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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre metodologias críticas em pesquisa: interseccionalidade, reflexividade e situacionalidade

 

Reflexiones sobre las metodologías críticas en investigación: interseccionalidad, reflexividad y situacionalidad

 

Réflexion sur les méthodes en recherches: intersection, réflexivité et situationalité

 

 

Ilana Mountian

Pesquisadora pós-doutoranda e docente (CAPES/PNPD) no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Discourse Unit. Psicanalista. imountian@yahoo.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir metodologias críticas para pesquisa tomando como eixo de análise contribuições de estudos feministas e pós-coloniais e decoloniais sobre a ciência em relação à violência epistemológica. Esta perspectiva faz com que o entendimento da inclusão e o reconhecimento de relações de poder em pesquisa sejam vistos como fundamentais tanto para epistemologia quanto para metodologias e métodos de pesquisa. Estudos feministas desenvolveram aspectos-chave sobre as reflexões das relações de poder em pesquisa. Neste artigo, focarei nas noções de situacionalidade, interseccionalidade e reflexividade, que serão debatidos com exemplos focados nos dilemas e paradoxos deflagrados em pesquisas críticas. Os aspectos levantados neste artigo apontam para elementos que permitem considerar grupos tradicionalmente excluídos, mal representados ou sub-representados em pesquisas.

Palavras-chave: pesquisa feminista, estudos pós-coloniais, reflexividade, situacionalidade, interseccionalidade, violência epistemológica


RESUMEN

El objetivo de este artículo es promover el debate sobre las metodologías críticas para investigación. Para ese debate, el foco será en las contribuciones de estudios feministas y pos-coloniales y decoloniales sobre la ciencia en relación a los aspectos entendidos como violencia epistemológica. Así, los aspectos como inclusión y el reconocimiento de las relaciones de poder en investigación son vistos como fundamentales para la epistemología y metodología y métodos de investigación. Estudios feministas han desarrollado aspectos importantes sobre las reflexiones acerca de las relaciones de poder en investigación. En el artículo el foco será en las nociones de situacionalidad, interseccionalidad y reflexividad, que serán debatidos con ejemplos de dilemas y paradojas vistos en pesquisas críticas. Los aspectos debatidos aquí invitan para un análisis de la inclusión de grupos tradicionalmente excluidos, mal representados o sub-representados en investigaciones.

Palabras-clave: investigación feminista, estudios pós-coloniales, reflexividad, situacionalidad, interseccionalidad, violencia epistemológica


RÉSUMÉ

Le but de cet article est d'attirer le débat sur les methodologies critiques pour la recherché. Pour ce débat, centre de contribution des études féministes, post-coloniales et décoloniales sur la science par rapport à la violence épistomologique. Dans ce sens la compréhension de l'inclusion et la reconnaissance des rapports de pouvoir sont considérés fondamentaux pour l'épistomologie et méthodes de recherches. Les études féministes ont développé des aspects-clés sur les réflexions des rapports de pouvoir en recherches. Dans cet article je me baserai sur les notions de situationnalité, intersection et réflexivité qui seront discutées comme exemple dans les dilemmes et paradoxes déflagrés en recherches critiques. Les aspects suscités dans cet article apportent des éléments visant l'inclusion de groupes traditionnellement exclus, mal représentés ou sous-représentés en recherches.

Mot-clés: Recherche feministes, études post.coloniales, réflexivité, situationnalité, intersection, violence épistomologique.


 

 

Introdução

Epistemologia em foco: perspectivas críticas e violência epistemológica

Esse artigo1,2, baseado na apresentação realizada no I Simpósio em Psicologia Crítica - Estabelecendo Diálogos: Teorias Críticas, Psicanálise, Análise de Discurso, Feminismo, Pós-Colonialismo, Epistemologia, Metodologia na Universidade de São Paulo, em 2013, traz reflexões com base em estudos feministas e pós-coloniais à pesquisa nos campos epistemológicos e metodológicos da ciência. São inúmeras as contribuições nesse campo, e diversas tradições feministas, pós-coloniais e decoloniais, no entanto, apesar da diversidade teórica, este artigo levantará aspectos de algumas destas perspectivas para apontar estratégias críticas e analíticas para o debate das concepções de reflexividade, situacionalidade e interseccionalidade para metodologias de pesquisa, visando a inclusão de grupos tradicionalmente excluídos, mal representados ou sub-representados em pesquisa.

Thomas Teo (2008), a partir do trabalho de Habermas, aponta três principais perspectivas de ciência: 1- a empírico-analítica, com produção monológica do conhecimento para controle técnico sobre coisas; 2- histórico-hermenêutica, com prático interesse de interpretação e entendimento de significados; e 3- ciências com orientação crítica, com perspectiva emancipatória e utilização da autorreflexão como princípio básico de investigação, que será a base desse artigo.

As perspectivas críticas consideram e incorporam as relações de poder em sua análise, dessa maneira, nos estudos críticos da epistemologia, as concepções psicológicas tradicionais são analisadas e argumentos universalistas e deterministas do conhecimento são colocados em questão. Os estudos feministas, pós-coloniais e decoloniais, marxistas, foucaultianos, psicanalíticos frequentemente apontam grupos que tradicionalmente foram e continuam sendo excluídos das pesquisas e da produção do conhecimento científico, e, no caso, do campo da psicologia estes grupos excluídos foram vistos muitas vezes como 'anormais', patológicos e inferiorizados.

