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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo maio/ago. 2018

 

ARTIGOS

 

Redução de danos e políticas públicas para pessoas que usam drogas: um relato de experiência sobre a formação clínico-política-pedagógica na formação profissional

 

Harm reduction and public policy for people using drugs: an account to experience on clinical-political-pedagogical training in vocational training

 

Reducción de daños y políticas públicas para personas que usan drogas: un relato de experiencia sobre la formación clínico-política-pedagógica en la formación professional

 

Réduction des risques et politique publique en matière de consommation de drogues: bilan de l'expérience en matière de formation clinico-politique-pédagogique en formation professionnelle

 

 

Gustavo Ávila DiasI; Rossana Carla Rameh-de-AlbuquerqueII; Solange Aparecida NappoIII

IEnfermeiro da rede de atenção psicossocial do município de Aracaju/SE e Doutorando do Programa de Pós Graduação em Antropologia da UFBA. gutais@hotmail.com
IIInstituto Federal de Pernambuco (IFPE) e Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). rorameh@gmail.com
IIIUniversidade Federal de São Paulo (UNIFESP). solangenappo@gmail.com

 

 


RESUMO

Muito já se escreveu sobre o que é a Redução de Danos (RD) e quais as suas principais estratégias de intervenção no cuidado e/ou tratamento às pessoas que usam álcool, crack e outras drogas. No entanto, estudantes, profissionais e mesmo usuários e seus familiares questionam-se como tais estratégias podem - ou mesmo se devem - fazer parte dos protocolos clínicos das pessoas que usam drogas e como essas devem se constituir nos modelos de cuidado junto às políticas públicas. Existe uma carência de formação clínica e política sobre o tema. Diante dessa questão, este é um relato de experiência de um Grupo de Trabalho (GT) sobre a RD, vivenciado no contexto do IX Simpósio Brasileiro de Psicologia Política. No GT foi utilizado um plano de curso baseado em metodologias ativas como proposta pedagógica para formação clínica e política dos participantes. De modo operacional, esta vivência proporcionou reflexões pertinentes a práxis profissional voltadas para o âmbito das políticas públicas sobre álcool, crack e outras drogas mostrando o quão é instigante e necessário que espaços dessa natureza sejam possibilitados. Assim, espera-se com este relato, refletirmos sobre aspectos teórico-práticos da formação clínica e política da RD de forma a contribuirmos com o desenvolvimento do cuidado às pessoas que usam drogas de modo objetivo, realista e pertinente ao processo de trabalho dos profissionais que atuam com a RD.

Palavras-chave: Usuário de drogas, Redução de danos, políticas públicas, Formação Profissional


ABSTRACT

Much has already been written about what is Harm Reduction (HR) and what are its main intervention strategies in the care and / or treatment of people who use alcohol, crack and other drugs. However, students, professionals, and even users and their families question how such strategies can - or even should be - part of the clinical protocols of people who use drugs and how these should be models of care with public policies. There is a lack of clinical and political training on the subject. Faced with this issue, this is an experience report of a Working Group (WG) on HR, experienced in the context of the IX Brazilian Symposium on Political Psychology. In the WG a course plan was used based on active methodologies as pedagogical proposal for clinical and political training of the participants. In an operational way, this experience provided reflections pertinent to professional praxis focused on the scope of public policies on alcohol, crack and other drugs, showing how insinuating and necessary spaces of this nature are possible. Thus, we hope to reflect on theoretical and practical aspects of the HR's clinical and political training in order to contribute to the development of care for people who use drugs in an objective, realistic and pertinent way to the work process of the professionals who with the HR.

Keys-word: Druguser, Harm Reduction; Public policies; Staff Development.


