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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

A Juventude das periferias como alvo da violência: uma análise sobre enunciados difundidos pela sociedade brasileira

 

The Youth of peripheries as a target of violence: an analysis of statements spread by brazilian society

 

La Juventud de las periferias como objetivo de la violencia: un análisis sobre enunciados difundidos por la sociedad brasileña

 

Les Jeunes de la banlieue comme une cible de la violence: une analyse des déclarations diffusées par la société brésilienne

 

 

Ruth Tainá Aparecida PivetaI; Flavia Fernandes de CarvalhaesII

IMestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista - Campus Assis-SP. ruthpiveta@yahoo.com.br
IIMestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista - Campus Assis-SP. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis-SC. carvalhaes1@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O artigo problematiza enunciados presentes em discursos que circulam na vida em sociedade e que correlacionam jovens residentes de regiões periféricas no Brasil a noções de desvio, o que implica que estes sejam circunscritos como alvos privilegiados de práticas de extermínio. Para tanto, buscamos um diálogo com as obras "Os anormais" de Michael Foucault e "Homo sacer: o poder soberano e a vida nua" de Giorgio Agamben, com vistas a articular elementos teóricos que auxiliem na construção de uma análise crítica deste fenômeno social. A análise documental se configurou como caminho metodológico para subsidiar a investigação proposta, sendo que parte das reflexões foi também elucidada por meio de trechos de reportagens destacados dos jornais "Folha de São Paulo", "O Globo" "Folha de Londrina", bem como da revista "Veja".

Palavras-chave:Juventude, periferia, desvio, extermínio e mídia.


ABSTRACT

The article problematizes statements present in discourses that circulate in life in society and that correlate young residents of peripheral regions in Brazil with notions of deviance, which implies that these are circumscribed as privileged targets of extermination practices. For this, we seek a dialogue with the works "The Freaks" of Michael Foucault and "Homo sacer: the sovereign power and the naked life" of Giorgio Agamben, aiming to articulate theoretical elements that help in the construction of a critical analysis of this social phenomenon. The documentary analysis was configured as a methodological way to subsidize the proposed research, and part of the reflections was also elucidated through excerpts from prominent articles in the "Folha de São Paulo", "O Globo" and "Folha de Londrina" newspapers, as well as of Veja magazine.

Keywords: Youth, periphery, diversion, extermination and media.


RESUMEN

El artículo problematiza enunciados presentes en discursos que circulan en la vida en sociedad y que correlacionan a jóvenes residentes de regiones periféricas en Brasil a nociones de desvío, lo que implica que éstos sean circunscritos como blancos privilegiados de prácticas de exterminio. Para ello, buscamos un diálogo con las obras "Los anormales" de Michael Foucault y "Homo sacer: el poder soberano y la vida desnuda" de Giorgio Agamben, con miras a articular elementos teóricos que ayuden en la construcción de un análisis crítico de este fenómeno social. El análisis documental se configuró como camino metodológico para subsidiar la investigación propuesta, siendo que parte de las reflexiones fue también elucidada por medio de extractos de reportajes destacados de los periódicos "Folha de São Paulo", "O Globo" "Folha de Londrina", así como de la revista "Veja".

Palabras Clave: Juventud, periferia, desvío, exterminio y medios.


RÉSUMÉ

L'article traite des énoncés présents dans les discours qui circulent dans la société et qui mettent en corrélation les jeunes habitants des régions périphériques au Brésil, les notions d'écart, ce qui implique qu'ils sont circonscrites comme un objectif majeur de la pratique de l'extermination. Pour les deux, nous recherchons un dialogue avec les œuvres, "L'anormal," Michel Foucault et "Homo prêtre: le pouvoir souverain et la vie nue" par Giorgio Agamben, en vue d'articuler les éléments théoriques qui aident à la construction d'une analyse critique de ce phénomène social. L'analyse documentaire a été configuré en tant que chemin d'accès de la méthodologie à l'appui de la proposition de recherche, et une partie de la réflexion a également été élucidé par le biais d'extraits de rapports de l'information du journal "Folha de São Paulo", "O Globo" "Folha de Londrina", ainsi que le magazine "Veja".Parte superior do formulário

Motsclés: Jeunes, la périphérie, la déviation, l'extermination et les médias.


 

 

Introdução: os enunciados sobre a juventude das periferias em questão

Este artigo problematiza enunciados presentes em discursos que circulam na vida em sociedade e que correlacionam jovens residentes de regiões periféricas no Brasil a noções socialmente construídas de perigo, de anormalidade e de desumanidade, o que implica que estes sejam circunscritos como alvos privilegiados de práticas de extermínio.

Foucault (2003a) analisa a articulação de discursos que se configuram como "lendas" na vida em sociedade. Tais "lendas" se produzem por razões diversas e são comumente apresentadas com "verdades", o que resulta em "um certo equívoco do fictício e do real" (p. 207). Logo, partimos da perspectiva de que parte dos enunciados que circulam em determinados discursos e que implicam na correlação de jovens moradores das periferias a pressupostos pejorativos, se apresentam como "lendas" que contribuem na delimitação de padrões normatizantes na população brasileira.

O conceito de enunciado remete a um conjunto de saberes que se produzem nas entrelinhas dos discursos vigentes em um determinado tempo histórico. Para Foucault (2012, p. 105), o enunciado deve ser analisado na estreiteza e singularidade de sua situação, ou seja, nas condições de sua existência, na fixação de seus limites da forma mais justa, no estabelecimento de suas correlações com outros enunciados. O enunciado, portanto, se constitui de modo localizado, materializado, datado, múltiplo e variável, sendo que "para que se trate de um enunciado é preciso relacioná-lo com todo um campo adjacente." (Foucault, 2012, p. 118).

