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Revista Psicologia Política

 ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Teoria da transformação em psicanálise: da clínica a política

 

Theory of transformation in psychoanalysis: from the clinic to the politics

 

Teoría de la trasformación en psicoanálisis: de la clínica a la política

 

Théorie de la transformation en psychanalyse: de la clinique à la politique

 

 

Christian Ingo Lenz Dunker

Professor titular do Instituto de Pscologia da USP; coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip); analista Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, articulista e youtuber. chrisdunker@usp.br

 

 


RESUMO

Neste artigo apresento alguns elementos e condições para a definição de uma teoria da transformação em psicanálise. Conjugando traços conceituais derivados das noções de causalidade, determinação e indeterminação, argumento que a lógica do encontro na experiência psicanalítica, entendida como cura, terapia e tratamento, exige uma epistemologia da prática. Uma teoria da transformação assim concebida possui uma condição ética e uma potência política que ainda está por ser discernida.

Palavras chaves: psicanálise, causalidade, epistemologia, política


ABSTRACT

In this article we present some elements and conditions for a psychoanalitical theory of transformation. Combining conceptual aspects derived from the notion of causality, determination and indetermination, we claim that the logic encountered in the psychoanalytic experience, understood as cure, therapy and treatment, ne-eds a kind of epistemology of practice. A theory of transformation, conceived in these terms, demands an ethical condition and has a political scope that still needs to be.

Keywords: psychoanalysis, causality, epistemology, politics


RESUMEN

En ese artículo presento elementos y condiciones para una teoría de la transformación en psicoanálisis. Ajudicando razgos conceptuales derivados de nociones como causalidad, determinación y indeterminación, plantea-se la lógica de lo encuentro en la experiencia psicoanalítica, considerada como cura, terapia y tratamiento. Una teoría de la transformación así considerada tiene la condición ética y una potencia política que aún resta establecer.

Palabras clave: psicoanálisis, causalidad, epistemologia, política


RÉSUMÉ

Dans cet article, je présente quelques éléments et conditions pour la définition d'une théorie de la transformation en psychanalyse.Combinant des traits conceptuels dérivés des notions de causalité, de détermination et d'indétermination, je soutiens que la logique de la rencontre dans l'expérience psychanalytique, entendue comme guérison, thérapie et traitement, nécessite une épistémologie de la pratique.Une théorie de la transformation ainsi conçue a une condition éthique et un pouvoir politique qui reste à discerner.

Mots-clés: psychanalyse, causalité, épistémologie, politique


 

 

Uma Teoria Geral da Transformação

Clínicos, psicanalistas e psicoterapeutas mantém uma afinidade de interesse com campos de saber cuja estrutura é a práxis, tal como a ética e a política, porque ambos operam com um telos transformativo. Transformação é também o conceito chave subsumido na noção de estrutura. Isso já estava inscrito no programa da matemática estrutural (Bourbaki, 1954, p. 56) que Lévi-Strauss trouxe para a antropologia (Almeida, 2008) e de onde Lacan absorve e desenvolve sua noção de estrutura. Renunciando a descrever as propriedades intrínsecas dos objetos, para depois inferir suas relações a concepção estrutural de transformação parte das próprias relações, a partir das quais objetos se supradefinem. Há três as estruturas elementares: algébricas, de ordem e topológicas, que podem ser associadas, em antropologia, respectivamente ao sistema de parentesco, as classificações totêmicas e os mitos. A aplicação do método estrutural, envolve a descrição de grupos de transformação, cujas propriedades fundamentais são a simetria e a invariância. Transformações algébricas ou geométricas, assim como as transformações lógicas como a equivalência, mantêm, contudo, certa indiferença ontológica. Este conceito de transformação mantém uma proximidade com o uso mais analógico da ideia de metamorfose, como por exemplo, as múltiplas formas que os deuses gregos assumem para manterem relações com os humanos, ou seja, este conceito mantém uma identidade de essência, com uma variação de aparências, como se obtém na análise de sistemas fechados.

Contudo, o conceito psicanalítico de transformação não se contenta com esta acepção. Em Lacan isso pode ser atribuído ao fato de que sua teoria da transformação não vem apenas do estruturalismo, mas também do método dialético. Quando Lacan descreve transformações geradas no interior da relação entre os registros simbólico, imaginário e real, ele recorre a um segundo entendimento de transformação. Neste caso a alteridade não é apenas a diferença para com algo (etwas), mas também com relação ao um (Ein ou Einheit). Para o autor de Ciência da Lógica (Hegel, 2011) existe uma transformação que mantém a identidade (Verschiedenheit), mas também uma transformação que implica em auto diferenciação (Unterschied). Além destes dois tipos de diferença há ainda uma terceira forma de transformação envolvendo a indiferença ou contingência entre estas duas formas de transformação. Neste terceiro caso a transformação implica a relação entre duas séries transformativas. Aqui a diferença (Differenz) entre palavra, conceito e coisa envolve a subjetivação, interpretação ou incorporação da causalidade ao próprio processo transformativo, como encontramos em sistemas abertos como os que encontramos na teoria política.

Lacan (1953) tentou formalizar a série transformativa da análise alternando diferenças do primeiro tipo com o segundo: realização do Simbólico (o analista como personagem simbólico), realização do Imaginário (resistência), realização do Real (neutralidade), imaginarização do Imaginário (projeção), imaginarização do Real (transferência negativa), imaginarização do Simbólico (sonho), simbolização do Simbólico (interpretação), simbolização do real (saúde) e simbolização do imaginário (comunicação inconsciente). A par da fragilidade descritiva deste esquema ele mostra bem como as duas formas de transformação, se articulam para apreender a fenomenologia da experiência psicanalítica, combinando a cada caso leis de formação (equivalências e simetrias) e momentos de causalidade (substituição entre ordens). Transformações estruturais baseadas nos movimentos de imaginarização, simbolização ou realização efetivam possibilidades dadas por uma necessidade de estrutura ou de discurso. Transformações dialéticas entre o Real, Simbólico e Imaginário criam experiências novas a partir de relações entre o impossível e o contingente. Temos, portanto, dois modelos de liberdade que se apresentam na clínica e que envolvem maneiras distintas de pensar política, estratégia e tática da psicanálise. Como afirma Lacan (1958) o analista é mais livre em sua tática do que na sua estratégia e mais livre em sua estratégia do que em sua política. Como os níveis tático, estratégico e político relacionam-se com uma teoria geral da transformação em psicanálise?

Nosso estudo visa examinar a pertinência destes dois modos de entendimento da transformação para ler a mudança que se passa na experiência clínica do tratamento psicanalítico. Contudo, poucos foram os psicanalistas que se interessaram diretamente pelo conceito de transformação, sendo Bion (1965) uma destas exceções. Uma das virtudes de sua abordagem consiste em combinar aspectos éticos, matemáticos e clínicos em sua teoria da transformação. Sua abordagem do problema tem o cuidado também de não reificar esta noção nos levando a pensar que toda transformação é um ganho. Transformações em movimento rígido (neurose) ou em movimento projetivo (psicose) são maneiras de mudar sem alterar a regra de formação de um determinado estado, confirmando a observação do príncipe Falconeri: "a não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude". (Tomasi di Lampedusa, 2008, p. 185)

O terceiro aspecto importante da abordagem de Bion (1965) reside na maneira como ele integra o que se poderia chamar de teoria da práxis, ou seja, de como ele liga a teoria do que fazemos com as determinações do que fazemos. Esta ligação não ocorre apenas na ciência ou na educação, que se preocupam com a formalização1 desta relação, mas também na maneira como praticamos observações e construções que pré-determinam a verificação da transformatividade, por exemplo:

1. Sempre acreditei que você é um analista muito bom.

2. Conheci, quando criança, no Peru, uma mulher que profetizava.

3. Acho que os psicanalistas fariam bem se acreditassem em Deus. Deus pode curar.

4. Não devia haver tanta aflição e sofrimento no mundo? Que pode o simples humano fazer?" (Bion, 1991, p. 170)

Tais enunciados exprimem, respectivamente, uma teoria da transformação baseada na (1) transferência por contágio ou incorporação, (2) por atribuição de potência, (3) por hipérbole ou exageração e (4) por grupalização. Segundo Bion, cada qual contém intrinsicamente uma concepção de resistência, pois exprimem (1) o pensamento contra a ação, (2) a crença na intuição, (3) uma ilação da dependência e, (4) uma divisão entre individualização e grupalização (Bion, 1965, p. 175).