RESUMEN

Mucho se ha escrito sobre lo que es la Reducción de Daños (RD) y cuáles son sus principales estrategias de intervención en el cuidado y / o tratamiento a las personas que usan alcohol, crack y otras drogas. Sin embargo, estudiantes, profesionales e incluso usuarios y sus familiares se cuestionan como tales estrategias pueden - o incluso si deben- formar parte de los protocolos clínicos de las personas que usan drogas y cómo éstas deben constituirse en los modelos de cuidado junto a las políticas públicas. Hay una carencia de formación clínica y política sobre el tema. Ante esta cuestión, este es un relato de experiencia de un Grupo de Trabajo (GT) sobre la RD, vivido en el contexto del IX Simposio Brasileño de Psicología Política. En el GT se utilizó un plan de curso basado en metodologías activas como propuesta pedagógica para la formación clínica y política de los participantes. De modo operacional, esta vivencia proporcionó reflexiones pertinentes a la praxis profesional orientadas al ámbito de las políticas públicas sobre alcohol, crack y otras drogas mostrando lo que es instigante y necesario que espacios de esa naturaleza sean posibilitados. Así, se espera con este relato, reflexionar sobre aspectos teórico-prácticos de la formación clínica y política de la RD de forma a contribuir con el desarrollo del cuidado a las personas que usan drogas de modo objetivo, realista y pertinente al proceso de trabajo de los profesionales que, que actúan con la RD.

Palabras clave: Usuario de drogas, Reducción de daños, políticas públicas, Formación profesional


RÉSUMÉ

Beaucoup a déjà été écrit sur ce qu'est la réduction des méfaits et quelles sont ses principales stratégies d'intervention dans les soins et / ou le traitement des personnes qui consomment de l'alcool, du crack et d'autres drogues. Cependant, les étudiants, les professionnels et même les utilisateurs et leurs familles se demandent comment de telles stratégies peuvent - ou même devraient - faire partie des protocoles cliniques des personnes qui utilisent des drogues et comment elles devraient être des modèles de soins avec des politiques publiques. Il y a un manque de formation clinique et politique sur le sujet. Face à ce problème, il s'agit du rapport d'expérience d'un groupe de travail (GT) sur la recherche et développement expérimentés, expérimenté dans le contexte du IXe symposium brésilien sur la psychologie politique. Dans le groupe de travail, un plan de cours basé sur des méthodologies actives a été utilisé comme proposition pédagogique pour la formation clinique et politique des participants. Sur le plan opérationnel, cette expérience a fourni des réflexions pertinentes pour la pratique professionnelle centrée sur le champ d'application des politiques publiques en matière d'alcool, de crack et d'autres drogues, montrant à quel point des espaces insinuants et nécessaires de cette nature sont possibles. Ainsi, nous espérons réfléchir aux aspects théoriques et pratiques de la formation clinique et politique de la RD afin de contribuer au développement des soins pour les personnes qui utilisent des drogues de façon objective, réaliste et pertinente pour le processus de travail des professionnels qui: avec le DR.

Mots-clés: Toxicomane, Réduction des Méfaits, Politique publique, Formation Propriétaire de vente


 

 

Introdução

Entender a Redução de Danos (RD) como fundamento das práticas de cuidado e/ou tratamento destinadas às pessoas que fazem uso de álcool, crack e outras drogas no Brasil é uma tarefa complexa, que não deve prescindir de uma análise acerca da inserção de novas tecnologias e das políticas públicas contemporâneas. A despeito das pesquisas e estudos que discorrem sobre essa temática e que se constituem em referenciais científicos consolidados, é possível afirmar que ainda há muitos questionamentos e hiatos acerca de limites e possibilidades de sua instrumentalização no cotidiano das práticas (Santos, Soares, & Campos, 2010).

Para além do contexto em que é desenvolvido, pode-se inferir, de modo geral, que o cuidado pautado na RD, pressupõe formas de intervenção consideradas estratégicas e alternativas ao modelo biomédico e prescritivo (Passos & Souza, 2011; Rameh-de-Albuquerque, 2017). Comumente associada ao discurso antiproibicionista e aos direitos humanos, a RD prioriza a subjetividade e seus mecanismos de enfrentamento em detrimento das condutas que situam a droga como objeto da abordagem (Moraes, Rameh, & Campos, 2011). Ainda nessa perspectiva, investe-se na autonomia e no protagonismo dos sujeitos como gestores do próprio cuidado e do entendimento de suas experiências corporais, divergindo assim da clínica coercitiva, limitada em termos de sustentabilidade e produção de sentido (Conte, 2003, 2004).

