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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo maio/ago. 2018
ARTIGOS
Psicologia, Políticas do Corpo, do Gênero e das Sexualidades: capturas e resistências do cotidiano
Psychology, Politics of the Body, Gender and Sexualities: captures and resistances of everyday life
Psicología, Políticas del Cuerpo, de Género y de las Sexualidades: capturas y resistencias de la cotidianidad
Politiques du Corps, du Genre et des Sexualités: captures et résistances du quotidien
Daniel Kerry dos SantosI; Marília dos Santos AmaralII; Maria Juracy Filgueiras ToneliIII
IUniversidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. dakerry@gmail.com
IIFaculdade CESUSC. mariliapsico@hotmail.com
IIIUniversidade Federal de Santa Catarina. juracy.toneli@gmail.com
RESUMO
Este artigo discute os modos como a cisheteronorma regula os corpos, o gênero e as sexualidades e funciona como um sistema que normaliza, exclui e extermina as diferenças. Apresenta-se um debate sobre a produção histórica da norma e seus efeitos na gestão das populações e nas governamentalidades modernas. Segue-se uma problematização sobre como a precarização da vida, fundamentada nas normas de sexo, de sexualidade e de gênero, pode ser tomada como ponto nevrálgico para se repensar a política. A partir da análise dos dispositivos da sexualidade e do gênero, sugere-se uma cartografia dos agenciamentos que produzem efeitos concretos no cotidiano, como a produção da materialidade dos corpos, a (in)inteligibilidade de gênero e das sexualidades, a patologização das multiplicidades sexuais e de gênero, a violência, a exclusão e a estigmatização das experiências dissidentes. Sustenta-se, por fim, uma psicologia crítica que esteja atenta a esses regimes de verdade e de poder.
Palavras-chave: Gênero, Sexualidade, Corpo, Violência da Norma, Psicologia Política.
ABSTRACT
This paper discusses the ways in which cisheteronormativity regulates bodies, gender and sexuality, and functions as a system that normalizes, excludes, and exterminates differences. It is presented a debate on the historical production of the norm and its effects on management of the population and on modern governmentality. It is problematized how the precarity of life, based on sex, sexuality and gender norms, could be taken as a key element to rethink politics. From the analyses of the dispositif of sexuality and gender, it is suggested a cartography of the assemblages that produce concrete effects, like the production of the materiality of the bodies, gender and sexual (un)intelligibilities, the pathologization of gender and sexual multiplicities, the violence, the exclusion, and the stigmatization of dissident experiences. Finally, it is defended a critical psychology that must be aware of these regimes of truth and regimes of power.
Key-words: Gender, Sexuality, Body, Norm Violence, Political Psychology.
RESUMEN
El artículo discute los diversos modos como la cisheteronorma regula los cuerpos, el género y las sexualidades, funcionando como un sistema que normaliza, excluye y extermina las diferencias. Se presenta un debate sobre la producción histórica de la norma, sus efectos en la gestión de las poblaciones y en las formas de gobierno modernas. Se problematiza, además, cómo la precarización de la vida, fundamentada en las normas de sexo, sexualidad y género, pueden ser tomadas como puntos neurálgicos para pensar la política. A partir del análisis de los dispositivos de la sexualidad y del género, se sugiere una cartografía de los agenciamientos que producen efectos concretos en la cotidianidad, como la producción de la materialidad de los cuerpos, la (in)inteligibilidad de género y de las sexualidades, la patologización de las multiplicidades sexuales y de género, la violencia, la exclusión y la estigmatización de las experiencias disidentes. Se explicita, finalmente, la necesidad de una psicología crítica que se mantenga atenta a esos regímenes de verdad y de poder.
Palabras claves: Género, Sexualidad, Cuerpo, Violencia de la Norma, Psicología Política.
RÉSUMÉ
Cet article traite de la manière dont la cishétéronormativité régule les corps, le genre et les sexualités et fonctionne comme un système qui normalise, exclut et extermine les différences. On présente un débat sur la production historique de la norme et ses effets sur la gestion des populations et sur gouvernabilités modernes. On observe ensuite une problématisation sur de quelle manière la précarité de la vie, basée sur les normes de sexe, de sexualité et de genre, peut être considérée le point névralgique pour repenser la politique. À partir de l'analyse des dispositifs de la sexualité et du genre, il est suggéré une cartographie des assemblages qui produisent des effets concrets dans la vie quotidienne, tels que la production de la matérialité des corps, l'(in)intelligibilité du genre et des sexualités, la pathologisation des multiplicités sexuelles et du genre, la violence, l'exclusion et la stigmatisation des expériences dissidentes. On soutient enfin une psychologie critique attentive à ces régimes de vérité et de pouvoir.
Mots-clés: Genre, Sexualité, Corps, Violence de la norme, Psychologie Politique.
Introdução
Este artigo, produzido no contexto do IX Simpósio Brasileiro de Psicologia Política (2016), para comunicação na mesa Gênero, sexualidades e as dimensões da política no cotidiano tem a intenção de assinalar alguns pontos a serem problematizados no que diz respeito à (re)produção do sistema sexo/gênero pelos discursos da biomedicina e do Estado. Trata-se de discursos normativos que mantêm a racionalidade binária moderna que, por sua vez, separa de forma normativa e dicotômica corpos legitimados como de mulheres e de homens, considerados inteligíveis, normais, naturais. Aos demais - os despossuídos do estatuto de sujeito e de indivíduo - a cidadania de "segunda classe" e precarizada, as diversas formas de vulnerabilização e violência.