O programa de Bion (1965) com relação ao tema da transformação nos permite distinguir mudanças específicas, a partir de problemas bem enunciados e dificuldades circunscritas, como por exemplo: "não consigo fazer apresentações orais em público" ou "tenho dificuldade crônica para dormir" e transformações gerais como as que se exprimem em "sinto que há algo errado em minha vida" ou "não sei por que sofro, já que tenho tudo o que alguém feliz poderia querer".

Pesquisas sobre eficácia e eficiência de práticas clínicas (Hunsley, Elliott e Therrien, 2013) frequentemente se deparam come esta dificuldade que é pré-qualificar o objeto ou situação para a qual espera-se avaliar os efeitos de uma ação transformativa. A abordagem que se limita a aferir modificações a partir de sintomas constituídos, em suas formas canônicas ou codificadas, em termos diagnósticos ou autodeclarativos, acaba por não considerar que o ponto de partida, ou seja, a teoria da transformação, na qual o sujeito enuncia seu sofrimento já é parte de toda transformação possível. Este aspecto do que chamamos em outro lugar de racionalidade diagnóstica (Dunker, 2015), precisa ser propriamente considerada caso se queira não apenas comparar práticas clínicas, mas entender como elas funcionam.

Nossa hipótese ampara-se aqui na epistemologia de Ian Hacking (2012, p. 175) que, em grande medida, desenvolveu-se a partir da reconsideração das relações entre representar e intervir (Hacking, 2012). Se as ciências naturais lidam com tipos naturais, que existem independentemente da observação direta ou do ponto de vista, as ciências sociais criam tipos interativos, determinados por alterações de forma, mas não de matéria. Objetos científicos possuem uma espécie de biografia e o realismo de entidades proposto por Hacking supera a oposição entre descoberta e invenção, mostrando que a descoberta de fatos deve ser pensada como produção de fenômenos e não como observação passiva e em terceira pessoa de estados de mundo. "Experimentar é criar, refinar e estabilizar fenômenos" (Hacking, 2012, p. 13) definição que parece dar maior luz ao que se poderia chamar de experiência psicanalítica, principalmente se observarmos que o que ele chama de fenômenos, não se resume às condições de possibilidade para representação e conhecimento, mas concerne ao conceito de efeito.

Psicanalistas lidam com efeitos de estrutura e de certa forma eles mesmos são efeitos, mas não seria correto dizer que definem fenômenos. O que Hacking (2009) chama de estilos de raciocínio e seus metaconceitos, em vez de paradigmas, programas de pesquisa ou jogos de linguagem, envolvem diferentes pesos e combinações conferidas aos métodos historicamente mais frequentes para produzir, observar e formalizar transformações, exemplificados pelas matemáticas gregas, pela observação controlada e medição, por modelos hipotéticos-analógicos, por ordenação e taxonomia, pela análise de regularidades ou pela derivação histórica de desenvolvimento ou gênese. Estes modelos possuem uma característica que nos interessa diretamente pela sua transposição de propriedades para a clínica psicanalítica: todos eles são autoreferentes. Todos eles consideram que o saber produzido pelo processo altera o próprio processo, chegando a produzir alterações de ordem e alterações de estrutura.

A autoconfirmação pragmática, ou modo dos performativos linguísticos, interfere no modo como apreciamos efeitos e o que tradicionalmente chamamos de verdade é o circuito de repetição da autoreferência, quer consideremos universos lógicos de linguagem ou regimes éticos de verdade. Um estilo de raciocínio gera seus métodos de autenticação e seus padrões de objetividade, em efeito retroativo. Tipos interativos reagem ao modo como são descritos, tipos naturais não, os primeiros "fazem mundos" os segundos "constituem pessoas".

A ontologia histórica de Hacking (2009) se aproxima muitas vezes da teoria dos mundos de Badiou (2008) e se destaca por trazer aplicações diretas na transformação histórica dos modos de sofrimento, como, por exemplo, seu estudo sobre a emergência histórica da noção de personalidades múltiplas (Hacking, 2000) ou da anorexia. Hacking (2000), assim como Badiou (2008) e também Canguilhem (1966) e Foucault (1987), participam de uma premissa que reconhece a contingência como matriz fundamental do real, porém o contingencialismo submete-se a uma forte condicionalidade na linguagem, com ênfase nos processos de nomeação, não sem a concorrência de descrições externas de estabilidade, desrespeitando assim as fronteiras usualmente guarnecidas entre epistemologia e metafísica.

O realismo científico deve ser discutido tanto em termos de representação quanto de intervenção justamente porque sua teoria da transformação presume uma espécie de isomorfismo entre a transformação local e a transformação geral. Este sentimento de unidade pode estar equivocado do ponto de vista dos nexos causais que ele considera e aproxima, no entanto ele é efetivamente importante, em certas situações, para a efetiva e real transformação local e geral. Por exemplo, todos nos acostumamos a praticar a coleta seletiva de lixo e a redução de desperdício de água ou energia elétrica. Presume-se que a ação local generalizada e em escala de massa altere os destinos ambientais e ecológicos do planeta. Mesmo que os nexos de causalidade entre o local e o global não se verifiquem, como alguns discursos políticos argumentam, a relação entre nossas suposições de transformações, entre modos de produção de mundos (ontologia) e modos de efetivação conhecimento (epistemologia) alteram nossas crenças e ações. Em resumo, a "dança da chuva" pode não ter nenhuma relação de causalidade com a "chuva ela mesma", mas a teoria geral da transformação que liga uma a outra será constantemente reafirmada para constituir pessoas.

Como argumenta Viveiros de Castro (2015), em muitos casos a ontologia é fixa e a epistemologia é variável, como no pensamento moderno ocidental, mas em outros a epistemologia é que é estável e a ontologia se mostra variável, como nas metafísicas canibais (Viveiros de Castro, 2015). Por exemplo, quando a América foi descoberta os missionários europeus debatiam se os indígenas possuíam alma, posto que era claro e indubitável, que seus corpos eram semelhantes aos dos colonizadores. A ontologia dos corpos era fixa, a epistemologia das almas eventualmente diversa. Os ameríndios, ao contrário afogavam jesuítas e esperavam seus corpos apodrecerem, pois sua pergunta era se estes eram compostos por uma materialidade distinta da deles. A epistemologia é fixa, mas a ontologia pode variar. A ligação entre teorias locais e gerais da transformação é o que tentaremos investigar neste artigo focando-nos na maneira como a psicanálise pensa a transformação que se espera no interior do tratamento. Em trabalhos anteriores (Dunker, 2012), tentei discernir três diferentes concepções sobre a transformação em psicanálise, conforme se a considere uma terapia pela palavra, um método clinico ou uma experiência de cura. Considerei que o ponto comum entre estas concepções é certa ontologia política. Agora tento mostrar como por ontologia política devemos entender uma maneira de articular nossa teoria sobre conflitos com nossas práticas para suas transformações.

