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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Produção da saúde e de subjetividades em narrativas de usuários do SUS

 

The production of health and subjectivities in SUS users narratives

 

La producción de salud y subjetividades en las narrativas de los usuarios del SUS

 

Production de santé et de subjectivités dans les récits des usagers du SUS

 

 

João Leite Ferreira NetoI; Luciana KindII

IDepartamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). jleite.bhe@terra.com.br
IIDepartamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). lukind@gmail.com

 

 


 

RESUMO

O artigo discute posicionamentos participativos na trajetória da vida e do cotidiano de usuários do SUS, considerados por suas equipes de saúde da família como "ativos, críticos, envolvidos e solidários", conforme se menciona na Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), identificando processos de subjetivação relacionados à produção da saúde. Foram entrevistados usuários de cada um dos nove distritos sanitários do município de Belo Horizonte, indicados por equipes de Saúde da Família, sendo realizadas duas entrevistas com cada usuário, uma não estruturada e outra acompanhando os temas das ações propostas pela Política. A análise dos dados deu ênfase aos aspectos narrativos das entrevistas. Identifica-se uma pluralidade de percursos na emergência de modos de subjetivação. Ressalta-se a importância da proximidade com o SUS, como elemento que fortalece a produção da saúde e de subjetividades.

Palavras-chave: Participação cidadã; Sistema Único de Saúde, Estratégia Saúde da Família; Promoção da saúde; Narrativas pessoais.


ABSTRACT

The authors presente a qualitative research involving SUS users whom are considered by his or her family health team as "active, critical, engaged and supportive", as subjectivity production is characterized in the National Health Promotion Policy. The aim of this paper is to discuss the users' life trajectories and daily life, identifying forms of subjectivation processes related to the production of health. Nine SUS users, one of each of the nine health districts of Belo Horizonte, were indicated by their Family Health Teams, being guided by the subjectivity characteristics described in the PNPS. Unstructured inter-views were conducted, triggered by the presentation of the research and then by the question: "what do you think of being nominated by your health team?" Data analysis has emphasized the narrative aspects of the interviews, seeking to identify the production of "active, critical, engaged and supportive" subjectivities in the SUS context, the relation between the production of subjectivities and the production of health. Multiple trajectories were identified on the emergency of modes of subjectivation. The importance of the proximity with the SUS as an element that strengthens the production of health and subjectivities is highlighted.

Keywords: Citizen participation; Unified Health System, Family Health Strategy; Health pro-motion; Personal Narratives.


RESUMEN

El artículo analiza las posiciones participativas sobre la trayectoria de vida y la cotidianidad de los usuarios del SUS, que son considerados por los equipos de salud de la familia como "activos, críticos, involucrados y solidarios", como se menciona en la Política Nacional de Promoción de la Salud (PNPS), en la que se identifican procesos de subjetivación relacionados a la producción de salud. Se ha entrevistado a usuarios de cada uno de los nueve distritos sanitarios del municipio de Belo Horizonte, que han sido indicados por los equipos de Salud de la Familia. Se han realizado dos entrevistas con cada usuario: una entrevista no guiada y otra que acompañaba los temas de las acciones propuestas por la Política. El análisis de los datos pone énfasis en los aspectos narrativos de las entrevistas, donde se identifican una pluralidad de recorridos en la emergencia de modos de subjetivación. Se enfatiza la importancia de la proximidad al SUS, como elemento que fortalece la producción de salud y subjetividades.

Palabras clave: Participación ciudadana; Sistema Único de salud; Estrategia de salud familiar; Promoción de la salud; Narrativas personales.


RÉSUMÉ

L'article discute les démarches participatives dans la trajectoire de vie et dans le quotidien des usagers du Système Unique de Santé (SUS), désignés par leurs équipes de santé de la famille (EqSF) comme « actifs, critiques, impliqués et solidaires », attributs que la Politique Nationale de Promotion de la Santé (PNPS) identifie dans les processus de subjectivation liés à la production de la santé. Ont été interviewés des usagers de chacun des neuf districts sanitaires de la ville de Belo Horizonte, indiqués par les EqSF. Deux entretiens avec chaque usager étaient non-structurés, alors qu'un autre concernait les thèmes des actions proposées par la Politique. L'analyse des données a privilégié les aspects narratifs des entretiens. Plusieurs cheminements ont été identifiés dans l'affleurement des modes de subjectivation, parmi lesquels se démarque la proximité avec le SUS, comme un enjeu qui renforce la production de la santé et des subjectivités.

Mots-clés: Participation citoyenne; Système Unique de Santé; Stratégie de santé de la famille; Promotion de la santé; Récits personnels.


 

 

Introdução

O documento da primeira versão da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) acentua a indissociabilidade entre produção da saúde e produção de subjetividades "mais ativas, críticas, envolvidas e solidárias", demandando corresponsabilização e ações intersetoriais para a efetivação das ações ali indicadas (Brasil, 2006, p. 13). São enfatizadas, portanto, duas categorias, produção da saúde e produção de subjetividades, apresentadas em associação.

A escolha pela denominação produção da saúde e não promoção da saúde não foi fortuita. O grupo de gestores e consultores que compunha a Secretaria Executiva do Ministério da Saúde no período de 2003-2004, que liderou o início das discussões para a formulação da PNPS, expressava a convicção de que a promoção da saúde deve ser tomada no arcabouço mais amplo da produção da saúde, da qual ela é um componente importante, mas não seu eixo central. Essa é uma categoria associada à noção ampliada de saúde estabelecida na 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986.