Ensaiamos aqui uma cartografia dos agenciamentos coletivos de enunciação1 que fazem proliferar injunções das normas que maquinam capturas das multiplicidades sexuais, corpóreas e de gênero. Estamos nos inspirando em uma perspectiva deleuzo-guattariana, que concebe a cartografia como um dos princípios do rizoma. De acordo com Deleuze e Guattari (2009), a imagem do rizoma é evocada para se contrapor aos esquemas estruturais-arborescentes. Tais modelos preconizam que, para conhecer o socius, seria necessária a fixação de um único ponto de partida e um ponto de chegada ou, ainda, a delimitação de explicações causais/unívocas em relação às multiplicidades dispersas nas relações sociais. O rizoma, diferentemente dos sistemas arborescentes, não comportaria apenas traços linguísticos, mas semióticas de todas as ordens: éticas, estéticas, afe(c)tivas, eróticas, corpóreas, etc. "Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais" (Deleuze & Guattari, 2009, p. 16). Nesse sentido, não se trata de buscar por origens, por uma essência profunda de um fenômeno, mas sim de se implicar e embarcar nas superfícies sobre as quais se constituem realidades psicossociais (Rolnik, 2007). Diante desses princípios, apostamos em uma estratégia cartográfica que nos permite desenhar diagramas de poder. O diagrama expõe as relações de forças que constituem o poder; é o mapa, a cartografia, co-extensiva a todo campo social (Deleuze, 2005b).
É evidente que, considerando que nesse texto estamos nos debruçando apenas sobre alguns fragmentos de uma complexa trama que produz gênero, sexualidades e regimes de subjetivação, não daremos conta de todas as derivas desse jogo de forças. Isso não minimiza nossa investida metodológica cartográficorizomática, pois, seguindo as pistas de Deleuze e Guattari (2009), buscamos analisar algumas estratégias discursivas e enunciativas nos seus movimentos de descentramentos de registros (por exemplo, destacando as mudanças nos mecanismos de poder centrados na lei para o domínio da norma; ou, ainda, problematizando como as normas sexuais e de gênero são capazes de produzir vidas precárias, (re)definindo os contornos de humanidade conferida - ou não - aos corpos).
Se talvez seja impossível pensar em vida humana para além da norma (e seu duplo caráter de assegurar a inclusão no tecido social e de normalizar/normatizar excluindo), torna-se imperioso, no entanto, analisar de qual/quais sistema/s normativo/s estamos falando, suas regras e modos de operar, uma vez que a cisheteronorma exclui, silencia, desprovê, violenta, extermina. Seu imperativo alija do estatuto do sujeito e do humano os corpos considerados ininteligíveis ao resistirem a esse ordenamento. Estamos falando, então, de uma matriz heterossexual e cisgênera e sua racionalidade subjacente que classifica em mais ou menos humanos - não humanos e inumanos; mais ou menos normais - se-não em anormais; mais ou menos decentes, pessoas de bem - senão criminosas/delinquentes.
Pensar a norma, portanto, é pensar em regimes de governamentalidade e suas racionalidades. Ao direcionarmos nosso olhar e crítica aos agenciamentos que (re)atualizam políticas conservadoras e modelos neoliberais de gestão das populações, é possível identificarmos como determinadas vidas são vulnerabilizadas e precarizadas, para que outras vidas continuem a perpetuar o modus operandido instituído. Assim, é no atual quadro político, econômico e social que devemos localizar e dar visibilidade às engrenagens biopolíticas que fazem operar a lógica de que alguns sujeitos devem viver e outros devem ser deixados à deriva da precariedade, da vulnerabilidade e da morte. Nesse caso, não se trata apenas da morte literal, mas também, e sobretudo, da morte social, do apagamento da condição de sujeito de direitos e do silenciamento de vidas consideradas de menor ou sem valor.
Já há vários anos temos desenvolvido atividades de ensino, pesquisa e extensão no Núcleo Margens: modos de vida, família e relações de gênero, vinculado ao Departamento de Psicologia da UFSC. Tais ações vêm nos permitindo constituir um acúmulo de informações, reflexões e debates que problematizam como as instituições e campos discursivos distintos, tais como o judiciário, o legislativo, o executivo, as políticas públicas, a biomedicina, o conservadorismo e o fundamentalismo religioso, têm se enlaçado na produção de dispositivos que mantém e retroalimentam a cisheteronorma. Diante de nossas análises da atual conjuntura política, temos nos esforçado em construir uma psicologia crítica que esteja atenta e que resista aos mecanismos do poder que atravessam os regimes de subjetivação contemporâneos.
Percebemos que - em perspectivas locais e globais das políticas sexuais e de gênero - homens e mulheres transexuais, travestis e pessoas trans não bináries são os/as sujeitos/as mais afetados/as pelos efeitos das diversas facetas da violência: física, simbólica, institucional, psicológica, de Estado, familiar. Esse quadro de violência se sustenta a partir da manutenção, repetição e reprodução de enunciados, práticas e discursos transfóbicos, legitimados, por sua vez, a partir de lógicas cisnormativas. Em nossas experiências, testemunhamos relatos e narrativas que indicam que a transfobia opera a partir de diversas estratégias, desde as mais sutis e dissimuladas até as mais escancaradas e explícitas.
