais estratégias são utilizadas da Política Nacional de Drogas quando se pretende "buscar, incessantemente, atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas" (Brasil, 2010, p. 13).

Nas políticas referentes às drogas, os fatores de riscos são elencados a partir de elementos individuais, relacionais e ambientais, como pode ser visto nas Normas Internacionais de Prevenção (UNODC, 2013, pp. 4-5):

As evidências não só apontam para a falta de conhecimento sobre drogas e suas consequências, mas também para certos fatores de risco que podem ser: os processos biológicos, traços de personalidade, transtornos mentais, negligência e abuso na família, falta de vínculo com a escola e com a comunidade, normas sociais propícias e ambientes favoráveis ao uso abusivo de substância e crescimento dentro de comunidades marginalizadas e carentes.

É de fundamental importância destacar, aqui, que o contexto da pobreza pode ser entendido como fator de risco. Nessa busca implacável de anular os riscos, sem o devido cuidado, crítica ou problematização, os pobres podem continuar como os principais alvos da repressão militarizada, mantendo processos de estigmatização. Os fatores de riscos podem ser atribuídos, ainda, exclusivamente ao indivíduo, como fica claro no seguinte trecho:

O uso de drogas pode ser considerado decorrente da c ongruência de alguns fatores: um deles é a per sonalidade do usuário que, embora tenha muito em comum com as personalidades de outras pessoas, tem peculiaridades tão exclusivas quanto a impressão digital; outro é o momento social e cultural vivido, que pode ter o potencial de abrir fissuras nas defesas psicológicas das personalidades mais fra gilizadas; e outro é o produto, a droga, com sua maneira de compensar momentaneamente aflições e a natureza destrutiva que traz em seu âmago. Além, é claro, da sua forma de produção e dis tribuição (Ceará, 2011, p. 15).

Ocorre, assim, a culpabilização da vítima. Dessa forma, ampliando para a situação de pobreza, há um panorama de culpabilização do sujeito pobre (atributo individual e não produção social) que, em seguida, em um processo retórico, torna-se o produtor dessa própria condição, sendo o culpado e o que produz o próprio risco, em consonância com o que aponta a literatura (Moura Jr.e cols., 2014; Passos & Souza, 2011; Siqueira, 2014). Na mesma linha de pensamento, Alarcon (2012) e Fonseca e Bastos (2012) também acreditam que este cenário de guerra contra as drogas prejudica e mesmo impede a implementação de ações de redução de danos. Percebem, ainda, que essas ações devem ir além da dimensão individual de avaliar os riscos e que as estratégias para minimizar esses riscos passam, necessariamente, pela dimensão contextual e social.

Portanto, a vigilância, categoria encontrada neste trabalho como elemento contraditório nas políticas atuais sobre drogas, em análise do ponto de vista dos encontros com a categoria pobreza, significa: proteger para punir, cuidar para cercear e vigiar para reprimir com mais eficácia e eficiência. É apenas de forma secundária e acessória que se pensa sobre as causas complexas que motivam o seu uso e a eventual dependência. Nesse ínterim, perdem-se as singularidades e a liberdade dos sujeitos ou dos grupos, que são identificados, muitas vezes, apenas como criminosos ou doentes.

Tecnicismo na Ação: Homogeneização x Singularização

A institucionalização, como um "conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência e de relações de poder que se estruturam em torno de um objeto" (Rotelli, F.; Leonardis, O. & Mauri, D., 1990, p. 30), das práticas de cuidado à saúde em relação aos sujeitos e ao uso de substâncias psicoativas, atrelada primordialmente, ao paradigma proibicionista, engendrou transformações (ou inventou) padrões de relações da sociedade com as drogas e ainda estabeleceu lugares desiguais e estigmatizados para tais relações.