Nos estudos críticos, a tradicional divisão entre sujeito e objeto é questionada em seu cerne. Uma divisão que já havia sido colocada em jogo quando Heidegger (1997) explicita sua noção de Dasein (ser-ai-no-mundo), em que a historicidade (historicality) é característica determinante do Dasein. A própria noção de objetividade da ciência é contestada e passa a ser entendida como situada e parcial (Haraway, 1988), e não mais uma verdade única, universal, neutra e ahistórica. Para essa desconstrução epistemológica, é visto que as perspectivas críticas não somente descrevem essas práticas discursivas, mas também mostram como o discurso é formado por relações de poder e ideologias (Fairclough, 1992, p.12); o foco, portanto, é nos processos de construção da realidade através de discursos que são socialmente localizados.

É nesse sentido que a psicologia deve considerar essas relações de poder, pois não há neutralidade na ciência, dado que toda ciência é situada socialmente e historicamente (Burman, 1998; Haraway, 1988). Assim, o próprio campo da disciplina torna-se objeto de estudo, seus processos culturais, e sua participação na organização do conhecimento na sociedade (Parker, 1989). Porém, como observa Parker (1989), para esta análise das relações de poder e ideologia, deve-se haver um cuidado para não simplesmente recuperar a noção de ideologia e neutralizá-la. Assim como aponta Badiou (2002) ao se referir à filosofia, a necessidade da filosofia em manter seu senso crítico e político emancipatório.

Pesquisa feministas assim como os estudos Queer, e os estudos pós-coloniais e decoloniais trouxeram importantes contribuições à análise crítica da epistemologia das ciências ressaltando o efeito de teorias universalizantes. Uma série de estudos críticos (Oakley, 1981; Teo, 2008; Haraway, 1988) ressaltou a importância em incluir categorias sociais que foram tradicionalmente excluídas ou mal representadas em pesquisa, considerando as relações de poder dentro e fora da academia e no processo de pesquisa. Pois, não levar em consideração essas relações, promove um risco de reproduzir ideias pré-concebidas socialmente que mantêm esses grupos específicos em posições sociais desiguais, não sendo adequadamente representados e contextualizados no processo de pesquisa. Análises críticas dos estudos da psicologia revelam esta (re)produção e manutenção, o que reflete no próprio entendimento do que é normal e do que é patológico.

Ainda, é importante notar que a psicologia, assim como a medicina, não se restringem à academia, mas participam da construção discursiva da realidade (Parker, 1992), compreendendo e expressando a realidade por meio de termos médicos, apontando para uma "cultura da psicologia" (Mountian e Lara, 2010). Cultura, como apontado por Foucault (1965) se refere à "forma na qual uma determinada cultura, um saber se organiza, se institucionaliza, se libera numa linguagem que lhe é própria, e eventualmente alcança uma forma 'científica' ou 'para-científica'".

Rose (2008) analisa criticamente as disciplinas psi (psicologia, psiquiatria) e aponta o papel dessas disciplinas para a construção do self e da subjetividade, e os efeitos da individualização e patologização do sujeito. Ao analisarmos as relações de poder na construção do normal e do patológico, podemos questionar quais grupos ocuparam e ocupam as posições do patológico, o que podemos analisar em termos de violência epistemológica.

Teo (2008) examina a violência epistemológica em pesquisas que acabaram por excluir ou inferiorizar determinados grupos sociais, e aponta exemplos dessas práticas de violência epistemológica em testes psicológicos que foram desenvolvidos não considerando o contexto social da realidade analisada ou que eram baseados numa certa ideia de herança genética, reproduzindo estereótipos raciais e étnicos. É o caso, por exemplo, do desenvolvimento do teste de QI (quoeficiente de inteligência), no qual minorias étnicas e raciais foram vistas como inferiores intelectualmente. Nesta direção, outros exemplos podem ser vistos na patologização de imigrantes, em que eram associados a doenças mentais diversas (Liepsege e Littlewood, 1989) e, no Brasil, podemos destacar, a inferiorização dos negros e índios nas ciências (Nina Rodrigues, 1939 em Chaves, 2003).

Ainda quanto à patologização, as mulheres eram retratadas como inferiores e associadas às doenças mentais, como na histeria, ou simplesmente não apareciam em pesquisas (Saavedra e Nogueira, 2006; Rohden, 2003); a homossexualidade era tida como uma patologia mental (no Brasil até 1998); e como ainda hoje são travestis e transexuais ("transtorno de identidade de gênero" (Arán e Murta, 2009)). Com esses exemplos fica evidente o entendimento de que toda ciência é situada historicamente e socialmente, tornando-se fundamental tornar explícita a situacionalidade da pesquisa.

 

Poder em pesquisa: situacionalidade e política na ciência

Perspectivas feministas (feminist standpoint) apontam aspectos fundamentais para pesquisa, em especial a importância em circunscrever as condições sociais de grupos minorizados e como as categorias sociais operam dentro disso - por exemplo, aspectos sobre gênero são, muito frequentemente, tomadas como atribuições "naturais" e autoevidentes. Essas perspectivas mostram também como o próprio processo de pesquisa é parte disso, o que envolve desde as perguntas feitas até as possibilidades de respostas e de quem pode respondê-las. Elas apontam para a relevância da situacionalidade do processo de pesquisa, e da profunda reflexão sobre as relações de pesquisa, o que chamamos de reflexividade, ponto fundamental para as perspectivas críticas, como veremos adiante.