Nesse contexto, os efeitos produzidos pela cisnorma são múltiplos, porém gostaríamos de evidenciar algumas de suas expressões nos contextos intrafamiliares, nas instituições de educação, de saúde e no âmbito jurídico por demonstrarem formas nas quais não apenas a ficção regulatória da coerência sexo-gênerocorpo se manifesta como verdade, mas por tornarem visível o modo como a norma se instaura como violência sobre as vidas e extermínio cotidiano da diferença.
No contexto intrafamiliar, os relatos de abandono, negligência e expulsão do ambiente doméstico familiar, bem como violências físicas, cárcere/privação de liberdade e estupro corretivo são algumas das práticas vivenciados por jovens LGBT que nem sempre têm condições físicas e/ou psíquicas para denunciá-las ou buscar ajuda, como indicam algumas pesquisas recentes (Schulman, 2010; Amaral, 2012; Santos & Teixeira-Filho, 2014).
Já os espaços escolares - aparentemente lugares de convívio e aprendizagem com a diversidade e a diferença - são narrados pelas pessoas LGBT como territórios onde sistematicamente acontecem práticas hostis, discriminatórias e preconceituosas advindas principalmente dos/as gestores/as e educadores/as, culminando na insustentável permanência desses sujeitos em instituições educacionais. Soma-se a isso, a falta de políticas de educação que incorporem e efetivem o debate sobre diversidades de gênero e sexuais nas escolas. Ausência essa, endossada pelo atual cenário brasileiro de amplos retrocessos no campo da educação, como bem demonstra a retirada desses temas dos planos municipais e estaduais de educação.
No que se refere diretamente às pessoas travestis e trans, o contexto escolar por vezes tornar-se perigoso e angustiante, pois são comuns violências cotidianas que vão além das práticas já mencionadas, passando também pelo não reconhecimento do uso do nome social, pela negação do acesso ao banheiro de acordo com seu gênero e, consequentemente, pelas expulsões escolares, pois neste caso não se trata de evasão escolar, e sim de um ciclo de violações de direitos e práticas discriminatórias que empurram as travestis e pessoas trans para fora das instituições de educação formal. Nesse sentido, destacamos a permanência da institucionalização velada da negação do direito à educação e da "conivente assepsia" das instituições que não suportam aquelas/es que desestabilizam as normas de gênero. Um dos efeitos de tais práticas instituídas é a iminente exclusão do mercado formal de trabalho, marcada uma série de entraves e impossibilidades nas trajetórias de vidas de travestis e pessoas trans.
No âmbito das políticas de saúde, a violência institucional se produz na dificuldade de acesso à saúde integral. As travestis e pessoas trans, sobretudo, experienciam uma lógica excludente e marginalizante mantida pela racionalidade biomédica patologizadora e disfarçada sob as vestes das "burocracias necessárias". Esses impasses são observados no protocolo imposto na política do processo transexualizador do SUS, nos obstáculos para a realização da hormonioterapia pela atenção básica na rede de saúde pública, e, de forma mais problemática, na centralidade e no imperativo de diagnóstico de psicopatologia como condição de atendimento e assistências às travestis e pessoas trans.
Nesse sistema extenso e ramificado de ajustar, adaptar e normatizar os corpos e o gênero, a burocratização e a demora dos processos jurídicos para a retificação de registro civil (nome e sexo) - processo que beneficia diretamente as travestis, os homens e as mulheres trans que desejam retificar seus documentos de modo que esses estejam em acordo com sua autodeterminação de gênero - demonstram o modo como o campo jurídico também pode ser conivente com a vulnerabilização das pessoas LGBT. Da mesma maneira, a falta de preparo das instituições de segurança pública para lidar com as diversidades sexuais e de gênero e as frequentes reproduções de violências simbólicas e físicas ocorridas nos sistemas penitenciários, nas delegacias e nos espaços públicos, evidenciam as parcas compreensões acerca dos fenômenos das violências de gênero e violências sexuais na condução de investigações sobre transfeminicídios, feminicídios, transfobias, homofobias e lesbofobias.
Em suas formas mais letais, a violência normativa incide sobre os corpos que subvertem a cisgeneridade e a heterossexualidade instituídas como compulsórias, desde as reiteradas formas de negação de direitos até os assassinatos brutais, diariamente experienciados por travestis e mulheres trans. Sobre esse fato, é importante mencionar que tais dados se referem a mortes contabilizadas por projetos e organizações não-governamentais por meio de notícias da imprensa e de informações recebidas via redes sociais. Ou seja, esses acontecimentos sugerem o quanto a realidade é ainda mais cruel. Assim, observamos que a ausência de dados "oficiais" demonstra que as vidas e as mortes de travestis e transexuais não são contabilizadas e oficialmente reconhecidas, e, portanto, não fazem parte das estatísticas que produzem "demanda" às políticas públicas (Toneli & Amaral, 2013).