Essas condições expostas pelas contradições das Políticas sobre drogas podem levar, por um lado, segundo Andrade (2011), ao distanciamento da assistência e dos sujeitos que usam drogas, tanto por estes não procurarem os serviços, quanto pelo desconhecimento dos profissionais de saúde das condições de vida das pessoas socialmente excluídas. Por outro lado, o segmento socioeconômico das pessoas que usam drogas é uma condição que interfere na qualidade da assistência à saúde: enquanto os jovens de classe média são medicalizados em clínicas particulares, já que se medicaliza a relação dos sujeitos com as drogas, os pobres são condenados ao cumprimento de medidas socioeducativas, haja vista a criminalização do uso.

Embora o processo de formulação das políticas seja muito complexo, pois resulta da interação de diversos atores, com diferentes poderes, interesses e objetivos, a formulação e a implementação de políticas públicas, conforme Alves (2009), podem cooperar para a reprodução de um modelo de atenção à saúde hegemônica ou favorecer condições para a reinvenção de práticas e de processos de trabalho em saúde.

No que se refere às abordagens para denominar os sujeitos que fazem uso de drogas, por exemplo, as políticas parecem mesclar diferentes denominações, como se pode perceber no decorrer do Plano Estadual do Ceará: "O Centro buscará a construção de uma rede de atenção integral aos usuários de drogas, que garanta as diversas modalidades de tratamento, diante das diferentes necessidades dos dependentes químicos" (Ceará, 2011, p. 15, grifo nosso). E, de forma contundente, na Política Nacional Sobre Drogas: "Reconhecer as diferenças entre o usuário, a pessoa em uso indevido, o dependente e o traficante de drogas, tratando-os de forma diferenciada" (Brasil, 2010, p. 13, grifo nosso).

Quais as consequências das questões expostas para a formulação e a implementação de políticas e ações desenvolvidas no campo das drogas, assim como sua articulação com a dimensão da pobreza, explorada neste estudo?

Por cada denominação, perpassam complexos institucionais distintos, exigindo tratamento e cuidados específicos. Mas, se no tratamento destinado aos sujeitos que fazem uso de drogas impera ainda a lógica biomédica, com o modelo unicausal de doenças, dos transtornos mentais, com a medicalização da vida, talvez essas possíveis formas de entendimentos acerca desses sujeitos recaiam e mantenham-se somente no espectro de dependentes químicos (Belmonte, Alarcon & Jorge, 2012).

Acreditamos que a hegemonia biomédica das práticas de saúde desenvolveu a redução da compreensão do processo saúde/doença, a partir de uma concepção unicausal (geralmente, biológica), omitindo processos de singularização e subjetivação. A longa duração desse paradigma influenciou na disseminação da ideia de que apenas a abstinência total significaria o tratamento possível para os dependentes químicos (Belmonte, Alarcon & Jorge, 2012). Não é por acaso que, nesse contexto, serviços como as Comunidades Terapêuticas tenham surgido pautados no internamento e na abstinência total (como única possibilidade, negando e desconsiderando o desejo do sujeito), indo na direção contrária, segundo Andrade (2011), de práticas que prezem as singularidades e as necessidades dos usuários (que até pode ser a abstinência), tal como a Redução de Danos.

O Plano do Estado do Ceará deixa explicito seu posicionamento de apoiar e integrar os serviços de Comunidade Terapêuticaà assistência aos usuários de drogas:

No que se refere ao tratamento de usuários, o grande desafio é suprir, em curto prazo, a necessidade de serviços especializados para atender aos usuários e seus familiares que buscam superar a dependência de drogas. Isso implica no aumento do número de leitos em hospitais gerais, na criação e/ou aumento de vagas nas comunidades terapêuticas, no fortalecimento dos serviços ambulatoriais e na capacitação dos profissionais, para que os mesmos tratem a questão do uso de drogas em todas suas nuances (Ceará, 2011, p. 15).