Nos documentos prévios ao texto da PNPS são várias as menções ao conceito de produção da saúde (Brasil, 2003; 2005). As ideias-chave do que se entende por produção da saúde apontam a saúde como resultante de um conjunto complexo de fatores, demandando "a participação ativa de todos os sujeitos envolvidos em sua produção usuários, movimentos sociais, trabalhadores da saúde, gestores" (Brasil, 2003, p. 11-12). Portanto, um leque ampliado de atores sociais e de ações intersetoriais deve ser agenciado para a efetivação do que se desenha como produção da saúde, revelando uma dimensão política inerente a esse processo. Nesse sentido, a promoção da saúde foi abordada, nesta pesquisa, como um dos componentes da perspectiva mais ampla da produção da saúde.

A segunda categoria que destacamos da PNPS, a produção de subjetividades, configurou-se tardiamente no campo da saúde coletiva, apenas na década de 1990. Em seu início, o movimento sanitário teve como marca principal a incorporação da dimensão social ao pensamento sanitário, a partir da tradição marxista, visando, assim, superar o modelo exclusivamente biologicista. Por isso, na visão de Campos, no âmbito de sua emergência o campo da Saúde Coletiva "tendeu a subestimar a importância dos sujeitos na construção do cotidiano e da vida institucional" (Campos, 2000, p. 222).

Apenas nos anos 1990, a subjetividade, como questão conceitual, passou a ser pautada por alguns autores (Onocko-Campos, 2005). O periódico Ciência & Saúde Coletiva abriu seu primeiro número do século XXI dedicado à temática da subjetividade no campo da saúde, reverberando o VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que abordou o tema O sujeito na Saúde Coletiva.

No editorial daquele fascículo, aponta-se que a relevância do tema na saúde não é proporcional ao debate até então realizado (Minayo, 2001a, p. 4). Ao abrir as discussões sobre o tema, Minayo afirma que "tudo ainda é bastante tangencial porque sujeito e subjetividade ainda não são assunto relevante para a racionalidade hegemônica da área". Em artigo publicado nesse mesmo número, a autora especifica sua análise, atribuindo à década de 1990 um período de "retorno do sujeito como ator das reformas, como partícipe, para empreendê-las ou para desviá-las" (2001b, p. 15).

Em discussões anteriores, observamos a emergência do uso da noção de subjetividade na literatura da Saúde Coletiva, exercendo três funções, ao mesmo tempo diferentes e associadas (Ferreira Neto, Kind, Pereira, Resende & Fernandes, 2011). Na primeira delas, o uso da noção de subjetividade comparece como valorização da construção política de atores sociais envolvidos com a reforma sanitária. Na segunda, visa-se a intersubjetividade na assistência, nas ações de cuidado e de gestão. Finalmente, busca-se enfatizar produção coletiva da autonomia, numa modalidade politicamente divergente da autonomia neoliberal centrada no indivíduo, que deve se responsabilizar por si mesmo.

Com essas discussões em perspectiva, o presente texto traz o relato de uma pesquisa qualitativa, voltada para as articulações entre produção da saúde e produção de subjetividades, envolvendo usuários do SUS, considerados por suas equipes de Saúde da Família como "ativos, críticos, envolvidos e solidários", adjetivações presentes no texto da PNPS (Brasil, 2006, p. 13).

Trabalhamos com a concepção presente na literatura e em documentos do Ministério da Saúde de que a produção de subjetividades é um componente importante para a reflexão e a intervenção em saúde, entendendo-a como um processo situado e em permanente variação. O objetivo deste artigo é discutir elementos da trajetória de vida e do cotidiano de usuários do SUS, identificando posicionamentos participativos em processos de subjetivação relacionados à produção da saúde. O recorte sobre os usuários, em detrimento de trabalhadores e gestores, constituiu-se uma opção deste estudo, mas estamos cientes de que isso não esgota os diferentes atores que compartilham a produção da saúde.

O conceito de produção de subjetividade tem origem na obra de Deleuze e Guattari. Para esses autores, a subjetividade não pertence ao domínio de uma suposta natureza humana, mas é essencialmente fabricada, "produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais", mediante uma composição polifônica (Guattari, 1992, p. 11).

Neste estudo, aproximamos o conceito deprodução de subjetividade ao processo da reforma sanitária no Brasil, que concorre tanto para sua construção institucional quanto para a produção coletiva de subjetividades dos atores sociais envolvidos com o SUS. Defendemos que a construção de um sistema de saúde de caráter universal, que busca efetivar a integralidade e a equidade, apresenta também o desafio de produzir sujeitos solidários, envolvidos, críticos e ativos,síntese expressa nos termos da PNPS.

Essa perspectiva teórica tem sido influente no campo da Psicologia Social brasileira e possui proximidade com a concepção histórico-cultural de González Rey, respeitando-se as variações conceituais. O autor define a subjetividade como "um complexo e plurideterminado sistema, afetado pelo próprio curso da sociedade e das pessoas" (González Rey, 2003, p. IX). A delimitação proposta pelo autor, no âmbito da Psicologia Social, refleteuma tendência crescente de se entender os processos subjetivos em associação com as dimensões sociais, políticas e institucionais da sociedade hodierna.