No Brasil, a RD é legitimada pelo Ministério da Saúde através das políticas públicas como estratégia de cuidado junto às pessoas que usam drogas (Brasil, 2003, 2011). Todavia, é importante considerar que a prática da Redução de Danos (RD), como modelo de atenção, constitui-se em um dispositivo contundente, isto é, requer a apropriação de um discurso e de um fazer clínico que se deparam eventualmente com algumas dificuldades em sua materialização. Dentre tais fatores está o discurso moralizador e violento, presente em diversas instituições sociais e no próprio Estado, além dos conflitos políticos em contextos específicos (Souza, 2007). Também nessa perspectiva observamos a dificuldade dos trabalhadores "da ponta" em assumirem o norteamento de cuidado definido pelo Ministério da Saúde (Sena-Leal, 2017).

Esse relato de experiência foi elaborado com base em dados extraídos da vivência de um Grupo de Trabalho (GT) intitulado por: Redução de danos e políticas públicas: estratégias de intervenção junto às pessoas que usam álcool, crack e outras drogas, desenvolvido no IX Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, realizado em Natal, no dia 04 de outubro de 2016, com o tema Psicologia, Política e território: capturas e resistências no cotidiano; um potente encontro de ideias e práticas acerca da psicologia política no Brasil. Teve como objetivo geral discorrer sobre o processo de construção da RD, desde as suas intenções iniciais, ao impacto das metodologias presentes na execução de uma clínica-política e também pedagógica. Assim, apresentamos os resultados e discussão da oficina realizada neste GT e trazemos algumas considerações à guisa de uma tentativa de finalização deste texto.

Os participantes do evento que compuseram este grupo escolheram-no por razões arbitrárias ou por interesse próprio sobre essa temática. A proposta básica foi lançada com carga horária de 8 horas e com inscrição para 30 participantes. Dentre as tais, fizeram-se presentes apenas 12 participantes. O projeto pedagógico contemplou o desenvolvimento das atividades sob uma lógica de encadeamento e método que buscassem reafirmar o caráter político das discussões como objetivo central desse trabalho. As discussões forjadas neste interim tiveram como pretensão articular o conhecimento teórico-conceitual acerca da temática da RD às suas implicações e repercussões no âmbito das políticas públicas.

As metodologias ativas de ensino-aprendizagem foram utilizadas como fundamento na elaboração das atividades por entender que a consolidação das práticas de RD, como artefato de cuidado, se dá de forma atrelada à construção de espaços coletivos que visem a compreensão, apropriação e questionamento dos seus pressupostos teórico-metodológicos, conceituais e sobretudo ideológicos por parte dos técnicos, usuários e seus familiares. A existência de ferramentas pedagógicas, a exemplo das que foram utilizadas na experiência relatada, contribui também para que tais políticas sejam pensadas criticamente em função das práticas cotidianas de RD e de suas efemérides.

 

Métodos

Trata-se de uma vivência baseada na pesquisa qualitativa, podendo ser considerada como descritiva, visto que este relato foi elaborado a partir de uma análise crítica sobre a experiência mencionada. Os dados obtidos são produto dos registros feitos pelos 2 (dois) facilitadores (Gustavo Dias - enfermeiro e redutor de danos e Rossana Rameh - Psicóloga e redutora de danos; autores desse relato), compilados em relatório póstumo à experiência. São considerados como resultados, portanto, o plano de curso composto, por sua vez, pelo instrumento denominado de roteiro de atividades tanto em sua versão original, isto é, no formato propositivo, quanto na versão exequível.

Tais resultados foram analisados com base em referenciais que discorrem sobre o uso das metodologias ativas nas práticas de educação em saúde (Collar, 2014), sobre o método e a pedagogia de Paulo Freire (1987, 1989), somados às práticas de redução de danos contempladas pela legislação do Ministério da Saúde através das políticas públicas (Brasil, 2003, 2011, 2015) e com base em referenciais científicos consolidados acerca do tema drogas (Bucher, 1992; Lancetti, 2007, 2015).

