Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
Construção de testemunhos de violência de estado: exercício político da formação em psicologia
Construction of testimonies of state violence: political exercise of psychology graduation
Construcción de testimonios de violencia de estado: ejercicio político de la formación en psicología
Construction de temoignages de violence d'état: exercice politique de la formation en psycologie
Karine Shamash SzuchmanI; Gislei Domingas Romanzini LazzarottoII; Analice de Lima PalombiniIII
IPsicóloga. Mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Pesquisa em Testemunho, Violência de Estado e Políticas Juvenis; karineszuchman@gmail.com
IIPsicóloga. Doutorado em Educação. Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS; Pesquisa em Psicologia, Educação e Políticas Juvenis; gislei.ufrgs@gmail.com
IIIPsicóloga. Doutorado em Saúde Coletiva pela UERJ. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e Departamento de Psicanálise e Psicopatologia (URFGS); Pesquisa em Saúde Mental e Saúde Coletiva; analice.palombini@ufrgs.br
RESUMO
O presente artigo discute as possibilidades de construção de testemunhos de violência de Estado como uma ferramenta clínico-política no âmbito das práticas da formação em psicologia. A orientação metodológica da narratividade como política sustentou a análise de uma experiência coletiva, articulando o processo de testemunhar e narrar com escritas de cenas de situações de violação de direitos no contexto brasileiro. O campo problemático desta pesquisa encontra-se em diferentes experiências da formação psi envolvendo o testemunho, entre as quais destacamos um projeto de extensão universitária que trabalha com familiares de adolescentes em medida socioeducativa. Buscamos analisar quais elementos estão em jogo para a construção de um testemunho de violência de Estado e como sustentar nossa presença enquanto testemunhas. Por fim, destacamos o exercício ético da transmissão no reconhecimento público de uma memória coletiva como uma estratégia de compor uma psicologia de nosso tempo.
Palavras-chave: Violência de Estado; Testemunho; Formação em Psicologia; Narrativa, Necropolítica.
ABSTRACT
This article discusses the possibilities of construction of testimonies of state violence as a clinical-political tool within the practice of psychology graduation. The methodological orientation of narratives as politics supported the analysis of a collective experience, articulating the process of witnessing and narrating with writings scenes of situations of rights violation in the Brazilian context. The problematic field of this research is found in different experiences of psi formation involving testimony, amongst which we highlight a project of university extension that works with relatives of adolescents in socio-educational measure. We seek to analyze what elements are at stake for the construction of a testimony of state violence and how to sustain ourpresence as witnesses. Finally, we highlight the ethical exercise of transmission in the public recognition of a collective memory as a strategy to compose a psychology of our time.
Keywords: State Violence; Testimony; Psychology Graduation; Narrative; Necropolitics.
RESUMEN
Este artículo discute las posibilidades de construcción de testimonios de la violencia del Estado como una herramienta clínica-político en el contexto de prácticas de la formación en psicologia. La orientación metodológica de la narratividad como ejercicio político sostiene el análisis de una experiencia colectiva, articulando el proceso de testimoniar y narrar con escrituras de escenas de situaciones de violación de derechos en el contexto brasileno. El campo problemático de esta investigación abarca diferentes experiencias de la formación en psicologia envolviendo el testimonio, entre las cuales destacamos un proyecto de extensión universitaria que trabaja con familiares de jóvenes que cumplen medida socioeducativa. El estudio analiza qué elementos están en juego para la construcción de un testimonio de violencia de Estado y cómo sostener nuestra presencia como testigos. Para finalizar destacamos el ejercicio ético de la transmisión en el reconocimiento público de una memoria colectiva como una estrategia para construir una psicologia de nuestro tiempo.
Palabras clave: Violencia de Estado; Testimonio; Formación en Psicologia; Narrativa, Necropolitica.
