Revista Psicologia Política
ISSN 1519-549X ISSN 2175-1390
ARTIGOS
Potências do encontro entre formação e campo da Assistência Social para pensar outra prática psicológica
Strengths of the encounter between training and the field of Social Assistance to think about another psychological practice
Potencias del encuentro entre formación y campo de la Asistencia Social para pensar otra práctica psicológica
Points forts de la rencontre entre la formation et le domaine de l'assistance sociale pour réfléchir à une autre pratique psychologique
Mariana Rodrigues de Sousa Pinheiro OliveiraI; Érica Atem Gonçalves de Araújo CostaII; Paulo Roberto Mendes JúniorIII; Nara Maria Forte Diogo RochaIV
IUniversidade Federal do Ceará. mariana.psicoufct9@gmail.com
IIUniversidade Federal do Ceará. ericaatem@yahoo.com.br
IIIUniversidade Federal do Ceará. paulo.mendes09@hotmail.com
IVUniversidade Federal do Ceará. narafdiogo@gmail.com
RESUMO
Neste relato de experiência refletimos sobre a inserção do psicólogo em Centros de Referência da Assistência Social - CRAS, enquanto tema-objeto das experiências de ensino-aprendizagem vinculadas às disciplinas de práticas integrativas. Esse momento formativo foi revisitado a partir das contribuições de uma Psicologia social crítica em suas interfaces com a Psicologia comunitária e a Psicologia política. Metodologicamente, analisamos dados referentes aos diários de campo de uma aluna e autora do artigo, cujas situações funcionaram como gatilho, de modo que o tema da formação e da atuação em psicologia no encontro com a Assistência fosse analisado em seus desafios. Apontamos a relevância das experimentações entre estudante, professoras e profissional no que tange a uma psicologia fruto da tensão produtiva entre regulamentações profissionais, documentos diretrizes, particularidades do contexto de atuação, dificuldades institucionais e o seu processo de singularização na formação em psicologia, atento à escuta presente e atuante junto a um projeto coletivo de Psicologia.
Palavras-chave: Prática, Psicologia, Assistência, Subjetividade.
ABSTRACT
In this report of experience we reflect on the insertion of the psychologist in Reference Centers of Social Assistance - CRAS, as an object of teaching-learning experiences linked to the disciplines of integrative practices. This formative moment was revisited from the contributions of a critical social psychology in its interfaces with community psychology and political psychology. Methodologically, we analyzed data related to the field diaries of a student and author of the article, whose situations had a trigger function, so that the theme of training and acting in psychology in the encounter with the Assistance was analyzed in its challenges. We point out the relevance of the experiments between student, teachers and professionals regarding a psychology fruit of the productive tension between professional regulations, guidelines, particularities of the context of action, institutional difficulties and their process of singularization in psychology training, attentive to listening present and active together with a collective project of Psychology.
Key words: Practice, Psychology, Assistance, Subjectivity.
RESUMEN
En este relato de experiencia reflexionamos sobre la inserción del psicólogo en Centros de Referencia de la Asistencia Social - CRAS, como tema-objeto de las experiencias de enseñanza-aprendizaje vinculadas a las disciplinas de prácticas integrativas. Este momento formativo fue revisitado a partir de las contribuciones de una Psicología social crítica en sus interfaces con la Psicología comunitaria y la Psicología política. Metodológicamente, analizamos datos referentes a los diarios de campo de una alumna y autora del artículo, cuyas situaciones funcionaron como gatillo, de modo que el tema de la formación y de la actuación en psicología en el encuentro con la Asistencia fuera analizado en sus desafíos. En el presente trabajo se analizan los resultados obtenidos en el análisis de los resultados obtenidos en el estudio de los resultados de la investigación. presente y actuante junto a un proyecto colectivo de Psicología.
Palabras clave: Práctica, Psicología, Asistencia, Subjetividad
RÉSUMÉ
Dans ce rapport d'expérience, nous réfléchissons à l'insertion du psychologue dans les centres de référence d'assistance sociale (CRAS), en tant qu'objet-objet d'expériences d'enseignement-apprentissage liées aux disciplines des pratiques intégratives. Ce moment de formation a été revisité des contributions d’une psychologie sociale critique dans ses interfaces avec la psychologie commu-nautaire et la psychologie politique. Méthodologiquement, nous avons analysé des données relatives aux journaux de terrain d’un étudiant et de l’auteur de l’article, dont les situations ont fonctionné comme des déclencheurs, de sorte que le thème de la formation et de l’action de la psychologie à la rencontre de l’Assistance a été analysé. Nous soulignons la pertinence des expériences entre étudiants, enseignants et professionnels concernant une psychologie fruit de la tension productive entre réglementations professionnelles, directives, particularités du contexte d’action, difficultés in-stitutionnelles et leur processus de singularisation dans la formation en psychologie, à l’écoute pré-sent et actif avec un projet collectif de psychologie.