 

Metodologia

Como estratégia de entrada em campo, foi contatada uma equipe de Saúde da Família (EqSF) de cada um dos nove distritos sanitários de Belo Horizonte, que havia participado de pesquisa anterior sobre promoção da saúde e práticas grupais na atenção básica (Ferreira Neto & Kind, 2011). O envolvimento dos usuários no estudo foi processual e será detalhado a seguir.

Os pesquisadores agendaram encontros com as EqSF, em dias regulares de reuniões. Em quase todas as unidades, contou-se com a presença de médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde na reunião. Nesse encontro, a pesquisa era apresentada à EqSF, sendo esta convidada a indicar um usuário considerado como um sujeito "ativo, crítico, envolvido e solidário", em conformidade com os termos reproduzidos no texto da PNPS.

Como estratégia de campo, os pesquisadores evitaram atribuir um sentido prévio para cada característica (ativo, crítico, envolvido e solidário). Diante disso, as EqSF promoviam um debate que tentava associar as características a cada usuário lembrado. Um detalhe significativo foi o fato de que, na maioria das equipes, foi lembrado o nome de algum usuário que participa do controle social, seja em comissões locais, distritais ou municipal de saúde. Contudo, apenas dois usuários com essa trajetória mais formal de participação em saúde foram indicações de consenso entre as EqSF.

Um critério de exclusão utilizado pelas equipes era o usuário apresentar apenas uma das características buscadas, ou somente crítico ou somente solidário, e assim por diante. O envolvimento no cotidiano da unidade foi um fator decisivo para a indicação por parte das equipes. A avaliação de que o usuário era uma referência para a comunidade, funcionou como reconhecimento consensual para a indicação em alguns casos.

Evidentemente, os usuários indicados não podem ser considerados usuários típicos, regulares do SUS, mas usuários destacados, conhecidos por toda a equipe. A maioria deles frequentava os serviços com regularidade, por vezes se envolvendo em projetos locais propostos pelos profissionais de saúde, mas também com envolvimento nas instâncias participativas do SUS (como conselheiros de saúde ou delegados em Conferências de Saúde, nos níveis local, distrital e/ou municipal).

Após os diálogos com as equipes, os nove usuários indicados, um por distrito sanitário, eram contatados por telefone. Com cada um dos usuários, foram realizadas duas entrevistas. A primeira delas teve um desenho não estruturado aprioristicamente, nos moldes de diferentes estratégias de produção narrativas (Britten, 2009; Clandinin & Connelly, 2011; Castellanos, 2014). A segunda caracterizou-se como entrevista semiestruturada, estratégia de campo também conciliável com análise de narrativas, como se acompanha em De Fina e Georgakopoulou (2012). A segunda entrevista pautou-se por um roteiro contendo os temas relacionados à PNPS, a saber: alimentação, atividade física, tabagismo, álcool e outras drogas, violências, acidentes de trânsito, e desenvolvimento sustentável.

No contato da primeira entrevista com os(as) usuários(as), reiterava-se que houve a indicação da EqSF para se chegar até eles por serem considerados "ativos, críticos, envolvidos e solidários". A questão geradora de narrativas era assim expressa: o que você acha de ter sido indicado? A partir dessa questão inicial, acompanhava-se a narrativa dos(das) participantes, abordando-se tópicos específicos trazidos por cada um(a) deles(as) sobre seu cotidiano e o modo como percebem sua ligação com a saúde pública. Na segunda entrevista, ainda que guiada por um formato de perguntas e respostas, localizamos fragmentos narrativos.

Apoiados nas proposições de autores que discutem a dimensão epistemológica das narrativas (Riessman, 2008; De Fina & Georgakopoulou, 2012; Castellanos, 2014), entendemos que as narrativas estão em toda parte, embora nem tudo seja narrativa. Como recurso analítico central, utilizamos a análise temática de narrativas (Riessman, 2008), que permite a comparação por aproximação e distanciamento entre modos diferentes de narrar um mesmo assunto.

Como recurso de codificação do material transcrito, utilizamos o software ATLAS.ti, versão 7 (Friese, 2014), localizando fragmentos narrativos ou subtramas, pequenas histórias que estabelecem enredos relativamente autônomos no conjunto de uma narrativa mais extensa, como propõe Gibbs (2009), ordenadas em temas relevantes ao estudo. Em ambas as modalidades de entrevista, buscamos identificar fragmentos narrativos com uma sequência claramente reconhecível como uma história experienciada pelos(as) entrevistados, que nos permitem discutir a relação entre produção da saúde e promoção da saúde como geradora de posicionamentos participativos.

Cabe ressaltar que uma das dificuldades de apresentação dos resultados quando se trabalha com narrativas é a extensão dos segmentos de material empírico caracterizáveis como subtramas (Clandinin & Connelly, 2011). Neste artigo, optamos por editar trechos mais extensos, especialmente os fragmentos das entrevistas não estruturadas, sem prejuízo para compreensão das histórias narradas. Todas as subtramas codificadas foram ordenadas de modo a permitir a discussão de duas questões que emergiram do primeiro momento de análise: 1) Como se efetiva a produção de subjetividades "ativas, críticas, envolvidas e solidárias"?; 2) Que vínculo se evidencia entre produção de subjetividade e produção da saúde?