A situacionalidade da ciência trata de um aspecto da pesquisa crítica feminista que tem sido destacado por diversas autoras (Burman, 1998; Harding, 1996; Haraway 1988). Desenvolve o debate sobre a universalidade e a neutralidade da ciência pensando em como a "objetividade" tem sido usada na ciência e nos efeitos que essa noção produziu. Para o entendimento da crítica da objetividade, situar o estudo (situacionalidade) demonstra a compreensão do conhecimento como parcial e localizado, e a percepção da ciência como um tipo de discurso como Haraway (1988, p.581) aponta: "objetividade feminista significa simplesmente conhecimentos situados"3, ou seja, todo o modo de produção do conhecimento deve ser contextualizado socialmente e historicamente.

No debate sobre a política da pesquisa científica e a forma pela qual grupos específicos têm sido representados, Harding (1986), em Is there a feminist method?, afirma a importância de diferenciar a metodologia, o método e a epistemologia empregados em pesquisa, que normalmente aparecem misturados, sob o nome geral de "métodos de pesquisa".

"Discussões sobre método (técnicas para coleta de dados) e metodologia (teoria e análise de como a pesquisa deve proceder) tem sido misturados entre si com questões epistemológicas (questões sobre teorias adequadas do conhecimento ou estratégia justificatória) em ambos os discursos tradicionais e feministas." (Harding, 1986, p.2)4

Essa diferenciação é importante, pois torna possível, por um lado, evidenciar os questionamentos e os desenvolvimentos das pesquisas, e, por outro, permite situar a pesquisa, suas perspectivas, e definir o tipo de conhecimento que é possível ser produzido, incluindo o reconhecimento do que se pode conhecer (Maynard e Purvis, 1994). Esses debates são fundamentais, pois, além de permitirem localizar o conhecimento, explicitam os grupos que não foram incluídos na pesquisa.

Perspectivas críticas feministas implicam uma contínua e profunda reflexão sobre pesquisa de campo e sobre a política (re)produzida na ciência, expondo dilemas e paradoxos. É importante ressaltar que a ideia do conhecimento como parcial permite a incorporação desses dilemas na produção da ciência, requisitando uma mudança epistemológica.

Para situar o conhecimento produzido, é fundamental portanto, explicitar a epistemologia, a metodologia e os métodos usados em pesquisa - a pesquisa deve ser historicamente e socialmente localizada. Ainda, é preciso definir que métodos e metodologias de pesquisa permitem a inclusão de grupos tradicionalmente marginalizados.

Os estudos feministas focaram, inicialmente, na investigação sobre mulheres: como foram excluídas ou mal representadas em pesquisa. Saavedra e Nogueira (2006) apontam como as mulheres foram representadas nas pesquisas psicológicas, seguindo as ondas feministas. É importante notar que as divisões que serão apresentadas aqui tem o intuito de apontar alguns debates dentro desses períodos históricos, não havendo a intenção de reduzir os debates feministas a estas grandes divisões. Durante a primeira onda (1850-1950), as mulheres não eram consideradas em pesquisa ou eram mal representadas, frequentemente aparecendo como inferiores aos homens. Durante a segunda onda (1960-1990), as mulheres começaram a ocupar espaços acadêmicos e pesquisas e teorias foram desenvolvidas por mulheres sobre mulheres. Nesse contexto, desenvolveram pesquisas sobre mulheres e/ou em comparação aos homens, muitas ainda baseadas em perspectivas empíricas. É nesse momento em que um número importante de perspectivas pós-estruturalistas começam a surgir, e os efeitos de seus debates foram sentidos principalmente durante o período da terceira onda feminista (1990 em diante), na qual a própria noção de gênero é questionada, e as noções de poder e de ideologia, entre outras, começam a ser tomadas como aspectos centrais nas pesquisas.

De meados do século XIX ao início do século XX (primeira onda feminista), ideias sobre a inferioridade fisiológica e intelectual das mulheres estavam presentes (ver Galton, 1869; Hall, 1904; Wooley, 1903 em Saavedra e Nogueira, 2006). Essas ideias eram colocadas em relação à diferença biológica, em que elementos sociais e psicológicos eram explicados em termos biológicos. Thorndike (1910 em Saavedra e Nogueira, 2006), por exemplo, afirmava que posições mais importantes de trabalho, envolvendo liderança, deveriam ser destinadas aos homens, pois eles têm mais inteligência e energia que mulheres. Mulheres eram amplamente relacionadas com maternidade, entendida como seu único objetivo, e seu cérebro seria dirigido pelas funções reprodutivas e sexuais (Rodhen, 2003; Engel, 1997; Mountian 2013).

Estes estudos e perspectivas foram contestados durante a segunda onda, de 1960 em diante. A invisibilidade e a inferioridade das mulheres foram colocadas em xeque na academia e nos contextos sociais e políticos. Omissões, erros e concepções equivocadas foram denunciados, e ficou evidente que o objeto de pesquisa era primordialmente o homem. A partir dos anos 1970, os estudos feministas começaram a criticar a própria noção de ciência, particularmente em relação à sua parcialidade. Estudos sobre mulheres, e sobre aspectos conhecidos como "femininos", começaram a ganhar espaço. Este é de fato um debate ainda atual, pois algumas tradições feministas estão focadas em aspectos entendidos como "naturais" das mulheres, enquanto outras apontam como o gênero não determina as funções psicológicas, mas sim como esses aspectos são socialmente construídos (Nogueira e Saavedra, 2006). Este debate é percebido em relação à psicologia de mulheres e nas discussões contemporâneas sobre leituras feministas sobre a psicologia (Mountian, 2016).