Compreendemos que "há sempre, na história, uma pluralidade de sentidos que precisa ser pensada como complexo de sucessões e de coexistência de forças" (Cardoso, 2005, p.112), um conjunto de saberes que articulam regimes de verdade na vida em sociedade. Deste modo, analisamos enunciados que implicam em processos de classificação e de criminalização, o que contribui para potencializar o risco de parcela da juventude brasileira a práticas de extermínio recorrentes no país.

Como percurso metodológico para subsidiar esta problematização, nos respaldamos na "análise documental" (Pimentel, 2001), o que possibilitou a problematização de documentos de domínio público segundo os objetivos da investigação proposta. A análise documental se constitui como estratégia de pesquisa balizada pela pesquisa qualitativa, possibilitando a análise de diversos materiais compreendidos como documentos: materiais escritos, estatísticas, elementos inconográficos.

Com o objetivo de elucidar a análise proposta, serão também apresentados ao longo do artigo trechos de reportagens veiculadas nos jornais "Folha de São Paulo", "O Globo" e "Folha de Londrina", bem como na revista "Veja". Nos chama a atenção o fato de esses aparatos midiáticos se apresentarem como ícones da imprensa conservadora no Brasil, principalmente a revista Veja, que tem sido incansavelmente propulsora de 'verdades' sobre fatos ocorridos no país.

Inicialmente, apresentaremos algumas condições subjetivas e sociais que convocaram a investigação proposta. Na continuidade, problematizaremos a construção do retrato do jovem "anormal", em um diálogo com parte da obra de Michael Foucault (2010), bem como a produção do retrato do jovem "desumano", em diálogo com parte da obra de Giorgio Agamben (2002). Na conclusão, ensaiamos uma articulação entre tais noções e as cenas de extermínio de jovens residentes das periferias no Brasil e afirmamos a importância da existência e circulação de movimentos de resistência que insistem em tonar visíveis as violências descritas, bem como em compor outros marcadores discursivos relacionados à juventude em questão.

 

Condições de Possibilidades: Construindo um Percurso de Pesquisa

As inquietações que implicaram no presente artigo emergiram, em parte, das vivências experimentadas em nosso cotidiano de trabalho como psicólogas que atuam na Política de Assistência Social de uma cidade de médio porte no Estado do Paraná, mais especificamente em territórios circunscritos como periféricos. Nestes espaços geopolíticos, nos deparamos com discursos pejorativos associados à juventude, que resultam na exposição desta a práticas de violência e de extermínio.

Demarcados por um estigma, uma marca de diferenciação, estes jovens são assinalados enquanto uma parcela da sociedade sob a qual a lei que vale é a "lei da bala", e para os quais, muitas vezes, existem somente dois destinos de vida possíveis, "cemitério ou cadeia", como muitas vezes ouvimos nas intervenções realizadas. Segundo Goffman (1993), o estigma está comumente relacionado a um processo de construção de significados que se articulam na vida em sociedade. Ao sujeito (ou grupo) estigmatizado é conferida uma série de atributos, que o circunscreve a uma noção estereotipada e desviante de existência.

Em nossa trajetória de trabalho, comumente nos deparamos com os efeitos letais da circulação de estigmas correlacionados a juventude de periferia, como o relato de um jovem assassinado em sua casa a tiros, na presença de sua mãe, quatro irmãs e padrasto; a evidência de dois jovens assassinados na rua onde residiam em um cenário de suposto conflito com a polícia; e a informação da jovem assassinada a pedradas em um viaduto localizado em região periférica da cidade. No mesmo período da constatação dessas mortes, vivenciamos a morte de uma amiga de 25 anos, vítima de um tiro disparado por um policial militar durante uma blitz.

Ainda na época destes acontecimentos, pulsava a questão de que o extermínio da jovem amiga branca, de classe média e artista - morte reclamada e vida reivindicada por um grupo considerável de pessoas - ultrapassava o campo das nossas relações pessoais, para nos convocar a pensar nos assassinatos cometidos contra jovens residentes nas periferias no país - mortes geralmente subnotificadas, silenciadas e/ou legitimadas por grande parte da população.

Ressalta-se, ainda, o contraste entre as formas de visibilidade midiática vivenciadas em cada caso. Da amiga, notícias em âmbito interestadual, dos adolescentes, breves notas em jornal policial da cidade onde ocorreram os fatos. Deste modo, fica evidente o quanto o jornalismo faz parte de uma complexa rede de interpretação, representação e disseminação de opiniões hegemônicas e que contribui para a tecedura e perpetuação de noções classistas e racistas (Pereira, 2009).

A mídia 'fala' de um lugar social localizado, que mantém relação com o contexto político e cultural de seus interlocutores. Logo, é por meio de discursos e tendências supostamente aceitas e compartilhadas pela maioria da população que as notícias são construídas (Pereira, 2009). Deste modo, a mídia faz circular determinadas "verdades" sobre jovens residentes nas periferias, correlacionando-os muitas vezes a noção de desvio das normativas sociais, como se evidencia no trecho a seguir:

Para o delegado que chefiou as investigações, Waldomiro Bueno Filho, o jovem apreendido é frio, não demonstra arrependimento e não tem "freio moral". "Ele está mais para um novo Champinha. É muito evidente que ele tem um desvio mental, não tem um pingo de freio moral", afirmou o delegado, referindo-se ao jovem que, em 2003, quando tinha 17 anos, foi preso pelo estupro e morte da adolescente Liana Fridenbach, 16 (Benites & Jozino, 2013).