 

Intromistura da Causalidade

Desde Aristóteles a teorias de transformação podem ser consideradas uma espécie de área nobre da filosofia e do conhecimento. Sua teoria das quatro causas, exposta no livro da Física (Aristóteles, 1973), qualifica as causas em: final (telos), formal (morphé), material (hylé) e eficiente (kinesis). A teoria das causas foi formulada para explicar o movimento no mundo sublunar, imagem e signo maior da transformação. Mas ela possui uma equivalência formal com os quatro elementos que compõe a estrutura da ação humana, ou seja, a práxis, a saber: o agente, o outro, os fins e os meios. Reunindo-se as duas incidências da teoria da causalidade, física e ético-política chegamos à ideia de que a necessidade que se impõe como causa deriva de como atribuímos determinação aos participantes do processo transformativo: a si mesmo, ao outro, aos meios e instrumentos ou aos fins e metas.

Há uma diferença importante entre a casualidade natural e causalidade moral, no primeiro caso a teoria que temos do processo não interfere no processo ele mesmo, ao passo que no segundo caso, da causalidade moral, a concepção de transformação que adotamos interfere no processo. Surge assim uma afinidade entre estas quatro causas e as maneiras pelas quais interpretamos a casualidade de nosso adoecimento, segundo Clements (1932) a partir de sua pesquisa multicultural. Observando a forma como diferentes povos teciam considerações sobre as causas e a reversão dos sintomas das doenças este antropólogo notou que as concepções invariavelmente recaíam em quatro possibilidades:

a) a teoria de que a causa das doenças emana de um objeto intrusivo, que pode ser desde uma substância tóxica até um tipo de pessoa malfazeja ou ainda um espírito intrusivo. Tal concep ção aparece na importância que a psicanálise confere a sexualidade e sua incidência traumática na etiologia dos sintomas, enfatizando a materialidade causal.

b) a teoria de que a causa das doenças deriva de um pacto mal feito, de uma violação ou transgressão na ordem natural ou espiritual que age e ordena o mundo. Tal ideia é psicanaliticamen te representada pela tese de que o complexo de Édipo, um tipo de pacto simbólico, entre sexualidade e aliança, entre escolha de objeto e identificação, possui valor de nó e de causalidade eficiente na determinação dos sintomas na neurose, na psicose e na perversão.

c) a teoria de que a causa do adoecimento decorre de uma dissolução de unidades simbólicas que orientam nossa ação ou que dão pertinência aos envolvidos, seja esta a unidade simbólica da língua, da família, de um povo ou de uma nação. Esta narrativa se expressa na psicanálise por meio da hipótese da fusão e desfusão entre pulsão de vida e pulsão de morte, como causalidade final dos sintomas.

d) a teoria de que o adoecimento envolve uma perda da consciência ou da capacidade de reconhecer-se a si mesmo como um indivíduo ou uma instância autônoma. O correlato psicanalítico desta ideia aparece na teoria da defesa ou da alienação por negação do desejo, explicando a gênese dos sintomas a partir da sua causa formal.

Portanto, os paradigmas etiológicos freudianos são expressos por diferentes concepções de causalidade em uma espécie de intromistura variável (Dunker, 2014b). Lacan argumentou em uma direção semelhante ao propor que em diferentes discursos a verdade ocupa diferentes posições como causa determinando assim diferentes formas de saberes postos em prática. Se "a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade como causa" e se "a verdade tem estrutura de ficção" (Lacan, 1966, p. 885) infere-se que a causalidade, a verdade e o saber compõem de forma decisiva a sua teoria da transformação. Para Lacan (1966) a magia coloca a verdade na posição de causa eficiente, envolvendo sempre o velamento do saber de natureza sexual. Já a religião denega a verdade como causa final gerando uma relação de desconfiança em relação ao saber. Na ciência a verdade é foracluída (Verwerfung) como causa formal e, portanto, nada se quer saber sobre ela. Finalmente, na psicanálise a verdade é tomada como sua razão e causa material, determinando um saber que se produz em torno do trabalho do significante.

A teoria do objeto a, como objeto causa do desejo, nasce assim como uma espécie de capítulo particular da teoria lacaniana da transformação. Com isso, podemos pensar dois níveis de transformação, o mais externo atinente ao discurso no qual se está concernido aqui a magia, religião, ciência ou psicanálise, mas mais adiante o discurso no mestre, do universitário, da histeria ou do psicanalista, e a transformação interna a um determinado discurso.

De fato, como mostramos em outro lugar (Dunker, 2015) cada uma destas incidências do objeto a parece relacionar-se com uma narrativa de referência para se pensar o sofrimento e sua transformatividade em psicanálise. A concepção que deriva o sofrimento como derivado de um objeto intrusivo aproxima-se da teoria do trauma sexual. Na magia trataria-se de potências maléficas, assim como na ciência encontraríamos os agentes patogênicos ou tóxicos descritos pela medicina, assim como na religião teríamos o tema do estrangeiro. Na psicanálise a causa material da transformação por intrusividade reside no fato de que o objeto a é um índice do desejo do Outro, como indutor de angústia. A teoria que prescreve o adoecimento como violação de pacto encontrará na teoria do complexo edipiano sua mais consolidada versão. A violação dos acordos e compromissos que determinam o sistema de escolhas de objeto e de identificações, que acabam por determinar a produção de sintomas como versões do pai, acabam configurando um bom exemplo de como verdade incide aqui como materialidade da lei simbólica. A teoria de que o adoecimento decorre da dissolução de unidades simbólicas encontrará na hipótese das fusões e desfusões entre pulsão de morte e pulsão de vida a sua melhor expressão psicanalítica. Assim também a teoria da alienação, por negações defensivas, como o recalque, a foraclusão ou a renegação, exprime muito bem a teoria da transformação por perda de si.

Percebemos agora como os exemplos trazidos por Bion (1965) em seu estudo sobre as transformações, antes discutidos, são pertinentes e representativos destas quatro narrativas de sofrimento: (1) Sempre acreditei que você é um analista muito bom (extração de um objeto intrusivo em sua causalidade material); (2) Conheci, quando criança, no Peru, uma mulher que profetizava (recuperação de um saber alienado de si por meio da causalidade eficiente); (3) Acho que os psicanalistas fariam bem se acreditassem em Deus. Deus pode curar (formação de uma nova unidade simbólica envolvendo uma nova causalidade final); e (4) Não devia haver tanta aflição e sofrimento no mundo? Que pode o simples humano fazer (recomposição de um pacto violado por meio da causalidade formal).

Mas além destas quatro causas essenciais Aristóteles discerniu duas causas acidentais (simbebekota), aquelas que vem a partir do acaso (apo tiches) e aquelas que vem do espontâneo (apoautomaton). Eexemplo de causalidade espontânea, ou automaton, podemos são as transformações imperceptíveis e acumuladas que geram um efeito inesperado ou surpreendente. Como exemplo de causalidade engendrada pela tyké, podemos mencionar a passagem da quantidade a mudança de qualidade.

A casualidade (Automatón) diferencia-se da sorte (Týchê) por ser uma noção mais ampla. Porque tudo quanto se deve à sorte deve-se também à casualidade, mas nem tudo o que se deve à casualidade se deve à sorte. A sorte e o que resulta dela só pertencem aos que podem ter boa sorte e em geral ter uma atividade na vida. Por isso, a sorte limita-se necessariamente à atividade humana. Um sinal disso está na crença de que a boa sorte é o mesmo que a felicidade, ou quase o mesmo, pois a felicidade é uma certa atividade, a saber, uma atividade bem lograda. Logo o que é incapaz de tal atividade é também incapaz de fazer algo fortuito. Por isso nada que seja feito pelas coisas inanimadas, os animais e as crianças é resultado da sorte, já que não têm capacidade de escolher; para eles não há boa ou má sorte, (...) (Aristóteles, 1973 Livro II, 197a b)

De fato Lacan (1998b) aproximará o automaton da transformação inerente ao movimento significante a Týchê à transformação que se obtém pela via do trauma ou pela via da mutação da fantasia. Em grande medida esta é a diferença entre as mudanças clínicas que acontecem pelo trabalho do significante, ou pela elaboração (Ducharbeiten) longa em contraste com os momentos de interpretações fulgurantes (Einsicht), quando a mudança é percebida ou intuída em ato, como uma espécie de epifania. A combinação entre o tempo longo e o tempo curto da transferência, entre a mudança interna a um contexto e uma mutação de contexto, entre recordar, repetir e elaborar, ainda não foram muito bem dirimidas em termos teóricos.