Dos anos 1990 em diante (terceira onda feminista), o debate sobre gênero e sexualidade se torna central. As noções de verdade, neutralidade, naturalidade e universalidade, intrínsecas à ciência, são desconstruídas e contestadas. Além disso, movimentos sociais e acadêmicos, também vistos em outros períodos históricos - como movimentos feministas, movimentos antirracistas, movimentos LGBTTQIs, entre outros - contribuíram para produzir importantes críticas em relação à situacionalidade, onde o sujeito é visto em relação ao seu contexto histórico e social.

A política da pesquisa científica é, assim, colocada em questão, onde a noção de política é desenvolvida dentro de seu espectro mais amplo. Com base nas ideias sobre o "pessoal é político", nota-se como a tradicional divisão entre os espaços domésticos e públicos é generizada (Federici, 1975) e como os efeitos dessa divisão têm impacto também na academia e na pesquisa científica.

A partir disso, um número considerável de metodologias e de métodos de pesquisa - como etnografia, métodos visuais, autobiografia, pesquisa-ação - foi desenvolvido e utilizado para permitir que grupos marginalizados e oprimidos, tradicionalmente mal representados ou sub-representados em pesquisa, pudessem ter visibilidade na pesquisa.

É necessário destacar, ao mesmo tempo, que metodologias críticas não garantem necessariamente representação e voz aos grupos marginalizados (Spivak, 1988; Mountian e cols., 2011; Gillies and Alldred, 2012), sendo esse um aspecto importante para pesquisadoras(es) feministas que têm promovido debates sobre as (im)possibilidades e os dilemas da representação desses grupos. Por exemplo, quando Spivak (1988) pergunta se a(o) subalterna(o) pode falar, nos alerta sobre as impossibilidades de fala da(o) subalterna(o) em relação à escuta hegemônica. Spivak aponta aspectos-chave das violências epistêmicas imperialistas, disciplinares e sociais. Nesse sentido, o grupo subalterno é correntemente definido pela diferença e quando se inclui gênero o sujeito subalterno é duplamente obliterado- a própria construção de gênero reproduz a dominação masculina. Assim, na produção colonial, o subalterno não tem história e não pode falar, e, nesse contexto, a mulher subalterna é ainda mais obscurecida.

Estes limites da representação levantam aspectos importantes, pois, se, de um lado, enfatizam a necessidade de contextualizar a ciência e o processo de pesquisa e as possibilidades de escuta das epistemologias adotadas, e ressaltam a importância em se considerar as relações de poder pensando nas intersecções de categorias sociais, dentro e fora da ciência, de outro lado, colocam a questão fundamental das possibilidades de representação.

A relação poder-saber torna-se relevante também na ampliação do que é considerado saber. Ao longo das críticas ao poder na pesquisa e na produção de subjetividade, estudos mostram a necessidade de ampliar a noção de saber, de descentralizar e de considerar os saberes locais. Esse elemento tem sido explorado em diversos estudos críticos, na formação e na recuperação de saberes, como visto nas investigações pós-estruturalistas e de epistemologias dissidentes, especialmente quando se ancoram em críticas sobre saber-poder, ou ainda, na relação saber-poder-prazer.

 

Interseccionalidade: discurso e poder

Os debates e as perspectivas aqui apresentadas dizem respeito, como foi destacado, à inclusão de grupos que não são representados ou são mal representados em pesquisa e, ainda no centro do debate sobre representação, mostram a importância em se considerar dinâmicas das intersecções entre categorias sociais, tais como: gênero, raça, classe, sexualidade, idade, deficiência, e outras que aparecem como desiguais nas relações sociais (Oakley, 1981; Stanley and Wise, 1990; Walkerdine, 1997; Harding, 1996; McClintock, 1995; Mohanty, 1994; Crenshaw, 1991; Hooks, 2000; Lorde, 1997, Beauvoir, 2016; Butler, 1999), e o impacto dessas relações de poder na ciência (Harding, 1996; Haraway, 1996) e na pesquisa (Burman, 1998; Oakley, 1981; Levinson, 1998). Essas perspectivas analisam a estrutura das instituições através das relações de poder, considerando desigualdades em relação às intersecções de categorias sociais.

É relevante destacar que gênero, assim como raça (e outras categorias sociais), não é um termo fixo que tem a mesma significação em todos os lugares e momentos históricos, ou seja, o que é entendido por gênero também deve ser socialmente contextualizado. Yuval-Davis (1997, p. 9) mostra essa ideia definindo gênero como: um "modo de discurso que se relaciona a grupos de sujeitos os quais os papéis sociais são definidos pela sua diferença sexual/biológica ao contrário das suas posições econômicas ou sua pertença em coletividades étnicas e raciais"

Nesse sentido, enquanto um modo de discurso, gênero é descrito por Butler (1993, p. 95) como uma "força de reiteração de normas, a repetição de 'ficções regulatórias' que constituem o sujeito"5. Gênero, assim como outras categorias, é socialmente construído, e como essa construção é (re)produzida deve ser interrogada.