Sobre este debate, Vicentin & Rosa (2010) argumentam, ainda, que a violência sistemática à juventude de periferia não incide apenas sobre os considerados em conflitos com a lei, ou seja, aqueles localizados como "perigosos" pela sociedade, mas são evidentes os processos crescentes de estigmatização sobre os movimentos juvenis populares, condenando-os à invisibilidade e/ou à prescrição, balizadas por noções de desvio, delinquência e desumanidade.

De acordo com estatísticas publicadas recentemente (Waiselfisz, 2014; 2015; 2016) os homicídios representam, atualmente, a principal causa da mortalidade juvenil quando comparados a outros dois elementos que compõem a categorização de 'causas externas' da morte, segundo o CID-10: o suicídio e os acidentes de trânsito. Com base nos dados, pode-se afirmar que a juventude é a principal vítima da violência homicida no Brasil, como podemos observar a partir da análise feita no Mapa da Violência 2014: Os Jovens do Brasil, quando se afirma que: "na população não jovem só 2,0% dos óbitos foram causados por homicídio, entre os jovens os homicídios foram responsáveis por 28,8% das mortes acontecidas no período 1980 a 2012" (Waiselfisz, 2014, p. 25). Além disso, "observa-se um aumento das taxas de homicídio, tanto entre jovens negros como entre jovens brancos, em praticamente todas as regiões." (Presidência da República, 2014, p. 28).

Ainda sob o escopo estatístico, o Índice de Homicídios na Adolescência, construído com o objetivo de estimar a mortalidade por homicídio na adolescência, especificamente na faixa dos 12 aos 18 anos, explicita que, em relação à taxa de homicídios desta faixa na população, o Brasil encontra-se "na 16ª posição de um total de 156 países que fornecem informação." (Presidência da República, 2014, p. 12). Além disso, as estimativas apontam que "entre 2013 e 2019 aproximadamente 42 mil vidas de adolescentes serão perdidas nos municípios com mais de 100 mil habitantes." (Presidência da República, 2014, p. 22).

Os dados estatísticos indicam, ainda, uma perspectiva do grupo mais vulnerável a violência letal no país, que são "homens, em sua maior parte jovens e negros [e de classes populares], vítimas de armas de fogo." (Presidência da República, 2014, p. 46). Sobre tal questão, foi publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), uma nota técnica intitulada "Atlas da Violência 2016", que afirma que

a incidência do fenômeno dos homicídios ocorre de maneira heterogênea no país não apenas no que diz respeito à dimensão territorial e temporal, mas no que se refere às características socioeconômicas das vítimas. Pelas informações disponíveis, a partir de 2008 parece que se alcançou um novo patamar no número de mortes, que tem evoluído de maneira bastante desigual nas unidades federativas e microrregiões do país, atingindo crescentemente os moradores de cidades menores no interior do país e no Nordeste, sendo as principais vítimas jovens e negros (Cerqueira e cols., 2016, p. 5).

Os dados evidenciam que tais assassinatos estão comumente vinculados a determinadas premissas de perigo associadas à juventude, a negritude, ao masculino, as classes populares e a territórios urbanos delimitados como periféricos. Wacquant (2007) elucida tal leitura quando afirma, por exemplo, que as "pessoas com aparência africana têm sido historicamente percebidas como física e culturalmente inclinadas à ilegalidade, depravação e imoralidade", correlações que legitimam que negros se configurem como "alvos privilegiados da repressão penal" e das práticas de extermínio (p. 207).

Deste modo, ressaltamos que, determinados retratos "lendários" (Foucault, 2003a) construídos sobre jovens ditos perigosos, anormais e desumanos, são constituídos de modo interseccional, correlacionadas a dimensões de raça, de gênero, de classe, bem como a espaços urbanos delimitados como marginais. Nesta perspectiva, a chance de sofrer uma intervenção policial truculenta é maior nas comunidades periféricas, associado ao fato de que a possibilidade de morrer por causas externas é maior quando se é jovem, negro e morador dessas localidades, em virtude de discursos machistas, classistas e racistas (Lyra, 2007).

Sobre esta questão, Wacquant (2007) também argumenta que o projeto penal do neoliberalismo implica em um paradoxo, ou seja, pretende incrementar 'mais Estado' por meio da ação truculenta da polícia e dos altos índices de aprisionamentos nas regiões periféricas, como resposta para o aumento generalizado da insegurança objetiva e subjetiva causada por 'menos Estado' no front econômico e social de países como o Brasil.

Wacquant (2007) também analisa a condição do Brasil como um país récem-industralizado, sendo que a sua história esta relacionada à sua prolongada posição como território colonizado e subordinado na estrutura das relações econômicas internacionais, o que implica em acentuada desigualdade social e de condições de vida, precariedade de instituições públicas capazes de garantir condições mínimas de seguridade social, pobreza disseminada e desemprego.

Nesta conjuntura, destaca-se, ainda, a evidência de enunciados relacionados às populações periféricas, que as circunscrevem a noções depreciativas que contribuem para que estas estejam mais vulneráveis a práticas de violência. Em consonância a esta premissa, problematizaremos a seguir a construção da noção moderna de "anormalidade" (Foucault, 2010) e seus efeitos sobre a juventude pobre do Brasil. Para elucidar a análise, recorreremos também à análise de alguns trechos de reportagens veiculados pela mídia nacional.