Para além das impossibilidades de acesso aos direitos, da garantia de cidadania e do apagamento das violências letais, as técnicas de normatização das vidas e normalização das sexualidades e do gênero atuam no Estado, também como forma de lei e/ou projetos de lei. Um exemplo atual que destacamos é o Projeto de Lei nº 6583, de 2013, do Sr. Anderson Ferreira, que "dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências", nos quais se identificam os enunciados de base fundamentalista e religiosa que defendem a constituição da família por um homem e uma mulher como única forma legal e possível de garantias de direitos assegurados pelo Estado brasileiro (Brasil, 2013). Trata-se claramente de uma proposta de ordenamento do tecido social brasileiro ancorada na matriz cishetero-normativa. O que isso significa e quais seus impactos na vida das pessoas? Em primeiro lugar, legitima um sistema de exclusão em que aquelas que não se adequam à cisheteronorma não podem legalmente constituir família. Com isso, não têm direitos assegurados à herança, pensão, plano de saúde, licença para acompanhar cônjuge, adoção e licença maternidade/paternidade, dentre outros direitos assegurados aos demais cidadãos e cidadãs.
Essa breve e inconclusa lista de alguns dos efeitos da cisnorma e da transfobia que estruturam nossa organização societária indica que o corpo, o gênero e as sexualidades se constituem como importantes dimensões no plano da política, de modo que negarmos ou silenciarmos sua urgência no debate público significaria, mais uma vez, pactuarmos com as normas excludentes dominantes.
Como se nota, podemos facilmente constatar os efeitos das normas na tutela, no ajustamento, na massificação, na exacerbação da violência e no controle dos corpos. Porém, não podemos deixar de entrever que mesmo diante de tais máquinas de captura e das complexas redes de poder, há sempre, à espreita, movimentos de possíveis, de agência, de possibilidades de construção de práticas de resistência. Conforme nos lembra Peter Pál Pelbart (2016, p. 13), o estrangulamento biopolítico pede brechas, de modo que os corpos passam a constituir agenciamentos afirmativos "para reativar nossa imaginação política, teórica, afetiva, corporal, territorial, existencial" e para instaurar outros modos de existência. Nesses fluxos éticos, estéticos e políticos, testemunhamos dinâmicas potentes e insurgentes no cenário nacional e internacional. Se há um quadro que regula os corpos, o gênero e a sexualidade, há também movimentos que questionam e contestam essas tramas de poder.
Segmentos de diversos movimentos sociais, como os movimentos feministas e transfeministas, movimento LGBT, movimento negro, entre outros, têm atuado em diversas frentes. Tais pautas podem ser vistas nas lutas pela regulamentação do aborto e pela garantia da saúde sexual-reprodutiva de mulheres cis, homens trans e demais pessoas com útero; nas lutas pela despatologização das homossexualidades, das transexualidades e das travestilidades; nos movimentos antimanicomiais, que cada vez mais encontram ressonâncias nos movimentos feministas, negro, LGBT, de população em situação de rua, etc.; nas marchas antifascistas (organizadas principalmente por coletivos de mulheres) que se articularam com força expressiva, especialmente em 2018, afirmando uma posição contrária a iminente ascensão de um governo autoritário e declaradamente machista, sexista, racista e LGBTfóbico; nas lutas pela afirmação de outras estéticas corporais (de mulheres cis, pessoas trans, travestis, bixas, sapatões e queers) que pudessem transitar livremente pelos espaços públicos; nas lutas em defesa das autonomias dos corpos de pessoas intersexuais; nos manifestos em defesa das diversas expressões artísticas, seja no campo das artes visuais, da música, do teatro, do cinema e da literatura; nos debates no campo da educação, nos quais se articulam diversos/as atores/atrizes sociais em defesa da liberdade de cátedra, de uma educação plural, da laicidade e do ensino de temas relativos a gênero e sexualidade nas escolas; nas lutas dos movimentos de trabalhadoras e trabalhadores do sexo; entre tantas outras manifestações. Ainda que o ar nos pareça rarefeito nos últimos tempos, paisagens e movimentos coletivos têm atestado o já conhecido clichê foucaultiano: "onde há poder, há resistência."
Com o intuito de focar nossas análises sobre um diagrama de forças que configura e organiza algumas biopolíticas do corpo, do gênero e das sexualidades (e que, em certa medida, acaba funcionando como o foco das resistências que não querem se deixar capturar pelas tramas do poder), seguimos a partir daqui traçando algumas considerações que emergem como fundamentais nessa discussão.
Da governamentalidade moderna, suas racionalidades e estratégias
Para avançarmos nessa discussão, retomamos algumas proposições de Michel Foucault que nos parecem fundamentais. A primeira delas diz respeito à passagem efetuada entre os séculos XVIII e XIX de um modelo jurídico da sociedade a um modelo médico em sentido amplo (Costa, 1999; Donzelot, 1986; Foucault, 1990, 2005). Trata-se, também, do nascimento do biopoder com seus dois eixos fundamentais: a disciplina e as biopolíticas. Estamos falando aqui das sociedades ocidentais modernas normalizadoras, onde há o cruzamento da disciplina (governo dos indivíduos) e das regulações (governo das populações). O que permite esse cruzamento é exatamente a norma. Nesse caso, pode-se afirmar que se trata do domínio da norma - e não da lei, e que este domínio se dá pelo exercício de poder que, mais do que reprimir, constitui sujeitos/corpos/indivíduos.