Para essa desconstrução, com base em Foucault, torna-se fundamental a atenção às estruturas sociais, e o entendimento das dinâmicas de poder nessas relações, que são sempre presentes e estruturam as interações de diversas maneiras (Burman, 1998). Vale destacar a noção de poder em Foucault, como Batsleer and Humphries (2000, p.11) apontam:

Foucault não utiliza a história como um meio de localizar um sujeito revolucionário singular, nem localiza poder numa única base material. Seu foco é na miríade de relações de poder que são desenvolvidas (networked) nas sociedades e que permitem que as formas repressivas de poder centralizadas sejam possíveis. Ele proporciona uma visão de poder como exercida ao invés de possuída e não primariamente repressiva, mas produtiva. A análise de práticas discursivas como lugares de poder permite uma análise sobre a forma a qual os sujeitos são constituídos por relações de poder.6

Assim, o poder é produtivo, ou seja, produz sujeitos, subjetividade e posições sociais. Nesse sentido, é necessário analisar as forças que estão em jogo, e como Foucault (1988, p.91) aponta: "onde há poder há resistência".

Incorporando essa perspectiva às análises sobre as categorias sociais, pode-se concluir que a noção raça, assim como gênero, é tratada, portanto, como construída socialmente, performativa, não como uma condição pré-dada, mas sim como um significante (shifting signifier) que é construído dentro de relações de poder, como efeito de encontros específicos. Assim, a análise se volta à fixidez histórica das repetições discursivas.

Estudos pós-coloniais e decoloniais oferecem importantes recursos a essa perspectiva crítica (Fanon, 1986; Gilroy, 2000; Bhabha, 2010; Balibar and Wallerstein, 2002; Hall, 2008; Hook, 2004; Ballestrin, 2013), como visto, o que é entendido como raça e cultura é historicamente e socialmente localizados, trazendo à tona a análise da produção discursiva do "outro", da produção dos regimes de diferença. Desse modo, as tradicionais afirmações biológicas sobre raça são desconstruídas, sendo privilegiadas as perspectivas de como os discursos sobre raça determinam a posição de sujeito (Gilroy, 2000).

Esses discursos colocam o sujeito numa posição específica: a preocupação está na posição do "Outro" no discurso, na análise dos processos que posicionam o sujeito como "Outro". Para isso, é fundamental compreender que a minorização de "Outros" (Chantler, 2007) específicos acontece através de encontros. E, crucialmente, estes encontros não são simétricos, como Ahmed (2000, p.11) aponta: "encontros coloniais envolvem necessariamente um diálogo desigual e assimétrico entre culturas distantes que transformam cada uma"7. Estas perspectivas são fundamentais para a desconstrução dessas categorias sociais em intersecção, como visto também no trabalho de feministas antiracistas e anticoloniais (McClintock, 1995; Yuval-Davis, 1997; Burman, 2008; Chantler, 2007).

Quanto ao poder em pesquisa, algumas questões éticas emergem, como a atenção à potencial exploração de participantes e a importância em dar voz a grupos minorizados e não representados ou mal representados em pesquisa. Com isso, um número de aspectos é levantado sobre elementos éticos em relação ao reconhecimento de poder dentro e fora dos processos de pesquisa (Mountian e cols., 2011; Oakley, 1981), tornando fundamental o processo de reflexividade na pesquisa (Harding, 1996).

 

Reflexividade em pesquisa: reflexões in loco

Outro aspecto destacado e articulado à situacionalidade será a reflexividade. A reflexividade sobre o processo de pesquisa torna-se uma estratégia-chave, particularmente em relação às questões da posição de poder do(a) pesquisador(a), assim como da posição de poder da própria pesquisa no campo. A reflexividade do(a) pesquisador(a) é como Nogueira (2001, p. 50) aponta: "a avaliação crítica e pública do processo e recursos interpretativos"8

Nesse contexto, é relevante retomar a noção de poder trazida neste artigo. Poder, para Foucault, não está relacionado apenas com a dominação ou com as formas nas quais o poder se manifesta, não é uma estrutura ou uma instituição, "é o nome atribuído a uma complexa situação estratégica numa determinada sociedade"9 (Foucault, 1998, p.93). Poder está relacionado com o processo, "a multiplicidade de relações de força imanentes na esfera nas quais elas operam e às quais constituem sua própria organização"10 (Foucault, 1998, p.92). Como um processo, através de lutas, de mudanças e do apoio mútuo dessas forças, essas relações constituem um sistema. Ou, ao contrário, elas as isolam, aparecendo como as estratégias às quais elas aparecem (como o aparato do estado, a lei). "A condição de possibilidade do poder, ou o ponto de vista que permite que se entenda o seu exercício"11 (Foucault, 1998, p.92).

A inclusão das relações de poder na pesquisa é uma tarefa árdua, pois, de um lado, o(a) pesquisador(a) necessita de constante reflexão, e, de outro, pode se encontrar exposta(o), sendo este quem responde para uma comunidade "científica" e que exige "objetividade" para garantir que a pesquisa seja "sempre bem-sucedida".

Muitas pesquisadoras e pesquisadores defendem a reflexividade em pesquisa (Harding, 1996; Macleod, 2004; Parker, 2005), - assim como uma "vigilância interpretativa" ('interpretive vigilance') (Figueroa e Lopez, 1991 em Burman, 1998) - como uma forma de reconhecer as relações de poder entre o(a) pesquisador(a) e as(os) entrevistadas(os) (Stanley e Wise, 1990). Assim, torna-se importante reconhecer os efeitos da relação de poder e da posição hierárquica do(a) pesquisador(a) no próprio resultado das pesquisas. Assim como a posição social do(a) pesquisador(a), incluindo as categorias e interseções entre gênero, raça, classe, idade e sexualidade e o impacto nas respostas dessas posições nas interações com a(os) participantes.