Percebe-se que enquanto na teoria da práxis tratava-se do real como estrutura de necessidade, da possibilidade e da impossibilidade, aqui se trata da verdade como efeito da contingência. Isso sugere um grande divisor aproximativo em nossa teoria da transformação como crença ou atribuição de causalidade. Ela pode se expressar como ciência das causas na qual não se pode dispensar a finalidade, ou ela pode depender de uma adesão ao tipo de consequência que atribuímos aos nossos atos e escolhas.

Noções como as de implicação recíproca, feed-back (retroalimentação), sistema ou homeostase são maneiras de combinar a ação recíproca entre diferentes tipos de causalidade. Também Aristóteles dispunha de meta-conceitos como estes para delimitar sua teoria da causalidade, a saber, a distinção entre potência e ato. A transformação corresponderia assim à passagem de um corpo, da sua potência ao ato, pela intercessão de causas. Tais causas envolviam o problema da existência. Algo pode existir em ato, mas não em potência, o ser existe necessariamente, de modo que não pode ser diferente do que é. Mas ao existir em ato e em potência, o ser existe necessariamente, todavia pode se tornar outra coisa com relação ao que é atualmente. E ainda ao existir como potência, mas não em ato, o ser existe enquanto possibilidade e, assim, não existe de modo necessário (Aristóteles, 1973).

Ocorre que a teoria das causas compunha parte da ontologia e da teoria geral do ser. Aplicando-se indistintamente aos saberes teoréticos como a física ou a biologia, a saberes práxicos como a ética ou política, bem como em saberes técnicos como a medicina, a ciência da guerra ou música.

A ciência moderna, que partilha com a psicanálise sua concepção de sujeito (Lacan, 1966), define-se pelo progressivo predomínio da causalidade eficiente, antes considerada como a forma de explicação mais fraca e que passa desde então a se impor como padrão para nossas expectativas de racionalidade.

"Num primeiro sentido, é causa aquilo de que uma coisa é feita e que permanece na coisa, como por exemplo, o bronze é causa da estátua e a prata é a causa da taça [causa material]. Num segundo sentido a causa é a forma ou o modelo, isto é a essência necessária ou substância de uma coisa [causa formal]. Neste sentido é causa do homem a natureza racional que o define. Num terceiro sentido é causa é aquilo que dá causa aquilo que dá início a mudança ou ao repouso, por exemplo, o autor de uma decisão é causa dela, o pai é causa do filho e, em geral o que produz a um dança é a mudança da causa [causa eficiente]. Num quarto sentido, a causa é o fim e por exemplo, a saúde é a causa do passear [causa final]. (Aristóteles, 1973,103 a- b).

Para os antigos estas quatro causas possuíam uma hierarquia, onde no topo se encontrava a finalidade, depois a eficiência, depois a forma e mais abaixo a matéria. É próprio do pensamento moderno uma inversão que passa a privilegiar a causa eficiente, ou a descrição do processo de produção de um fenômeno, como o modelo de entendimento. É também uma característica da modernidade, particularmente da física, que a separação entre os problemas para os quais a causa final se aplica, como a ética e a política, ou o reino da autonomia, e os problemas para os quais ela é indiferente, como as questões de ciência natural. O fato epistemológico característico da psicanálise é que ela mantém tanto a consideração de finalidade ética, enquanto ética do desejo, e a consideração de eficiência, como sistema de transformações significantes.

Percebe-se assim que as transformações compatíveis com a teoria das quatro causas respondem bem ao paradigma estrutural, ao passo que as transformações entre tiché e automaton referem-se à mutações de ordem. Ambas, no entanto envolvem algum tipo de reabsorção das causas ao saber sobre as causas em uma relação de autoreferência. Podemos corroborar por meio desta separação entre modalidade de entendimento da transformação a intuição de Shevrin H. (1995) de que talvez a Psicanálise não seja uma única ciência, sendo seus achados e seus métodos dependentes de mais de uma modalidade de entendimento sobre a causalidade, sem que isso corresponda a algum tipo de hibridismo epistemológico ou de somação de fatores heterogêneos.

Com esta ascensão da causa eficiente, na modernidade, com o correlato declínio da causa final e com a restrição relativa da relação entre matéria e forma à noção de determinação, a teoria da transformação tornou-se cada vez mais sinônimo de representação ou esquematização da transformação. Vê-se assim que sua teoria da causalidade envolve tanto os sistemas transformativos lógico formais, do tipo simbólico-imaginário, quanto as transformações na relação entre o simbólico-imaginário e o real.

 

A Valência Política do Sofrimento

Os modos de utilização ou de ação sobre o mundo tornaram-se relativamente independentes de nossa teoria da transformação, que é o que autores como Habermas (1998) e Adorno (2009) chamam de espaço entre a ciência e a ética, ou entre a ciência e a técnica, ou entre a ciência e suas aplicações.

A cura psicanalítica é a realização de uma experiência que transforma o sujeito. Isso quer dizer que a psicanálise não toma como política de cura a idealização de uma experiência clínica de reificação da saúde e de seus índices e critérios normativos; por isso temos implicada na noção de cura em psicanálise aquilo que chama-mos de política de emancipação da norma. (Neves, 2017, p. 218).

A transformação que se espera da clínica psicanalítica é covariante com a concepção que se tem do patológico. Pathos, lembremos é ao mesmo tempo, uma expressão de nossas paixões, e, portanto, de nossos afetos dominantes, mas também índice de nossa capacidade de afecção ou de se deixar afetar pelo outro, e ainda, em terceiro sentido, nossa experiência de sofrimento. O sentimento de uma vida contrariada, a avaliação das causas motivos ou razões, assim como a atribuição de transformações possíveis formam assim uma equação que é simultaneamente importante para a consideração de transformações políticas e transformações clínicas. Ambas dependem de como interpretamos nosso sofrimento e da relação que fazemos com a verdade que a ele supomos. No fundo, tanto na clínica quanto na política trata-se de escolher quais variedades queremos de afetos, de fins, mas também e sobretudo de qual teoria da transformação organiza nosso saber sobre o conflito e a diferença:

Ora, a clínica não é uma ciência e jamais o será, mesmo que utilize meios cuja eficácia seja cada vez mais garantida cientificamente. (...) Não há patologia objetiva. Podem-se descrever objetivamente estruturas ou comportamentos, mas não se podem chamá-los de 'patológicos' com base em nenhum critério objetivo. Objetivamente, só se podem definir variedades ou diferenças, sem valor vital positivo ou negativo (Canguilhem, 2009, p.173-174).

Assim como na clínica nomeamos as razões de nosso mal-estar, em um esforço de extração a sua verdade, na política escolhemos que tipo de variação queremos determinar como possível ou como impossível, como necessária ou contingente:

Diremos que sujeitos não sofrem exatamente por terem sintomas. Eles sofrem por compreenderem os sintomas como mera expressão de uma forma de estar doente. Pois estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com grande força performativa. Ao compreender-se como "neurótico", "depressivo" ou portador de "transtorno de personalidade borderline", o sujeito nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performaticamente efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições (Safatle, 2015, p.293).