 

Manos da Periferia: a anormalidade como marca da juventude pobre

O debate proposto neste artigo nos convocou a refletir sobre estratégias de controle que se desenham a partir da emergência da sociedade moderna (Barros, 2007). Dentre essas, destacamos a composição de enunciados que operam na delimitação de noções de "normalidade" e "anormalidade" entre a população e as consequências dessas construções na trajetória de vida de jovens residentes das periferias brasileiras.

Compreende-se aqui a noção de anormalidade constituída como signo de perigo, sendo esta fundamental para a legitimação de noções de normalidade que, historicamente, se materializam em dispositivos de disciplinamento da população (Foucault, 2010). Neste viés, os ditos normais são historicamente correlacionados a noções de heterossexualidade, branquitude, classe média e alta, casamento, reprodução, regiões centrais, entre outros exemplos.

Ainda nesta perspectiva, a referência aos ditos anormais impõe uma separação daquilo que, supostamente, não condiz com a norma e que se materializa comumente em noções de homossexualidade, negritude, classes populares, juventude, selvageria, regiões periféricas, entre outros exemplos. Deste modo, ao segregar, punir e/ou exterminar os "anormais" busca-se garantir, pela via da coerção e do exemplo, a manutenção da ordem social vigente.

Configurações que destoam de matrizes normativas amplamente reificadas na vida em sociedade, portanto, são comumente relacionadas à anormalidade, inadequação, imoralidade, desumanidade e incivilidade, como se essas expressões colocassem em risco a ordem política e social, o que justifica que elas sejam constantemente vigiadas, examinadas, internadas e, por vezes, exterminadas (Foucault, 2010).

Deste modo, ainda que a população em geral esteja cotidianamente exposta a redes de vigilância social, consideramos que as pessoas delimitadas em um plano discursivo como anormais estejam à mercê, de maneira mais violenta e evidente, dos efeitos coercitivos de práticas e discursos regulatórios. Tais efeitos são evidentes no cotidiano de jovens residentes de periferias, como é possível verificar no trecho de reportagem destacado a seguir: "Território cercado pelo medo - quem mora em comunidades onde há o domínio do tráfico de drogas convive com a insegurança e a falta de liberdade." (Orikasa, 2012, p.5)

O trecho destaca a delimitação da violência como questão circunscrita a determinados espaços geográficos. Na lógica exposta, as periferias seriam espaços de medo, povoadas por pessoas que se tornam, na perspectiva discursiva e moral, os inimigos sociais a serem combatidos, personificados na figura do traficante, do bandido.

Tal olhar classificador e examinador vai se ocupar de "todos esses grandes nômades que giram em torno do corpo social, mas que o corpo social não reconhece como fazendo parte dele." (Foucault, 2010, p. 82). Este processo de vigilância e de exame se articula, principalmente, a partir de saberes biomédicos e legalistas que assumem contornos de "verdade" diante dos modelos de saber vigentes, incidindo de modo mais violento sobre indivíduos considerados desviantes.

Este processo de "individualização" de práticas consideradas socialmente como desviantes, se apresenta como uma das estratégias mais efetivas de disciplinamento da população aos modelos normativos de conduta vigentes. Nesta perspectiva, Barros (2007) analisa a emergência da noção de indivíduo na sociedade moderna e ressalta a implicação de saberes médicolegais nesta construção, principalmente no que se refere à delimitação de atributos que caracterizam os ditos indivíduos normais, bem como aqueles edificados na suposição da existência de indivíduos anormais.

Mais especificamente no que diz respeito à construção da noção do indivíduo "anormal" na sociedade ocidental, Foucault (2010) analisa algumas figuras que foram consolidadas a partir do século XVIII e que se edificaram como desviantes. Destacamos, como exemplo, a produção da figura do indivíduo "criminoso", analisada por Foucault (2010) por meio da problematização de discursos presentes em exames psiquiátricos realizados entre os anos de 1955 e 1974 na França. A análise tornou visíveis os modos pejorativos com que criminosos eram assinalados nesses documentos, sendo estes apresentados como "imaturos psicologicamente", com "profundo desequilíbrio", "personalidade pouco estruturada" e com "má apreciação do real." (Foucault, 2010, p.15). Assim, fica evidente que os exames sobredeterminavam os crimes como reflexos de indivíduos que apresentavam irregularidades fisiológicas, psicológicas e/ou morais.

A correlação entre criminalidade e indivíduos ditos anormais implica também na premissa de que é necessário (e possível) prevenir e gerir riscos, bem como antever penalidades correcionais que tenham como função "não ser uma resposta a uma infração, mas corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos, de suas atitudes, de suas disposições, do perigo que apresentam, das virtualidades possíveis." (Foucault, 2003b p. 99). Por conseguinte, circunscrever os indivíduos anormais como riscos virtuais a sociedade implica (e legitima) em um processo de ortopedia moral de condutas a uma suposta ordem social hegemônica.

Ainda no que se refere à suposição do individuo perigoso, Foucault (2010) problematiza que a sociedade responde a esta figura lendária a partir de dois modos de correção: pela expiação ou pela terapêutica, sendo que ambas as respostas, balizadas por dispositivos institucionais que as exercem, tem como objetivo principal atuar frente à questão do perigo, ou seja, a "(...) noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam." (Foucault, 2010, p. 85).