Ainda, uma outra questão nessa relação é, como seriam as entrevistas feitas por feministas? Oakley (1981) questiona os limites das entrevistas pré-estruturadas, apontando as dificuldades e contradições em pesquisas com mulheres. A partir de suas pesquisas com mulheres grávidas, Oakley (1981) ressalta a importância da não hierarquia, da sensibilidade, do envolvimento com as entrevistadas, e o efeito das entrevistas sobre as pesquisadas (nesse caso, as entrevistadas falaram do efeito terapêutico que a entrevista produziu nelas). O impacto das entrevistas na/os participantes deve ser cuidadosamente pensado, pois em algumas circunstâncias, as perguntas podem fazer a/os participantes revisitar memórias de experiências traumáticas.

Alvesson e Skoldberg (2000, Foreword) reconhecem a posição ambivalente do(a) pesquisador(a), afirmando que "reflexão significa interpretar sua própria interpretação, olhar para a sua própria perspectiva a partir de outras perspectivas, e trazer um olhar autocrítico à sua própria autoridade como intérprete e autor"12. Reflexividade é vista como uma forma de promover mais responsabilidade (accountability) no processo de pesquisa e análise. Kidder e Fine (1997, p.38), observam:

Pelos regulamentos, diretrizes éticas e considerações contemporâneas das respon sabilidades de pesquisadores, pesquisadores hoje que querem estudar um grupo ou um local normalmente devem dizer quem são, apresentar as suas intenções de pes quisa, e obter permissão para estarem lá. Pesquisadores podem querer ser invisíveis mas frequentemente não são, assim eles estão certos em se preocupar em como a sua presença pode afetar as pessoas que eles observam.13

Essa é uma afirmação relevante, pois a mera presença do(a) pesquisador(a), que é visto também como profissional, psicóloga(o), socióloga(o), assistente social etc., pressupõe uma relação de poder, incluindo também as dinâmicas com outras categorias sociais, como gênero, raça, classe, idade, sexualidade.

Há dois aspectos que gostaria de enfatizar: (1) a impossibilidade de neutralidade na pesquisa e do(a) pesquisador(a), a qual está sempre situada e (re)produz relações de poder, mesmo que sem a intenção do(a) pesquisador(a) de forma voluntária; (2) a importância da inclusão do "Outro" na pesquisa. Visando aprofundar alguns dilemas e paradoxos dos processos de pesquisa, aponto alguns exemplos sobre processos de reflexividade.

Baseada em minha pesquisa anterior (Mountian, 2005, 2013), trago alguns exemplos do trabalho de campo, mostrando como o processo de reflexividade sobre as relações de poder permitiram desconstruir discursos. As entrevistas conduzidas nessa pesquisa tiveram como objetivo apontar os principais discursos sobre drogas e relações de gênero, sexualidade, raça, classe e idade. Para tanto, entrevistei pessoas em diversos contextos (religiosos, médicos e no cotidiano) e com visões distintas sobre drogas, envolvendo pessoas que usavam drogas, legais e ilegais, para fins terapêuticos, recreativos e religiosos.

Em relação aos procedimentos éticos, as(os) entrevistadas(os) foram informada(os) da intenção e dos objetivos da pesquisa antes da entrevista, e estavam cientes de que poderiam recusar a gravação do áudio ou pará-la durante qualquer momento da entrevista, ou não responder quando bem entendessem. Podiam debater com a pesquisadora sobre qualquer aspecto do estudo e solicitar uma versão da pesquisa. Estes pontos se referem ao "consentimento informado" ("informed consent") (Burman, 1998). Sigilo e anonimato foram garantidos aos participantes, e toda informação que eles não quisessem revelar seria mantida fora da pesquisa, assim como nenhuma informação seria passada às instituições através das quais eles foram contatados. As entrevistas foram individuais, com gravação de áudio e imagem, e realizadas em São Paulo (Brasil), em diferentes localidades, visando resgatar diferentes discursos sobre drogas, como em locais religiosos, instituições médicas, e áreas de lazer, como cafés etc.

É crucial apontar alguns desafios éticos que surgem em pesquisas sobre temas que abrangem esferas discursivamente moralizadas e de áreas que infringem a lei, como drogas. Neste estudo, por exemplo, ao se referir a drogas ilegais, a pesquisa revelou uma preocupação por parte das(os) entrevistadas(os), ao se referir a questões relativas à ilegalidade. Assim, a garantia de sigilo e anonimato se mostram ainda mais fundamentais. Além disso, como o campo das drogas é frequentemente saturado de visões morais, as entrevistas também foram interpeladas por essa visão. Para suprir essa questão, a análise incluiu o reconhecimento da posição de poder da pesquisadora frente aos sujeitos entrevistados. Por exemplo, ideias antecedentes por parte das(os) entrevistadas(os) sobre drogas da entrevistadora podem ter influenciado as respostas dadas. Nesse sentido, a análise não focou no sujeito singular, mas na posição discursiva que este ocupa. Como aponta Burman (2003, p. 5) a "proposta do trabalho sobre discurso não é focar em indivíduos, mas sim nos enquadramentos (frameworks) culturais de significado que eles reproduzem.14

Assim, a análise centralizou-se na posição social ocupada pelos sujeitos considerando como as relações de poder atuaram durante o trabalho de campo. O objetivo das entrevistas foi, nesse caso, situá-las em estruturas discursivas mais amplas.