Assim como na política também na clínica devemos determinar a cada momento qual e quanto sofrimento é suportável, qual escolhemos eleger como transformável, e qual tipo e intensidade de sofrimento devemos acolher e aceitar como parte da vida. Isso se exprime em um saber sobre as causas, particularmente a hipótese sobre quais delas podemos transformar e quais devemos aceitar.

Lembremo-nos, no entanto, de que nossa atitude perante a vida não deve ser a do fanático por higiene e terapia. Devemos admitir que a prevenção ideal de enfermidades neuróticas, que temos em mente, não será vantajosa para todos os indivíduos. (...) Existe alguém entre os senhores que, alguma vez, não examinou a causa lidade da neurose, e não teve de admitir que esse era o mais suave resultado possível da situação? E dever-se-ia fazer tais pesados sacrifícios, a fim de erradicar a neurose, em especial, quando o mundo está cheio de outras misérias inevitáveis? (Freud, 1910, p.135).

Vários autores tem chamado atenção para a afinidade entre a transformação política e a transformação clínica proposta pela psicanálise, seja na afinidade com a ação ética ligada aos fins (Calazans, 2008), seja na presença extensiva da noção de política na teoria da cura em Lacan (Checchia, 2012), seja pela mudança no plano das inibições, dos sintomas ou da angústia (Goldenberg, 2006) ou ainda pela valorização da contingência e do desamparo como dispositivos do pensamento da transformação política (Safatle, 2015). A redefinição da política em termos análogos aos da prática psicanalítica encontrará em Badiou uma grande expressão:

Se há somente uma política possível, é que não há política alguma. (...) A política só pode ser um pensamento se ela decide algo; se ela afirma algo ser possível, ali mesmo onde só há declaração de impossibilidade. A política consiste em pensar e praticar o que é declarado impossível pela política dominante. É isso que faz com que uma política seja real. É quando ela força o impossível a existir. Se nos dizem: o liberalismo econômico, a globalização, o regime parlamentar é a única possibilidade, fazer outra coisa é impossível, precisamente, em tais casos, dizemos: uma política real existe ali onde se diz que ela é impossível. Afrontar o impossível é o que nos causa medo, e é por essa razão que a política é obscura. (Badiou, 1996, p.37-38).

Note-se como esta definição de política parece homóloga da tese de Lacan que que a psicanálise é o "tratamento do real [impossível] pelo simbólico" (Lacan, 1998b, p. 213). A teoria do processo político convencional geralmente enfatiza três aspectos para entender a transformação baseada em mobilização social: as organizações pré-existentes, a cultura da indignação e o sistema de oportunidades. Por cultura da indignação podemos entender o conjunto de narrativas de sofrimento que interpretam e nomeiam as causas do mal estar. Somos propensos a pensar que a transformação ocorre quando uma narrativa ganha força concentrando sobre si maior capacidade de pressão sobre as instituições e atores sociais envolvidos no processo. Neste sentido a cena política envolve discursos concorrentes que aglutinam em si as diferentes narrativas fornecendolhe inteligibilidade e capacidade de reconhecimento para contradições sociais. Segundo Perchanski (2013) esta é uma teoria ruim na medida em que só consegue explicar o fenômeno da transformação depois que ela aconteceu, contribuindo com baixo poder preditivo para a leitura do processo. Também a teoria psicológica convencional incorre neste erro ao pensar a transformação sempre ad hoc, funcionando como uma espécie de suplemento confirmador à própria teoria da transformação. Neste caso a teoria está sempre posta em exterioridade ao acontecimento e também em posteridade ao acontecimento.

Contra esta perspectiva é possível trazer tanto o pensamento de autores como Badiou (1988) que vem pensando a teoria da transformação política a partir do conceito de evento, quanto a de e Zizek (2012), que o faz por meio no conceito de ato. São exemplos da derivação da noção de mutação de ordem para entender a relação entre o real e a estrutura. Estas duas categorias estabelecem que o estado da teoria já faz parte da transformação vindoura. Um evento, ou um ato, cria suas próprias condições de possibilidade, por isso ele deve ser procurado nos impasses ou no impensável de uma determinada situação. Este impensável para Zizek (2006) é justamente o Real, como impossível e como contingência, que funciona como causa antecipada de uma ruptura imprevista pelo próprio contexto onde ele acontece.

Desta forma duas formas de causalidades aristotélicas podem ser recuperadas, a tiché e automaton, como eventualidade contingente, como encontro com o real que viola as expectativas que definem as regras constitutivas de um determinado momento e as quatro causas, com suas expressões narrativas antes apresentadas: final, formal, eficiente e material.

Aspirações incluídas nos dispositivos de transformação disponíveis, tais como as representações e instâncias jurídicas, políticas e participativas não precisam ser descartadas, mas não devem ser consideradas as únicas formas de transformação pensáveis. Isso seria pensar apenas a lógica da luta dos interesses e a força ou eficiência das alianças entre estes. Isso não responde ao ponto crucial que é saber, porquê, em um dado momento o sofrimento ou a indignação torna-se insuportável gerando a mudança. Nossa hipótese é de que isso acontece quando o saber que envolve justifica o sofrimento, anelando o mal-estar, o sofrimento e o sintoma, tornando-se um saber fraturado ou sentido como insuficiente. Quando as causas do sofrimento são naturalizadas ou invisíveis não nos atrevemos a agir sobre elas, mas quando elas são tidas como contingentes e incertas quanto aos seus efeitos também não nos aventuramos ao risco da mudança. Portanto, uma justa medida entre o sofrimento percebido como improdutivo e a potência de transformação disponível é necessária para tornar o ato possível. Poderíamos argumentar que há quatro condições para que isso aconteça, quatro maneiras de articular a transformação estrutural com a transformação de ordem: o reconhecimento da oportunidade contingente (verdade), a insuficiência da narrativa de sofrimento (saber), a interpretação da causalidade (objeto a) e a efetuação autoperformativa dos meios (subjetivação). Ao conjunto destes quatro termos chamamos de hipótese transformativa.

 

Autoperformatividade de Meios

Chamemos de heterólogo todo adjetivo que não se denota a si mesmo. Por exemplo, o adjetivo "comprido" é heterólogo porque não é comprido. O adjetivo "inglês" é heterólogo porque não é inglês, é uma palavra do português. O adjetivo "monossílabo" é heterólogo porque a palavra "monossílabo" não é monossílaba, é pentassílaba. Por outro lado, o adjetivo "curto" não é heterólogo, pois denota a si mesmo, a palavra "curto" é uma palavra curta. A palavra "português" não é heteróloga, pois de fato pertence à língua portuguesa. O adjetivo "pentassílabo" não é heterólogo, pois de fato compõe-se de cinco sílabas (Quine, 1996).

Apliquemos agora a regra ao próprio adjetivo "heterólogo". Ele mesmo é heterólogo, ou não? A resposta é simples: Ele é heterólogo se e somente se, não denota a si mesmo, isto é, se e somente se, não é heterólogo. Em suma: ele é heterólogo se não for heterólogo.

Esta versão do paradoxo de Grilling, caso linguístico do teorema da incompletude de Gödel se presta a apresentar o que Lacan (1966) chamou de forclusão do sujeito pela ciência. O sujeito é expulso para que possa se constituir como existente. É pela exclusão do sujeito declarativo em primeira pessoa "penso" e não "pensamos" ou "pensa-se", que a realidade e a existência dos objetos pensados se tornam apreensíveis. O argumento se prolonga para a questão genérica das relações da psicanálise com a ciência. Processo semelhante se poderia fazer em relação ao discurso da magia, da religião ou da psicanálise. Em cada caso poderíamos mostrar como a performatividade da hipótese transformativa permite produzir o sofrimento que se quer transformar por meio de atos de auto-inclusão e auto-exclusão do sujeito na sua relação com a verdade, a causalidade, a narratividade e sofrimento. Esta performatividade encontra um imite nos paradoxos de autoreferência dos quais ela aparentemente depende, mas que por outro lado, pragmaticamente nega.