A norma - "como regra de conduta, como lei informal, como princípio de conformidade" - confronta-se com "a irregularidade, a desordem, a esquisitice, a excentricidade, o desnivelamento, a discrepância" (Foucault, 2001, p. 204). Age e reage "como regularidade funcional, como princípio de funcionamento adaptado e ajustado" (Foucault, 2001, p. 204). É desta concepção, então, que submerge todo tipo de "'normal' a que se oporá o patológico, o mórbido, o desorganizado, a disfunção" (Foucault, 2001, p. 204). Nesse sentido, quando Michel Foucault (1975, p. 195) analisa a nova forma de governo instaurada pela burguesia ao se tornar a classe política dominante no decorrer do século XVIII, pontua que se o Iluminismo descobriu a liberdade, inventou também as disciplinas. Dessa maneira, vemos instalar-se no Ocidente um quadro jurídico específico, formalmente igualitário, por meio de um regime parlamentar representativo.
Se a forma jurídica geral aparentemente garantia um sitema de direitos igualitário, simultaneamente, no entanto, era (e é) sustentada por sistemas de micropoderes inigualitários e assimétricos. Se o regime representativo, ainda que de maneira formal, pareça constituir a base da soberania por meio da "vontade de todos", as disciplinas/norma garantem a submissão dos corpos e das forças. Tem-se aqui uma espécie de contradireito na medida em que a norma produz assimetrias insuperáveis e exclui reciprocidades. No Antigo Regime, as filiações e o nome garantiam status e privilégios. Em contrapartida, nas sociedades modernas normalizadoras, essas formas, se não foram extintas, foram acrescidas de um conjunto de graus de normalidade que classificam, hierarquizam e distribuem lugares. Há uma direção de homogeneização (regra) por meio da regulamentação, e, simultaneamente a norma/disciplina individualiza, identificando desvios, medindo níveis, tornando as diferenças úteis ao hierarquizar de forma valorativa e comparativa as capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos (Foucault, 1975, p. 163).
Nas disciplinas, partia-se de uma norma e era em relação ao adestramento efetuado pela norma que era possível distinguir depois o normal do anormal. Aqui, ao contrário, vamos ter uma identificação do normal e do anormal, vamos ter uma identificação das diferentes curvas de normalidade, e a operação de normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas em relação às outras (...). São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria que não se trata mais de uma normação, mas sim, no sentido estrito, de uma normalização (Foucault, 2008, p. 82).
Ora, seguindo essa linha de raciocínio, é fácil identificar como a Medicina tornou-se a ciência por excelência na modernidade e, com ela, os parâmetros exercidos pelo discurso biomédico. Seu alcance espraia-se muito além do doente e da doença, embora essa racionalidade binária que separa doentes e sãos permaneça no cerne dos processos de medicalização. O nascimento de uma "medicina social" que gere populações (demografia, epidemiologia, controles de saúde, higiene, alimentação e assim por diante) permite distinguir incessantemente o normal do patológico, impondo um sistema de normalização dos corpos, das subjetividades e dos afetos. Observamos, nesse contexto, as condições do aparecimento da medicalização difusa da vida e da tutela médica sobre o corpo molar das populações como formas de governo e gestão (Foucault, 2005). Trata-se de uma tecnologia de poder inovadora e bastante diferente do anterior modelo jurídico de poder, baseado na lei e na interdição.
O saber, em sua articulação com o poder, ganha um lugar de destaque na governamentalidade moderna, exatamente por permitir e legitimar a normalização. Medicina, psiquiatria, neurologia, psicanálise, psicologia destacam-se juntamente a áreas como a da pedagogia, com a tarefa de (con)formar corpos e distribuí-los convenientemente. Processos de objetivação - sujeito como objeto do saber -, e de subjetivação - constituição do sujeito a partir de algumas condições às quais está submetido -, entram em cena de maneira específica nessa forma de governamentalidade que se difundem por meio de jogos de verdade (veridição) e práticas divisoras que identificam o louco, o doente e o delinquente.
Desse modo, a biopolítica e suas estratégias incidem sobre a vida e seus processos como nascimento, morte, relações familiares e sexuais e formação do indivíduo. Além disso, objetiva o homem como espécie e, ocupando-se da vida, intervém de modo a regular seus processos por meio de técnicas, leis e saberes. Regula as relações entre as pessoas e as famílias, as relações do indivíduo para consigo mesmo, com a sociedade, com o mundo. Regula por meio da norma (Foucault, 2005), que aqui é entendida como uma regra com modulação variável, diferente da lei, que seria uma regra invariante (Foucault, 1990).
É nesse quadro histórico e político da Modernidade ocidental que temos localizado nossas problematizações acerca de corpo, gênero e sexualidade. Em consonância às proposições de Michel Foucault, bem como às várias formulações e críticas do campo feminista, com destaque para as teorizações da filósofa Judith Butler, buscamos avançar na complexificação da atualização do dispositivo da sexualidade e seus efeitos contemporâneos.