A partir desta perspectiva, então, entende-se a periculosidade mais como um 'pode ser que aconteça e talvez possamos evitar a partir do controle dos desviados, que são criminosos em potencial', numa espécie de estratégia que Foucault (2003b) vai chamar de panoptismo, no qual "a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não de que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer." (Foucault, 2003b, p. 104). É possível notar o efeito dessa estratégia de controle no trecho da reportagem destacada a seguir: "opositores da ideia [redução da maioridade penal] dizem que a mudança "não resolve o problema". Não é para resolver o problema da violência. É apenas para punir assassinos, para tirá-los de circulação, para que não continuem a matar. Ponto e adiante." (Azevedo, 2015a). Nessa perspectiva de punição e controle daquele que é considerado perigoso, observa-se que o olhar dos operadores da segurança, da mídia e consequentemente, de grande parcela da sociedade, acaba por se vincular ao indivíduo e não necessariamente ao ato ilícito cometido. Isso se desdobra em uma lógica que pune e vigia qualquer corpo que se assemelhe à imagem daquele que corporifica a delinquência.

Como um dos efeitos dessas articulações, mais especificamente em relação aos antigos tribunais, Foucault (2010, p.50) vai dizer que estes, mais do que tribunais do crime, eram, na verdade, tribunais "da perversidade e do perigo", vinculados aos discursos médico-psicológicos encarregados de atestar "o nível de perversidade e o nível de perigo que o indivíduo ainda representa em determinado momento da pena."

É possível atualizar e elucidar os efeitos dessa produção discursiva na trajetória de um jovem residente de periferia brasileira, por meio do trecho de reportagem destacado a seguir: "Aquele monstro que deve ser chamado de "O Menor" - cujos nome e cara não podem ser divulgados para preservar a sua integridade moral -, que participou do assassinado bárbaro da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, era já um velho conhecido da Polícia" (Azevedo, 2013). A associação do termo "menor" a "monstro" exemplifica o quanto o plano da periculosidade está vinculado à perspectiva virtual de ameaça eminente, atualizando estratégias e procedimentos de vigilância, controle e correção da população, que se exercem a partir de "poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção - a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção." (Foucault, 2003b, p. 86). Assim, convivemos com instituições e práticas que surgem para lidar com a ideia virtual da periculosidade e "proteger" aqueles ditos adequados e normais.

Neste sentido, a própria noção de anormalidade se constrói enquanto plano discursivo, sendo que diferentes dispositivos - médico, psiquiátrico, psicológico, midiático, jurídico - contribuem para forjar a imagem do anormal. É no campo do discurso, portanto, que se articula a premissa de que existem parcelas populacionais que, enquanto anormais, não compartilham da vida pública da mesma forma que a população dita normal.

Este sistema normativo incide, de modo mais contundente, em jovens (sobretudo homens e negros) residentes das periferias que, comumente, são retratados como "inconsequentes", "imaturos", "alienados", "violentos", entre outros enunciados que contribuem para legitimá-los como desviantes, perigosos, desumanos e, por vezes, extermináveis, assim como se verifica no trecho da reportagem destacada a seguir:

A história do jovem Paulo (nome fictício), que cumpre pena no Centro de Socioeducação (Cense) II, na Zona Sul de Londrina, é outro exemplo das consequências do envolvimento com o mundo das drogas. Ele tem apenas 18 anos, mas já chegou a ser um dos líderes do tráfico num bairro de Ponta Grossa[...] A vida no crime, no entanto, começou quase que por acaso. O primeiro crime dele foi a participação num latrocínio em 2008 [...] Antes de tornar-se figura conhecida do meio policial, Paulo sofreu experiências traumáticas. O pai dele mergulhou no alcoolismo e abandonou a família. A mãe sofria com problemas psiquiátricos e espancava os cinco filhos, incluindo o caçula Paulo. Depois de cumprir pena no regime fechado, Paulo foi encaminhado para uma casa de regime semi-aberto [...] Lá ele conheceu o mundo do tráfico "Ele me ensinou a picar droga, pegar 50 gramas e fazer buchinha de 10 gramas. (Pouco tempo depois) Quando ia ser transferido para Curitiba, ele me disse para fugir". Paulo seguiu o conselho e começou a vender droga nas ruas [...] "Tinha que cobrar para poder pagar. E tem também aqueles que querem tomar o seu ponto, é aí que acontece o homicídio" [...] a pena máxima que ele pode cumprir é de três anos. Sobre os homicídios que cometeu, resume: "Era eu ou eles". (Folha de Londrina, 2012, p. 6).

Nota-se na notícia que, ao resgatar aspectos referentes à configuração familiar, experiências dolorosas, violências sofridas, há uma busca por localizar, na história do indivíduo criminoso, os elementos que o conformaram como perigoso, sinalizando-o como figura da anormalidade e, consequentemente, como 'monstro' a ser tratado, controlado e punido.

A partir desta discussão, traçamos uma articulação entre as noções de "anormalidade" e de "vida nua", dialogando daqui em diante com a obra "Homo sacer: o poder soberano e a vida nua" de Giorgi Agamben (2002). Tomamos como ponto de partida a ideia apresentada pelo autor de que cada sociedade decide quais seres humanos assumem estatuto de vidas que não merecem viver, fazendo valer seu status de soberania, para nomear aqueles tidos como desumanos e, portanto, matáveis. Buscamos também apresentar efeitos desta construção na trajetória de vida de jovens residentes das periferias brasileiras, por meio da análise de trechos de reportagens veiculadas pela mídia brasileira. Este é o debate que se articula a seguir.

 

A juventude Pobre Como vida nua: vidas matáveis

Agamben (2002), na referida obra, problematiza o conceito de vida nua, sendo que, para entendê-lo, o autor retoma a figura jurídica do homo sacer, a qual ele define como "uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)" (Agamben, 2002, p. 16), e que diz respeito a um sujeito que, sendo julgado por alguma contravenção penal, recebe como pena seu banimento da vida social, "a exclusão da sua cidadania, isto é, a anulação do seu direito de partícipe nas leis da cidade." (Souza, 2012).