RESUMÉ
Cet article examine les possibilités de construction des témoignages de la violence d'État en tant qu'instrument clinique-politique dans le cadre des pratiques de la formation en psychologie. L 'orientation méthodologique de la narrativité en tant que politique a soutenu l'analyse d'une expérience collective, articulant le processus de témoigner et narrer aux écrits des scènes de situations de violation des droits dans le contexte brésilien. Le domaine problématique de cette recherche se retrouve dans différentes expériences de formation psi impliquant le témoignage, parmi lesquelles nous mettons en évidence un projet de extension universitaire qui travaille avec des proches d>adolescents qui cumprent mesure socio-éducative. Nous cherchons à analyser quels éléments sont en jeu pour la construction d'un témoignage de la violence d'État et comment soutenir notre présence en tant que témoins. Enfin, nous soulignons l'exercice éthique de la transmission dans la reconnaissance publique d'une mémoire collective en tant que stratégie pour composer une psychologie de notre temps.
Mots-clés: Violence d'État; Témoignage; Formation en Psychologie; Narratif; nécropolitique.
Introdução
O tema trabalhado neste artigo é fruto de experiências que se desdobram da formação em psicologia na qual se engajam as autoras, seja como docentes seja como graduanda e depois mestranda, no âmbito de uma clínica que se apresenta indissociável da política, aliada à defesa dos direitos humanos e pautada na construção de uma memória antes coletiva que individual (Mourão, 2009; Rauter, Passos, & Barros, 2002). Sua pertinência ao campo da psicologia política decorre da intersecção entre psicanálise, psicologia social, história e a análise das relações de força que se atualizam em violências de Estado no Brasil contemporâneo (Hur & Sabucedo, 2018).
No presente artigo, buscamos dar enfoque às intervenções junto a pessoas afetadas pela violência de Estado, refletindo sobre a construção de testemunhos como uma ferramenta clínico-política a que podemos lançar mão nesse campo. No contexto da formação em psicologia em que este processo acontece, é a extensão universitária que ganha destaque como uma via de produção de conhecimento a partir da experiência com comunidades, a qual nos leva para além dos portões da universidade. Mais do que um deslocamento geográfico ou motor, o que a extensão universitária instiga é uma torção em nossas posições de saber (Streppel & Palombini, 2015).
Reconhecer essa torção de posições que a atividade de extensão possibilita implica a abertura, não somente à experiência das pessoas com que nos encontramos, mas à nossa própria experiência e ao modo como nos afetamos e nos transformamos nesse percurso. Neste outro espaço de produção de saberes, que não é mais o da sala de aula, interessa-nos a intersecção das diferenças - geográficas, culturais, étnico-raciais, econômicas - sobre os saberes instituídos, fazendo da fricção do encontro entre universidade e comunidade um campo de problematização e criação.
A extensão a que nos referimos neste artigo é marcada pela problematização da função que exerce a produção de conhecimento em psicologia, num país com processos históricos de violação de direitos humanos relacionada à violência de Estado. Tem como referência pioneira as práticas do Grupo Tortura Nunca Mais/Rio de Janeiro, criado em 1985 com a participação de psicólogos/as com experiência clínica, no intuito de prestar assistência aos atingidos/as pela violência do Estado Ditatorial (Coimbra, Passos, & Benevides, 2002). Este grupo é o primeiro - entre outros que se formaram no país, no contexto de abertura ao debate dos direitos humanos - com a preocupação de produzir um espaço ao mesmo tempo clínico e político para escutar e narrar uma história esquecida e renegada. Nossas práticas de extensão na universidade pública inserem-se nessa linhagem, voltada a pensar o modo como produzimos a formação e o conhecimento na relação com as demandas decorrentes de uma história brasileira de desigualdade social e opressão.