A análise dos produtos deu-se em dois momentos distintos. No primeiro momento elas incidiram sobre os elementos que constituem o plano de curso, a elaboração do projeto pedagógico e suas intenções. Em consecução a este momento, deu-se um segundo, no qual as análises foram feitas acerca do conteúdo produzido pelos integrantes do grupo de trabalho, através dos debates, questionamentos, formulação e discussões sobre o tema na perspectiva dos objetivos propostos pela ação. Por fim foi realizada uma avaliação coletiva da ação focada na possibilidade de alinhamento entre os eixos clínico-político e pedagógico embasados nas discussões tecidas pelo grupo. Tal avaliação se deu através das narrativas dos 17 (dezessete) participantes em função de três critérios: metodologia, domínio do tema, e mudança de perspectiva quanto a aplicabilidade das estratégias clínicas e práticas cotidianas. Considerando que se trata de um curso de curta duração, não foi possível a entrada de instrumentais mais elaborados de avaliação.

 

Resultados

O plano original de curso foi norteado pelo projeto pedagógico materializado no roteiro de atividades (Tabela. 1). Considera-se que as experiências pedagógicas vivenciadas por um grupo específico, em contato com uma temática específica, devem incitar entre os atores desse grupo a criação de mecanismos de plasticidade pedagógica para lidar com as possíveis disjunções existentes entre o desejo, as expectativas e as limitações apresentadas pelos próprios atores acerca do conteúdo abordado (Barbosa, Moura, 2013). Disjunções estas que se dão em função da inevitabilidade dos elementos inerentes as relações, que atravessam a experiência e que suscitam modificações imprevisíveis.

Berbel (2011) afirma que, contrariando os rigores da pedagogia diretiva, há um indicador pedagógico relevante nas variações de formato que os planos de curso adquirem após o contato com a dimensão vívida dos processos. Tais variações denotam aspectos inerentes a um determinado grupo e orientam a construção de formas mais sofisticadas de abordagem do conteúdo. Ou seja, o facilitador desta experiência não consegue prever que aprendizagens serão de fato apreendidas e quais serão "descartadas" inicialmente. Algumas aprendizagens ficarão como em estado de "stand by" aguardando que se conectem com outras reflexões e então possam fazer sentido para quem vivenciou a experiência reverberando posteriormente em seu cotidiano de trabalho.

No caso desta experiência ora relatada, vimos que foi necessário a modificação do plano de curso anteriormente elaborado visto o debate suscitado no grupo diante das atividades iniciais. O grupo apresentou uma demanda preliminar em embasamento teórico conceitual que pudesse facilitar a compreensão mais consistente acerca da dimensão técnica e operacional das práticas de redução de danos. Ou seja, para que a formação continuasse foi necessário a planificação conceitual do tema. Poucos participantes tinham conhecimentos prévios sobre o tema. Alguns expressaram questões do senso comum sobre a RD, porém estavam abertos a vivenciar a oficina de modo a poderem interagir com o conhecimento dos que tinham algum embasamento teórico-prático sobre o conteúdo a ser vivenciado.

Também refletindo uma pedagogia libertadora, Freire (1987, 1989) propõe uma educação crítica que esteja a serviço da transformação social de modo a encorajar as pessoas a serem protagonistas de seu próprio processo de aprendizado. Deste modo, as etapas do plano de curso foram modificadas também no sentido de dar mais espaço e possibilidade de fala e reflexão dos participantes.

Maturana (2005) reflete que é na emoção trazida pela linguagem que podemos (re)significar o mundo e a nossa visão de mundo. De modo que é através da linguagem que conseguimos aprender a apreender. Partindo dessas premissas, faz-se relevante apresentar o roteiro de atividades reformulado a partir dos processos de interação entre os sujeitos da experiência (Tabela. 2).