As críticas feitas aos hospitais psiquiátricos quanto ao tratamento de loucos e os denominados dependentes químicos, como entendem Belmonte, Alarcon e Jorge (2012), devem se estender também a instituições que surgiram à sombra dessa racionalidade, pois desinstitucionalizar não significa apenas desospitalizar, mas quebrar os processos e discursos reducionistas engendrados pelos mecanismos institucionais. Os espaços fechados para o tratamento do dependente químico, e de suas necessidades por cura, são propícios a relações de dominação, exercendo o poder terapêutico e de adestramento sobre sujeitos subitamente sem direitos, jogados à arbitrariedade institucional.

É sempre importante lembrar que com a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica, de acordo com Belmonte, Alarcon e Jorge (2012), a ideia de saúde ampliada (como qualidade de vida) para além de enfoques unicausais provocou uma reorientação das políticas públicas do setor em suas estratégias de incorporação das questões sociais, econômicas e ambientais. A ênfase passou a ser a tentativa de organizar ações mais próximas da realidade efetivamente vivenciada pelos sujeitos. Ao mesmo tempo, percebeu-se a necessidade dos serviços mais dinâmicos e porosos.

É certo que, diante disso, o Ministério da Saúde assume o papel de instituir uma política condizente com a Reforma Psiquiátrica. Ele deixa assinalado claramente seu compromisso ao registrar que: "É importante, portanto, destacar que, neste governo, o Ministério da Saúde assume de modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar, reabilitar os usuários de álcool e outras drogas como um problema de saúde pública" (Brasil, 2003, p. 9).

Da mesma forma, também a PND, em função do realinhamento com o setor de saúde, assume este compromisso:

Promover e garantir a articulação e integração em rede nacional das intervenções para tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção social e ocupacional (Unidade Básica de Saúde, ambulatórios, Centro de Atenção Psicossocial, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, comunidades terapêuticas, grupos de autoajuda e ajuda mútua, hospitais gerais e psiquiátricos, hospital-dia, serviços de emergências, corpo de bombeiros, clínicas especializadas, casas de apoio e convivência e moradias assistidas) com o Sistema Único de Saúde e Sistema Único de Assistência Social para o usuário e seus familiares, por meio de distribuição descentralizada e fiscalizada de recursos técnicos e financeiros (Brasil, 2010, p. 18).

Todavia, embora inovações políticas e organizacionais tenham desenvolvido a expansão de conceitos, como de integralidade e de equidade, por exemplo, quando consideram que os serviços e as ações devem ser implementados a partir do contexto social, dos indicadores de qualidade de vida ou de vulnerabilidades sociais, a eficácia dessas políticas pode trazer controvérsias diante do impasse de se compreender a realidade brasileira frente à pobreza. Além disso, historicamente, não podemos esquecer que as políticas sociais são marcadas pelo autoritarismo, pelo clientelismo e pela fragmentação institucional, configurando-se de forma paradoxal sobre o cenário brasileiro, na medida em que têm favorecido uma baixa capacidade de alcançar maiores transformações sociais (Magalhães, Burlandy & Senna, 2007).

Dessa forma, a dimensão contextual perde sentido quando prevalece:

Um esvaziamento da dimensão da política a favor da dimensão técnica na formulação e implementação dessas mesmas políticas e programas, privilegiando-se a dimensão da gerência em detrimento da dimensão da gestão, a dimensão da relação custo/efetividade em detrimento da dimensão da eficácia social, e das metas de cobertura em detrimento da dimensão do acesso e da acessibilidade aos serviços e produtos de saúde (Cohn, 2009, p. 1617).

Fica explicito, portanto, que há uma clara diferenciação no acesso à saúde por parte da população, no qual a uma parcela fica reservada tecnologias e discursos assistenciais ditos de ponta, e a uma outra parcela (frequentemente, a parcela pobre da população) destina-se uma assistência deficitária e carente de recursos e profissionais. Somando-se a isto, o que ainda se vê como o mais comum a ser veiculado é uma culpabilização das pessoas pobres por seus adoecimentos. A culpabilização acontece pela veiculação de discursos naturalizados nos quais reiteram-se ideias preconceituosas de que essas pessoas são mal-informadas, descuidadas com seus próprios processos de higiene, despreocupadas com atitudes de prevenção e moradoras de ambientes que são mais propícios a fazerem usos de drogas.