Do sexo, da sexualidade e do gênero
É a partir do nascimento do Estado Moderno e das novas tecnologias de poder empreendidas para a sua manutenção que podemos falar da sexualidade como um dispositivo e como um "modo de experiência historicamente singular, no qual o sujeito é objetivado para ele próprio e para os outros, por meio de certos procedimentos precisos de 'governo'" (Foucault, 2004a, p. 239). O sexo é o ponto no qual se cruzam o eixo das disciplinas e o eixo das biopolíticas.
Em um primeiro momento, como afirma Revel (2005), Foucault problematiza a sexualidade como um dos campos de aplicação dos biopoderes. Tomada como objeto específico por Foucault, ele afirmará que vivemos em uma sociedade na qual é a sexualidade que permitirá que se diga a verdade sobre si mesmo. Diz ele:
Em outras palavras, no Ocidente, os homens, as pessoas se individualizam graças a um certo número de procedimentos, e creio que a sexualidade, muito mais do que um elemento do indivíduo que seria excluído dele, é constitutiva dessa ligação que obriga as pessoas a se associar com sua sexualidade na forma da subjetividade. (Foucault, 2004b, p. 76)
Como dispositivo do poder, o discurso da sexualidade é engenhoso e, por isso, não aplicado diretamente ao sexo, mas ao corpo. Será o corpo o alvo do discurso, domínio e adestramento, logo, o território onde irá operar o biopoder (Foucault, 1990), ou seja, o poder sobre a vida, cuja maneira capilarizada de se movimentar e multiplicar-se em rede faz com que o poder disciplinar penetre e se difunda como um mecanismo de dominação interiorizado. Ou seja, são redes em que o domínio não é mais exterior, operando no mais íntimo da subjetividade, invadindo e entranhando-se como parte constituinte das relações, adquirindo formas absolutamente invisíveis, tampouco questionáveis em sua natureza e modos de funcionamento.
Dessa maneira, discutir sexualidade também implica analisar o que Foucault (2005) chamou de biopolíticas, as tecnologias utilizadas pelo poder que colocam em funcionamento o disciplinamento dos corpos, a normalização dos prazeres e a ordenação das vidas. Se, por um lado, o exercício da dominação sobre os corpos é encarcerar, punir e exterminar os desviantes da ordem social, por outro lado, no exercício do poder as biopolíticas funcionarão sobre os corpos e população por meio da incessante produção de verdades. Por consequência disso, a partir do século XIX, nomear, classificar e buscar a origem da verdade sobre as formas de vida desviantes tornou-se compromisso técnico, e também moral, para teorias médicas, rituais religiosos e práticas jurídicas.
O esforço em compreender a verdade sobre o sujeito e, mais precisamente, sobre o sujeito da sexualidade (e não o contrário) deixa clara a necessidade em revelar e (re)conhecer "o doente" por meio da medicina, "o pervertido" de acordo com a moral religiosa e o saber psiquiátrico, e "o indivíduo perigoso" segundo o complexo conhecimento da psiquiatria, da pastoral cristã e das práticas jurídicas. Sob essa perspectiva, desvendar a verdade sobre o sexo dos sujeitos desviantes movimenta a produção dos saberes ao circunscrever quais são as formas "ajustadas" e "ajustáveis" de ser e agir, mede também a distância segura e higiênica a ser tomada diante desses indivíduos perigosos e, por efeito, arquiteta um modelo de sociedade normal, saudável, produtiva e necessária ao bem comum.
Com olhar atento a essa inesgotável produção de saber e às formas de poder capazes de regular a sexualidade, tornando-a útil na organização societária, Foucault (1990) indica quatro conjuntos estratégicos a respeito do sexo que vão se constituindo a partir do século XVIII. São eles: a "histerização do corpo da mulher", no qual o corpo da mulher saturado de sexualidade é vasculhado e intrinsecamente patologizado por sua natureza nervosa, suscetível a todo tipo de fragilidade. Um corpo naturalmente reconhecido como doente e, em razão disso, com uma racionalidade diretamente ligada à vida uterina que lhe confere funcionalidades restritas ao âmbito privado do lar, aos cuidados com a família e ao controle da fecundidade. A "pedagogização do sexo da criança", no qual a inclinação à atividade sexual denuncia o caráter ao mesmo tempo perigoso e em perigo, encarnado na figura da criança masturbadora, que requer atenção redobrada dos pais e especialistas no que diz respeito ao cuidado corporal e moral. A "socialização das condutas de procriação" referidas às medidas sociais e econômicas que reforçam a responsabilização dos casais burgueses às práticas de reprodução social. E, por fim, a "psiquiatrização do poder perverso" que analisa, categoriza e cria os padrões de conduta e normalidade.
Essas quatro formas de dispositivos de saber e poder não são únicas e universais a todas as sociedades, mas carregam consigo a condição estratégica de adaptação e atualização no tempo e na cultura, e por assim serem, é possível identificar contemporaneamente a presença de suas heranças discursivas nos modos de experienciar e produzir conhecimento sobre a sexualidade. De acordo com Foucault (1990), esse conjunto múltiplo e articulado faz parte dos objetivos de uma política sexual que reduz o sexo "à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial" (p. 116). Em outras palavras, são microdispositivos sobre o sexo que fazem emergir categorias, potencialmente perigosas e medicalizáveis, como a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso.
