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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Controle Social no Sistema Único de Saúde: sentidos da participação, poder político e Democracia Participativa - um estudo de caso na perspectiva da Psicologia Política

 

Social Control in the Health Unic System: meanings of participation, political power and Participative Democracy - a case study from the perspective of Political Psychology

 

Control Social en el Sistema Unico de Salud (SUS): sentidos de la participación, poder político y Democracia Participativa - un estudio de caso en la perspectiva de la Psicología Política

 

Le contrôle social dans le Système de Santé Unique (SUS): le sens de la participation, du pouvoir politique et de la démocratie participative - une étude de cas au point de vue de la psychologie politique

 

 

Telma Regina de Paula Souza

Professora da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Doutora em Psicologia Social. trpsouza@uol.com.br

 

 


 

RESUMO

Este estudo aborda a participação da sociedade civil na representação dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) no Conselho Municipal de Saúde (CMS) em Piracicaba. Os objetivos da pesquisa se concentram em compreender os sentidos da participação dos usuários do SUS no CMS, e os sentidos das ações do CMS nas formulações da política pública de saúde no município de Piracicaba. A metodologia foi qualitativa, pois buscamos a compreensão dos sentidos e dos significados da participação social no contexto estudado. Os procedimentos usados para a coleta de dados foram: (a) observação das reuniões ordinárias e extraordinárias do CMS e das reuniões do grupo executivo do CMS, (b) entrevistas semidirigidas com os representantes dos usuários e demais membros do grupo executivo do CMS. Na análise interpretativa dos dados, destacamos os limites da participação da sociedade civil em uma Instituição Participativa (CMS), o que permitiu problematizar a Democracia Participativa no Estado brasileiro.

Palavras-chave: Controle social, participação social, Sistema Único de Saúde, psicologia política


ABSTRACT

This study addresses the civil society participation in the users' representation of the Unified Health System (SUS) in the Municipal Health Council (CMS) in Piracicaba, São Paulo. The aims of the research were to understand the meanings of SUS's users' participation in the CMS, and the meanings of CMS's actions in the public health policy formulation in the city. The methodology was qualitative, as we sought to understand the social participation feelings and meanings in the context studied. The procedures used for data collection were: (a) observation of CMS's ordinary, extraordinary and executive group meetings, (b) semi-structured interviews with users' representatives and the CMS's other executive group members. In the data interpretation analysis, we highlighted the civil society participation limits in a Participatory Institution (CMS), which allowed us to question the Participative Democracy in the Brazilian.

Key-works: Social control, social participation, Health Unic System, political psychology State.


RESUMEN

El estudio trata de la participación de la sociedad civil en la representación de los usuarios del Sistema Unico de Salud (SUS) de Brasil, en el Consejo Municipal de Salud (CMS) en la ciudad de Piracicaba/São Paulo. Los objetivos de la investigación eran compreender los sentidos de la participación de los usuarios del SUS en el CMS y los sentidos de las acciones del CMS en las formulaciones de la política pública de salud en la ciudad. La metodología cualitativa buscó la comprensión de los sentidos y de los significados de la participación social en el contexto estudiado. Los procedimientos utilizados en la recogida de datos fueron: (a) la observación de las reuniones ordinarias y extraordinarias del CMS y de las reuniones del grupo ejecutivo del CMS y (b) entrevistas semidirigidas con los representantes de los usuarios y demás miembros del grupo ejecutivo del CMS. Del análisis interpretativo de los datos destacamos los límites de la participación de la sociedad civil en una Institución Participativa, el CMS, lo que permitió problematizar la Democracia Participativa en el Estado brasileño.

Palabras-clave: Control social, participación social, Sistema Unico de Salud,psicología política


RÉSUMÉ

Cette étude porte sur la participation de la société civile représentant les utilisateurs du Système de Santé Unique (SUS), quel soit, le système national de santé brésilien, au sein du Conseil Municipal de la Santé (CMS) à Piracicaba. Les objectifs de la recherche sont centrés sur la compréhension de la signification de la participation des utilisateurs du SUS dans le CMS, aussi bien que la signification des actions du CMS dans la formulation de la politique de santé publique à Piracicaba. La méthodologie est qualitative, une fois que nous cherchons à comprendre les sens et les significations de la participation sociale dans le contexte étudié. Les procédures utilisées pour la collecte des données sont les suivantes : (a) l'observation des réunions ordinaires et extraordinaires du CMS et les réunions du groupe exécutif du CMS, (b) des entretiens semi-structurés avec des représentants des utilisateurs et d'autres membres du groupe exécutif du CMS. Dans l'analyse interprétative des données, nous mettons en évidence les limites de la participation de la société civile dans une institution participative (CMS), ce qui a permis de remettre en question la démocratie participative dans l'Etat brésilien.

Mots-clés: Contrôle social, participation sociale, Système de santé unique, psychologie politique


 

 

Introdução

Partimos do princípio ético de que a democracia, para além das diversas concepções teóricas, desde a antiguidade grega, é um valor fundamental contra regimes de governos despóticos, como os que marcaram o século XX, especialmente os totalitarismos fascistas europeus e as ditaduras militares latino-americanas, focando-nos apenas no mundo ocidental moderno. Neste sentido, neste texto, levaremos em conta não apenas o modelo de Estado e as formas de governo, mas a totalidade social, representada ou não pelos eleitos para ocupar o Parlamento e o Poder Executivo. Interessa-nos problematizar o poder político da sociedade, ou das sociedades, já que nossas sociedades caracterizam-se pela pluralidade de indivíduos e grupos que se organizam enquanto coletivos políticos, mesmo quando não se reconhecem politicamente.

Demarcamos o político enquanto a participação social comprometida com a manutenção ou mudança de uma ordem social. Enquanto manutenção, o político se institui nas diversas formas de instituição e, enquanto mudança, pode se instituir ou não, no último caso, o político é uma relação de antagonismo à ordem instituída nem sempre comportando um projeto contra-hegemônico ou um projeto alternativo ao instituído; o significante da negação expressa um mal-estar e uma reação a esse, sem clareza do sentido da mudança pretendida. Para alguns teóricos, essa negação sem projeto não se constitui como um antagonismo teoricamente considerado, mas expressa a demanda de mudança (Melucci, 1991)

No caso brasileiro, após um regime ditatorial que perdurou por mais de 20 anos, na Nova República, inauguramos uma democracia que, sob a égide da Constituição de 1988, busca fundar um Estado Democrático de Direitos conjugando a forma representativa, com a (semi) participativa, no último caso, consubstanciada nos Espaços Públicos que "aglutinam" a sociedade civil "organizada" (em tese, reconhecidos como portadores de direitos políticos) e os representantes governamentais (com destaque ao Poder Executivo).

Temos discutido que essa democracia brasileira, mais do que representar a soberania do povo, configura-se como um antídoto contra o Estado absoluto, o que já é virtuoso, mas isso não garante a soberania do povo, a não ser no caso da escolha dos representantes do poder político, se não considerarmos as manobras eleitoreiras de manipulação de massas. Nossa democracia é liberal, um neoliberalismo, pois o Estado não é mínimo, mas representa os interesses econômicos, no ideário de desenvolvimento sustentável, que se curva as elites econômico-financeiras. É liberal não no sentido único de um Estado mínimo, mas no sentido da liberdade (impossível nos Estados totalitários) recair sob o indivíduo, ou seja, reconhece-se os direitos fundamentais, especialmente a liberdade, que torna possível uma participação política determinada pela vontade autônoma de cada indivíduo. Nesse enquadre, os coletivos, ou os grupos organizados, podem representar uma ameaça à ordem democrática, alvos, portanto, da ação policial ou da cooptação institucional na produção de um consenso.