Mots-clés: pratique, psychologie, assistance, subjectivité.
A Inserção da Psicologia no Campo da Assistência Social: Um Começo
Enquanto prática profissional, a Psicologia no Brasil é um campo recente, sobretudo no que concerne à atuação em espaços que estejam fora do âmbito das três grandes áreas de atuação psi que se firmaram historicamente como campos de maior legitimidade: a clínica, a Escolar e a Industrial. De acordo com Neto (2004), em resposta a uma hegemonia da clínica na formação do psicólogo, a ênfase no social ganha adesão desde a década de 1970.
Consideramos que o campo da Assistência se mostra como um novo desafio e uma oportunidade de engajamento em áreas com um apelo mais "social". Tomamos o social como um setor particular construído historicamente. Segundo Gilles Deleuze, no prefácio à obra A Polícia das Famílias (2001) de Jacques Donzelot, o social se apresenta como um domínio híbrido que se encontra no entrecruzamento e na relação com diversos outros setores (público e privado; judiciário e administrativo; na relação com os costumes; a riqueza e a pobreza; a cidade e o campo; a medicina, a escola e a família).
Para vislumbrar o contexto de inserção do profissional psicólogo na política de Assistência Social, especificamente, no Centro de Referência à Assistência Social - CRAS é salutar considerar como essas políticas se configuraram historicamente. Segundo Melo (2011), "a assistência social saiu do âmbito das práticas caritativas e passou a ser considerada um direito, sendo o Estado obrigado, constitucionalmente, a garantir os mínimos necessários a uma vida digna". (p. 41). Há uma diferenciação entre o que é assistencialismo e assistência, em que o primeiro teria um caráter de filantropia ou caridade e o segundo comporta uma discussão a respeito de direitos, justiça social e equidade. Contudo, essas duas facetas muitas vezes se confundem nos territórios de ação dos CRAS, localidades periféricas, cuja população empobrecida é submetida a uma realidade de violência constante, vinda, sobretudo, das omissões do poder público em garantir condições básicas para a vida humana. A psicologia foi até bem pouco tempo de acesso exclusivo daqueles que podiam pagar por este serviço especializado e individualizado e a partir de 1960, 1970, questiona-se, inclusive em sua formação, a quem serve sua práxis. A partir daí, organizam-se iniciativas articuladas aos campos da Saúde e da Educação, bem como aos movimentos sociais, que sistematizadas no meio acadêmico, foram permitindo aos psicólogos compreender modos possíveis de estar junto aos menos favorecidos. Temos, portanto que, "a Assistência Social representa um recente cenário para atuação dos profissionais da Psicologia e só foi possível devido ao seu reconhecimento como Política Pública que superou o modelo assistencialista". (Silva & Cezar, 2013, p. 81). Isto permitiu aos profissionais da psicologia pleitear uma vaga nas equipes multiprofissionais destes equipamentos de modo crítico e afirmativo dos direitos sociais, bem como alimenta a formação em psicologia com a experiência já constituída nos embates deste campo buscando melhor preparar o futuro profissional.
As visitas e as observações como práticas formativas no curso de Psicologia levam o (a) estudante a confrontar-se com a necessidade de pensar tanto a prática da psicologia como instituição e os modos de subjetivação possíveis, uma vez que entendemos serem esses encontros espaços de formulação de demandas historicamente situadas, sendo necessárias nesses interstícios a constante desconstrução e invenção do fazer psicológico (Dutra, 2004). Ao problematizar as relações entre teoria-prática neste lócus somos impelidos a perceber que é preciso questionar como tem acontecido tais práticas.