Vejamos outra versão possível do mesmo problema, agora aplicada ao próprio conceito de hipótese, ou seja, ao lado do objeto na equação do conhecimento. Pode-se argumentar, agora, que o inconsciente não é um objeto, mas uma hipótese. Hipótese que Lacan (1966) situa como aplicável a certos efeitos da linguagem. É necessário então explicitar que tipo de hipótese é essa. Poderíamos dizer que se trata de uma hipótese semelhante a que, por exemplo, a física postula para explicar certos efeitos do mundo físico que ela isola a partir da própria hipótese. A queda dos corpos, nesse sentido, se explica pela hipótese da gravidade, formalizada na lei universal da gravitação. Mas em muitas facetas, o termo "hipótese" não é usado na psicanálise como na física.

A hipótese do inconsciente (Dunker, 2014a) não explica, rigorosamente, os efeitos de linguagem. Explicar é mostrar a relação entre um conjunto de causas e um conjunto de efeitos. A ideia de uma sobredeterminação (Übertedeterminierung) psíquica e a própria concepção de causa em psicanálise são incompatíveis com o que se poderia esperar no regime de explicação científica. A causalidade psíquica é retrospectiva a causalidade física é prospectiva. O que é peculiar na teoria psicanalítica da causalidade é que ela reúne tanto elementos internos à determinação, como a lógica do significante, quanto uma concepção própria sobre a indeterminação, como na noção de objeto a, ou seja, ela apresenta-se como uma concepção dupla de causalidade. Isso porque na gênese dos sintomas, em sua articulação com o mal-estar e com o sofrimento (Dunker, 2015) , podemos discernir tanto a importância de experiências de determinação, como as estratégias de negação e simbolização, quanto experiências de indeterminação, ligadas ao gozo e a sexuação.

Mas a objeção mais importante ao fato do inconsciente se constituir como uma hipótese não é essa. Ele não é uma hipótese como a da física porque o sujeito que a formula não é o mesmo sujeito que formula hipóteses sobre a queda dos corpos. Ela é uma hipótese que não pode deixar de incluir o sujeito que a enuncia quando o faz. Nesse sentido, ela é uma hipótese ética, pois não apenas descreve um mundo ou um sujeito na sua ipseidade, mas propõe um sujeito incluído e transformado pela enunciação desta hipótese. Isso torna a hipótese do insconsciente uma hipótese autoperformativa em relaçao aos meios e aos objetos que a ela se aplicam, confirmando, de certa maneira, as críticas de que a psicanálise envolveria um certo tipo de argumentação autoreferente, ou por ajustamento contínuo entre premissas e conclusões (Grünbaum, 1984). De fato esta análise lógica dos procedimentos clínicos da psicanálise ao tenatr refutar um atributo epistemológico indesejável da psicanálise acabou por revelar um fenômeno clínico da maior relevânica em termos do conceito de transformação. Mas, poderia se objetar, Newton não deixou de sofrer os efeitos da lei que ele propôs, então qual a diferença? A diferença, pensamos, é que a hipótese do inconsciente versa justamente sobre o sujeito e postula que todos os seus enunciados podem ser postos sob suspeita.2

Como argumentei em outro lugar (Dunker, 2012) o problema em falar de uma teoria do inconsciente é o problema da possibilidade de uma teoria da divisão do sujeito. Se ela se faz desde um sujeito não dividido (o da ciência), ela expulsa sua própria premissa e, se ela não o fizer não será uma teoria do inconsciente. Zizek (2008), trabalhou com esta paradoxalidade epistêmica da psicanálise argumentando que ela exige um método baseado na paralaxe entre o sujeito e o objeto. Esta atitude epistemológica parece remontar ao interesse de Lacan pelo surrealismo, e suas estratégias de duplicação da imagem da realidade, ao projeto de uma ciência do real formulado por Émile Meyerson (1968), e à crítica dos fundamentos da psicologia, estabelecida como crítica da linguagem desde Politzer (1998). Um autor que parece dar continuidade a esta abordagem baseada na crítica da representação da realidade, na importância determinativa da linguagem e no reconhecimento radical da contingência como figura do Real pode ser encontrada em Ian Hacking (2000) e seu nominalismo dinâmico.

 

A Contingência Temporal da Verdade

Portanto, temos que reconhecer que a teoria da transformação admite duas aplicações distintas. No primeiro caso ela é uma teoria exterior à transformação, que é usada como uma espécie de guia ou instrumento para modificar o mundo ou o comportamento. No segundo caso temos que admitir que a teoria da transformação é imanente à própria transformação. Este segundo caso é muito importante para a experiência clínica, pois em certo sentido podemos dizer que nosso objetivo no tratamento não é apenas produzir algumas transformações atinentes ao sintoma, às inibições ou às angústias de nossos pacientes segundo a teoria da transformação na qual o problema é trazido e colocado. Nossas expectativas mais ousadas são de que nossos pacientes alterem suas próprias concepções "práticas" sobre suas transformações, que possam ser usadas bem além do contexto clínico, focal ou dirigido que envolve o tratamento. Transformar a teoria da transformação, considerando que ela é como uma hipótese recursiva, ao modo do inconsciente, ou um paradoxo posicional, ao modo da estrutura do sujeito, é o que separa uma intervenção técnica de uma intervenção ética em psicoterapia.

Recorro agora aos estudos do Boston Changes Process Study Group (BSP) sobre a teoria da transformação, mais especificamente ao projeto de pesquisa capitaneado por psicanalistas como Alexander Morgan, Louis Sander e Daniel Stern, entre outros, desenvolvido desde os anos 2000, e cujos resultados apareceram a partir de 2010. Suas fontes metodológicas cruzam achados sistemáticos da nova psicologia do desenvolvimento e da análise minuciosa de sessões clínicas. Seu ponto de partida remonta a um conjunto considerável de pesquisas sobre eficácia e eficiência de tratamentos psicoterápicos, que teria chegado a três conclusões importantes:

a) As psicoterapias psicodinâmicas de longo prazo, como a psicanálise, são mais eficazes e eficientes, para um espectro massivo de sintomas e condições patológicas, do que todas as psicoterapias dirigidas, focais, sistêmicas ou breves disponíveis em estudos comparativos. Isso pode ser atribuído ao fato de que elas pretendem realizar meta-transformações, envolvendo, portanto, a mutação das regras de produção e problemas, não apenas dos problemas eles mês mos.

b) Examinando-se os diferentes tipos de variáveis intervenientes na eficácia e na eficiência de tratamentos psicoterapêuticos como a experiência do terapeuta, sua formação específica, sua orientação teórica, sua idade, seu gênero, sua experiência com casos congêneres, seu domínio da técnica, não se verificou nenhuma correlação estável, exceto a "qualidade e duração da relação terapêutica" tal qual testemunhada pelos envolvidos.

c) A representação que os sujeitos fazem da própria transformação ocorrida durante o processo psicoterapêutico possui um valor causal relativo em relação ao próprio processo terapêutico, em termos de sua continuidade e perspectiva. No entanto, a qualidade da regulação interna ao processo psicoterapêutico, sua capacidade de se recuperar de impasses, rupturas e crises, e de constituir novas orientações possui valor preditivo e causal muito maior.