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (CEP SMSA-BH), por meio do parecer de número 0069.0.410.213-09A.

 

Resultados e Discussão

A Tabela 1 expõe uma síntese do conjunto de histórias que nos foram narradas por cada participante. A coluna Marcos temporais, pessoais e institucionais condensam elementos contextuais que acentuam a dimensão participativa na trajetória dos sujeitos, oferecendo uma apresentação sumarizada dos temas narrados, como propõe Gibbs (2009). Essa síntese indica as experiências significativas que os participantes reconhecem como fundamentais para assumirem uma relação mais direta de produção de si mesmos como mais "ativos, críticos, envolvidos e solidários". A segunda coluna, Características centrais, diz respeito à nossa interpretação da função narrativa de fazer emergir um self preferencial (Riessman, 2008; Castellanos, 2014), dado o conjunto de subtramas das entrevistas de cada participante, categorizando-os como um ou mais dos perfis subjetivos mencionados na PNPS.

Os nomes dos participantes são fictícios e destaca-se que, majoritariamente, as EqSF indicaram mulheres para serem entrevistadas. Embora marcadores de sexo/gênero não se constituíssem como critérios prévios do estudo, sabe-se que são as mulheres quem mais procuram por serviços na atenção básica (Figueiredo & Schraiber, 2011), sendo seu protagonismo em processos participativos em saúde relatado por algumas autoras (Ribeiro, 2010; Palma, 2013). A seguir, apresentamos detalhes dos fragmentos narrativos das entrevistas, de modo a aprofundar os questionamentos propostos nesta pesquisa.

A Efetivação da Produção de Subjetividades "Ativas, Críticas, Envolvidas e Solidárias"

Entre os nove usuários, existem narrativas diferentes sobre seu crescente envolvimento com a saúde. Nas reuniões com as EqSF, surgiram relatos de que uma maior aproximação dos usuários com questões vinculadas à produção da saúde e de subjetividade acontece em decorrência de uma experiência de adoecimento, como é o caso de Helena, que vivia isolada em casa e, após um tratamento na UBS, ocorreu seu ponto de virada na participação. Esse elemento aparece também nas narrativas de Olga, única entrevistada que possui convênio privado, cujo engajamento se deu após ser atendida no SUS.

Nas narrativas de Auxiliadora, Imaculada, Margarida, Eduardo, Geraldo e Zulmira esse modo de subjetivação engajado antecede a entrada no SUS. Alguns deles narram experiências de longa data, anteriores mesmo à própria criação do SUS. O envolvimento com outros movimentos sociais, fora da saúde, pode ser um fator decisivo, como atesta a narrativa de Geraldo sobre sua trajetória como sindicalista:

Eu trabalhava numa metalúrgica e a gente envolvia muito com o sindicato. (...) Daí para cá eu comecei a achar que se a gente brigar a gente consegue. Aqui, nós conseguimos, esse patrimônio que tem aqui foi tudo através da comunidade, do orçamento participativo. Nós trouxemos o centro cultural, o centro de saúde, a escolinha da UMEI foi pelo orçamento participativo. (...) Porque, se a gente ficar sentado dentro de casa, a gente não consegue nada (Geraldo).

Nem sempre o usuário é tão autoconsciente da construção de seu percurso participativo. Em algumas narrativas, outros fatores e contextos se revelam preponderantes para a experiência de produção de subjetividade, às vezes, sem uma conexão percebida diretamente como produção da saúde. Um desses é a importância da vida religiosa engajada, que é observada em um trecho da entrevista com Augusta, ao referir-se tanto a si quanto à sua família. Mesmo atribuindo seu envolvimento a um dom, o que descreve é uma atividade intensa junto à pastoral, cuja expressão máxima é o trabalho voluntário:

Quando eu era mais jovem, eu não me envolvia tanto com as coisas não. (...) À medida que a gente vai envelhecendo, parece que a gente vai sendo mais solidário, parece que é a da natureza mesmo. Na minha família, tem esse dom mesmo. Eu tenho um irmão que é voluntário também numa casa espírita, eu tenho irmã, que também na minha terra, que são voluntários, então, a gente acaba, já tem um pouco de família e a gente também vai (...) A pastoral, de igreja igual eu falei e de comunidade mesmo, de vizinhança, de pessoas até que nem são da minha religião, né? Que,às vezes, dependem de mim, precisam de mim, independente de religião. (Augusta)

Os temas que podem ser identificados nesse trecho, tais como: adesão como voluntária a projetos religiosos, a idade como elemento que intensifica a solidariedade, a família como voluntária vão cumprindo a função de auxiliar Augusta a recompor para si e para os entrevistadores como um sujeito (ela própria, a família, os vizinhos) pode ser produzido como solidário.

Duas usuárias atribuem sua atual condição ao trabalho anterior: Imaculada, por sua atuação como auxiliar de enfermagem em hospital privado, e Margarida, por seu trabalho em uma escola pública. O fragmento narrativo de Margarida mostra como ela recupera a trajetória prévia em uma escola como modo de se posicionar como alguém que assume para si o dever de ajudar pessoas.