O CRAS como um lugar para/da Psicologia
A inserção do psicólogo em espaços de atuação não é um debate novo, como apontado anteriormente essa discussão existe desde a década de 1970. Entendemos o campo social como constructo histórico no qual se estabelecem as relações humanas, como espaço constituído e constituinte de subjetividade. As políticas sociais visam implementar ações que diminuam a tensão social, através do acesso aos direitos (Ximenes; Paula; Barros; 2009). Diante desse desafio ético-político abrangente, os autores sinalizam a condição emblemática da atuação da psicologia no CRAS, referenciando suas recentes conformações legais e a possibilidade de profissionais atuarem nas equipes que conformam o CRAS. As autoras supracitadas colocam ainda que como em todas as áreas, a Assistência Social levanta questões que incluem não apenas a problematização acerca do fornecimento da proteção social básica, como também as formas como assistentes e assistidos se relacionam. É notório que suprir as demandas sociais não é somente tarefa da Assistência ou enquanto campo vinculado aos seus espaços, da Psicologia. Todavia ao trabalhar com essas demandas acreditamos que é preciso observar a forma como elas se configuram e as potencialidades e limites de nossa prática, que se dá entre e nas relações dialéticas inerentes a nossa realidade. Mesmo com as diretrizes atribuídas aos profissionais pelas instituições, temos de atuar de acordo com as circunstâncias e nosso cotidiano. É aqui que é permitido certa medida do exercício do criar. Pois, mesmo que sejam norteadas por certos princípios é importante versatilidade ao lidar com diferentes conjunturas, tendo que cada ação ocorre de maneira única e por isso deve ser contextualizada.
É assim que, através da atenção à demanda e da desconstrução do constructo teórico estrito, práticas psicológicas em instituições têm surgido e podem constituir-se como invenções [grifos nossos] que reconduzem não somente ao fazer clínico do psicólogo, como também resgatam a investigação de um saber e conhecimento mais condizente com a experiência do homem no mundo. (Dutra, 2004, p. 243).
A desconstrução e reinvenção de certas práticas garantem não apenas o deslocamento dos espaços tradicionais como também a superação de posturas normatizadoras advindas da herança do assistencialismo. Isso é possível, pois "apesar de sugerir diretrizes metodológicas para o trabalho não há uma orientação específica para cada categoria profissional" (Ximenes & cols., 2009, p. 90). Os profissionais da equipe do CRAS, independente da formação, são denominados técnicos. Embora esse fato possa sugerir que não há diferenciação entre as atuações, na prática as atividades são desenvolvidas de maneira diferenciada. Cada técnico embasado em sua história de vida, suas vivências, sua formação profissional e todas as demais idiossincrasias experienciará o contato com o campo de maneira ímpar. Dessa forma, a disciplina de prática integrativa termina por produzir um saber que deriva do sentir na pele como é o contato com aqueles que não só são assistidos por essas políticas públicas como também afetados por nossa prática. A observância do verbo afetar nos leva a pensar que essas práticas não se referem tão somente a atingir alguém, como também envolve a dimensão dos afetos e sentimentos. O trecho do diário de campo (registro das vivências de uma das autoras quando da visita, atividade relacionada à disciplina) aproximanos do que chamamos de sentir na pele. Essa expressão pareceu-nos interessante para apontar os enfrentamentos do psicólogo no cotidiano, seus dilemas, sofrimentos assim como os impactos para o profissional e para o estudante que aprende com ele e com a sua escuta.
Ao chegar ao local que se trata de um dos bairros mais violentos da cidade, tivemos dificuldade de localizar a residência. Uma das moradoras nos auxiliou a chegar ao endereço onde esse senhor residia. Ao chegar notamos que a moradia foi construída entre duas casas fazendo uso das paredes dos vizinhos como apoio para a cobertura (que era composta por uma estrutura de madeira recoberta com lonas e tábuas for mando uma espécie de telhado) e a fachada era uma cerca de estacas. Ao adentrar vimos que o espaço continha apenas um compartimento e uma espécie de quintal aos fundos. O sujeito que buscávamos encontrava-se sentado em uma cadeira, esta va esquálido, vestindo apenas calções e cobrindo o rosto com a aba de um boné, nos foi informado que ele é deficiente visual. Ele nos disse que morava sozinho, pois sua mãe havia falecido há alguns anos e a orientadora social que nos acompanhou informou que após a morte da mãe ele provocou acidentalmente um incêndio que destruiu a antiga casa. Parecia encabulado ao falar com o profissional do CRAS (psicólogo) e informou que a casa não estava arrumada porque uma senhora que o ajuda na arrumação não havia vindo naquela semana. Na casa havia apenas uma cadeira e um colchão, tinha lixo por toda parte e por não ter encanação exalava um forte odor. (Diário de Campo, 03 de Dezembro de 2015).
Como citado anteriormente, existem dificuldades inerentes à organização do trabalho que finda por interferir na ação do profissional (grande número de famílias, ausência de transporte, mudanças na política de assistência etc.). No entanto, percebemos que mesmo diante dos aspectos burocráticos e da precariedade da situação, há diferenças quando a abordagem considera as peculiaridades de cada situação, a opinião do atendido etc.