No regime representativo de nossa democracia, guiado pelo reconhecimento dos direitos humanos, o processo de democratização multiplicou os órgãos representativos, que exprime uma mudança mais quantitativa do que qualitativa do regime representativo. De todo modo, essa democracia alargada respondeu às transformações do sistema social capitalista, visto ter ocorrido um deslocamento dos centros de poder dos órgãos tradicionais do Estado para a grande empresa, o que podemos entender como uma colonização do Estado pelo mercado, orientando-nos nas reflexões de Santos (1994) sobre as transformações nos pilares do projeto sociopolítico e cultural da modernidade.

Entendemos que o alargamento democrático não se trata, necessariamente, de uma hegemonização ideológica, trata-se de responder aos imperativos do poder atual, centrado na expansão do mercado, que ultrapassa os limites nacionais.

Em outro viés analítico, convergente com as questões acima, a democracia, inicialmente combatida pelas elites, foi atendendo aos interesses das elites ao ser tomada, como assevera Bobbio (1993), como "(...) um método ou um conjunto de regras de procedimentos para a constituição de Governos e para a formação das decisões políticas (ou seja das decisões que abrangem a toda a comunidade) mais do que uma determinada ideologia." (1993, p.326). Entendemos que a razão mais instrumental do ser democrático, no sentido apresentado por Bobbio, não eliminou a ideologia de sua base de sustentação, mas deixou aberto o espaço político para que os interesses mercadológicos justificassem essa ou aquela regra democrática, instrumentalizado o Estado a serviço das elites econômicas.

De qualquer forma, olhando para as teorias políticas acerca da democracia, parece-nos que, por si só, a democracia não garante a justiça social, que tem sido nosso principal interesse em torno das questões da democracia brasileira. A distinção apontada por Bobbio (1993) entre democracia formal e democracia substancial, talvez possa nos auxiliar na análise do sentido da participação social no regime democrático brasileiro. Segundo Bobbio (1993), a democracia formal está focada nos meios, nas regras do jogo democrático, independentemente dos fins, e a democracia substancial indica um certo conjunto de fins, independente dos meios para alcançá-los. Os fins que se sobressaem, no último caso, são a igualdade jurídica, social e econômica, que entendemos enquanto justiça social.

Destacando a esterilidade do debate em relação ao grau de democraticidade desses regimes, Bobbio aponta como a democracia perfeita, ainda não realizada em nenhuma parte do mundo, deveria ser simultaneamente formal e substancial. No caso brasileiro, entendemos que a democracia formal se expressa na forma representativa e a substancial é uma promessa da democracia participativa pretendida pelos Espaços Públicos, afirmados em nossa Constituição, expressivamente plasmada para a formulação das políticas públicas, mas que não tem sido suficiente para a materialização da democracia substancial.

Temos acompanhado, nos últimos 10 anos, a participação social nesses Espaços Públicos (conferências, audiências públicas, ciclo orçamentário e conselhos gestores), especialmente os relacionados aos direitos da criança e do adolescente e à saúde. Realizamos pesquisa focada no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Piracicaba (CMDCA), na qual pudemos analisar os paradoxos da democracia liberal.

Neste texto, focamos nossa análise no Conselho Municipal de Saúde de Piracicaba que comporta algumas particularidades em relação ao CMDCA, tanto na sua composição, como na sua função. Ambos são conselhos gestores, mas a representação no CMDCA é paritária entre poder público e sociedade civil, sendo essa última representada por entidades que realizam serviços dirigidos à população infantojuvenil e, no caso da saúde, a composição comporta três esferas de representação: poder público (25% das vagas), profissionais da saúde (25% das vagas) e usuários do Sistema Único de Saúde (50% das vagas).

Embora o Conselho de Saúde monitore os recursos orçamentários para saúde no município, por meio de prestação de contas realizada pela Secretaria de Saúde, ele não dispõe de um fundo financeiro do qual pode autonomamente definir a aplicação, como ocorre no CMDCA por meio do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente ̶ FUMDECA, que é um recurso obtido por doações (pessoa física e jurídica), administrado por esse Conselho, que destina esses recursos a instituições que atuam com a população infantojuvenil.

O Conselho Municipal de Saúde deve aprovar o orçamento municipal para saúde, mas, como observamos na pesquisa, o Conselho tem grande dificuldade técnica para a avaliação das peças orçamentárias, o que também ocorre em outras cidades, como identificamos em outras pesquisas. Essa dificuldade instrumental, como analisaremos, já nos revela os limites da participação social nesse Espaço Público, o que compromete o controle social da administração pública e o exercício da democracia.

Antes de discutirmos outros resultados da pesquisa, abordaremos brevemente a ideia de controle social por meio dos Conselhos instituídos a partir da Constituição brasileira de 1988, especificamente relacionados à saúde, controle instituído pela lei nº 8.080/90, que dispõe sobre a criação do Sistema Único de Saúde, de forma tímida, pois os artigos sobre a participação social foram vetados pelo então presidente Fernando Collor de Mello. No mesmo ano (1990), porém, outra lei dará conta da participação social, a lei federal 8.142 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão pública. Mas de que controle social estamos falando?

Controle social: do Conceito Sociopolítico à Possibilidade de Participação Social no Brasil.

Inicialmente, recorremos ao dicionário de política para contextualizarmos o controle social enquanto um conceito. Segundo Garelli (1993),

Por controle social se entende o conjunto de meios de intervenção, quer positivos quer negativos, acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a caracterizam, de impedir e desestimular os comportamentos contrários às mencionadas normas, de restabelecer condições de conformação, também em relação a uma mudança do sistema normativo (1993. p. 283).

Para esse sociólogo italiano, existem duas formas de Controle Social, externa (coercitiva) e interna (da consciência, forjada no processo de socialização, especialmente a primária) e sempre se relacionará à limitação do agir individual ou coletivo, com a renúncia do uso da força (estado de natureza) e um movimento para a construção do consenso. Segundo Garelli, o conceito de Controle Social é formulado pelo sociólogo americano E. A. Ross, no fim do século XIX, comportando duas acepções, uma refere-se a todos "os processos que, ao determinar na interação as relações entre os vários indivíduos, levam a regular e a organizar o comportamento do homem e estabelecem condições da ordem social" (1993, p.284) e a outra é "o controle exercido por um grupo sobre os próprios membros ou por uma instituição ou grupos de pressão e classes sociais sobre a população de uma sociedade ou parte dela" ("ibídem").

A primeira acepção tem sido uma preocupação sociológica essencial e, segundo Zedner (1996), "A questão principal para os teóricos do controle social tem sido como alcançar uma ordem social compatível com princípios morais, sem impor um grau excessivo de controle pela coerção" (1996, p.138). Para essa pensadora, os teóricos que se debruçam sobre essa questão têm uma visão altamente conservadora da sociedade, os esforços têm que ser para manter a ordem social, e a socialização dos indivíduos tem esse papel, produzindo um consenso sem nenhum esforço consciente. Mas, segundo Zedner, com as mudanças sociais e o enfraquecimento dos elos tradicionais da sociedade, como família e igreja, a manutenção da ordem foi sendo cada vez mais difícil de ser obtida, o que exigiu outros mecanismos para se combater os desvios sociais, mantendo o consenso para a garantia da conformação dos indivíduos à ordem social.