Nas palavras de Agamben (2002, p. 83), "no caso do homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana" sendo que "soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera." (Agamben, 2002, p.85). Torna-se, nesta lógica, o homo sacer uma vida não humana que não compartilha dos mesmos direitos - civis, políticos, humanos - que os outros cidadãos. Sua morte, neste sentido, é uma morte não sentida, banalizada, sendo que, "na biopolítica moderna, soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal." (Agamben, 2002, p.138).

O autor articula a noção da vida nua aos estudos realizados por Foucault acerca do conceito de biopolítica, compreendida como "o processo através do qual, nos limiares da modernidade, a vida natural começa, por sua vez, a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica." (2002, p. 10-11). Trata-se do processo de captura da vida biológica pelas estratégias de poder e controle, ampliando largamente as teias do poder para além das instituições disciplinares e tornando a vida controlada em todos os seus aspectos, zoé e bíos, no intuito de tornar o Estado soberano no que diz respeito ao "zelar pelo corpo biológico da nação." (Agamben, 2002, p. 138).

A partir da relação posta em análise sob a égide conceitual da biopolítica, Agamben chama a atenção para a importância do entrelaçamento entre vida, zoé, enquanto "simples fato de viver comum a todos os seres vivos" (Agamben, 2002, p. 9) e política, "a inclusão da zoé na pólis"(p. 16), afirmando que, por muito tempo, o que era considerado enquanto estritamente humano e valorado era a ideia de bíos, "que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo"(p. 9), ou seja, a forma ética da vida, por assim dizer. O autor parte do argumento de que tal relação, entre vida biológica e política, só se estabelece de fato na Idade Moderna, que coincide com o momento do surgimento da biopolítica. Assim, a vida natural começa a ser valorada e tomada em consideração nas estratégias de governamentalidade.

Por estratégias biopolíticas entende-se um conjunto de ações que tem, como objetivo, "cuidar da população, da espécie, dos processos biológicos, otimizar a vida" (Pelbart, 2008, p. 4), torná-la produtiva, por assim dizer, sendo que, no que concerne à lógica do Estado Moderno, o "que qualifica o poder de suas instituições é principalmente sua população. Uma vez que a vida humana adquire significação política, a população passa a ser um objeto de atenção e cuidado por parte das diversas instituições do Estado." (Ruiz, 2007, p. 271).

Assim nos deparamos com uma questão complexa, que se atualiza no debate posto neste artigo, de que um regime de biopoder possa, ao gerir a vida da população, dispor da vida daqueles que não servem (ou não respondem) às lógicas produtivas, discursivas e normativas, dentro daquilo que se entende enquanto modelo vigente. Ao mesmo tempo em que se ocupa da vida, em muitos momentos, e para certas populações, produz relações de morte e extermínio, como no caso dos regimes totalitários, ditatoriais e nas relações de colonização. Neste sentido, o trecho da reportagem a seguir elucida este processo, localizando de modo banal a morte de pessoas denominadas marginais:

Em um aspecto, a avaliação do governo estadual coincide com a de policiais que estão nas ruas na linha de frente de combate ao crime e também dos bandidos: em determinado momento, a letalidade do poder público aumentou. Em maio, a Rota matou seis integrantes do PCC na Zona Leste. Em setembro, nove criminosos foram mortos enquanto promoviam um julgamento em um sítio na Grande São Paulo. As apreensões cresceram também. Em uma ação, a polícia conseguiu capturar uma quantidade de drogas, armas, dinheiro e explosivos que equivale ao faturamento de um ano de roubos do PCC. Os criminosos, seja pelo abalo financeiro, seja pelo que perceberam como uma quebra das "regras do jogo", reagiram (Diniz & Cabral, 2011).

Sobre o suposto paradoxo, que se desenha nos dispositivos de controle que se agenciam no regime do biopoder, no que se refere à produção de vidas consideradas inteligíveis e ininteligíveis na sociedade, Butler (2001) problematiza que não há contradição nesta construção, na medida em que nossa existência é também constituída em meio à interferência de forças de exclusão e abjeção, "uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, 'dentro' do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio." (Butler, 2001, p. 156). Deste modo, consideramos que a delimitação de determinadas configurações de vida (como as de jovens de periferia) a noções de desvio, anormalidade e perigo, opera no sentido de reafirmar determinados modos de vida como "normais", "adequados" e "naturais".

Os efeitos dessa produção na análise em questão, nos convoca a refletir sobre as estratégias políticas, discursivas e jurídicas que vêm se articulando na contemporaneidade na produção de um corpo político, ethos, que vincula intervenção do Estado à violência. Tal fato extrapola o campo jurídico, para se disseminar por todo o tecido social, no qual todos se tornam juízes de todos, onde a premissa do direito do in dubio pro reo é negada a priori por uma lógica na qual se legitima atos como "fazer justiça com as próprias mãos" ou, então, práticas de extermínio (pela atuação tanto de milícias quanto de figuras do Estado, como é o caso da Polícia Militar). Tais práticas, no caso, afirmadas pelo enunciado tantas vezes ouvido nos diversos contextos, de que "bandido bom é bandido morto", demarcando este como aquele que não merece viver, portanto, uma vida nua (Agamben, 2002). Neste caso, o fato de estar em situação suspeita, já expõe o sujeito à possibilidade da violência ou do extermínio justificado e legitimado, como podemos observar na notícia abaixo:

No domingo, três jovens suspeitos de roubar um carro foram mortos após suposta troca de tiros na Zona Sul da capital paulista [...] Parentes disseram que eles foram executados, segundo o Bom Dia São Paulo.