Após ver as condições de moradia do sujeito, o técnico seguiu alguns procedimen tos de praxe, fotografou o local e preencheu um formulário com os dados pessoais do assistido para documentar. Disse a ele que infelizmente a prefeitura não oferecia mais materiais de construção para a confecção de casas, mas estava levando pes soas em situação vulnerável como a sua para conjuntos habitacionais. O sujeito visitado nos disse que mesmo em suas atuais condições não pretendia deixar de viver em sua casa, pois morava no bairro desde criança e por já estar habituado ao lugar e às pessoas não desejava se mudar. O profissional disse que embora considerasse que a mudança seria a alternativa mais viável respeitaria sua decisão de per manecer em seu local de origem. (Diário de Campo, 03 de Dezembro de 2015).
As vivências, proporcionadas pelo ambiente acadêmico, a exemplo do contato dos alunos com as instituições, permitem que o estudante sinta na pele os enfrentamentos do profissional no cotidiano, seus dilemas e angústias diante da questão ético-política de lidar com necessidades subjetivas das pessoas atendidas e com os imperativos da política que diz visar o bem estar daquele sujeito, desenhando uma tênue linha entre o cuidado e a tutela. As visitas domiciliares (tal como vimos nos trechos do diário de campo) são vivenciadas pelo profissional assumindo a dimensão do afeto, daquilo que o incomoda e o implica no trabalho. Aqui se articula a noção espinosiana apontada por Sawaia (2009) de afeto (affectus/affections), em que o corpo além de deter o poder de ser afetado enquanto emoções e sentimentos tem o poder de ação, pensamento e desejo sobre aquilo que sente. Temos, portanto, que não só na visita realizada como na prática cotidiana dos profissionai psicólogos, as histórias, imagens, texturas, cheiros provocam os sentidos do sentir e do significar a todo tempo e isso influencia o seu fazer.
A noção de sofrimento ético-político (Sawaia, 1999) evoca uma outra psicologia, concebida não a partir de uma visão intrapsíquica da subjetividade. Como aponta Bertini (2014), essa categoria tem sido utilizada para evidenciar um sofrimento que deriva não de um desajustamento do sujeito, mas da falta de reconhecimento social e da injustiça que o oprime. Sawaia (2009) ao utilizar argumentos de autores como Vigotski e Espinosa, coloca ainda a subjetividade humana como algo constituinte da objetividade social. Nesse sentido, a perspectiva da Psicologia sócio-histórica rompe a dicotomia entre singular/social, compreendendo além do sofrimento, a vontade de "ser feliz e recomeçar ali onde a esperança parece morta" (2009, p. 365). Mesmo em uma configuração social desfavorável os sujeitos têm a potência a partir da consciência social para resistir ao que se mostra a eles como insuperavelmente opressor.
Vimos pelas experiências e encontros entre a Psicologia e a Assistência apontadas aqui que a escuta do sujeito aparece como atitude ética, pois sua história de vida constitui a maneira como age, no seu sentido de pertencimento. Como técnico, o olhar do psicólogo busca promover o acolhimento das singularidades. Como afirma Mansano (2009), a subjetividade aqui se mostra como algo em constante produção a partir dos encontros que se vive com o outro. Em outras palavras, o ouvir o que o sujeito fala sobre si mesmo, reafirma a especificidade da formação em psicologia, entendendo o usuário da política como ser ativo sobre a produção da própria subjetividade em relação permanente com a realidade onde se insere, e portanto, central no desenho de possibilidades para si mesmo e para o mundo.
Alinhavando as Experiências e Dizeres
Ao pensar sobre as especificidades da atividade junto a essas instituições, parece necessário construir espaços e imagens dinâmicos do saber psicológico, pois a desconstrução de "antigas" ideias cristalizadas sobre o saber-fazer psi é, ao mesmo tempo, o que possibilita sua inserção em outros espaços de atuação como também os meios para combate de tais visões. Para esse combate não se deve perder de vista que a Psicologia também está institucionalizada, ou seja, está dada a priori como um campo do saber que diz sobre o sujeito. Isso torna imprescindível uma postura crítica e ao mesmo tempo cautela para que nossa prática não se torne normatizadora ao subjugar a subjetividade, tendo que em sua dimensão institucional carrega a marca de um saber destinado a "definir o que e como as coisas devem ser feitas" (Guirado, 2009, p. 323).