A ação de extensão que aqui move nosso pensamento é o Coletivo Fila, atividade com familiares dos adolescentes internados provisoriamente em um centro de atendimento socioeducativo na cidade de Porto Alegre. O ano é 2012, estamos sob o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) e no contexto do Sistema Nacional de Medida Socieducativa - Sinase (Lei nº 12.594/2012). É no tempo da espera para visita aos jovens internados que o grupo de extensionistas oferta a seus familiares um acolhimento, na forma de escutas individuais e coletivas, somadas a oficinas que visam compartilhar suas histórias e discutir a garantia de direitos. O pedido para ocuparmos esse lugar nos é endereçado por uma organização criada por mães cujos filhos estiveram em medida socioeducativa de internação e que fizeram de sua experiência um dispositivo para acompanhar outras mães. Buscam a universidade para ampliar a forma de acolhimento ao que se apresentava na espera das visitas.
Contudo, se o pedido inicial que nos dirigiam era o de sanar dúvidas jurídicas, no processo de análise do que nos era solicitado o que se apresenta é o sofrimento ocasionado pela violência vivida. Há uma insistente demanda por um espaço de escuta, "uma vez que sofrem inúmeras violações de direitos, antes, durante e depois de todo o caminho do ato infracional" (Lazzarotto, Szuchman, Oliveira, Suné & Becker, C. A., 2013, p. 26). São quase sempre mulheres, mães à espera de seus filhos, que são escutadas. Mães negras e pobres, indicando um modo específico de incidir sobre os corpos e os modos de viver da juventude brasileira. (Carvalho, 2012; Szuchman, 2014).
O Coletivo Fila, iniciado naquele ano de 2012 como desdobramento de um conjunto de experiências acolhidas pelo PIPA - Programa Interdepartamental de Práticas com Adolescentes e Jovens em Conflito com a Lei, é mantido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul a partir da articulação entre ações de extensão do direito, da educação e da psicologia. Junto a uma articulação intersetorial de políticas públicas e movimentos sociais, o programa desenvolve um atendimento integral ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa, a partir de práticas interdisciplinares e interdepartamentais de extensão, no enfrentamento às lógicas que tendem ao isolamento de áreas e disciplinas na formação (Szuchman & Flores, 2015). A possibilidade de acolher o pedido desse grupo de mães foi mobilizada pela presença de estudantes de diferentes graduações, afetados/as pela busca de um fazer interdepartamental e interdisciplinar com esta comunidade.
A experiência gerou questões a respeito de como constituir a intervenção considerando o pedido endereçado à psicologia para que estivesse com esses familiares. O grupo da psicologia, integrante do Coletivo Fila, lançou o olhar ao encontro, à configuração deste "entre" na relação de quem escuta histórias de violência e de quem, em sua dor, é escutada, por meio da qual se forja uma psicologia atenta ao outro, a si e ao mundo que esse modo de intervir produz.
A partir do diálogo com a noção de política da narratividade (Passos & Barros, 2009), analisamos nossas práticas no contexto desta experiência e passamos a constituir o campo de problematização a respeito do testemunho. É nesta direção que esta escrita prossegue, ao contar como foi o percurso metodológico de nosso modo de fazer extensão e ao desenvolver um estudo conceitual a respeito do testemunho. O desdobramento do estudo nos leva a analisar o testemunho como narrativa processual, associado ao movimento de transmissão que implica no exercício político de quem testemunha e que, em nosso contexto de trabalho, envolve a formação em psicologia.
Metodologia
A corporeidade da experiência de escuta nos afeta. Experimentamos sensações dolorosas sem termos estado presentes no ato de violência, sem sermos aquele corpo, marcado em ato e memória. Havia um pedido para a universidade comparecer a esse espaço de espera, e fomos. Ao esperar, invadia-nos a (im)potência do que fazer diante da imensidão da dor que, junto com o vivido, era narrada. Ao mesmo tempo, a dor desse encontro movia o grupo na busca de uma forma de nomear o que se passava no acontecimento da intervenção. A noção de testemunho não estava dada desde o começo, mas os diários escritos a cada dia da experiência de acompanhamento na fila de espera passaram a ser compartilhados e problematizados. Para que escutar? O que fazer com tamanha dor e indignação? Seria nossa essa dor? A criação deste campo de problematização no espaço do grupo de extensão acolhia a duração da experiência de extensionistas, buscando expressão que tornasse possível o dizer a respeito do fazer que se tratava de engendrar.