Eu trabalhava em escola. Eu lembro que aqui eu sempre tive muita amizade com o pessoal do posto, quando o posto era ali embaixo (...). Porque se uma criança passasse mal na escola, eu pegava aquela criança e ia levar no médico. (...) Então eu sempre fui assim. Eu trabalhei em escola muito tempo, fui serviçal, e estava atenta com os meninos, o que a criança precisava, porque o pessoal é muito carente. Carente de tudo, carente de dinheiro, carente de afeto. (...) Tem pessoas que pensam assim: "o problema é de fulano, não é meu. Ah... o problema é dele, não é meu." Eu não sinto assim, não. O problema, a sua dificuldade é minha também, né? Eu sinto desse jeito. Se fulano está com um problema, o problema não é só dele não. É meu. Eu tenho o dever de ajudar as pessoas (Margarida).

Assim como a narrativa de Augusta, a de Margarida acentua a dimensão de uma postura solidária, que se faz de modo coletivo. De modo semelhante, a produção da saúde é coadjuvante em face do seu envolvimento, mediado pela atuação profissional na escola. Em suma, a produção de subjetividade desejada, segundo preconizam documentos e literatura da área (Brasil, 2006; Onoko-Campos, 2005), pode ser gerada tanto no contexto específico no setor dasaúde quanto em experiências oriundas de outros campos. A experiência dos(as) entrevistados(as) aponta o vínculo com movimentos sociais, certa relação com sua atividade profissional, como catalizador de uma preocupação coletiva com o entorno, bem como a tradição religiosa engajada, podendo ser alguns dos dispositivos dessa produção de subjetividade.

Em busca por alternativas ao estilo de vida nos moldes individualizantes, Castiel e Álvarez-Dardet (2007) encontram referências na literatura sobre promoção da saúde, que lhes permitem discutir os "estilos de vida coletivos" (p. 88). Os autores assinalam que a relação entre saúde e outros contextos de vida se dá em situações sociais distintas para os sujeitos, mas ao se compreender estilo de vida como prática social, "[a] ênfase se dirige às formas complexas de interação entre comportamento individual, comportamento coletivo e conjuntos de recursos existentes nas comunidades" (p. 88). Observamos, nas narrativas dos usuários, essa relação entre aquilo que fazem em suas trajetórias pessoais, e o que esperam que todos façam. Em variados momentos, ao contarem suas histórias, os usuários as situam em um conjunto de relações que concorrem para a produção de subjetividades não redutíveis aos seus ganhos individuais.

Consequências do Vínculo entre Produção de Subjetividade e Produção da Saúde

Em resposta à segunda questão, trabalharemos as narrativas a partir das três funções da subjetividade, associadas à Saúde Coletiva, identificadas na revisão de literatura (Campos, 2000; Onoko-Campos, 2005; Castiel & Álvarez-Dardet, 2007; Ferreira Neto e cols., 2011): construção coletiva do SUS, participação na gestão e no cuidado, e autonomia não individualista. Não se trata de utilizar esses elementos como grade de classificação dos relatos. Na verdade, as narrativas apresentam estados mistos, nos quais esses três elementos se apresentam interligados em maior ou menor grau. Elegemos fragmentos narrativos do conjunto do material codificado com temas diversificados que permitem aprofundar a discussão aqui proposta. A seleção dos fragmentos, portanto, teve em vista sua densidade e relevância na compreensão do vínculo entre produção da saúde e produção de subjetividade.

O fato de os (as) usuários(as) entrevistados(as) terem uma maior proximidade com o SUS é correlato à sua avaliação quanto às experiências satisfatórias de atendimento, o que sabemos que nem sempre ocorre com a maioria da população atendida pelo SUS. Zulmira e Margarida, cujas narrativas serão acentuadas nesse ponto da discussão, construíram paulatinamente uma proximidade com o

SUS, fruto de agenciamentos diversos, que lhes conferem clareza sobre o funcionamento do sistema de saúde, de suas possibilidades de assistência, revelando a intricada relação entre produção de subjetividades e produção da saúde.

Alguns entrevistados, espontaneamente, fazem comparações entre os SUS e os planos privados, sempre favoráveis ao primeiro. Olga, única entre os entrevistados a possuir plano de saúde, pondera sobre o fato de ter sido indicada a participar da pesquisa: "Eu acredito que elas [profissionais da EqSF] tenham me indicado pelo fato de que eu tenho convênio e procuro o SUS. Por que eu gosto realmente de ser atendida aqui." Olga passou a utilizar o SUS por um atendimento que teve em uma internação, de qualidade superior à que havia tido em seu convênio.

Fiz uma cirurgia no SUS e acho que é muito melhor que convênio, fiz de varizes no convênio, e eu achei que o atendimento do SUS foi num hospital muito simples, lá no [Hospital X], mas com um atendimento maravilhoso, tudo muito bem organizado, um atendimento maravilhoso e que eu não tive no outro, né? que era pelo convênio. No convênio, eu passei até fome. (...) Eu acho até difícil, meu filho fala assim: ‒ "Mãe, você toma lugar de pessoas que num tem... Eu falo assim: ‒"Não! é um direito meu também. Eu sou uma cidadã e cumpro com meus deveres, então, eu posso ter direitos também (Olga).

Geraldo também apresenta sua avaliação pessoal de que muitas pessoas estão deixando os planos privados para serem atendidas no SUS, pois conseguem ser assistidos mais rápido, e completa: "Eu me sinto seguro aqui".