Percebemos aqui como o psicólogo pode se colocar como agente em promoção do respeito às formas de subjetivação (compreendida como algo em constante construção através das relações) em diferentes espaços, e que embora a profissão possua suas especificidades é possível inserir a prática psicológica em diversas locais (não apenas em clínicas, escolas etc). É perceptível então que esse modus operandi pré-estipulado dado pelo local-comum da profissão vem mudando já que a Psicologia está se inserindo aos poucos em novos espaços, Guirado (2009) coloca ainda que:
Buscamos caracterizar o contexto do exercício profissional da psicologia, em que foi se constituindo e firmando uma modalidade de intervenção que saia do âmbito dos atendimentos clínicos, das pesquisas laboratoriais, das escolas, das empresas, como ocasião de psicodiagnósticos, seleções e treinamentos, que saia, ao mesmo tempo, do perímetro legal que havia sido conquistado, estendendo-se e produzindo outros sentidos (extensões e intenções), constituindo uma modalidade de intervenção que, com isso, passa a se dizer institucional ao ser exercida junto a instituições. (p. 326)
Ao ocupar um lugar dentro dessas instituições (de assistência, por exemplo), prestamos serviços a um público que solicita o nosso saber para solucionar seus impasses. Embora pareça que o papel do técnico possa subjugar as formações de cada um, pois a função dos funcionários desses espaços não é delimitada pelo exercício de sua profissão de formação e sim pelo papel que o agente adquire para o público assistido, cada um terá um olhar diferenciado sobre os fenômenos sociais. Trazemos aqui um trecho de entrevista realizada com uma psicóloga coordenadora do CRAS, acerca dessa questão:
A política de Assistência Social dá uma amplitude de ação que as pessoas não que rem, as pessoas querem limitar. Querem ser diferentes e não desejam que a possi bilidade de ação seja a mesma. Há uma necessidade de limitar, diferenciar. Há uma amplitude maior para inventarmos esse espaço que estamos ocupando. Para criar formas de atuação para esse espaço que se ocupa. Vejo na contramão disso, nessa amplitude que a política dá a necessidade que algumas pessoas têm de demarcar território, de desenhar uma linha para dizer: - "Olha, eu só vou até aqui". Eu não sei o quanto isso é interessante agora acho que é uma discussão que deve ser feita, mas tenho muito receio dos efeitos disso exatamente por essa preocupação de que mais uma vez coloquem o psicólogo nesse lugar de alguém que só consegue fazer intervenções a nível individual e que acabe transformando questões sociais em questões individuais. Que vá psicologizar questões que são muito maiores, tenho medo desse debate desembocar aí. Não que ele não seja importante, não que não seja importante esse debate de "quais são os efeitos da gente fazer essa divisão?". Mas, eu não quero me apressar e dizer que o ideal seria delimitar. (Entrevista, 11 de março, 2016).
A prescrição para o técnico não se configura como algo ruim e restritivo à prática. Na medida em que não se estabelecem fronteiras entre os profissionais, pode se facilitar uma atuação conjunta e participativa embora cada um possua um discurso.
Cabe antes destacar que toda instituição basicamente, se constitui na, e pela relação de agentes institucionais com clientes dessas instituições. Estes últimos demandam um determinado serviço e os primeiros se destinam a prestá-lo. É nessa relação que se define a tensão entre posse e alienação do objeto institucional. Uma relação de poder, portanto, um jogo de forças poder/resistência que não se dá senão no e pelo discurso. (Guirado, 2009, p. 327)
Aqui vemos o cuidado que devemos ter ao prestar assistência, tendo que nessa relação de forças enquanto assistentes sociais, psicólogos, pedagogos falamos de um lugar e através de nossa postura podemos porventura impor nosso saber aos indivíduos que nos procuram. Ainda assim, segundo a autora Marlene Guirado é preciso considerar "que os discursos são dispositivos-ato (por) que supõe para seu exercício uma posição, um lugar prenhe de palavras para ouvir e para falar". (Guirado, 2009, p. 328)
O psicólogo - mas, não apenas ele - mostra que conquista o espaço para uma prática voltada ao seu campo na medida em que promove meios que facilitem as condições de subjetivação na contemporaneidade através do desenvolvimento de ações fundamentadas em princípios éticos de respeito à diversidade. É fato que este caminho não é fácil, levando em conta o atual cenário sociopolítico e as condições das instituições públicas. Finalizando com Mansano (2009), temos que um estudo em Psicologia baseado apenas na construção de conceitos é inoperante, pois precisa ser acompanhada também da ação política, onde "isso implica conceber a subjetividade, os modos de subjetivação e o sujeito como construções que não se fecham em uma entidade apaziguada" (Mansano, 2009, p. 116-117). Fica aqui o desafio aos profissionais que se proponham a enfrentar estes impasses, fazendo de suas atitudes ferramentas contra práticas opressivas insistentemente reproduzidas nestes cenários.
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Submetido em: 20/08/2017
Aceito em: 01/10/2018