Zedner também discute que na década de 60 do século XX, sociólogos radicais, como ela os denomina, invertem "(...) a premissa de Parsons de que o controle social era uma reação à transgressão, afirmando, em vez disso, que 'a ideia contrária, isto é, que o controle social leva à transgressão (...)" (1996, p. 139). Isto porque o controle social cria "outsiders", como criminosos, doentes mentais, e outras "minorias". Essa ideia dá base para a segunda acepção de controle social apontada por Garelli (1993), que pode ser entendida pelos estudos de Thompson (historiador marxista), nos quais o controle social são mecanismos que condicionam a classe operária a aceitar e adotar as normas e condutas favoráveis aos interesses das classes média e alta. Para Zedner, entre os teóricos do controle social encontramos posições extremas, que entendem que tudo que vem do Estado é controle social, portanto as políticas de bem-estar, como as políticas de saúde, são mecanismos camuflados de controle e repressão, "semelhantes, em seus objetivos, à polícia, aos tribunais e às prisões" (1996, p.139).

No capitalismo liberal, o controle social, confiado às leis do mercado, determina o consenso baseado na lógica tipo meritocrático, legitimando a diferenciação das recompensas, que encobre a produção das desigualdades econômico-sociais. Para Garelli (1993), com a crise da ideologia liberal, mantem-se esse consenso, mas a intervenção do Estado adquire maior peso, configurando-se como intervenções de caráter assistencial-clientelista, para o bem-estar social, ao que Santos (1994) analisa como paradoxal, visto que, no liberalismo, o Estado deve ser mínimo.

Analisando a situação Italiana nos anos sessenta, favorável ao controle social do Estado na perspectiva de ser o provedor da segurança social, Garelli verifica resistência de certos grupos a tal controle, muito relacionada à ausência de uma política de planejamento que impossibilitou a criação de condições econômicas e produtivas capazes de legitimar tal segurança, garantindo o consenso social. Tal resistência se fortaleceu diante da crise de recursos que impediu que o Estado pudesse se manter como providência. Naquele contexto, "o problema do Controle Social se torna um problema de regulação de interesses e de pressões dos vários grupos, por parte do Estado e da afirmação de uma situação de neocorporativismo (...)" (Garelli, 1993, p.285).

Tendo essas questões como pano de fundo de nossa análise, questionamos sobre os significados do Controle Social forjado a partir da Constituição brasileira de 1988. Demarcamos que tal Constituição, analisada como altamente expressiva em relação aos direitos humanos, sistematicamente negados na história brasileira, foi uma resposta às demandas sociais reivindicadas pelos movimentos sociais que se aglutinaram no movimento constituinte, que, na realidade, foi uma resposta à crise econômica de uma década considerada como perdida.

A crítica de que nossa Constituição peca pelo excesso, reflete uma Constituição que teve o papel de uniformizar os discursos das demandas sociais deslocando as demandas relacionadas à economia e à política para as demandas particulares dos diversos grupos e movimentos sociais. A Constituição passou a ser referência regulatória desses coletivos, que passam a ser chamados a compor os Espaços Públicos regulamentadores dos direitos reconhecidos na Constituição, em uma esfera absolutamente formal. Mais uma vez, os direitos sociais antecedem e formatam os direitos políticos no Brasil, mas apenas no campo discursivo, como um significante esvaziado do sentido político inscrito nos movimentos pré-constituinte. No arcabouço normativo, o sentido político é regulamentado no direito à participação social no formato preconizado na Constituição e regulamentações posteriores.

Essas questões nos levam a problematizar as conquistas de direitos humanos pela via legal, emanados da Constituição Brasileira. Os estatutos de direitos (crianças/adolescentes, idoso, juventude, igualdade racial, etc) regulam principalmente o desvio, o que entendemos ser um interessante enquadramento analítico, que não temos encontrado nos estudos sobre tais estatutos, alardeados apenas enquanto conquistas, o que não estamos negando. Nessa perspectiva, os sistemas de garantia desses direitos devolvem para a sociedade a responsabilidade de sua promoção, especialmente quando o Estado terceiriza os serviços de seguridade social, restando para si mesmo ações de defesa via o Sistema de Justiça, que extrapola seus limites (judicialização) com ações de repressão e controle social na acepção sociológica mais clássica do controle social, que não comporta o princípio participativo almejado pela Democracia Participativa.

Nesse contexto, Tatagiba (2002) discute a participação social na década de 90 do século XX, no Brasil, como uma possibilidade de articulação entre a democratização da relação entre Estado e os beneficiários das políticas públicas e a eficácia dessas políticas, em que (...) a participação provocaria um tensionamento nas agências estatais, tornando-as mais transparentes, mais responsáveis, mais suscetíveis ao controle da sociedade (2002, p. 47). No âmbito da sociedade, essa participação teria um papel mais efetivo de fiscalização, assim como na definição das prioridades nos investimentos dos recursos públicos, ao mesmo tempo em que seria uma aprendizagem para a cidadania.

A mesma pesquisadora questiona se essas expectativas foram realizadas nos 10 primeiros anos dessa institucionalidade política, analisando especialmente os conselhos gestores de políticas públicas. Em sua análise, "(...) os conselhos apresentam, no cenário atual, uma baixa capacidade propositiva, exercendo um reduzido poder de influência sobre o processo de definição das políticas públicas" (2002, p. 98).

O caso da saúde é emblemático; definida na Constituição como um direito de todos e um dever do Estado, na sua primeira regulamentação, a lei 8.080/90, tem o veto presidencial dos artigos que garantiam a participação social, sendo posteriormente apresentados na lei nº 8.142, sancionada no mesmo ano. Essa negação e afirmação da participação social expressam um movimento que se repetirá nos Espaços Públicos formatados para o exercício do controle social, tido como o poder da sociedade organizada participar da formulação, monitoramento e avaliação das políticas públicas sociais que incluem um vasto campo de ações estatais voltadas à garantia dos direitos sociais (saúde, educação, habitação, transporte, assistência etc.).

A questão que tem acompanhado nossos estudos é em que medida esse controle social inaugura uma ressignificação do controle social conceituado no campo sociológico, na perspectiva apontada por Garelli, como referenciamos acima. Seria esse controle social na sociedade brasileira uma ressignificação do Estado, agora aclamado como um Estado democrático de direitos? Ou seria esse controle uma invenção tática de uma estratégia política para a construção do consenso mantendo a hegemonia dos interesses de grupos econômicos, representados no Estado, em uma economia em crise? Poderia Foucault nos auxiliar a compreender se teríamos uma democratização de fato, com a descentralização do poder do Estado por meio dos Espaços Públicos, ou essa descentralização é justo o que aumenta o poder do Estado? Em Vigiar e Punir, Foucault analisa a relação dos micropoderes nas sociedades disciplinares, e nos fornece uma pista para o questionamento dos Espaços Públicos focados em nossos estudos.

Na análise foucaultiana, o poder do Estado vem de seu exterior, que não é a extensão periférica do aparelho estatal e sim micropoderes exercidos por mecanismos e modalidades específicas que se configuram como regulamentos.

Se juridicamente, o poder é exercido por leis, os Estados dentro do Estado são regidos por regulamentos (...) A lei define um espaço de liberdade, traça seus limites, de maneira tal que em seu interior cada um possa fazer o que quiser; ela define uma divisão simples e grosseira entre o permitido e o proibido; estabelece a igualdade dos cidadãos que deixa dentro de sua indistinção já que é indiferente à existência singular deles. O regulamento toma os homens a seu cargo dentro desse espaço deixado vazio (...) O regulamento se interessa pelo mais sutil da conduta ou do comportamento. Distingue, diferencia, individualiza, hierarquiza. Impõe gestos, atitudes e hábitos (Ewald, 1993, p.370).

Seriam os Espaços Públicos micropoderes? Se sim, poderiam esses representar a democratização da sociedade ou representar a disciplinarização da sociedade diante da fragilidade do Estado no cumprimento do pacto social para o bem-estar social? No segundo sentido, estaríamos diante da inversão das metas do controle social constitucional, ou seja, o controle social manteria os propósitos da contensão do social, revelados em sua conceituação sociológica.