Assim, observamos um certo passo a passo no processo de aprendizagem do grupo que foi relatado, de forma breve, no processo da avaliação narrativa:

Eixo 1- Planificação do conceito de dependência -saindo da ideia hegemônica existente na sociedade de que a pessoa que usa drogas, independente de fazê-lo uma ou mais vezes, está irremediavelmente perdida, alguns autores, como Escohotado (1996) e Carneiro (2011), referem-se a este senso comum - que continua prevalente na sociedade - como se a droga por si só tivesse um poder mágico de criar a dependência. Assim, o conceito de dependência foi ampliado para a compreensão da relação que o sujeito faz entre a droga e o contexto, lembrando inclusive que existem outros tipos de usuários de drogas, como o social, o problemático e o recreativo. Ou seja, nem todas as pessoas que utilizam substancias psicoativas (SPA) terão a dependência como horizonte.

Eixo 2 - Aspectos relacionados à prática da redução de danos - foi possível compartilhar impressões sobre práticas de redução de danos envolvendo relatos de experiências vivenciados no âmbito das políticas públicas. Isso ocorreu através da análise das concepções que orientam as práticas da RD no Brasil. O grupo pôde vivenciar a coexistência de várias modalidades conceituais e práticas da RD, seja em nível nacional ou internacional. Autores como Santos, Soares e Campos (2012) discutem que a RD conduz a uma mudança e quebra no tradicional modelo biomédico que foca na doença e na abstinência como metas de seu trabalho. Em contraste a este modelo a RD visa a autonomia da pessoa em relação não apenas à sua saúde, mas a sua vida como um todo.

Eixo 3- Análise crítica entre a relação das práticas de redução de danos com as políticas públicas - foi proposto formas de como operacionalizar a RD em seus espaços de trabalho visualizando as potencialidades da RD bem como as dificuldades de sua implantação e implementação devido aos preconceitos e resistências existentes. Segundo Ronzani et al. (2014, p. 13) "[...] Ao sofrerem os efeitos da estigmatização, os usuários de drogas evitam buscar ajuda para o tratamento de suas condições". Dessa forma, pudemos vivenciar com o GT o quanto esse processo, é percebido, porém pouco discutido em seus espaços de trabalho acentuando os problemas pessoais, sociais e familiares dos usuários.

Por fim a avaliação do curso foi realizada a partir das narrativas dos participantes, que puderam expressar suas observações de modo proativo em relação a mudança de perspectivas diante dos três eixos acima explicitados.

 

Discussão

Os resultados apresentados permitem inferir que a lógica de abordagem do conteúdo salvaguarda o objetivo principal da ação, isto é, discutir as práticas e estratégias de redução de danos (RD) voltadas às pessoas que usam drogas de forma articulada às políticas públicas contemporâneas em contextos específicos. Consistiu em uma estratégia metodológica que visou aproximar a clínica da RD e seus princípios à construção de espaços coletivos de discussão a partir de ferramentas pedagógicas postuladas por Paulo Freire (1987, 1989).

Neste intento, percebeu-se ainda que houve uma preocupação constante por parte dos facilitadores no sentido de compor uma proposta estrutural de trabalho que não se constituísse para os integrantes como um instrumento diretivo, rígido e indiferente aos devires e particularidades do grupo, quer seja na relação com as instâncias conceituais e metodológicas da RD quanto na relação desta com as políticas públicas. Isso se fez perceptível no formato das atividades. Embora seguissem uma lógica propositiva, no sentido do encadeamento, foi permitido ao grupo, a partir das dinâmicas relacionais e desdobramentos das discussões, provocar mudanças no roteiro de atividades em termos do tempo previsto e da ênfase dada ao conteúdo. Tal mudança respondeu ao princípio dialógico tão fundamental a pedagogia da libertação e a importância dada à comunicação baseada no respeito ao outro (Freire, 1989; Maturana, 2005).