Assim, o que se mostra é que os discursos biomédicos não parecem abranger a todos, e para aquela parcela da população pobre que não é abrangida, outro discurso é criado, determinando e direcionando de forma desigual o cuidado que será concedido a cada indivíduo. Não por acaso, Agamben (2002) assinalou que uma das características essenciais da biopolítica moderna é a integração entre medicina e política. Essa integração possibilita o deslocamento da "decisão soberana sobre a vida, de motivações e âmbitos estritamente políticos, para um terreno mais ambíguo, no qual o médico e o soberano parecem trocar seus papéis" (Agamben, 2002, p. 139).

Diante dessas considerações, fica explicita a prevalência da tecnificação do cuidado. Tecnificação, nesse sentido, quer dizer, sobretudo: a imposição sobre a vida de modelos explicativos em todas as suas formas de expressividade, transformando-a meramente em instrumentalidade. Portanto, esse esvaziamento da condição política citado por Cohn (2009) tem permitido apenas pequenas permissões mascaradas de direitos, que não mudam em nada a distribuição do poder e seguem a favor da tecnificação, assegurando práticas homogêneas que pouco chegam ao encontro das reais necessidades dos usuários no Brasil.

Com o foco meramente assistencialista à população pobre ou extremamente pobre, proliferam-se políticas de inclusão precárias e marginais, incapazes de alcançar as determinações mais gerais e estruturais dessa problemática (Silva, 2010). Tal atitude, assim, funciona para alinhar a pobreza com uma lógica capitalista atual, que visa administrar as populações e dela obter seus ganhos e lucros através da previsão e controle de riscos, base da criação de discursos e práticas que acabam por promover a manutenção e continuidade da pobreza. Dessa forma, mantém-se uma situação de inevitável reprodução das próprias condições de perpetuação da pobreza. Por conseguinte, tem-se uma pobreza regulada ou controlada, mas não superada, servindo para perpetuar os estigmas que são atribuídos aos pobres e permitindo o funcionamento da ordem com o controle social das políticas sociais.

 

Considerações Finais

A partir das articulações e discussões aqui realizadas, percebemos que as concepções e práticas que circulam tanto em torno das questões das drogas quanto da pobreza não são verdades absolutas, mas sim construções que precisam ser sempre contextualizadas, visto que os conhecimentos e discursos que alimentam as políticas sociais também são produzidos em meio a um jogo de atores e interesses. Assim, buscando compreender os fenômenos em perspectiva crítica, foi possível construir pontos relevantes e compreender as relações entre pobreza e Políticas sobre Drogas. A pobreza identificada, à primeira vista, nos documentos, está apresentada de forma simplificada, sem maiores conjecturas. Contudo, quando melhor observamos as contradições, muitas vezes invisíveis ou ocultadas da nossa realidade, à luz do método e da fundamentação teórica, a pobreza aparece de maneira contundente, tanto nas proposições quanto na formulação das Políticas Públicas sobre Drogas.

Os serviços prestados às pessoas que fazem uso de drogas na contemporaneidade estão permeados pelo processo de institucionalização, através da tecnificação das práticas, na qual os sujeitos e os grupos são desconsiderados nas suas necessidades específicas, descontextualizados do seu cenário cultural, a mercê da arbitrariedade institucional e da homogeneização das ações. Se o objetivo dos serviços é o de mediar processos em que os sujeitos obteriam um maior grau de liberdade de escolha e autonomia, com a normatização e racionalização das ações, o objetivo de ampliação de tais graus de liberdade falha em sua tarefa, caindo sob uma descrição determinista: a emancipação em relação ao problema com as drogas segue a descrição estereotipada de expectativas de comportamento institucionalizadas. A atenção integral acaba por ser reduzida a um conjunto de ações que objetivam domesticar os sujeitos, reeducando-os moral e, em muitos casos, religiosamente. Apesar dos avanços promovidos pela Reforma Psiquiátrica e Sanitária, ainda ocorre o processo de perpetuação do modelo excludente (especialmente notado para a população pobre) e manicomial (notadamente no trato asilar da questão) na formulação e implementação das políticas públicas sobre drogas.