'Meu irmão gritou: me rendo, me rendo, me rendo. Pode me levar preso, os policias já começaram a dar tiro. Se meu irmão deitou e falou: 'se rendi' por que não levou preso?', questionou a irmã de uma das vítimas que não pôde se identificar.

Segundo a Polícia Militar, os três homens estavam em um veículo roubado e foram abordados pelos policiais em Cidade Ademar, na Zona Sul de São Paulo. Ainda de acordo com a corporação, os suspeitos atiraram contra os policiais, que revidaram e alvejaram os rapazes. Os três morreram no local (G1 São Paulo, 2017).

A pergunta da irmã "por que não levou preso?" nos coloca frente ao conceito de "vida nua" proposto pelo autor. A estes sujeitos que se enquadram na categoria de vidas nuas, o ordenamento jurídico é posto de lado, e suas vidas à mercê de práticas de extermínio. Tornam-se vidas não humanas, que não compartilha dos mesmos direitos - civis e políticos - que as outras pessoas consideradas cidadãs. Suas mortes, nessa lógica, são mortes não sentidas, banalizadas. Neste sentido, o trecho destacado de uma reportagem sobre a questão da redução da maioridade penal, explicita a categorização social feita entre cidadão de bem e bandido, no que diz respeito ao olhar do Estado que muitas vezes não corresponde ao desejo social de justiçamento e punição: "Uma coisa é certa: não pode ser o homem comum, que criminoso não é, a pagar com a própria vida o fato de o bandido ter feito a escolha errada e de o estado ser inepto." (Azevedo, 2015b).

Diante desta problematização, podemos questionar como, na contemporaneidade, a juventude da periferia brasileira vai sendo muitas vezes colocada no lugar de homo sacer. Vida que é banida, olhada como elemento perigoso e que necessita, de alguma forma, deixar de existir. Seja no plano simbólico, seja no plano do extermínio. Neste sentido, o homo sacer está condicionado à "dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto" (Azevedo, 2015b, p. 84), sendo que "a exclusão do homo sacer do ordenamento jurídico e sua consequente redução à vida nua autoriza, assim, toda e qualquer operação, por mais estapafúrdia e imoral que seja, sobre o corpo dos sujeitos excluídos." (Souza, 2012, p. 4).

Os efeitos da categorização da juventude pobre e periférica como vida matável implicam em uma série de violências e violações de direitos, silenciadas e justificadas pelos discursos de guerra ao crime, garantia da segurança nacional e pessoal, entre outros, reforçados pelos enunciados midiáticos que, como vimos por meio dos trechos sinalizados neste artigo, localizam nesses jovens a violência, o risco, o perigo. Tornam-se alvos, como veremos a seguir.

 

A juventude de periferia como alvo: considerações finais

A partir destas breves explanações, pensemos a questão do extermínio de jovens das periferias brasileiras como efeito dos discursos que os correlacionam a noções de perigo, anormalidade e de desumanidade. Nesta perspectiva, estamos novamente diante de uma situação inquietante, principalmente quando pensamos nas leis que regulam o cuidado com a infância e a adolescência no Brasil, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, que em seu artigo 5º vai afirmar que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais" (Brasil, 1990), bem como a ideia amplamente disseminada no tecido social da juventude como futuro da nação, sob a qual o olhar do Estado necessita estar voltado com maior atenção.

Entretanto, os efeitos dos retratos depreciativos construídos acerca de jovens residentes das periferias brasileiras, nos mostram que esta proteção é seletiva e não se atualiza para todos enquanto direito de fato, assim como anuncia a letra do rap 'Dia Comum' do grupo Facção Central (2001):

O carro preto e branco chega

O homem bom, o homem da lei

Que só atira na cabeça de pobre

Só da tapa na cara; só derruba porta de barraco.

O filho da dona maria qualquer da periferia agora engrossa o número da estatística das tentativas frustradas, fracassadas de vitória na vida do crime. O filho da imigrante lavadeira sangra perto da porta giratória. Ninguém chora. Risadas, alívio. A cena de terror tem contorno de heroísmo e novela de final feliz.

Além disso, a violência enquanto prática disseminada tem sido uma marca constante na sociedade brasileira, desde as relações colonialistas e escravocratas pelas quais se justificou (e ainda se justifica) em nosso país o extermínio e a dizimação de populações indígenas, negras, periféricas, entre outros exemplos. Assim, fruto de relações históricas, é possível observar a violência sendo disseminada, autorizada e, em alguns momentos, utilizada enquanto estratégia governamental de controle da população brasileira, como, por exemplo, durante o período de ditadura militar, no qual se justificava o extermínio daqueles que maculavam a ordem social imposta na época (Almeida, 2004).

Consideramos, então, que são muitas as "vidas nuas" que circulam na sociedade brasileira, materializadas nos corpos negros, pobres, transexuais, travestis, indígenas, prostitutas, moradores de rua, mulheres, jovens de classes populares, entre outras possibilidades existenciais. Nesta perspectiva, analisamos o extermínio de jovens das periferias brasileiras como uma das expressões das relações de extrema violência que incidem sobre populações delimitadas como fora do ordenamento discursivo circunscrito como "correto", "adequado", "normal" e "natural". Ao localizá-los na norma como desviantes, torna-se justificável a circulação de um rol de ações violentas sobre estes corpos. Assim,

não é de outra forma que os corpos destes jovens são expostos à violência e à morte. Uma morte que não tem nenhum valor e nenhum outro sentido senão seu aparecimento em nossas tristes estatísticas. Uma morte sem importância para eles - afinal, quem está na vida loka, reconhece de antemão seu destino -, e sem importância, sobretudo, para aqueles que residem sobre o amparo das leis do asfalto (Souza, 2012).