Gilles Deleuze (1999), em diálogo com a obra de Henri Bergson (1999, 2006), oferece-nos esta pista metodológica: a experiência, em sua duração, carrega a afirmação de uma virtualidade que pode se atualizar e para a qual atualizar-se é inventar. Assim, a relação do passado com o presente não deve ser concebida como relação de um modelo de referência e outro por se fazer, de forma dicotômica, que nos levaria a produzir a síntese a respeito da experiência como já vivida e acabada. É preciso experimentar a tensão que mantém o movimento da experiência em nós e compor um modo de acolher a produção deste movimento que busca expressão. Podemos compreender, dessa maneira, que as narrativas orais e escritas tenham estendido o espaço de escuta para além do tempo da fila.
Nesta perspectiva, Deleuze (1997) explora o processo de escrever e afirma que a escrita pode, por si mesma, produzir um sentimento de iminência, de que algo vai acontecer ou que acaba de se passar, constituindo um regime de enunciação. Assim, escrever ultrapassa o lugar de registro e diz respeito as circunstâncias que o produzem e dão duração à experiência que o movimentou - as escritas, produzidas por quem escutava e narradas em grupo de orientação, continham o efeito de um tempo que dura, a corporeidade da experiência em forma de palavras, o cruzamento das palavras escutadas com as palavras vividas por quem as escutou.
A busca de expressão do vivido na experiência do Coletivo Fila é marcada por caminhos desviantes daqueles que se conhece como os mais tradicionais nas práticas em Psicologia. Ali vemos se dar as torções de que falamos acima. Assim, no lugar de termos pessoas que demandam atendimento dirigindo-se a um profissional, somos nós que nos deslocamos até as pessoas que queremos atender. Não estamos em um consultório, em alguma casa, ou atrás de uma mesa; nem mesmo paredes há, somente um teto e alguns bancos. Basta isso para que aconteçam os encontros entre os/as integrantes do grupo e os/as familiares dos adolescentes. São encontros com vidas precárias (Butler, 2015), com violações de direitos, com diferenças, com incertezas e com outros saberes.
Através do conceito de vida precária, Butler (2015) problematiza a normatividade da vida que leva a constituir determinados sujeitos como passíveis de serem reconhecidos na sociedade e outros não. Assim, temos sujeitos que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e vidas que não são reconhecidas como vidas. Na realidade brasileira, mulheres e jovens negros e pobres não são exatamente reconhecíveis como sujeitos ou, quando o são, é desde uma posição desviante da normatividade, que impede a manifestação da vida em sua diferença.
No encontro com essas vidas, o lugar de psicóloga, tão bem delineado até então, torna-se vago e borrado. Ao nos depararmos com tais histórias, é como se nossos bolsos estivessem furados: as ferramentas escorregam, as noções teórico-práticas que estamos acostumadas a carregar parecem não servir à situação. Como então transformar aquilo que nos desestabiliza e nos desacomoda em combustível para reinvenção de práticas que dialoguem com o que escutamos? Neste processo de análise e de diferenciação do que se passava é que encontramos o testemunho como conceito intercessor de nossa experiência extensionista.
Testemunhar, contar histórias, é um ato - ato político de narrar e escutar o impossível. É, também, prática de cuidado por quem é convocado a escutar o inaudível e um modo de produção de conhecimento (ao mesmo tempo, vivemos o paradoxo desse cuidado, oferecido por uma política de Estado, a de educação, que, no formar profissionais, depara-se com um Estado produtor da violência que acarreta o sofrimento a requerer cuidado). Compreendemos o exercício do testemunho como uma narrativa processual, lacunar (Agamben, 2008) e ficcional (Derrida, 2015), que é tecida entre quem viveu o acontecimento e aqueles que estão a sua volta, atrelando o reconhecimento da experiência às condições sociais de recepção (Indursky & Szuchman, 2014). O caráter político do testemunho encontra-se nas narrativas cujo teor traduzem episódios de violência que afetam não somente o indivíduo, mas atingem todo o tecido social no qual este se encontra inserido. Sua importância reside precisamente no fato de dar relevo a histórias de violência que são esquecidas ou negadas, inscritas de forma vacilante ou ambígua na memória social.