A proposta de trabalhar sobre um roteiro de atividades semiaberto conferiu também aos facilitadores e participantes a liberdade na abordagem sobre o tema, isto é, buscou-se reafirmar o protagonismo, a autonomia dos sujeitos na construção e balizamento das discussões a partir de suas próprias constatações e questionamentos. Fomentar o poder de autogestão do grupo sobre a própria vivência, nessa circunstância, foi uma estratégia positiva visto que aproximou as discussões daquilo que é considerado mais relevante, na perspectiva dada por Berbel (2011) sobre a construção de políticas em espaços coletivos, ao mesmo tempo que permitiu o alcance mínimo dos objetivos propostos pela ação.

De acordo com Cafruni, Bolesi e Lopes (2015) a noção de dependência é entendida como algo que decorre de uma necessidade a qual implica em uma relação de subordinação e sujeição em função da impossibilidade de lidar com a falta. Problematizar a noção de dependência no contexto das drogas é uma tarefa imprescindível no sentido de compreender a prática da RD. Disparar entre os participantes uma análise autocrítica acerca de suas próprias dependências foi o gatilho para as discussões que energizaram a atividade 2.

Na medida em que os participantes se depararam com as próprias limitações e sentiram-se impotentes no sentido de se destituir de suas dependências, iniciou-se, por parte dos mesmos, um processo de reflexão sobre valores particulares e modos de vida. Erigiu-se a partir disso uma relação solidária pautada na compreensão ou complacência em relação à dependência alheia.

A redução de danos (RD) pressupõe respeito à vontade, à autonomia e ao modo de vida próprio (Petuco, 2011). Nesta perspectiva, o substrato das reflexões iniciais foi utilizado pelos facilitadores como artefato de uma análise crítica posterior, cunhadas no desfecho da atividade 2, a qual teve como finalística uma revisão dos discursos de poder existentes nas práticas rudimentares e arraigadas de cuidado. Não obstante, permitiu visualizar a noção de dependência sob uma perspectiva ampla, ou seja, não necessariamente relacionada a proibição aleatória do consumo de substâncias ilícitas.

A dinâmica, como recurso didático, favoreceu a interação entre os participantes do grupo e a produção de sentido a partir de ações espontâneas (Miranda, 2002). No plano imediato, a dinâmica não esteve voltada para as reflexões conceituais sobre RD, mas sim, para um entendimento dos valores pré-existentes, em processo de objetivação, mas que ainda não foram tomados pela análise com base em referenciais científicos ou empíricos.

A variação de recursos utilizados nas atividades 3 e 4 contribuiu no sentido de ancorar o produto das reflexões cunhadas a partir da atividade 2. Vale ressaltar que o tempo previsto para realização da atividade 2 foi considerado insuficiente, dado o aprofundamento das reflexões alçadas. Como consequência, foi necessário a compensação do tempo por meio da supressão da atividade 5 e restrição da atividade de alinhamento conceitual, proposto para atividade 6, a qual ocorreu com base em um fragmento do texto utilizado como referencial, no qual o autor situa cronologicamente as diferentes formas de assimilação e significados dispensados à RD ao longo da história. Tal leitura provocou o debate acerca das distintas concepções da RD e fez emergir a dificuldade que os trabalhadores possuem em transpor tais ideias ao campo prático de sua atuação clínica.

Considera-se que a necessidade de reformulação do tempo previsto para às atividades do roteiro original (Tabela. 1) também se deu em virtude da ausência de contato ou de apropriação mínima em relação a temática da RD por parte dos integrantes do grupo, resultando assim no alongamento das discussões de caráter fundamental básico concentradas na atividade 2. De outro modo pode-se inferir que o perfil dos participantes inseridos no grupo de trabalho se constituiu predominantemente de profissionais e discentes de graduação, os quais negaram qualquer contato prévio com a temática. Como consequência da ausência de referenciais precedentes, foi necessário dispensar considerações acerca da RD sem as quais o andamento da ação não seria produtivo.