Neste sentido, anormalidade e vida nua parecem, sob este aspecto, fractais de um mesmo sujeito social, haja visto que os considerados perigosos, anormais e desumanos são fixados enquanto personagens que, muitas vezes, tem sua vida exposta à violência e à matabilidade, sem que tais práticas produzam comoção social, responsabilização jurídica e/ou visibilidade política. Tal constatação se evidencia no trecho de uma reportagem publicada na Folha de São Paulo, que afirmou que "metade da população das grandes cidades brasileiras acreditam que "bandido bom é bandido morto"." (Pagnan, 2015).

Tal crença nos permite visualizar que existem, em curso, estratégias de extermínio que atingem algumas populações específicas, sob as quais o olhar do Estado parece incidir sob outras regras. Nesta conjuntura, tais populações são lembradas, na maioria das vezes, apenas enquanto estatísticas nacionais e, em uma dimensão jurídica, enquanto vidas matáveis sem o devido processo de investigação policial. Para estas populações, portanto, a dimensão da vida assume o contorno de sobrevivência em um estado de exceção contínuo, o que lhes marca como destituídas de seu estatuto jurídico de cidadania e do direito à vida.

Entretanto, ainda que o panorama analisado pareça, em um primeiro momento, sufocante, estático e sem saída, há que considerar a coexistência de movimentos de resistência que, no Brasil, insistem em denunciar tal realidade, bem como traçar outros elementos discursivos para enunciar a juventude residente das periferias.

Assim, cabe um olhar para estratégias de resistência que, segundo Foucault (1979), coexistem nas relações de poder vigentes, articulando um campo vivo de forças em constante tensionamento. Também é desta forma no que tange, mais especificamente, à biopolítica, sendo que,

ao poder sobre a vida responde a potência da vida, ao biopoder responde a biopotência, mas esse "responde" não significa uma reação, já que o que se vai constatando é que tal potência de vida já estava lá desde o início. A vitalidade social, quando iluminada pelos poderes que a pretendem vampirizar, aparece subitamente na sua primazia ontológica (Pelbart, 2008, p. 2).

Assim, é preciso estar à espreita, para captar os sinais das potências de vida que, como forças, atravessam a realidade posta e a questionam, para lembrar que não é de um só vetor que parte a vida, num sentido linear e único, mas sim de uma multiplicidade fatorial, de uma complexidade de forças que atravessam a produção dos modos de existência e as relações sociais. Existe sim, essa faceta mortífera que circunscreve determinadas vida como descartáveis, mas existem também outras perspectivas que apontam para modos criativos de existir. Deste modo,

podemos resumir este eixo da seguinte maneira: quando parece que "está tudo dominado", como diz um rap brasileiro, no extremo da linha se insinua uma revira volta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto é, "a vida", revela no processo mesmo de expropriação, sua potência indomável (Pelbart, 2008, p. 2).

Como exemplos, podemos citar os movimentos sociais que, cotidianamente, denunciam as violências sofridas pelas populações viventes em regiões periféricas. Destacamos as chamadas literaturas marginais, produzidas por pessoas residentes de territórios marginalizados, e o movimento hip hop, que denuncia situações opressoras vivenciadas na periferia através dos grafites, da dança, das batalhas de rima, da música, como elucida a letra de rap destacada a seguir:

Pra quem vive na guerra

A paz nunca existiu

Num clima quente

A minha gente sua frio

Vi um pretinho

Seu caderno era um fuzil

Um fuzil (Racionais MC's, 2002)

Há que se considerar, ainda, a resistência proposta por alguns dispositivos midiáticos 'minoritários' (sites, blogs, revistas), que dão visibilidade a questões vinculadas às violações de direitos humanos e assassinados de jovens das periferias, fatos que dificilmente aparecem nas mídias tradicionais. Também ressaltamos a utilização de ferramentas como as redes sociais (facebook, whatsapp, por exemplo) que, muitas vezes, funcionam como espaços de mobilização, de denúncia e de crítica as situações de violência descritas, sendo que tais dispositivos tecnológicos assumem importância em uma sociedade na qual a vigilância se apresenta cada vez mais difusa e virtual.

Como psicólogas sociais, apostamos na urgência em dar visibilidade às violências vivenciadas pelas juventudes residentes das periferias brasileiras, bem como aos modos potentes de essas existirem. Assim, acreditamos que também disseminar as expressões de arte, beleza, luta, alegria, entre outros elementos presentes no cotidiano dos jovens em questão, se consolida como uma estratégia importante para nomeá-los a partir de outros parâmetros, permitindo apreender a vida também "como virtualidade, diferença, invenção de formas, potência impessoal." (Pelbart, 2013, p. 54).

Em meio a um momento histórico que nos convoca a produzir análises aceleradas e conservadoras das múltiplas forças que, a todo o momento, se desenham na atualidade, recorremos à importância de reconhecer a potência de jovens que insistem em produzir outras formas de existir, para além daquilo que é estabelecido como verdade midiática e destino fatídico. Assim, buscamos ressaltar a existência de múltiplas estratégias de resistência que tencionam o panorama normativo apresentado, afinal, "o ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra a sua energia, encontra-se efetivamente onde elas se confrontam com o poder, se batem com ele, tentam utilizar-lhe as forças ou escapar-lhe às armadilhas." (Foucault, 2003b).

 

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Submetido em: 29/08/2018
Aprovado em: 13/09/2018

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