É importante ressaltar o enviesamento metodológico nas afirmações de defesa do SUS que aparecem nos fragmentos narrativos. As reuniões com as equipes já antecipavam a ascendência que alguns dos participantes envolvidos no estudo têm sobre o serviço. São, portanto, usuários destacados, que têm outro tipo de circulação pela assistência à saúde nos serviços públicos.

Como alertam autores que discutem métodos narrativos, apesar de histórias serem frequentes na vida cotidiana, em diversos modos de comunicação, análises que se pautam em narrativas não devem considerá-las como histórias espontâneas (Riessman, 2008; Clandinin & Connelly, 2011; De Fina & Georgakopoulou, 2012; Castellanos, 2014). Na verdade, elas são respostas e posicionamentos situados pela própria condição de dados produzidos nos contextos investigativos. Desse modo, marca-se que, ao contatarmos as EqSF, tendo em vista usuários indicados por elas, nós construíamos um contexto de produção de narrativas no qual, muito provavelmente, haveria leituras favoráveis sobre o SUS.

A proximidade com os serviços lhes trazia um saber usar diferenciado e uma postura contributiva para sua melhoria. Encontramos esses elementos na narrativa de Margarida, que qualifica o SUS como "o melhor plano de saúde do mundo", em uma formulação que não deixa de ser paradoxal. No diálogo com os pesquisadores, ela compara os planos de saúde, quase sempre caros e pouco efetivos, com uma de suas boas experiências como usuária do SUS:

Mas o SUS é bom, muito bom. O senhor pode ver só. Eu estava vendo, eu vejo os meus meninos, eles têm [o plano de saúde X]. [Esse plano] é fama, é fama. É dinheiro que pagar caríssimo, né? Quando precisa tem que correr para o SUS. Quando a coisa fica mais séria tem que correr para o SUS. O SUS, ele está lá de braços abertos para receber, não é? (...)Essa do meu marido, né? Ele não enxergava. Ele tinha problema de visão seríssimo. E até pior, não tinha grau mais de óculos para ele. Eu lembro que minha menina pegou o telefone e falou: "Vou ligar". Ligou direto no [Hospital C]. E falaram com ela assim: ‒ "Traz seu pai aqui." [a filha fala] ‒ "Que dia?" [a atendente responde] ‒ "Você pode trazer ele depois de amanhã?" ‒ "Tranquilo." Deixou marcado. No outro dia, eu fui cedo com os documentos dele, passei naquela fila ali, marcou e foi lá. O médico o examinou assim e falou: ‒ "A senhora pode trazer ele aqui depois de amanhã?" Falei: ‒ "Posso." No outro dia que eu voltei com ele, eles fizeram exame nele e falaram: ‒ "A senhora vai me trazer todos esses exames aqui que a gente vai fazer cirurgia nele." Trouxe ele, já me deu os pedidos de exame. A gente já fez os pedidos de exame, inclusive lá no [Hospital C]. Exame de sangue e tudo. (...) Levei os exames para o médico, daí 15 dias ele já tinha feito cirurgia. E o médico, quando olhou, falou comigo assim: ‒"Dona Margarida, o marido da senhora recuperou 80% de vista. Na idade dele, é uma raridade." (Margarida)

Em pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) quanto à percepção social sobre os serviços públicos de saúde no país, afirma-se que "os serviços públicos de saúde prestados pelo SUS são mais bem avaliados pelos entrevistados que tiveram experiência com esses serviços." (IPEA, 2011, p. 8). O documento do IPEA sugere que os sujeitos ouvidos naquela pesquisa tenham sido levados a refletir sobre sua própria experiência no uso dos serviços, enquanto que, para os demais, suas informações seriam oriundas de várias fontes, principalmente midiáticas, que tenderiam a acentuar os problemas da saúde pública.

As histórias narradas no presente estudo evidenciam que a proximidade com o SUS confere ao usuário uma compreensão mais ampla e, em certa medida, mais tolerante com as dificuldades encontradas. Assim, a produção de subjetividades que aqui discutimos ocorre entre sujeitos que possuem proximidade existencial e envolvimento diferenciado com o SUS. Ela não alcança, necessariamente, o conjunto da população, cuja relação com o SUS é mais distante e pontual.

As narrativas colhidas em nosso estudo indicam a presença de duas das três funções demarcadas na literatura, como visto em trabalho anterior (Ferreira Neto e cols., 2011). De um lado a proximidade com o SUS pode ser um vetor da produção de sujeitos sociais comprometidos com a construção do SUS. De outro, evidencia-se a produção de sujeitos com uma postura de coparticipação nos processos de gestão e cuidado nos serviços, aguçando-se a capacidade crítica de quem usa e ajuda a construir o SUS. Outra passagem da entrevista de Margarida retrata esse aspecto e outros desdobramentos:

O SUS tem 20 anos. O jovem dá muito trabalho nessa época de hoje. Então, a gente tem que lidar com ele, saber lidar com o SUS. Às vezes eu acompanho pessoas no UPA e que precisa internar. Igual eu acompanhei, há um tempo atrás, uma senhora de 82 anos. Gente, essa senhora não conseguiu internar. Ela morreu no UPA oeste. E assim, a gente ligando. A assistente social me pediu para ajudar: "Margarida, eu vou para um telefone, você vai para outro. Vamos tentar para ver se a gente arranja vaga para a dona Maria." Não conseguimos. A dona ficou 10 dias na UPA, até vir a falecer. Ela era idosa, mas podia ter ficado um pouco mais tranquila, né? (...) Eu acho também, eu cheguei a falar para ela o seguinte: o que atrapalha o SUS é a central de leitos. Você liga para a central de leitos, o telefone parece que está desligado. Você não consegue vaga, ninguém te atende. "Alô, pronto." Não fala mais nada. Eu cheguei a conversar com esta assistente social lá no UPA. No dia, eu falei com ela: "A senhora me desculpa, mas o que atrapalha o andamento do SUS é a central de leitos." (Margarida)