Por outro lado, entendemos que -na perspectiva ainda foucaultiana, na qual a sociedade não é uma grande unidade e sim uma infinidade de partes singulares e disseminadas em todos os lugares, sendo o Estado uma parte que se opõe e se articula às outras, não tendo o privilégio da totalidade -, o Estado tem que criar uma tecnologia política para legitimar suas oposições e articulações na administração da totalidade das partes. Assim, o controle social pode, nessa tecnologia, ser a estratégia do Estado para manter-se no poder legitimamente, ou consensualmente, o que não impede as resistências, o que impõe ao Estado a necessidade de se fazer parte da totalidade, investindo-se contra si mesmo.

Nesse processo, mantém sua força dividindo-a com a sociedade organizada pela tecnologia política - que regulamenta, o tempo todo, o funcionamento dos Espaços Públicos. Tais ideias, temos construído ao longo das pesquisas que temos realizado sobre participação social, o que nos levou a participar de muitos Espaços Públicos em todos os níveis federativos: união, estado de São Paulo e município de Piracicaba. Nesse percurso participativo, vimos, pouco a pouco, os Espaços Públicos se transformarem em Instituições Participativas (IP), institucionalidade que nos parece confirmar seus micropoderes para a manutenção do poder hegemônico.

 

Metodologia

Tendo como objetivos: (1) compreender os sentidos da participação dos representantes da sociedade civil (SC), particularmente os representantes dos usuários do SUS, no Conselho Municipal de Saúde na cidade de Piracicaba; (2) Identificar os limites e possibilidades de um Conselho de Saúde na formulação, monitoramento e avaliação das políticas de saúde no município considerado, com especial destaque à atuação da SC nesse Conselho; e (3) Identificar os obstáculos e os avanços para a consolidação de uma democracia participativa por meio das ações de um Conselho gestor, no caso, voltado à política de saúde; utilizamos a metodologia qualitativa nesse estudo de caso, com ênfase no discurso dos atores considerados representantes da SC no CMS de Piracicaba, considerando-se que "(...) para compreender o funcionamento dos Conselhos, (...)Há de levar em consideração, por quem são compostos os conselhos, o que os leva a participar e como eles agem" (Stralen, 2005, p.326).

Os objetivos acima nortearam dois processos investigativos que caminharam paralelamente; um referente a pesquisa: "Controle Social no Sistema Único de Saúde: cooptação ou protagonismo da sociedade civil? - um estudo de caso, financiado pelo Fundo de Apoio a Pesquisa da UNIMEP, e outro intitulado como: Controle social na política pública de saúde: a participação dos usuários no conselho municipal de saúde e nas comissões locais de saúde na cidade de Piracicaba", desenvolvido por Rebeca Padulla, bolsista de iniciação científica, sob nossa orientação, financiado pelo Fundo de Apoio a Iniciação Científica da UNIMEP. Nos dois casos a metodologia foi a mesma, assim como os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados, o que nos permitiu considerar a totalidade dos sujeitos entrevistados nas duas investigações.

Os procedimentos usados para coleta de dados foram:

(a) Observação participante das reuniões ordinárias e extraordinárias do CMS e das reuniões da Secretaria Executiva do CMS1, que conta com a participação de 04 (quatro) representantes de usuários, eleitos pelo próprio Conselho;

(b) Entrevistas semidirigidas com 15 participantes, representantes dos usuários (titulares e suplentes) e os demais membros da Secretaria Executiva (são 08 membros no total, 04 representantes dos usuários e quatro dos demais segmentos). Pretendíamos entrevistar também o representante do poder público, mas as dificuldades de agenda inviabilizaram a realização dessa entrevista;

(c) Pesquisa documental a partir da qual coletamos para análise todos os documentos que avaliamos como relevantes para o estudo, especialmente as atas das reuniões do CMS.

Na análise interpretativa dos dados (registros de diários de campo das reuniões e transcrição das entrevistas), além de focar as questões relacionadas aos objetivos da pesquisa, sempre relacionadas à Política Nacional de Saúde expressa nos textos legais, buscamos relacionar a participação observada em Piracicaba com a participação estudada em outras pesquisas que tratam desse tema, buscando-se ampliar a discussão e os limites de um estudo de caso.

Entre os procedimentos acima, destacamos que, enquanto material para análise, as entrevistas foram fundamentais, uma vez que essas possibilitaram um diálogo aberto em torno de questões relevantes sobre a temática. Um roteiro serviu como norteador da interlocução, para facilitar a comparação dos dados entre os entrevistados.

A entrevista tem sido um dos instrumentos mais adequados para a coleta de dados em pesquisa qualitativa, pois em uma relação dialógica é possível a apreensão dos conteúdos fixados através da linguagem, como significantes que podem indicar significados e sentidos presentes nos discursos produzidos na relação pesquisador-pesquisado, como tem sido tratada na Psicologia Social fundada no materialismo histórico-dialético.

Os sujeitos envolvidos no estudo são protagonistas de ações relacionadas ao direito à saúde de toda a população (princípio da universalidade do SUS) e que assumiram publicamente as atribuições ligadas aos órgãos de garantia de tais direitos. Em que pese esse compromisso público, foi respeitada a liberdade dos sujeitos em participar ou não da pesquisa. Os sujeitos foram informados acerca dos objetivos, justificativas, propósitos e metodologia da pesquisa, assim como do respeito ético normatizado pelo Conselho Nacional de Saúde, expressas no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido firmado por todos os sujeitos participantes do estudo. Todas as entrevistas foram audiogravadas, com o consentimento dos sujeitos.

O "recrutamento" dos sujeitos foi realizado através de contatos da pesquisadora e da aluna em iniciação científica com os membros do CMS envolvidos no estudo.

A análise dos dados foi realizada através de uma hermenêutica dos discursos dos entrevistados, fundamentada em conhecimentos das ciências humanas e sociais em uma perspectiva transdisciplinar. Isso implica em nos reconhecermos como um interprete dos discursos também compreendidos como interpretações dos produtores desses discursos, ou seja, os discursos foram considerados como unidades de significação que comportam múltiplos significados, incluindo os que forjamos no exercício analítico.

Em relação aos documentos, trabalhamos com análise de conteúdo tendo como referências os textos normativos em relação ao SUS e aos direitos humanos e sociais.

O Conselho Municipal de Saúde de Piracicaba (CMS) como Institucionalização do Espaço Público (Instituição Participativa)

Tratar o CMS como um Espaço Público é reconhecê-lo como espaço deliberativo participativo das políticas de saúde, com atuação "(...) na formulação da política de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe de poder legalmente constituído em cada esfera de governo" (Art. 1º, § 1º da Lei nº 8,142, de 28 de dezembro de 1990)2. Isso implica em um compromisso dos conselheiros com a efetivação da saúde pública e seu aprimoramento para a superação dos limites que possam impedir a realização das metas planejadas, ou a revisão dessas, por meio de uma gestão participativa.

A composição dos Conselhos contempla representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, esses dois últimos diretamente dependentes dos serviços públicos (estatais), o que nem sempre ocorre com os demais segmentos, que podem optar por convênios de saúde privados.

Considerando, portanto, os usuários como os principais interessados na qualidade dos serviços públicos de saúde, podemos considerar que a qualidade da participação desses nos Conselhos de Saúde é fundamental para a qualificação positiva (efetividade e eficácia) da política de saúde, por isso nossa análise destacou a participação dos usuários, mas já destacamos que muitos não têm clareza da importância de sua participação na qualificação da política de saúde como um direito universal, visto que as motivações para a participação no CMS está focada nas demandas dos bairros em que residem, como tratamos abaixo. A maior parte dos entrevistados desconhece as leis e resoluções que definem o papel do Conselho e em nenhum momento relacionam os Conselhos e Conferências com as experiências democráticas brasileiras.