Foi pensando nestas asserções que o grupo Boston Change Process Study Group (BCPSG) Boston dedicou-se a estudar a "construção de padrões de regulação mútua" (BCPSG, 2010) distinguindo o nível "semântico", o nível do "saber relacional implícito", o nível dos "momentos de encontro" e o nível da "reconstrução ou reparação". Reencontramos aqui o trabalho de automaton de um lado e da tiché de outro. Padrões de regulação mútua é o que encontramos nas narrativas de sofrimento; momentos de encontro refletem o que chamamos de posição da verdade. A reconstrução e reparação são operações inerentes a gramáticas de causalidade, sejam ela mais determinativas (como na teoria das quatro causas) ou mais indeterminativas (como na teoria da causalidade contingente)

Vou discutir os resultados deste projeto de pesquisa porque entendo que ele trabalha com pressupostos que chegam a conclusões bastante próximas do que estamos encontrando no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, com o que se costuma chamar de teoria do reconhecimento. Ela é necessária para entender a formação, o desaparecimento e a deriva de certas patologias do social, como déficit, bloqueios ou intensificações de modalidades de sofrimento em detrimento de outras (Safatle, 2015, Dunker, 2015) Porém, ao invés de trabalhar com os estudos de Hegel, Honneth, Lacan e a nova antropologia brasileira, como nós fazemos, o grupo de Boston tem se fundamentado em uma espécie de teoria do reconhecimento cujo conceito central é o conceito de relação, empregado a partir de uma combinação entre acepções psicanalíticas, achados das neurociências e da psicologia evolutiva. Como nossa concepção de reconhecimento é tributária da filosofia ético-política, e da noção linguística de narrativa de sofrimento, esta comparação poderá ajudar o debate a que nos propomos aqui, ou seja, pensar a teoria da transformação da clínica à política.

Segundo o grupo de Boston as ações transformativas mais importantes dependem da aquisição compartilhada de um saber que não é propriamente recalcado ou reprimido. É o "saber relacional implícito" de certa forma aparentado ao que alguns psicanalistas lacanianos chamam de "inconsciente real" (Soller, 2002), que Bollas (2008) chama de "saber impensado" (unthought knows) e que Stolorow (1997) chama de "inconsciente não reflexivo" (unreflected unconscious). Sua característica principal é que ele inclui regras de ação tácitas, e também uma indeterminação relativa de objetivos e horizontes. Entretanto, estamos longe de um contrato, um acordo ou uma convenção intersubjetiva, pois o saber relacional implícito apresenta-se de forma recognoscível não nas interpretações ou nas associações livres, mas em certos "momentos impredizíveis", chamados também de "momento agora" (now moments) (BCPSG, 2010, p. 39).

Esse "momento agora" pode avançar para um "momento de encontro específico", decorrente de que paciente e analista reconhecem que algo novo se passou, mesmo que não seja claro o teor, a natureza ou a causa desta novidade. Este momento pode ou não ser objeto de trabalho interpretativo ou de nomeação explícita. A estrutura temporal e contingente da transformação está baseada em momentos de descontinuidade, mas não penso que isso possa ser integrado, homogeneamente, ao que Lacan (1998a) chamou de tempo lógico, principalmente porque há uma descrição dos momentos de "falha no reconhecimento do momento". Ora, tal temporalidade depende da incorporação da experiência do tempo, suspensiva, conclusiva ou compreensiva, ao seu próprio fluxo. Disso deriva que a subjetivação da transformação faz parte da própria transformação, assim como a incorporação da causalidade, na forma de um saber hipotético faz parte da própria causalidade.

Chegamos assim a um quarto elemento que deve ser considerado em uma teoria geral da transformação, ou seja, como a transformação é percebida como tal por seus agentes ou participantes.

Podemos agora reagrupar as três condições de nossa teoria da transformação do ponto de vista do critério de sua contingência temporal:

(1) Encontrodesencontro (matches-mismatches), no interior do qual um determinado contexto estabelece uma direção, uma economia de trocas, de acertos e desacertos, de conflitos e solu ções. Por mais que exista discordância ou tensão há uma espécie de acordo tácito quanto à natureza e a qualidade do laço com o outro. Faz parte dos encontros-desencontros testar a resistência do laço, sua extensão e sua intensão. Pode-se dizer que o encontro-desencontro especifica as regras constitutivas do brincar ou do associar livremente. Em termos epistemológicos se aproxima do que Kuhn (1966) chamou de ciência normal, estado o qual há certo acordo, mesmo que tácito, sobre quais são os problemas e os meios admissíveis para tratá-los. É o que de finimos anteriormente como uma estrutura de discurso, que prescreve um saber capaz de regular a suportabilidade do sofrimento, naturalizando ou consolidando narrativas específicas.

(2) Ruptura (rupture), momento no interior do qual as expectativas são violadas e suspende-se o acordo que antes parecia vigorar. Nele aparecem as agendas ocultas (hidden-agendas) entre pais e filhos, no contexto educativo. É o momento em que um paciente pode pedir para ver a face de seu analista, ou recusa-se a deitar, ou declara intempestivamente seu amor transferêncial. Mas o mais importante é que os momentos de rupturas estabelecem um fim e um potencial novo começo, eles convidam os envolvidos a experimentar o tempo do ponto de vista de um novo presente. A ruptura, além disso, é uma interpelação a constituir sua própria história, ou seja, ela vai buscar rupturas semelhantes com as quais se coloca de maneira sincrônica. Como se a história precisasse ser refeita. Este é o momento no qual a incidência da verdade passa por uma mutação em seu registro de negatividade.

(3) Reparação (repair), só é possível se ao psicanalista ocorrer um momento, por mais breve que seja, no qual ele admite que "não sabe o que está acontecendo". É um momento no qual os procedimentos habituais devem ser suspensos, o que sanciona a natureza anterior da ruptura. A transformação deve ser também uma transformação do lado do psicanalista. Começa em tão o trabalho de reparação ou de reconstrução segundo uma nova forma de "saber relacional implícito" cujo modelo poderia ser a simbolização em estrutura de luto. O momento de "encontro" sucede ao momento de "agora", mas a cada momento de encontro reconstrutivo todos os momentos perdidos, não reconhecidos ou não codificados são convocados para a tarefa. Aqui estamos diante da mutação dos padrões de causas, motivos ou razões que determinam ou indeterminam o processo.

"Uma interpretação é um ato que altera a paisagem intrapsíquica do paciente e seu saber explícito. Um momento de encontro é um ato que altera a paisagem intersubjetiva do saber relacional implícito do paciente. Estes dois mecanismos agem de forma independente ou conjugada. (BCPSG, 2010, p. 46)"

Vê-se assim que a tarefa crucial da psicoterapia é transformar o saber relacional implícito, ou seja, transformar o saber-prático que governa as relações com os diferentes processos transformativos no qual o sujeito toma parte pela introdução de uma verdade que lhe parece alheia ou externa. Mas vemos também que esta é a tarefa da política, não apenas como campo de disputa entre diferentes modalidades de interesse, mas como campo de articulação entre verdade, causa e saber de modo a produzir sujeitos específicos e afetos específicos.

Uma caraterística deste saber relacional, no contexto clínico, é a sua reatividade aos afetos. Não que ele seja composto por afetos ele mesmo, mas ele contém uma espécie de humor dominante que expressa ou indexa a teoria da transformação. Por exemplo, nos processos políticos, retóricas que colocam em sua cúspide afetos como o desamparo e o medo, geralmente se fazem acompanhar de teorias da transformação conservadoras, que exigem garantias e seguranças antes de apostar em modificações nas relações práticas.