Esse conhecimento experiencial do SUS corrobora com a avaliação que a literatura traz sobre a prevalência na rede pública das unidades ambulatoriais de atenção básica, enquanto que, na rede privada, são muitos os estabelecimentos com internação e apoio diagnóstico (Cordeiro, Conill, Santos & Bressan, 2011). A percepção da entrevistada é precisa ao denunciar a dificuldade de usuários da atenção básica ascender aos níveis de atendimento de maior complexidade. No entanto, essa subtrama enfatiza uma postura combinada de tolerância e envolvimento colaborativo, na luta por melhores condições.

Um diagnóstico consensual na literatura é que essas dificuldades são geradas por um histórico de baixo financiamento do sistema. Como afirma Menicucci (2007, p. 304), "enfatiza-se a questão do financiamento como um ponto de estrangulamento", que impede o cumprimento dos princípios institucionais da universalização dos serviços e da integralidade da atenção. Existe uma indicação da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) de se destinar pelo menos 6% do Produto Interno Bruto (PIB) de um país para o sistema público de saúde. A maior parte das experiências bem-sucedidas investe bem mais do que isso. A França 10%, o Canadá quase 10%. Nossa vizinha, a Argentina, investe 8%. O Brasil, historicamente, tem investido por volta de 3,5%, ao mesmo tempo que permite o crescimento do setor privado suplementar pouco regulamentado (Silva, 2009).

Outro aspecto que podemos inferir dessas narrativas é que, para produzirmos subjetividades ativas e solidárias num espectro mais amplo, não podemos abrir mão da universalidade da atenção. A direção que temos tomado no País é a da construção de um sistema híbrido no qual a atenção pública se volta para o atendimento de 75% da população sem acesso ao setor suplementar, enquanto 25% utiliza concomitantemente ambos os serviços, mas se ressente por se sentir duplamente tributado, se mostrando resistente a apoiar o aumento de recursos para o SUS.

A narrativa de Zulmira apresenta duas funções:a primeira e a terceira, construção de sujeitos políticos e de produção de autonomia em modos não individualistas:

Minha mãe tem dois planos de saúde lá [em outro estado] e ela é cardíaca e, como ela passou mal em casa, fui visitá-la. Ela tinha que pagar, na época, acho que era quase quatro mil reais para realizar o cateterismo. Eu falei: "Gente para de pagar plano de saúde e vamos para o SUS.""Ah, mas é que o SUS demora, a gente não sabe como fazer isso." Falei: "Pode deixar que eu estou indo aí." Aí eu fui, cheguei lá, ela estava muito mal, com as artérias todas entupidas. Procurei a unidade de saúde na área de abrangência deles e perguntei o que precisava fazer para realizar o cateterismo. "Ô senhora, só daqui um ano". Falei: "Espera, um ano é tempo do paciente morrer, o que eu devo fazer? Ela não pode esperar." Perguntei para a enfermeira: "Tem o hospital regional e o hospital municipal. Qual que é a clínica do coração?" Ela disse: "[Hospital X]." E eu falei: "O que eu posso fazer para chegar até lá?""A senhora pode pegar os exames dela, que ela já tem, que comprovam e levar esse pedido, que é o pedido de cateterismo dela." Fomos para a urgência do [Hospital X]. Aí eles responderam: "Ah, não tem jeito." Eu falei: "Tem jeito sim, eu sei que tem, eu conheço o SUS." Aí eu bati na urgência e emergência da cardiologia. "Mas, senhora, não tem..." Eu falei: "Tem assistente social aqui?""Não conheço." Falei: "Não conhece, não? Vocês vão deixar minha mãe morrer? Ela precisa do cateterismo urgente, eu não vou pagar quatro mil reais. Este hospital é um hospital público, eu não vou pagar.""Ô, senhora, então vai lá no Serviço Atendimento ao Consumidor (SAC) da cardiologia." Falei: "Vou." Cheguei no SAC da enfermagem e a moça disse assim: "A gente pode fazer esse cateterismo dela hoje." Falei: "Por que não faz, se ela precisa?""Mas o estado dela é muito debilitado, não deve fazer o cateterismo hoje, a senhora pode esperar?" Falei: "Posso, posso esperar." Levei minha mãe para casa. Três dias depois eles ligam: "O cateterismo da sua mãe saiu." Ah, eu tinha que pagar quatro mil reais e saiu pelo SUS? Na hora que a coisa aperta, corre para o SUS (Zulmira).

Mais uma vez, o conhecimento experiencial e constitucional do SUS conduziu a usuária à obtenção da necessária assistência para a mãe. Fora de sua cidade e estado, em que participa do controle social, Zulmira reencontra sua família descrente da possibilidade de conseguirem apoio no SUS. Em sua jornada, não se abate diante de respostas padrão "só daqui a um ano", e insiste em fazer valer seus direitos. Todas as recusas parciais não a demovem de sua convicção, consubstanciada no axioma: "Tem jeito sim, eu sei que tem, eu conheço o SUS".