Na análise que produzimos consideramos a totalidade das respostas individualizando o conteúdo do discurso de cada sujeito participante em torno dos temas relacionados aos objetivos do estudo, nesse texto, considerando apenas pequenos fragmentos de discursos, com propósitos ilustrativos, visto a extensão dos dados analisados.

Dos entrevistados, 60% é do sexo feminino e 40% masculino, 47% está na faixa etária entre 34 a 57 anos, 53% na faixa etária dos 60 a 78 anos. Apenas um sujeito não é casado e todos têm filhos. Em relação à escolaridade, 26% cursou, ou está cursando, o ensino superior, mas nenhum na área da saúde; 20% não completou o ensino fundamental, 20% cursou o fundamental completo e 33% cursou o ensino médio completo. Um número significativo dos entrevistados é aposentado, 47%, e 27% é de mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico. Todos são católicos. Do total dos entrevistados,47% é filiado a algum partido (PT, PTB, PSDB, PPS ou PC do B) ou é simpatizante. Considerando escolaridade, local de moradia e profissão, entendemos que, predominantemente, os participantes podem ser reconhecidos como pertencentes à classe média (baixa e média) e essa pode ser a caracterização que "unifica" esses sujeitos.

Em relação à participação desses sujeitos em outros espaços organizativos da SC, quase todos tiveram algum nível de participação em espaços como: outros Conselhos (Idoso, Meio Ambiente, Orçamento Público), Centros Comunitários ou outra organização de bairros, Sindicatos, Pastoral (da Saúde e da Criança), assim como participaram de algumas conferências e audiências públicas.

A maior parte dos entrevistados participa do CMS de Piracicaba a dois anos, mas alguns (S1, S2, S14) estão desde a origem do Conselho no município (1990) e três entrevistados (S9, S10, S15) participam a menos de 4 meses.

Focando no primeiro objetivo das pesquisas realizadas, ou seja, dos sentidos da participação para os representantes dos usuários no CMS, de forma geral, observamos um sentido "pré-político" da participação, que coloca-se na relação clientelista que estabelecem com o poder público. É significativo o sentido reivindicativo voltado para demandas particulares, focadas no bairro em que residem.

Em certa medida, ao lado dessa perspectiva clientelista, promovida pela relação que o poder público, historicamente, assumiu com a sociedade brasileira, vamos encontrar uma perspectiva humanitária fundada em valores cristãos da fraternidade. Muitos representantes de usuários têm uma história de participação em movimentos sociais, especialmente comunitários, alguns se inseriam

nesse processo por meio da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base, um movimento contra-hegemônico da Igreja Católica que marca profundamente a história política dos excluídos sociais no Brasil, especialmente na década de 70 do século XX. Essas questões nos permitiram identificar três sentidos da participação social.

(1) sentido participativo-cidadão relacionado com a história de envolvimento com movimentos populares, especialmente comunitários, que pode ser identificado, ilustrativamente, no seguinte fragmento de discurso:

Eu acho que dentro da comunidade, uma das coisas que a gente tem que trabalhar muito é qual é o seu papel dentro da comunidade, papel da cidadania mesmo, quem é você? (...) Qual o seu papel diante das problemáticas, das responsabilidades que devem ser assumidas. Eu acho que é o valor da cidadania que deve ser ressaltado, valorizado, da participação. O que dificulta e muito é a falta de informação, e o que facilita é esse contato que nós temos no dia a dia com a comunidade porque a gente começa a agregar a comunidade na história, porque a comunidade não sou eu, não é a comissão, a comunidade é um todo, quando a gente consegue falar essa linguagem da comunidade, a gente consegue ter acesso a eles, e trazendo essa pessoa para o contexto real dela de participação, de protagonista da história mesmo e não ficar ali como um mero expectador (S15, 2012).

(2) participativo-assistencial ao se reconhecerem como quem pode/deve ajudar os que precisam, tentando encaminhar demandas da população as autoridades (Secretaria da Saúde, vereadores e CMS):

Eu acho assim que, eu até ia pegar um documento pra mostra pra você, mas não achei, assim que nós temos que ajudar as pessoas, e as pessoas que nos procuram a gente toma pra gente, até quem precisa, então esses são os valores de a gente se envolver mesmo (S2, 2012).

(3) particular-pessoal com base em experiências negativas vividas no SUS que os motivaram a "brigar" por seus direitos, na perspectiva clientelista que apontamos acima. Esse sentido da participação pôde ser observado nas reuniões do CMS, no momento que a mesa diretora abre a palavra para os Conselheiros apresentarem informes. São frequentes as falas relatando episódios vividos por familiares, conforme apontado por entrevistados:

(...) você pode prestar atenção na reunião, pode fazer uma cobertura disso, você vai ver, quando vem gente das Comissões falar é problema particular, que ele é da Comissão e que o filho dele não foi atendido e tem que ser atendido, então quer dizer que ele usa da função dele pra poder ter benefício, mas a lei diz ao contrário, não pode, não pode, primeiro é o usuário, você representa o usuário, você não pode usar da sua função para atendimento (S4, 2012).

O sentido pessoal também está relacionado as possibilidades de sociabilidade que a participação abre. Considerando o número de aposentados, é um sentido rejuvenescedor.

Pra mim é uma terapia, é um tônico, é uma vida, porque eu tô mexendo com gente, tô dando a minha contribuição, passando a experiência de vida que eu tenho para os outros e aprendendo com os outros também (S3,2012).

Em menor proporção, também encontramos um sentido político eleitoral, visto que o trabalho nos bairros pode ser um meio de autopromoção, ganhando visibilidade (popularidade) necessária àqueles com pretensões a cargos no legislativo.

Estou como pré-candidato a vereador se der tudo bem espero poder trabalhar para o povo, eu acredito assim, funcionário do povo tem que ser funcionário do povo (S10, 2012).

Esses sentidos da participação parecem limitar o poder concreto do Conselho na formulação, monitoramento e avaliação da Política de Saúde no município. Alguns entrevistados destacam o papel fiscalizador do Conselho, predominantemente realizado por Comissões Locais de Saúde, pois delas participam usuários que têm contato direto e cotidiano com unidades de saúde.

Eu acho que ser membro do Conselho é muito gratificante, porque mesmo que tenha as Comissões de bairro, o Conselho dá mais espaço pra você, porque ele tá mais na frente da saúde, bate de frente com a Secretaria de Saúde, bate de frente assim no bom sentido, a gente faz as colocações daquilo que a gente acha que não está certo. A grande função do CMS é mais fiscalizar a atitudes dos gestores, então a gente tá indo, na medida que a gente pode, a gente tá fiscalizando eles (S2, 2012).

Então as fiscalizações cabem a quem? À CLS que está todo dia ali, somos em 6, 4 estão na rua, então dá uma passadinha na obra. E assim a CLS tem que cobrar, porque se a enfermeira ou alguém do posto cobra, é transferido, essas coisas, mas a Comissão não, então a Comissão tem que cobrar, quando a gente chega na prefeitura não precisa nem marcar audiência, só se for falar com o prefeito, mas com a assessoria nem precisa (S3, 2012).

Esse sujeito tem uma visão mais abrangente do papel do Conselho, entende que dele depende a liberação de recursos financeiros do Estado e da União para a saúde do município.

Olha o papel do Conselho eu tenho até aqui, que o conselho é nos termos mais conselho municipal, discutir, elaborar, aprovar as propostas, das diretrizes aprovada pela conferencia municipal de saúde; atuar na formulação, fiscalização e monitorar a execução da política de saúde no município incentivar a criação, acompanhar as ações das Comissões Locais de Saúde; analisar, discutir e aprovar o relatório de gestão, com prestação de contas e informações financeiras. Esse é uma parte do conselho, e ali com muita responsabilidade porque toda a verba que vem do governo federal, e estadual tem que ser através da aprovação do Conselho na saúde, eu acho que é de muita responsabilidade porque sem a aprovação do Conselho o município não tem verba para a saúde (S3, 2012).