O exercício narrativo inscreve-se, assim, como possibilidade de construção do presente ao romper ciclos de repetição, silenciamento e violência e insistir na tessitura de uma história sobre o que se passou. Uma necessidade que diz menos de uma tarefa técnica e mais de um dever ético-político: escutar aquilo que sobreviveu à violência, implicar-se na história e apropriar-se dela. (Kessler, Kveller, Rodrigues, & Szuchman, 2017, p. 165)
O recurso à noção de testemunho associada a um certo modo de narração das cenas possibilita a duração da experiência suscitada no encontro de extensão do Coletivo Fila, constituindo a via metodológica de nossa política de narratividade. Não se pretendem entrevistas, relatos fiéis ao acontecido, como expressão de verdades individuais, conclusivas e imparciais. Ao contrário, conforme Passos e Barros (2009), é ao fazer gaguejar o caso narrado que podemos entrar em contato com as condições da sua produção, revelando o ethos político do qual o caso emerge, como zona de indiscernibilidade "entre um (o caso) e [...] qualquer um (o político)" (p. 167). O caso, as cenas que narramos, adquirem, assim, valor coletivo. As narrativas não remetem a um sujeito, mas dizem da experiência coletiva em que nos engajamos, como um comum que em nós é impessoal.
Dessa forma, este artigo se constrói como um desdobramento do testemunhar e do narrar, ao fazer da escrita das cenas - nosso procedimento metodológico narrativo - a linguagem possível para contar o vivido. Assim, problematizamos a transmissão de testemunhos como metodologia dessa experiência clínico-política de escuta de situações de violação de direitos no contexto brasileiro.
Campo problemático: narrar o silêncio e a dor no tempo de espera
A história que a mãe nos conta é a história de uma espera. Seu filho está atrás das grades, e ela não sabe bem por quê. O juiz disse que é perigoso para a sociedade ele ficar solto ou, como disse o promotor, ele é um risco para os outros. Em seu bolso encontraram algumas gramas de maconha no dia em que a polícia entrou em sua casa. A mãe nos conta que era madrugada quando sua porta foi derrubada e os policiais começaram a revirar a casa até encontrar seu filho deitado na cama. Enquanto o levavam sob a acusação de tráfico de drogas, ele gritava que a droga tinha sido enxertada. Desde então o filho está provisoriamente internado, esperando a sentença.
A mãe vai visitá-lo toda semana. No sábado, depois de acordar às 6h, pegar um ônibus, um trem, outro ônibus, pegar a ficha, esperar cinco horas para ser chamada, passar pela revista - tira roupa, agacha, mão aqui, mão ali -, consegue ver seu filho. Na primeira vez, reparou os hematomas em seu corpo, as costas tortas e os pés inchados, mas a boca do filho não abria. Ele se manteve em silêncio, nada disse.
Essa é uma história que passou, mas não se deixa classificar no pretérito, segue acontecendo; faz do gerúndio sua morada e insiste em ser presente. A história não é só dela, é também compartilhada por outras mães. Mães que esperam. Sentadas, de pé, encostadas, comendo, conversando ou caladas: mães que aguardam para visitar adolescentes que se encontram provisoriamente fechados em bretes (celas), até que voltem para casa ou sejam transferidos para outra unidade imbuída de socioeducá-los. As mães esperam naquele ambiente aberto, de um teto, uma única parede e bancos de pedra, até chamarem o número da sua senha para que possam entrar.