Considerando esses aspectos, a reflexão focará agora nas relações institucionais e na posição da pesquisadora e psicóloga dentro disso. No processo de reflexividade, nota-se que a posição de entrevistadora não é neutra ou invisível, ou seja, as respostas das(os) entrevistadas(os) talvez pudessem ser diferentes se estivessem em outro contexto.

Para esse debate destacarei dois exemplos de entrevistas realizadas: uma sobre o uso de substâncias psicoativas num contexto religioso e outra realizada numa instituição médica.

Na entrevista de uma integrante do ambiente religioso do Santo Daime, foi possível notar que a pessoa tinha ideias específicas sobre a visão sobre drogas da pesquisadora antes da entrevista.

Q15.: "Eu não posso concordar com você que todas as plantas na terra poderiam ser drogas (...). Até cocaína é uma forte planta de poder, na Bolívia eles usam para o trabalho, para manter o nível da pressão ok, para ir às montanhas, (...) Os ho mens, com sua ambição, transformam a planta de poder numa droga muito pesada, refinam a droga e a vendem, o valor da cocaína a faz se tornar uma grande droga, mas na realidade a planta da cocaína não é uma droga, porque é só uma planta, não é?"

A participante disse que "não poderia concordar comigo", apesar de eu não ter falado nada sobre o assunto anteriormente. Este é um exemplo direto de intervenção pela mera presença da pesquisadora.

No caso das instituições que trabalham com usuários problemáticos de drogas, sendo levados em conta o local da entrevista (clínica de internação, hospital dia, instituição pública, instituição privada) e as condições do sujeito (se a/o paciente dessa instituição encontrava-se lá voluntariamente ou involuntariamente), notou-se como a mera presença da pesquisadora, vista também como psicóloga pelas(os) usuárias(os), também pode ter provocado respostas específicas. Quando entrevistei pessoas numa clínica de internação privada e perguntei o que são drogas aos participantes, foram frequentes relatos de abuso de drogas, escapismo, degradação, dependência química. Como notado também por Butler (1997), há um tipo de estilo confessional, no qual discursos sobre abuso de drogas e cura prevalecem.

S16. Putz, hoje para mim são uma forma de preencher um vazio, uma forma de você ter uma aventura nova todo dia, para não ter que se deparar com você mesmo, com as tuas coisas, com a tua rotina, com se ver mesmo, não ter que se ver, para mim é uma fuga constante.

G17. [O que são drogas para você?] É a coisa que praticamente acabou com a mi nha adolescência, foi um monstro, um monstro que apareceu para mim. E tem um lado que deu muito prazer, é uma fuga por tudo o que eu passei na infância, então foi uma fuga para mim, e sofri muito usando droga, cheguei a ser preso, fui preso, fui muito humilhado na delegacia.

G. Eu sei que eu sou doente, eu sou um dependente químico e que eu tenho que me tratar. (...) Por isso que é difícil explicar dependência química, dependência química é muito ampla, sabe, ela não tem uma definição, é uma coisa muito abstrata de pendência química, não tem uma coisa concreta na dependência química, para mim. Não tem um formato, nada concreto, é uma coisa muito ampla que envolve muitas coisas. Envolve muitas deficiências, não, deficiências não, muitas doenças, muitas patologias, muitas coisas envolve. [O que envolve para você?] Nossa, tanta coisa, porque eu não sei o resultado dos meus testes [Para você, o que você acha, o que envolve ser dependente químico?] Envolve mentira, muita mentira, muita dis simulação, a característica de dependente químico é a mentira, a dissimulação, a dificuldade de aceitar regras, porque nenhum dependente químico aceita muitas regras, ah, como é que chama, dificuldade de entrar em contato com sentimento, muita dificuldade de entrar em contato com sentimento, isso dai é dependente quí mico mesmo, essa é a característica de dependente químico, a dificuldade de entrar em contato com sentimento, eu tô falando de mim, porque eu tenho muita dificuldade de entrar em contato com qualquer sentimento, não entro. Essas são as princi pais. [Por que é que isso acontece? Essa dissimulação, mentira] Isso é quando já tá usando a droga, mas tem os traumas desde pequeno, traumas de criança, quando a gente é criança, tem os traumas, né. (Por que é que você acha que isso acontece quando a pessoa usa droga?) Não sei.

Estes exemplos evidenciam algumas questões e dilemas que são parte da reflexividade da pesquisa, tais como: essas respostas revelam a maneira pela qual esses sujeitos entendem a sua experiência, ou esse é o discurso da instituição médica, ou ainda o resultado da interação entre participantes e pesquisadora? Essas questões apontam as inevitáveis relações de poder e as possibilidades de representação em pesquisa. Em relação às entrevistas nas instituições, possíveis expectativas e projeções por parte dos participantes em relação à entrevistadora devem também ser consideradas. Além da posição de pesquisadora, da posição de poder em relação à pesquisa, eu posso ter sido vista como uma psicóloga da instituição (Marks, 1996; Burman, 2000). Nesse sentido, a possibilidade da relação entrevistada/o e entrevistadora estabelecida, em termos de expertise psicológica, não podem ser ignoradas, ao contrário, esses aspectos devem ser trabalhados como recursos analíticos e éticos do estudo.

Nos exemplos citados, essas questões permearam a pesquisa e foram também material de investigação, pois pude analisar os discursos médicos e morais flagrantes nas entrevistas com usuários de drogas institucionalizados.