Nessa breve análise da produção de saber sobre o sexo como uma caçada à verdade sobre o sujeito e controle do desejo, observa-se que a sexualidade não é apenas atravessada por um esquema discursivo histórico que estrutura posições binárias e hierárquicas, como bem demonstra a polaridade normal-anormal e o nascimento da categoria "homossexual" como espécie. O discurso da sexualidade tem por finalidade, sobretudo, uma descrição médicomoral dos modos de existência.
Sendo assim, sexualidades que não cumprem seu papel na satisfação econômica e ideológica, pautada nos modelos hegemônicos e úteis da política sexual (reprodutiva, heterossexual, adulta e matrimonial), fazem parte das espécies desviantes. São sujeitos que se constituem a partir deste nãolugar, produzindo-se na inteligibilidade de seus atos e corpos, perfazendo caminhos marginais que contornarão seus espaços, também às margens.
Em uma entrevista de 1977, Foucault (1982) esclarece que uma das indagações que o incentivou a escrever a História da Sexualidade dizia respeito ao que aconteceu no Ocidente que fez com que a questão da verdade tenha sido colocada em relação ao prazer sexual. Se, a princípio, partiu da ideia de que o sexo era um dado prévio (como nossas racionalidades biomédicas modernas o pensam) e a sexualidade uma formação discursiva e institucional, no decorrer de suas investigações Foucault deslocou sua hipótese para a de que o dispositivo da sexualidade produz o sexo, de modo que seria o dispositivo ele mesmo que definiria o que é masculino e feminino (Foucault, 1982). É nas sociedades cristãs e Ocidentais que o sexo foi tomado como aquilo que é preciso examinar, vigiar, confessar, colocar em discurso. Tomando a homossexualidade como exemplo, Foucault (1982) recupera na história o início de sua constituição como objeto de análise pela Psiquiatria - em torno de 1870 - o que permitiu toda uma série de controles e intervenções diferentes das anteriores. De "pecadores sodomitas", "libertinos" e/ou "delinquentes" passam a ser considerados "doentes", doentes do instinto sexual (Santos, 2013).
As considerações de Foucault em torno do conceito de norma e dos procedimentos de normalização e normatização decorrentes do dispositivo da sexualidade contribuíram para as teorizações de Judith Butler (2003), que propõe que sexo e gênero são construções culturais que definem os limites (in)inteligíveis da materialidade dos corpos. A autora, inspirada na crítica nietzscheana de que o ser não possuiria uma substância metafísica correspondente a uma ontologia transcendente, sugere que corpo e sexo não são entidades materiais "naturais", autoevidentes e estáveis. Corpo, sexo e gênero, trata-se, antes de tudo, de um efeito de uma rede complexa de discursos, sempre circunscritos a um campo de poder, que produzem as materialidades corpóreas (Butler, 2002). A autora retoma o caso de Herculine Barbin, hermafrodita do século XIX cujo diário foi publicado com prefácio elaborado por Foucault, para discutir como as categorias identitárias de sexo e gênero são instáveis. Herculine é exatamente "a impossibilidade sexual de uma identidade (p. 46)". Afirma Butler (2003, p. 48) que "o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra" e, ainda, "não há uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performaticamente constituída, pelas próprias "expressões" tidas como seus resultados."
Da precariedade como ponto nevrálgico para repensar a política
Em "Marcos de Guerra", Butler (2010) pergunta: "O que é uma vida?" e argumenta pela necessidade de uma outra ontologia que leve em conta que o "ser" do corpo está sempre entregue a outros como as normas, as organizações sociais e políticas que maximizam a precariedade para uns e minimizam para outros. Uma ontologia do corpo é sempre uma ontologia social. Para a autora, a noção de precariedade e sua assignação diferencial permite repensar a ontologia corporal e a política "progressista" de maneira a exceder as categorias identitárias.
Se o sujeito é produzido a partir de uma série de operações normativas reiteradas por meio das quais se (re)conhecem e são (re)conhecidos, torna-se imperioso indagar que condições de reconhecibilidade/inteligibilidade (se é que assim podemos dizer) constituem os marcos pelos quais nos reconhecemos. Nesse caso, trata-se de problematizar as normas que se orientam por esses esquemas e que produzem vidas que não são assim reconhecidas.
Além disso, Butler (2010) faz uma cuidadosa distinção entre "precariousness" - a vulnerabilidade corporal compartilhada por todos os mortais, incluindo os privilegiados, e "precarity" - a vulnerabilidade específica imposta sobre os pobres, os marginalizados, e aqueles em perigo pela guerra ou desastre natural. A fragilidade corpórea tanto equaliza e diferencia: todos os corpos estão ameaçados pelo sofrimento, ferimentos e morte (precariousness), mas alguns corpos estão mais protegidos e outros mais expostos (precarity). Precariousness é compartilhada por todos; precarity é "distribuída de forma desigual" (Butler, 2010, p. 16).
Logo, os imperativos da cisheteronorma continuam regulando corpos e vidas em suas expressões cotidianas e em seus direitos e acesso à cidadania. Como temos tido a oportunidade de acompanhar no cenário brasileiro atual. Ou seja, são inúmeras as tentativas de retrocesso com relação aos parcos avanços obtidos no campo das expressões de gênero e dos direitos sexuais.