Nesse sentido, a aprovação das contas dos gastos municipais com a saúde, apresentada em reuniões ordinárias3 do Conselho é apontada por alguns entrevistados como de difícil compreensão. A maior parte dos entrevistados não entende as planilhas apresentadas em reunião. A Comissão que analisa a prestação de contas antes da reunião busca checar a planilha com o movimento bancário e, em nenhuma reunião, relacionaram os investimentos com a Programação Anual da Secretaria de Saúde ou deliberações das Conferências.

Do financeiro interessa o atendimento das demandas dos bairros.

O papel do Conselho é mais assim, levar as reivindicações do meu posto da minha unidade, e a gente pede sempre pede, não que a gente não seja atendido, mas quando tem uma pessoa lá na 'boquinha', os recursos vem com mais intensidade (S14, 2012).

Para alguns sujeitos, incluindo S3, a fiscalização deve ser realizada também em relação aos Serviços de Saúde e a atuação dos profissionais de saúde, o que tem gerado situações de conflito entre alguns profissionais e conselheiros. Parece que ser conselheiro implica em estar autorizado a executar ações relacionadas ao funcionamento dos Serviços. O conselheiro se reconhece como uma autoridade e, como tal, faz a mediação entre a população e a Secretaria de Saúde para o atendimento de queixas dos usuários.

Assim eu sou do conselho municipal de saúde e como as pessoas já conhecem a gente porque a gente já milita na área da saúde, então na minha casa sempre tem gente lá, "o to precisando de uma consulta", então o tempo que a gente pode a gente sempre dedica ao Conselho, as coisas do Conselho (S2, 2012).

Ela tem que estar sempre fazendo com que fiscalize o bom andamento do PSF, se os funcionários estão chegando na hora certa, se não estão abusando de seus poderes, dos seus deveres, e se o médico ele está atendendo (S3, 2012).

Ao mesmo tempo em que o Conselho é supervalorizado, reconhecem a fragilidade de seu poder, principalmente devido ao despreparo dos conselheiros e a baixa participação.

Pra mim o Conselho é supremo, deveria ser um executor, não é, atualmente ele não executa, mas deveria de ser o lugar onde as pessoas menos esclarecidas e com mais dificuldades deveria de ter o aconchego, o Conselho deveria de ser o fórum de execução. (...) Assim o Conselho hoje em Piracicaba é soberano, ele tem a vida própria dele, independente dos gestores, podemos criar até a lei nossa, e a gente fazendo oficio pro secretario ou para ou para o prefeito solicitando esclarecimentos no Conselho, ele tem que vir, hoje o conselho já é reconhecido nacionalmente (S1, 2012)

Então é isso que eu falei pra você, a falta de um conhecimento profundo, então tem muitos que dão a presença lá, mas uma presença que deixa muito a desejar, só de corpo presente, mas de conhecimento profundo não tem aquele que de fato consegue absorver, atender todas as perguntas, todos os problemas, tem sempre que estar consultando, então falta uma preparação profunda como conselheiro essa é a dificuldade que a gente vê entre os Conselheiros (S3, 2012).

Também entendem que o Conselho pode ser limitado pelo Poder Público.

Então, olha eu num sei se é impressão minha, eu percebi que tem aliciadores, vamos supor na Secretaria de Saúde, no próprio, às vezes, judiciário ou, às vezes, em qualquer setor público. Dependendo da pessoa dentro do setor, eles veem o Conselho assim como uma coisa que o atrapalha, então, às vezes, dependendo do secretário que tá lá, uma vez ele acha que não precisa do Conselho, que pode querer atuar, às vezes, até o poder assim mesmo, a parte assim dos vereadores, a parte do prefeito também, pelo que percebo ali tem alguns ali que te veem como amigo na hora que precisa, mas tem uns que vê você assim negativamente como uma pedra no sapato e, às vezes, impedem um pouco a ação do Conselho (S5, 2012).

Quase todos participaram de Conferências de Saúde e é significativa a avaliação de que as deliberações das Conferências não são efetivadas. Isso permite entendermos a dificuldade em reconhecerem o papel do Conselho na formulação das políticas públicas. O monitoramento e avaliação não têm como referência as deliberações das Conferências e o planejamento da política no município e sim o cotidiano dos Serviços nos bairros, como ilustramos acima.

A efetividade das deliberações tem sido problematizada por cientistas brasileiros e estrangeiros e, como assevera Avritzer (2011), a capacidade dessa efetivação tem sido associada à participação. No caso do CMS de Piracicaba, enquanto Espaço Público democrático, analisamos que este não garante a democracia participativa e nem são efetivas as deliberações para a ampliação ao acesso de recursos redistributivos, o que define políticas sociais públicas insuficientemente compensatórias.

A paridade na representação no Conselho, com vantagens para a representação dos usuários, não garante que esses representem a população, e nem que sejam propositivos em relação a ações que garantam a saúde como um direito. O que alguns conseguem, sendo intermediário entre demandas individuais de atendimento, ou mesmo demandas das unidades básicas de saúde, como ilustramos acima, não são suficientes para reconhecermos a participação popular na formulação da política pública de saúde no município.

As referências da política de saúde no município são os Serviços e Programas definidos pelo Ministério da Saúde que têm um caráter mais obrigatório, relacionado ao financiamento federal, em que pese a descentralização político-administrativa das políticas públicas no Brasil, que daria uma certa autonomia para os municípios. Essa autonomia até existe, mas tem sido definida pela vontade dos gestores e não pelas decisões coletivas.

Um dos aspectos relacionados à ausência do coletivo nas decisões políticas é a dificuldade dos usuários em relação à tecnologia política que orienta as ações do poder público excessivamente normatizado, com uma linguagem de difícil compreensão para a população em geral. Pudemos observar essa dificuldade especialmente na prestação de contas realizada pela Secretaria de Saúde. Não basta expor planilhas das receitas e aplicações sem se ter clareza das demandas da população; tais demandas estão encobertas impedindo uma análise da eficiência da política pública de saúde no município.

A capacitação dos conselheiros, sempre reclamada, não é um processo que garante uma participação mais democrática e eficaz. Nesse sentido, Tatagiba (2002) problematiza a elitização e burocratização da participação dos conselheiros societais, que pode distorcer a representação da sociedade civil nos Conselhos. Ela questiona a "especialização" dos discursos de conselheiros da SC para que possam dialogar com agentes estatais em pé de igualdade, minimizando os efeitos das desigualdades sociais no processo deliberativo. Ela aprofunda o questionamento problematizando "(...) a valorização, em nossa cultura política, do argumento técnico em detrimento de outros saberes" (2002, p.70), o que entendemos como uma pretensão à uniformização do discurso ou a constituição de um consenso forjado nos Espaços Públicos.

Outro aspecto relevante acerca das deliberações do Conselho refere-se a definição da pauta de discussões nas reuniões. Em que pese a Secretaria Executiva do Conselho se reunir antes do encontro com todos os Conselheiros nas reuniões ordinárias, para decidir a pauta das reuniões, é significativo que essas pautas, predominantemente, incluam as demandas da Secretaria de Saúde em relação às ações que devem ser aprovadas no Conselho Municipal por exigência do Ministério da Saúde.

Vários limites à participação foram apontados nas entrevistas, além dos indicados acima, existem os de ordem funcional, como horários das reuniões, e as relações entre conselheiros e com o poder público.

Muito restrito, muito concentrado, cartas marcadas, horário inadequado de dia, o pessoal tá trabalhando, e mesmo a gente que é dona de casa, que o pessoal fala que tá folgada, tá nada, e você chega lá tá tudo meio pronto você não participa da preparação (S1, 2012).