 

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo apontar alguns aspectos para metodologias críticas, dois aspectos principais foram ressaltados: Primeiro, a necessidade de contextualizarmos as pesquisas que produzimos, considerando os diversos aspectos das relações de poder, e, segundo, a necessidade de dar continuidade ao desenvolvimento de metodologias teóricas críticas voltadas para a psicologia.

É evidente que relações de poder estão presentes em todo o processo de pesquisa. No entanto, nos estudos críticos, feministas, pós-coloniais e decoloniais, estes elementos são tomados como intrínsecos à pesquisa, ou seja, apontam a impossibilidade de neutralidade do(a) pesquisador(a) que é tornada explícita. Considerar essas relações de poder dentro e fora do campo de pesquisa é um desafio para a pesquisa crítica, na qual é requerida uma profunda reflexividade por parte do(a) pesquisador(a) na interação com as(o) entrevistadas(os), levando em consideração como o poder opera nas relações sociais e instituições, assim como na posição do(a) pesquisador(a) em relação às intersecções de categorias sociais de gênero, raça, classe, idade, sexualidade.

Nesse sentido, alguns questionamentos devem ser revistos ao realizarem-se pesquisas críticas: que conhecimento é incluído nas relações de poder na ciência (Burman, 1998; Oakley, 1981; Mountian e cols., 2011) e excluído da ciência (Harding, 1996; Haraway, 1996; Longino 2009)?; Quais os

grupos que não têm voz ou não são representados (Spivak, 1988)?; Como são consideradas as categorias em interseção de gênero, sexualidade, raça, classe, idade, e outras categorias que aparecem em relação desigual de poder (Oakley, 1981; Stanley and Wise, 1990; Walkerdine, 1997; Harding 1996)? Quais são os métodos e as metodologias de pesquisa que podem incorporar essas vozes e desafiar as tradicionais relações de poder que aparecem na ciência? Incluindo aqui a atenção ao efeito de como as questões de pesquisa são feitas (Oakley, 1981; Kitzinger and Wilkinson, 1993; Macleod 2004).

Estes aspectos-chave da pesquisa trazem dilemas e paradoxos, pois são dinâmicas que não podem ser dadas previamente mas somente serão vistas em seus contextos políticos e sociais. Essas reflexões são fundamentais para pesquisas críticas, feministas e antirracistas, pois, como visto, a ideia de universalidade, neutralidade e objetividade da ciência (re)produziu ideias particulares sobre grupos minorizados, ou por representá-los mal ou por não representá-los. Para desafiar estas dinâmicas, é, portanto, imprescindível o desenvolvimento crítico epistemológico e metodológico da ciência, para que estratégias investigativas permitam a inclusão de grupos marginalizados também como sujeitos ativos na pesquisa.

 

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Submetido em: 30/06/2016
Aceito em: 20/09/2017

 

 

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
2 Gostaria de agradecer Frederico Viana Machado e Sabah Siddiqui pelos comentários e sugestões neste artigo
3 No original em inglês: "feminist objectivity means quite simply situated knowledges". Haraway (1988, p.581)
4 No original em inglês: "Discussions of method (techniques of gathering evidence) and methodology (a theory and analysis of how research should proceed) have been intertwined with each other and with epistemological issues (issues about an adequate theory of knowledge or justificatory strategy) in both the traditional and feminist discourses" (Harding, 1986, p. 2)
5 No original em inglês: "force of reiteration of norms, the repetition of 'regulatory fictions' that constitute the sub-ject" (Butler, 1995, p. 95)
6 No original em inglês: "Foucault does not utilise history as a means of locating a single revolutionary subject, nor does he locate power in a single material base. His focus is on the myriad power relations that are networked throughout societies and which make centralised repressive forms of power possible. He posits a view of power as exercised rather than possessed and not primarily repressive, but productive. The analysis of discursive practices as sites of power enables an account of the way subjects are constituted by power relations" (Batsleer and Humphries, 2000, p.11)
7 No orginal em inglês: "colonial encounters involve a necessarily unequal and asymmetric dialogue between once distant cultures that transforms each one" (Ahmed, 2000, p.11).
8 No original em inglês: "the critical and public evaluation of the processes and interpretive resources" (Nogueira, 2001, p. 50)
9 No original em inglês: "it is the name that one attributes to a complex strategical situation in a particular society" (Foucault, 1998, p.93)
10 No original em inglês: "the multiplicity of force relations immanent in the sphere in which they operate and which constitute their own organization" (Foucault, 1998, p.92).
11 No original em inglês: "Power's condition of possibility, or in any case the viewpoint which permits one to understand its exercise" (Foucault, 1998, p.92)
12 No original em inglês: "reflection means interpreting one's own interpretations, looking at one's own perspectives from other perspectives, and turning a self-critical eye onto one's own authority as interpreter and author" (Alvesson e Skoldberg, 2000, Foreword)
13 No original em inglês: "By virtue of human subjects regulations, ethical guidelines and contemporary considerations of researchers' responsibilities, researchers today who want to study a group or a site are usually required to state who they are, make their intention known, and obtain permission to be there. They might want to be invisible but usually aren't, so they are right to worry about how their presence might affect the people they observe" (Kidder e Fine, 1997, p.38)
14 No original em inglês: "the purpose of discourse work is not to focus on individuals but rather the cultural frameworks of meaning that they reproduce" (Burman, 2003, p. 5)
15 Mulher cisgênera, branca, heterossexual, 31 anos
16 Homem cisgênero, branco, heterossexual, 27 anos
17 Homem cisgênero, negro, heterossexual, 21 anos

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