A necessidade de desconstruir alguns equívocos e mitos em relação à prática da RD se fez premente na experiência do grupo. Trata-se de uma tecnologia relativamente nova no Brasil e cujas práticas não estão ancoradas em manuais de procedimentos - apesar da existência de alguns "guias" (Niel e Silveira, 2008) de oferta de estratégias de redução de danos para o âmbito da rua, ou seja, para aplicação de estratégias voltadas a população usuária de drogas em situação de extrema vulnerabilidade. Além disso, essa tecnologia é comumente embarreirada pelo discurso moralista e violento das instituições sobre o uso de drogas. Tal constatação na discussão do grupo, apontou para a acepção de uma RD que vai para além de estratégias a serem aplicadas. Muito mais uma postura e visão de sujeito e de mundo que modifica a relação que historicamente desenvolvemos com as drogas. A RD se faz presente como uma abordagem dinâmica que respeita os interesses das pessoas que usam drogas e que busca a ampliação da vida.

A importância do espaço acadêmico no processo de legitimação e de consolidação das políticas de RD foi reafirmada pela experiência do grupo. Diz-se isso não somente em relação ao domínio de técnicas e procedimentos inovadores, mas sim, pela capacidade de pensar uma intervenção sob o formato de ações pautadas em direitos humanos, na liberdade de expressão e no respeito aos diferentes modos de vida.

O aprofundamento das discussões acerca da relação entre políticas públicas e RD, numa perspectiva crítica, tornou-se quase inviável nesse grupo. Entende-se que a proposta original de discussão requer uma certa apropriação sobre o assunto através de um domínio técnico e conceitual prévio, minimamente constituído, somado ao entendimento dos cenários políticos. No entanto, foi possível assentirmos a sensibilização iniciada junto ao tema e afirmativas de desejo de conhecerem mais sobre a "clínica-política" que se dá através da RD.

 

Considerações Finais

A realização do grupo de trabalho Redução de Danos e políticas públicas: estratégias de intervenção junto às pessoas que usam álcool, crack e outras drogas trouxe, no substrato da experiência, contribuições relevantes para o campo das intervenções. É possível afirmar que o percurso construído pelos participantes implicou em algumas reformulações no desenvolvimento das atividades propostas, resultando assim na produção de eixos de discussão mais concentrados em bases conceituais e possibilidades de instrumentalização em cenários reais em detrimento do tema e suas repercussões no campo das políticas públicas.

Ainda no bojo dessas constatações, é válido considerar que o produto das elaborações coletivas esteve mais concentrado no âmbito das políticas interpessoais e na produção de subjetividades, o que permitiu, em certa parcela, afirmar a viabilidade de práticas de intervenção pautadas em outra lógica que não a coerção ou a proibição do uso desta ou daquela substância. Neste ínterim, percebeu-se a dificuldade que os participantes possuem no sentido de materializar o discurso e a lógica da redução de danos (RD) em suas práticas cotidianas destituídas de modelos prontos e de instrumentais fixos. Isso denota, em certo grau, a insuficiência ou a ausência de discussões desta natureza nos espaços de formação acadêmica. Domanico (2006) afirma que existe essa carência de constituição clínica-política sobre o tema incitando a necessidade de que os profissionais deveriam olhar para essa questão desde sua formação inicial.

A prática da RD ainda pode ser considerada, em muitos aspectos, um tabu para determinados usuários, técnicos e familiares. A grosso modo isso pode ser atribuído a inexistência ou a insuficiência dos espaços em lidar com essa temática de forma adequada, ou ainda ao próprio preconceito em se abordar o tema. Neste intento, o compartilhamento de experiências exitosas por meio de instrumentos informativos pode ser considerado uma estratégia metodológica e pedagógica profícua.

O uso de metodologias ativas potencializou o envolvimento dos participantes nas discussões contribuindo para o alcance dos objetivos propostos. Entende-se que a diversidade de recursos acionados sob a égide dessa perspectiva pedagógica deva ser mantida em espaços dessa natureza. A produção de sentido útil a partir dos objetivos desta ação pode ser considerada, em grande parcela, como contribuição de alguns princípios das práticas de RD assimilados como discurso clínico-político e pedagógico.

 

Referências

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Submetido em: 30/04/2017
Aprovado em: 03/12/2018

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