Todo processo transformativo coloca seus próprios horizontes, ideais e objetivos, daí que seja muito difícil comparar experiências psicoterapêuticas. Os futuros possíveis em cada caso não são um epifenômeno da transformação, mas fazem parte do que vai se modificar. Ademais as expectativas declaradas não podem ser tomadas como realmente fiáveis, uma vez que a transformação pretendida é uma espécie de meta-transformação que envolve inclusive a indeterminação ou o estado ainda não nomeado que virá a ser outro. Finalmente, a transformação é um processo contingente e parcialmente controlável pelos envolvidos, portanto não está excluído que corram transformações que venham ser "para pior" segundo o próprio envolvido. Os critérios de satisfação do consumidor se vêem aplicado aqui com muita dificuldade, pois o que está em jogo é a constituição de uma experiência cujo critério é a qualidade, e não o ajustamento aos propósitos inicialmente delimitados. Afinal a fixação nos critérios inicialmente estabelecidos pode ser pautada como um virtual fracasso da meta-transformação, significando que o processo psicoterapêutico não conseguiu abalar e substituir a paisagem incialmente desenhada. Elementos ou personagens foram retirados ou acrescentados, mas não passamos pelos momentos do "ruptura-agora" e do "encontroreconstrução". Não houve modificação da "correção direcional" nem o que chamamos em nossa própria pesquisa de "experiência produtiva de indeterminação".

A ideia de qualidade relacional, pode ser retirada de sua escassez de sentido. Para Waldron (1995) ela implica uma quantidade não desprezível de correções direcionais, expansão do campo relacional e multiplicação dos níveis de implicação da experiência. Ela aparece também no reconhecimento continuado de "graus de inexatidão", conforme a expressão de Winnicott (1964, p. 47) ou de incidências do Real, segundo Lacan (1953).

Chegamos assim ao último critério importante para definir a qualidade necessária para a transformatividade relacional que é a potência de compartilhamento da indeterminação, ou seja, o quanto se pode permanecer em um tempo intermediário entre a fixação de um contexto e uma nova orientação direcional.

 

Conclusão

Estudos sobre a eficácia e a eficiência do tratamento psicanalítico tais como os de Leichsenring (2005); Leichsenring, Kruse e Rabung (2012); Rabung e Leichsenring, (2012); Fonagy e Target, (1995) e Doidge, (1997) são frequentemente criticados porque empregam métodos quantitativos para comparar resultados heterogêneos. Além de dependerem de questionáveis definições operacionais da psicanálise, como a Psicoterapia Psicodinâmica de Longa Duração, elas incorrem no problema mais genérico da avaliação de processos terapêuticos que se atém a reversibilidade de sintomas, nem sempre definidos em termos da semiologia e da diagnóstica psicanalítica. O fulcro da crítica remonta a dificuldade de estabelecer critérios de transformação arbitrários e incomensuráveis entre si. O uso de escalas e testes psicométricos para mensurar a melhora ou piora de sintomas é demasiadamente vulnerável à objeção de que certas técnicas e procedimentos terapêuticos são mais eficientes apenas porque são construídos reversamente a partir de procedimentos de validação, o que não é o caso da psicanálise. Recai-se assim na objeção de que as transformações descritas pela psicanálise são apenas verificáveis no escopo da conceitografia endógena aos psicanalistas ou que dependeremos da apreciação demasiadamente vaga, relativa ou imprecisa fornecida pelos analisantes.

Neste trabalho argumentamos que tais críticas podem ser incorporadas de maneira produtiva pela psicanálise. Isso nos levaria a distinguir duas séries transformativas diferentes operando na psicanálise: (1) transformações estruturais, internas a uma narrativa de sofrimento ou a um tipo clínico que se realizam pela passagem de um tipo de causalidade para outro e (2) transformações de ordem, que se realizam entre tipos clínicos, narrativas de sofrimento ou discursos, implicando uma mudança de ordem entre Simbólico, Imaginário e Real. As transformações estruturais podem ser explicadas pelos critérios clássicos de causalidade: materialidade, forma, matéria ou finalidade. As transformações de ordem requerem causalidades contingentes como automaton e tiché.

A teoria da causalidade, quando se trata de estudos clínicos, não pode ser reduzida à explicação epistêmica de processos independentes, produzidos por uma ontologia em terceira pessoa. O grande divisor de águas neste caso reside no fato de que a causalidade atribuída pelo paciente ou dirimida pelo analista concorrem para a determinação da eficácia ou da transformatividade do caso. Ao contrário dos tipos naturais, as transformações psicoterapêuticas dependem de uma hermenêutica de si, ou seja, de como o sujeito lê, interpreta ou descreve seus próprios sintomas, um critério relativamente refratário aos diagnósticos por convencionalidade. Contudo, este não pode ser um critério desprezível quando se encontra taxas de mais de 40% para melhoras atribuídas ao efeito placebo (Howik e cols, 2013) e equivalências do mais alto grau entre a eficácia de medicação ou de psicoterapia sem geral e de efeito placebo (Rief e cols., 2009). Ora, o efeito placebo depende do que chamamos neste artigo de intromissão de uma hipótese transformativa no interior do tratamento. E sabemos que há hipóteses mais efetivas do que outras.

Outra maneira de conceber como afetos hegemônicos e a expectativa de transformação age sobre a transformação real procede do fato de se pode atribuir ás narrativas de sofrimento uma valência política. Por política devemos entender, neste contexto, parâmetros flutuantes e negociados para nossas expectativas de solução ou redução de conflitos. A teoria dos atos ou dos eventos transformativos, como momentos de descontinuidade e de passagem do impossível ao contingente serviu-nos como exemplificação deste ponto. Se todo sofrimento é performativo, ou seja, se ele produz as condições para sua própria reprodução e confirmação na realidade simbólica da qual ele é constituído, podemos inferir que ele carrega consigo uma teoria da autoreferência ou da auto-performatividade de seus meios que faz parte do próprio entendimento da transformação, estabelecendo os limites e critérios do que é possível e do que é impossível mudar.

Finalmente, devemos considerar que a transformação em psicanálise depende de uma contingência realtiva. Ela não pode ser prevista ou antecipada, mas pode ser reconhecida a partir da incidência temporal do que chamamos de verdade. Tal noção não deve ser entendida em relação ao seu conteúdo proposicional ou seu valor tético de correspondência com o mundo, muito menos com o sentimento ou com a atribuição de transformação. A verdade, neste contexto corresponde a uma experiência compartilhada de reconhecimento da fala em sua capacidade de renovar dimensões de temporalidade. A alteração do registro temporal é também uma alteração de ordem e não necessariamente de estrutura. Ela aponta para momentos ou instantes de subjetivação ou de apropriação do saber em relação ao encontro no qual as duas séries transformativas operam de maneira conjugada. O reconhecimento da contingência temporal talvez esteja indiretamente confirmada pela eficácia de tratamentos mais longos, nos quais a persistência do vínculo é um potencial, mas não necessário, índice de sua qualidade.

As transformações estruturais e as transformações de ordem dependem do reconhecimento da oportunidade contingente (verdade), da variação narrativa de sofrimento (saber), da intromistura da causalidade (objeto a) e da efetuação autoperformativa dos meios (subjetivação), nos levando a ideia de que se existe uma covariância entre os processos transformativos não se pode esperar que todos estejam efetivamente presentes em todos os tratamentos, tornando a comparação entre eles ainda mais complexa e incomensurável.

 

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Submissão em: 05/08/2017
Aceito em: 10/11/2017

 

 

1 "Afirma-se não se considerar de maneira devida, científica uma disciplina, enquanto não matematizada e, talvez eu dê impressão de pensar assim, ao esboçar a psicanálise, uma matemática a Lewis Carol, arriscando-me desse modo, a propor a matematização prematura, não maduro bastante, para proceder." (Bion, 1991, p. 179)
2 Osmyr Gabbi Jr.(1994) trabalhou, a partir de Davidson, a fissura na racionalidade que esta hipótese acaba por induzir, o que faria da psicanálise uma teoria dos atos acráticos cujas premissas seriam (1) a divisão do aparelho psíquico em vários sistemas, (2) que cada sistema organiza o desejo de uma forma e (3) que os atos irracionais (acráticos) resultam do conflito entre os diversos sistemas. Nos interessaria mostrar a incidência ética dessa irracionalidade.

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