As normas difundidas pelas matrizes heterossexual e cisgênera são as que estabelecem os pré-requisitos para ascender à cidadania. A retirada do termo gênero do Plano Nacional de Educação, de alguns estaduais e municipais, a proibição de se discutir gênero nas escolas como determinado em alguns municípios, o projeto do Estatuto da Família, o combate ao direito ao uso do nome social, dentre outras iniciativas atestam o avanço de forças conservadoras que insistem em assegurar uma determinada concepção de corpo, de vida, de mulher/fêmea, homem/macho. Não se tratam de grupos religiosos apenas, embora a ofensiva fundamentalista religiosa seja importante com seu substrato conservador teológico. Muitos apoiam-se, inclusive, no discurso científico, sobretudo o biomédico.
Não podemos nos iludir. Trata-se de formas de controle e regulação da vida que fazem parte da governamentalidade moderna, essa que, "em defesa da sociedade", exclui, elimina, extermina. Que determina quais vidas que valem a pena serem protegidas e quais vidas que não valem. Nesse caso, não temos dúvidas de que, a partir dessa racionalidade, as pessoas travestis e transexuais são classificadas, no Brasil, como aquelas que são alvo do aforisma foucauldiano "do fazer viver e do deixar morrer", tanto por parte do Estado quanto pela organização societária que o sustenta. Se o fazer morrer era atributo do Soberano no Antigo Regime e o deixar morrer é uma das facetas das biopolíticas modernas, é possível pensarmos que temos aqui uma articulação entre as duas formas de governamentalidade que persistem no cenário atual. Em nome da vida, do bem e da família eliminam-se vidas que ameaçam, constrangem e coloquem em questão a racionalidade que nos provê de inteligibilidade. Urge enfrentarmos, reagirmos, transgredirmos, subvertemos, recusarmos as operações normativas que insistem em nos capturar e determinar quais são as vidas afinal que valem a pena, quais são viáveis e, desse modo, quais são dignas de serem choráveis.
Considerações finais
Nesse texto enfocamos os dispositivos da sexualidade e do gênero como uma maquinaria capaz de produzir efeitos concretos nas vidas cotidianas, especialmente daqueles/as que habitam as margens ou um exterior constitutivo (Butler, 2002) dos quadros de reconhecimento que conferem estatuto de humanidade aos sujeitos. Diante da proposta de uma analítica desses dispositivos, destacamos alguns pontos que consideramos cruciais, como a produção da materialidade dos corpos, a (in)inteligibilidade de gênero e das sexualidades, a precarização da vida, a patologização das multiplicidades sexuais e de gênero, a violência, a exclusão e o estigma. No jogo mobilizado nesse campo de forças, testemunhamos formas de poder que incidem sobre a vida, biopolíticas que tutelam, massificam e normalizam as existências.
Diante do exposto, procuramos ensaiar uma cartografia dos agenciamentos coletivos de enunciação que produzem corpo, gênero e sexualidade. Buscamos evidenciar discursos e enunciados dispersos no campo social e na dimensão da política que, emaranhados nas tramas dos dispositivos de poder e de saber, produzem efeitos de subjetivação. Deleuze (2016), em sua leitura sobre as teorizações de Foucault, aponta que desemaranhar as linhas dos dispositivos significa justamente acionar essa operação cartográfica de (des)montagem e leitura de mapas. Salientamos a importância dessa proposta de diagnóstico do presente, pois, ainda de acordo com Deleuze (2016, p. 360), os dispositivos "formam figuras variáveis" e distribuem "o visível e o invisível", ou seja, funcionam como "máquinas para fazer ver e para fazer falar". Quando falamos em gênero e sexualidade, o que está apreensível no campo da "visibilidade" e da "dizibilidade"? O que é dito e o que não é dito? Como e o que se diz a respeito dessas categorias? Quais corpos estão autorizados a existir e quais têm suas mortes legitimadas e anunciadas? Quais enunciados, discursos e relações de poder produzem ordenamentos que qualificam ou desqualificam vidas? Intentamos aqui problematizar e provocar - e não responder - essas questões.
Assim, em diálogo com Deleuze, reafirmamos nossa presente aposta, a saber, de que é preciso se debruçar sobre os regimes de enunciados que (con)formam o campo social, pois "[...] não são nem os sujeitos nem os objetos, mas regimes, que é preciso definir, para o visível e para o enunciável, com suas derivações, suas transformações, suas mutações" (Deleuze, 2016, p. 360). Consideramos, desse modo, que se cada dispositivo comporta uma multiplicidade de linhas, instalar-se sobre tais lineamentos que produzem gênero e sexualidade nos possibilita problematizar tanto suas capturas e tensionamentos como as resistências que ultrapassam esses jogos de forças e que tentam produzir vidas possíveis de serem vividas. Defendemos, portanto, que uma psicologia crítica não pode se furtar as análises sobre esses agenciamentos que atravessam e constituem os sujeitos na contemporaneidade.
Referências
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Submetido em: 19/06/2017
Aceito em: 12/08/2018
1 Segundo Deleuze (2005a), não há enunciados individuais. Os enunciados são sempre produzidos coletivamente, por meio dos agenciamentos coletivos de enunciação.