A discussão sobre autonomia na literatura em Saúde Coletiva em geral a classifica por duas vertentes (Carvalho, 2004). A primeira, de cepa neoliberal, definida como independência, como responsabilização dos pacientes pelo próprio adoecimento, a culpabilização das vítimas (blaming the victims). Autonomia, então, equivaleria a delegar aos indivíduos a responsabilidade pelos próprios cuidados com a saúde. Em contrapartida, os estudiosos da saúde coletiva diferenciam dessa vertente autonomia de cunho neoliberal, na qual o sujeito é senhor de si mesmo, independente de todo o resto, de uma compreensão da autonomia como ampliação da "capacidade das pessoas de agirem sobre os determinantes de sua saúde" (Fleury-Teixeira e cols., 2008, p. 2120). O enfrentamento da ordem burocrática realizado por Zulmira pertence à segunda modalidade.

 

Considerações Finais

O estudo aqui apresentado não tem a pretensão de apontar um caminho a seguir, mas problematizar limites e possibilidades trazidas com a concepção de que a produção da saúde é indissociável da produção de subjetividades menos individualistas e mais solidárias. Essa indissociabilidade, identificada nas narrativas dos participantes desta pesquisa, tem como principal efeito a construção de um sentimento de maior confiança em relação aos serviços públicos de saúde. Entendemos que a análise de aspectos concretos e cotidianos de usuários do SUS, que evidenciam a relação entre política pública, produção de saúde e produção de subjetividade, é a principal contribuição deste artigo. Trata-se de reconhecer que os avanços políticos da reforma sanitária são indissociáveis da produção de subjetividades.

Quando a pesquisa foi iniciada, estava em vigor a primeira versão da Política Nacional de Promoção da Saúde, de 2006. O enunciado que guiou a experiência de campo a produção de subjetividades "ativas, críticas, envolvidas e solidárias" foi suprimido na atualização da PNPS publicada em 2015 (Brasil, 2015). Contudo, permaneceu no texto, como Valores e princípios, o investimento na relação entre produção de saúde e subjetividades.

Nos termos da versão mais recente, ainda que se altere o enunciado, identificamos a expectativa de que a produção da saúde envolve o reconhecimento de que "a saúde exige a participação ativa de todos os sujeitos na análise e na formulação de ações que visem à sua promoção" (Brasil, 2015, p. 8). Solidariedade, autonomia e empoderamento estão entre os valores e princípios que sustentam as diretrizes da Política em vigor. A dimensão crítica é acentuada na dimensão dos processos de formação em serviço, para trabalhadores e gestores do SUS.

Os dados aqui apresentados não são passíveis de generalização, ainda que nos ponham a pensar. A amostra intencional por usuários indicados pelas equipes selecionou sujeitos que tinham em seu horizonte experiências diferenciadas, mas majoritariamente positivas do SUS. Por isso, nem de longe podemos afirmar que teríamos um SUS ideal se todos os usuários fossem "ativos, críticos, envolvidos e solidários", principalmente porque o SUS não é feito somente das pessoas. E mesmo se o fosse, o foco dessa amostra deixa de lado gestores e profissionais, além de usuários com trajetórias menos vinculadas ao cotidiano dos serviços.

Um sistema de saúde depende de um conjunto maior de elementos que dizem respeito ao conjunto da vida social: estrutura, financiamento, regulação efetiva, formação adequada dos profissionais e, no limite, a existência de um país mais desenvolvido e menos desigual. A reforma sanitária "foi concebida como uma reforma geral, tendo como horizonte utópico a revolução do modo de vida", mas que efetivamente só se realizou como uma reforma setorial, mesmo assim, parcialmente (Paim, 2008). Sendo uma reforma setorial, seus avanços e fracassos não podem ser pensados separadamente do restante da vida nacional.

Contudo, esta pesquisa reforça a existência de uma dimensão de luta política, que se trava no campo da cultura e da subjetividade. Menicucci (2007) sugere que a dimensão solidarista contida na reforma sanitária chocou-se com o legado de uma sociedade marcada pela diferenciação e pela segmentação na assistência à saúde, caldo cultural resultante de nossa história de desigualdades. Além disso, a globalização, em uma de suas facetas, tem realçado a lógica individualista, pouco solidária. Testemunha-se a construção de modos de viver e de produção de subjetividades pautados pela contabilização de custos e benefícios, pouco igualitária. Mais do que conscientizar a população sobre a importância de um sistema público e universal de saúde, trata-se de criar as condições que propiciem a vivência enunciada por Geraldo: "eu me sinto seguro aqui". Ainda que sejam diferenciados, os usuários nos ajudam a compreender realidades coletivamente compartilhadas, para além das suas experiências pessoais. Isso se expressa na afirmativa de Zulmira "as pessoas precisam conhecer [o SUS]", que acentua a produção da saúde implicada em um projeto coletivo de produção de sujeitos que, ao conhecerem o sistema de saúde, se engajam politicamente para sua melhoria. A interconexão entre produção da saúde e produção de subjetividade é patente nas narrativas discutidas neste trabalho.

 

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Recebido em: 2017-04-21
Aprovado em: 2017-06-25
Apoio: Esta pesquisa recebeu financiamento do CNPq e da FAPEMIG.

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