A análise que o trabalho traz entre as categorias Pobreza e Droga tem a revelar, ema última instância, que a relação entre ambas está mais relacionadacom a lógica de produção das drogas. Isso quer dizer que a lógica de produção (compreensão sistêmica) das drogas é mais expressiva do que a relação do sujeito (individual e isolado) pobre e seu consumo. Em outras palavras: as relações de produções de regras, licitudes e ilicitudes, modos de obtenção da substância e seus consequentes modos de usos relacionam-se com a produção internacional do mercado das drogas e não só com a pobreza enquanto dado do sujeito. A pobreza é condição da divisão internacional da produção, distribuição, armazenamento e consumo das substâncias.

Nesse contexto, o papel da Psicologia (pode-se dizer que também é o de todas as áreas de atuação professional que trabalham no campo das Políticas Públicas voltadas para às questões do uso de álcool e outras drogas) parece ser, então, em uma dimensão, o de construir leituras que busquem desindividualizar o fenômeno do uso, apresentando-o como de fato é: uma complexa teia de padrões que envolvem produções e discursos, cabendo à mesma compreender e auxiliar na naturalização e complexificação do debate. Em outra dimensão, à atuação do psicólogo(a) são requeridos, no contexto profissional doenfretamento à pobreza, como afirmam Moura e cols. (2014), o engajamento junto às ações políticas; a apropriação de saberes de outros para além da psicologia; a efetivação de trabalhos multiprofissionais; bem como a formulação de novos saberes coerentes com a realidade que se impõe e com uma postura crítica não reiterativa dos modelos culpabilizantes do pobre por sua condição.

Outro papel da Psicologia, ou poderíamos dizer, dos psicólogos(as), é pensar e agir para além da convencionalidade, suportando a tensão e a contradição que existem entre o cuidar e o controlar, conectando-se aos direitos dos usuários e com os princípios de autonomia dos sujeitos e grupos sociais. Além disso, parece ser também o de correlacionar os modos de produção das institucionalizações com as práticas de cuidado e fomentar a produção de saídas não só em esferas individuais, mas coletivas, sociais e políticas. Lima, Gonçalves Neto e Lima (2011) reforçam essa ideia ao indicarem a importância do engajamento político do psicólogo visando à ampliação de uma visão dicotômica (saúde-doença, justiça-delito, religião-pecado etc.) quanto aos problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, assegurando uma perspectiva que garanta a cidadania e reconhecimento de humanidade.

O questionamento constante do emprego de discursos e textos que reforçam valores morais que impedem um debate público sério e responsável sobre o uso de drogas é imprescindível para que possamos seguir além da estéril conformação dicotômica, na qual a opção é escolher entre ser a favor ou contra o uso de drogas, discernindo o que realmente está colocado em jogo.

Dessa forma, tendo em vista a existência de profundas relações e implicações das Políticas Públicas de drogas e da pobreza, ao passo da constatação escassa de produções científicas que discutissem de maneira mais direcionada esse tema, este trabalho também sugere o aprofundamento de estudos que visem aproximar e contextualizar questões, nesse sentido, pertinentes. Reitera-se, assim, a necessidade de um conjunto de pesquisas que caminhem no sentindo do rompimento com a naturalização de fenômenos sociais e interrupção de perpetuação das concepções e práticas delas decorrentes, como se encontra explícito nas políticas públicas sobre drogas no Brasil.

 

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Recebido em: 2017-02-19
Aprovado em: 2017-09-27

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