Essas questões estão relacionadas ao terceiro objetivo das pesquisas aqui tratadas, identificar os obstáculos e os avanços para a consolidação de uma democracia participativa por meio do Conselho analisado.

Tal possibilidade, preconizada na Constituição Federal de 1988 e apoiada no arcabouço normativo-legal acerca da saúde no Brasil, representaria uma conquista dos movimentos sociais brasileiros, em particular o Movimento pela Reforma Sanitária, mas foi mais a resposta do governo brasileiro à crise econômica do capitalismo brasileiro na década de 80 (século XX), em um período de transição política. Nessa transição, segundo Duriguetto (2007), a democracia que foi se constituindo, e tornando-se hegemônica, representou um projeto liberal-conservador do Estado, que reconheceu a legitimidade da demanda por direitos e a reivindicação por um "Estado de Direitos", para o "restabelecimento do império da lei", mas por meio de uma "democracia sem conflitos", concentrando nas mãos dos "de cima" o controle dos "programas de abertura". Buscou-se o "restabelecimento do Estado como órgão político capaz de assegurar a coesão da sociedade e a ordem pública" (2007, p.139-140).

A democracia foi posta como estratégica para a expansão do capitalismo, por facilitar os fluxos de informação para o mercado e possibilitar a formação de elites capazes de assumir a liderança política. Na análise de Silva (1997, p. 47 citado por Duriguetto, 2007, p.142): "Nessa direção, a sociedade civil é interpretada como espaço de liberdade sócio-organizativa dos múltiplos interesses existentes na sociedade, espaço em que estariam assentadas as possibilidades do exercício do controle sobre as decisões estatais e suas políticas públicas." Para Duriguetto, a democracia buscada na transição democrática, limitava-se [à] "(...) institucionalização de um sistema político que viabilizasse a organização dos interesses sociais na sociedade civil e da abertura de canais para sua expressão e incorporação no aparato estatal" (2007, p.142-143).

Destacamos que esse sistema político de participação, institucionalizado nos Espaços Públicos, quer sejam consultivos ou deliberativos (gestores), em Conferências, Audiências Públicas e Conselhos, é implementado como uma estrutura paralela à democracia representativa, que se mantem inalterada nos termos da dinâmica do poder do Estado organizado das esferas Executiva, Legislativa e Judiciária. Tais esferas reconhecem os Espaços Públicos participativos na dimensão apenas formalista, desprovidos de qualquer poder de decisão sobre as questões estratégicas da ordem liberal capitalista. Poderíamos dizer que são universos paralelos.

Nas décadas que se seguem à transição democrática, no caso da saúde, teremos a implantação e implementação do SUS, ̶ hoje ainda inconclusa, visto que nem a atenção básica tem 100% de cobertura territorial ̶ , que inclui a criação dos Conselhos de Saúde, assim como as Conferências, como parte do mecanismo de gestão do próprio Sistema, ao menos no plano formal, já que a liberação de recursos federais para os outros entes federados depende da aprovação das prestações de conta pelos Conselhos, nem sempre capacitados para esse trabalho.

Nessa perspectiva, a descentralização do poder pretendida na redemocratização brasileira, apresentado como pacto federativo, dá com uma mão e tira com a outra, pois os recursos ainda estão atrelados ao poder do Planalto, visto que a arrecadação municipal nunca será suficiente para a municipalização da saúde como pretende o SUS. Sem reforma política e sem reforma tributária, a democracia participativa na saúde produz um controle social mais próximo da segunda acepção de controle que vimos com Garelli, o que pode ser observado nos estudos sobre Conselhos realizados no Brasil.

Entre esses estudos, destacamos o realizado por Fuks e Perissinotto (2006), que apontam questões relevantes para nossa análise, em relação à desigualdade entre conselheiros dos setores governamental e não governamental. Os gestores, e seus representantes, têm à sua disposição recursos materiais, financeiros e humanos que os representantes da SC não têm. Os pareceres produzidos por técnicos contratados pelo Poder Público são difíceis de serem contestados pela SC.

Vale lembrar, ainda, um outro aspecto fundamental que muito contribui para entender o predomínio dos gestores, qual seja, a inserção nos conselhos como parte de sua atividade profissional. Enquanto nos outros segmentos a "vontade para agir" resulta de um engajamento voluntário (ou, provavelmente, de um longo processo de socialização política) e altamente custoso para a maioria de seus membros, no caso dos gestores à "vontade de agir" é sobreposta à obrigação profissional. (...) Neste caso, enfim, haveria uma clara coincidência entre poder e posição institucional (Fuks & Perissinotto, 2006, p.72-73).

Nesse sentido, a representação é um dos problemas que temos que enfrentar para construirmos uma democracia que seja realmente participativa. Entendemos que, embora os Espaços Públicos que nossa democracia constituiu ainda não representem uma inclusão universal dos grupos sociais, representam um avanço no acesso a alguns benefícios para parte dos excluídos economicamente, em que pese esse acesso não garantir a autonomia desses sujeitos e sua objetivação humano-genérica (Heller, 1972). É evidente que o acesso a recursos para sobrevivência é fundamental para que os indivíduos possam se voltar para outras questões, mas se a garantia da sobrevivência for uma concessão de uma política social assistencialista, a apatia será mantida, assim como a dependência dos indivíduos de um sistema paternalista.

Destacamos que estas questões não invalidam considerar os Conselhos como campo das inovações democráticas que ampliam a participação social, mas não podemos perder de vista que eles não garantem a representatividade dessa participação e nem que essa interfira plenamente nas decisões que definem as políticas públicas. A ampliação da participação, na considerada Democracia Participativa, implica na presença de diversos atores societários, ajustados jurídico-normativamente nos critérios de representatividade definidos para cada Instituição Participativa, que não garantem a representação das demandas da sociedade e nem garantem a implementação das decisões forjadas nessas Instituições, visto que a última palavra cabe aos representantes políticos eleitos no processo da Democracia Liberal.

Como discutem Lavelle, Houtzager e Castello:

(...) as inovações institucionais participativas e sua regulamentação instituíram princípios e funções concorrentes de representação política, suscitando conflitos quando - como acontece com frequência e largueza - as propostas dos conselhos são modificadas pelos poderes executivo e legislativo. Nos conflitos entre representantes, ou seja, entre conselheiros e legisladores, ambas as partes contam com legitimidade própria, emanada ora das urnas, ora dos processos de escolha - inclusive eleições - definidos pelas respectivas leis de criação dos conselhos (2006, p.82).

Observamos que em situações de conflitos entre representantes dessas distintas instituições, é o representante parlamentar que se sobressai, tanto que ele pode propor emendas em todo Ciclo Orçamentário, e os Conselhos nem são consultados sobre as demandas sociais que reconhecem, muito menos podem propor emendas aos projetos de leis orçamentárias.

A questão da representatividade, nesse enquadre analítico, também é problemática e se daria pelo compromisso de representar o representado, como uma "representação virtual", o sentimento ou compromisso de representar alguém. Lavelle, Houtzager e Castello (2006) enfatizam o comprometimento com os interesses dos representados daqueles com "sentimento de representação".

A presunção de representar alguém, é claro, não equivale à sua efetiva representação; no entanto, o comprometimento com os interesses representados é um componente vital da representação, irredutível a dispositivos institucionais. Embora a dimensão subjetiva da representação tenha sido sistematicamente desvalorizada no campo das teorias da democracia ( ), as regras e desenhos institucionais tornam-se impotentes quando os representantes não são animados ou comovidos por um "sentimento de representação" (...) De modo mais preciso, se a representação é irredutível à mera representação presuntiva, a representatividade não pode prescindir do compromisso de representar (2006, p.89).