No dia de visita aos filhos, no tempo de espera entre o café e o almoço, no espaço entre o portão e a entrada da unidade, entre o fechado e o aberto, vamos ao encontro das mães da fila. No tempo em que esperam, nós as escutamos. A fila não é de banco, embora seja preciso ter paciência. Não é fila de supermercado, apesar de carregarem sacolas de comida; não é fila para conseguir atendimento médico, ainda que lá se chegue e de lá se saia doente. Durante as mais de cinco horas que esperam, apenas por alguns minutos configura-se uma fila: quando começam a chamar as senhas, as mães colocam-se de pé em uma linha reta, uma atrás da outra, conforme o número em suas mãos. O momento em que se enfileiram marca o fim do nosso encontro - retiramo-nos para retornar na semana seguinte.
Nessa fila, nesse espaço-tempo de espera, escutamos sobretudo mulheres - não somente as mães, mas também avós, irmãs e namoradas de jovens em cumprimento de medida socioeducativa, privados de liberdade. São jovens com a vida presa de violência. São mulheres que têm suas casas e seus corpos invadidos, seus direitos violados. Escutamos testemunhos da violência policial que acomete esses jovens de maneira intensa e recorrente; escutamos a violência estatal que atravessa suas famílias, suas comunidades, suas vidas; a violência que marca na carne aqueles que estão à margem. As perguntas se impõem: como escutar tamanha violência do Estado brasileiro? o que fazer com o que se escuta? é possível sustentar um espaço para a narração de tamanha dor e sofrimento? desde que lugar? em que posição somos colocadas quando nos dispomos a escutá-las?
Os jovens e suas mães/mulheres, "quase todos pretos"1, são empurrados a uma posição passiva por aqueles que estão em posições de poder dentro de nossa sociedade: são pesquisados, abrigados, institucionalizados. São os outros que ditam o que lhes é melhor. Na contracorrente disso, oferecer um espaço para a construção de testemunhos coloca em relevo a posição ativa que lhes corresponde: não são somente vítimas da violência, mas também protagonistas de histórias de violência e resistência.
As histórias das quais nos tornamos testemunhas são de sujeitos oprimidos e silenciados na história de nosso país, alvos de práticas de eliminação e encarceramento em massa descritas por Fanon (2011), a que Mbembe (2011) denominou de necropolítica (cf. Noguera, 2018). A necropolítica, como um mais além da biopolítica e do biopoder, corresponde a uma política de morte, assentada sobre o racismo estrutural do Estado moderno, herdeira do colonialismo europeu e da escravidão (Mbembe, 2011).
Com efeito, a tríplice perda sofrida pelos povos escravizados - "perda de um lugar, perda dos direitos sobre seu corpo e perda de seu estatuto político" (pp. 31-32) - perdura, ainda, entre nós, decretando a morte social, o encarceramento (Ribeiro, 2016), quando não o assassinato pura e simplesmente, da população negra, em especial os jovens, no Brasil. Trata-se menos de "inscrever os corpos no interior de aparatos disciplinares [do que de] inscrevê-los, a seu tempo, na ordem da máxima economia, representada hoje pelo 'massacre'" (63). Mbembe faz menção aqui à ocupação da Palestina, como a forma mais consumada da necropolítica no contemporâneo. Contudo, sua descrição do terror como traço dos estados escravagistas e dos regimes coloniais contemporâneos não difere daquela que se poderia encontrar referida à população negra no Brasil:
Vivir bajo la ocupación contemporânea es experimentar de forma permanente la "vida en el dolor": estructuras fortificadas, puestos militares, barreras incesantes; edificios ligados a recuerdos de humillación, interrogatorios, palizas, toques de queda que mantienen prisioneros a centenares de miles de personas en alojamientos exiguos desde el crepúsculo al alba; soldados patrullando as calles oscuras, asustados por su propia sombra; ninos cegados por balas de caucho; padres humillados y apaleados delante de su familia; soldados orinando en las barreras, disparando sobre las cisternas para distraerse; cantando eslóganes agresivos, golpeando las frágiles puertas de hojalata para asustar a los ninos, confiscando papeles, arrojando basura en mitad de una residencia vecina; guardas fronterizos que vuelcan una parada de legumbres o cierran las fronteras sin razón; huesos rotos; tiroteos, accidentes mortales... Una cierta forma de locura. (Mbembe, 2011, pp. 72-73)
O anonimato dos atingidos/as, o seu silenciamento, compõem também esse arranjo dos dispositivos do regime de terror com que opera a necropolítica. Instituídos esses dispositivos como regra na mídia hegemônica em nosso país, somos levados a conviver com o fato de que "a morte de alguns é rotina comum, um luto que não se torna público e noticiado" (Noguera, 2018, p. 72). É precisamente aí que reside a importância política do testemunhar.