Mas como representar a pluralidade de interesses dos distintos segmentos sociais que constituem a sociedade civil? E quando os direitos são específicos e demandam recursos públicos, quais os critérios para elegibilidade dos que serão contemplados se não for possível a universalização dos atendimentos? Temos que enfrentar essas questões, especialmente quando o Estado assume que os recursos para as políticas sociais públicas são insuficientes e esse não abre mão do projeto econômico liberal que funda a desigualdade social.

Não encontramos nos discursos dos entrevistados essas questões, para eles, as dificuldades residem no oferecimento de serviços e demandam mais médicos, vagas hospitalares, informatização dos registros, plano de carreira, melhores condições de trabalho, atendimento melhor e mais rápido, farmácias 24 horas, atendentes na recepção das unidades de saúde. Sem dúvida, demandas legítimas, centradas na saúde como cuidado das doenças. Poucos reconhecem as condições da existência humana como questões de saúde e a participação social como instrumento para a produção das condições da existência que deve ser um projeto coletivo e não dos interesses de grupos.

Os participantes das pesquisas aqui analisadas não se constituem enquanto sujeitos coletivos, embora tenham potencial para sê-lo, o que tratamos como pré-político, sem a garantia da politização da participação desses sujeitos.

 

Considerações Finais

Na atual engenharia institucional do Estado brasileiro, inaugurado após a Constituição de 1988, as políticas sociais públicas continuam representando uma redistribuição de benefícios necessária para a manutenção da desigualdade distributiva, entretanto trazem a novidade da possibilidade da sociedade, de forma organizada e institucionalizada, poder participar da definição dos benefícios e do como devem ser redistribuídos.

Nesse novo desenho institucional, o poder do Estado passa a ser reconfigurado na perspectiva democrática e a participação social pode se dar tanto por meio do pleito eleitoral (indireta), na escolha dos representantes no Poder Executivo e no Legislativo, como a participação poderá se dar por meio dos inúmeros órgãos consultivos e deliberativos que, em tese, implicariam na distribuição de poder na esfera pública (participação semidireta). A constituição desses Espaços Públicos, que têm a atribuição de formular e monitorar as políticas públicas, tem sido uma experiência inovadora, mas repleta de contradições, visto que ainda não representam uma real partilha de poder entre Estado-sociedade.

A sociedade civil, em tais Espaços, representa parte dos grupos de interesse da sociedade, fragmentados em referenciais identitários singular-particulares, que negociam benefícios sociais dentro dos limites de compatibilidade do sistema de controle da produção de recursos sociais fundamentais (Melucci, 1991).

A participação desses grupos, portanto, não garante a materialização dos princípios universais que devem orientar uma política pública justa, o que também é impedido pela lógica administrativa do Estado e a centralidade do Poder Executivo, em que pesem as normatizações legais e jurídicas erigidas contra essa centralidade. Nesse sentido, a ideia de controle social e a estrutura político-administrativa do Estado, parece-nos serem eixos fulcrais para uma análise das políticas sociais públicas na perspectiva de uma Psicologia Política comprometida com as objetivações em-si-para-si da dimensão humano-genérica que deveria orientar o Espaço Público.

O controle social não se efetiva sem a partilha do poder e essa não ocorre na centralização administrativa que ainda permanece na estrutura do Estado brasileiro - expressa no clientelismo e paternalismo entre governo e população -, em que pese sua reestruturação na reforma pós-constitucional. São vários osfatores que impedem a partilha do poder, tanto relacionados à fragilidade da sociedade civil, historicamente "servil", como relacionados à formação da elite brasileira, alicerçada em uma ideologia conservadora que se manteve preservada no desenho de nossa democracia ainda fortemente liberal, centrada nos indivíduos, tomados como representantes de coletivos que não existem enquanto identidades coletivas, ou seja, coletivos nos quais os indivíduos se reconhecem e sentem-se reconhecidos como uma coletividade a partir de uma escolha de pertencimento social.

Finalizando, apontamos que a universidade, que tem estudado Espaços Participativos nos últimos anos, pode e deve contribuir com a análise do grau de abertura democrática presente nas Instituições Participativas e outros espaços relacionados à Democracia Participativa, mais abertos ou menos instituídos (como fóruns e conferências livres), observando alguns aspectos que temos discutido em nossas pesquisas, tais como:

√ o respeito aos direitos humanos nas políticas públicas;

√ o equilíbrio de poderes;

√ a visibilidade e o controle dos processos de tomadas de decisão;

√ o grau de representatividade dos mecanismos eleitorais;

√ a qualidade dos filtros que regulam o acesso ao sistema político e o grau de elasticidade das regras do jogo;

√ os limites postos às ações do Executivo e dos aparatos repressivos;

√ a liberdade e as formas de organização política e de associação;

√ o grau do controle sobre as informações;

√ os direitos civis e as garantias do sistema penal.

Esses são aspectos indicativos do grau de abertura democrática, discutidos por Melucci (1994), que orientam os estudos que temos realizado no Brasil nos últimos anos, problematizando as possibilidades de uma democracia participativa por meio dos canais institucionalizados de participação, que têm sido identificados como Instituições Participativas.

Temos entendido esses espaços como arena de disputa de interesses de diversos grupos sociais que reivindicam inclusão social, entendida mais como possibilidade de acesso a recursos materiais e não à produção e controle desses recursos. Os que participam desses espaços são reconhecidos como "porta-vozes" dos excluídos, pertencendo ou não aos grupos excluídos que geralmente não chegam até os Espaços Públicos e quando chegam ficam em posições marginais, caso não se apropriem dos discursos instituídos por meio desses Espaços e que compõem as balizas norteadoras das deliberações acerca das políticas sociais.

Assim, por não representarem a polifonia dos excluídos e sim as concessões políticas para uma inclusão social, no acesso a benefícios redistributivos, as Instituições Participativas para as deliberações acerca das políticas sociais públicas mais representam um leilão que tem como moeda de troca o ajustamento dos indivíduos pertencentes aos grupos dos excluídos às políticas econômicas que necessitam da ordem social como garantia dos investimentos financeiros ̶ ,que regulam as economias capitalistas desde o final do século XIX e que assumiram posição hegemônica, principalmente pós Segunda Guerra Mundial.

Por fim, acompanhamos o destaque de Tatagiba na análise do perfil dos conselheiros municipais de gestão participativa no RN nas áreas de saúde, educação, assistência social e criança e adolescente, mesmo em contexto local e temporal distante do que estamos tratando em nossa análise, quando afirma:

Cabe-nos reconhecer que a tendência dominante nas experiências participativas foi a de tipo induzido (...) ou seja, nem a pressão de baixo para cima, nem o simples dispositivo legal foram suficientes para garantir, de forma contínua, o funcionamento de instâncias deliberativas com presença popular. A vontade política da equipe de governo continua sendo decisiva para o estabelecimento de reconhecimentos que produzam eficácia no funcionamento das formas de participação semidiretas (Soares, 1998, p. 89 citado por Tatagiba, 2002, p. 88).

 

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Recebido em: 29 de outubro de 2014
Aprovado em: 14 de janeiro de 2015

 

 

1 A Secretaria Executiva tem o papel de auxiliar a Mesa Diretora e se reúne para avaliar as reuniões do Conselho, fazer encaminhamentos segundo as deliberações e definir a pauta de reuniões do Conselho.
2 Papel reiterado nas Resoluções nº 333, de 04 de novembro de 2003 e nº453 de 10 de maio de 2012 do Conselho Nacional de Saúde
3 Essa reunião é chamada de audiência pública no município, mas não atende às exigências de uma audiência pública e apresentação da prestação de contas, segue apenas um ritual protocolar.

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