É preciso, então, fazer alguns furos nas disciplinas da onde vimos e nos deslocar do lugar de quem responde às dúvidas, para o qual fomos inicialmente chamadas. Ao compreendermos que o que se produz nesse espaço entre quem fala e quem escuta são testemunhos, a criação de outra direção para nossa intervenção torna-se possível e, ainda, abre novas perspectivas quanto aos seus efeitos. Para qual lugar estamos indo, ainda não o sabemos bem; entretanto, revertendo o sentido tradicional do método, conforme apontam Passos e Barros (2009), sabemos que é colocando-se em marcha que nosso caminho se fará. Buscamos, então, analisar quais elementos estão em jogo para a construção de um testemunho e como sustentar nossa presença como testemunhas disso que nos contam.
Construção do testemunho: aprendizados para nosso tempo
Durante a fila, as mães nos narram a violência por que passam nas audiências em que seus filhos são julgados. É comum, nessas situações, não entenderem tudo o que está sendo dito, nem as mães nem seus filhos, devido a uma linguagem jurídica hermética que favorece a intimidação e a humilhação. Soma-se a isso a culpabilização que as autoridades incutem nelas, alegando que teriam falhado no papel de mãe. Não se sentem escutadas, seja pelo tempo que lhes é oferecido, seja pela desconsideração com o que têm a dizer. Seus relatos, as denúncias do que acontecera a suas famílias, são frequentemente rechaçados. Se, para os ouvidos do promotor, do juiz e da Polícia - representantes do Estado -, essas histórias são deslegitimadas, como restituir valor às suas palavras e oferecer um lugar de escuta e reconhecimento de suas experiências?
Para responder a tal desafio, propomos pensar no testemunho como uma ferramenta clínica-política, não somente no ato, mas em processo, como construção e exercício que transcendem ao momento do julgamento e ao uso jurídico. De modo geral, a palavra testemunho é, com efeito, associada ao campo jurídico ou, mais precisamente, a um julgamento. A ocasião em que alguém é chamado a dar testemunho remete à comprovação ou não da verdade dos fatos em questão. Nesse momento, qualquer hesitação pode ser mal interpretada e comprometer o veredito. O "bom depoimento", portanto, seria aquele cuja narrativa é redonda, livre de lacunas e gagueiras e, quando repetido, não sofre alterações, mantém-se sempre o mesmo.
A noção de testemunho que aqui lapidamos toma uma direção bastante distinta dessa que é própria a um depoimento jurídico. O exercício testemunhal não se compromete com o tribunal, não está preocupado com a verdade que se pretende neutra e objetiva. À diferença do depoimento colhido nos tribunais, o testemunho não pode jurar "dizer a verdade e nada mais que a verdade", pois não está a serviço dos fatos tais como teriam realmente ocorridos. Enquanto o depoimento é considerado como prova, podemos dizer que o testemunho coloca acento na experiência do sujeito, que sempre será singular. Por isso o testemunho de um não será idêntico ao do outro, ainda que ambos tenham passado pelo mesmo acontecimento. E, tanto quanto o conteúdo, sublinha-se a forma como o sujeito consegue colocar essa experiência em palavras, imagens ou gestos. Atentamos para os silêncios, o tom de voz, as palavras vacilantes, o medo que subjaz ao contar, as lembranças que afloram ao narrar.
Nesse exercício, sublinhamos uma construção lacunar e ficcional, como defendem Giorgio Agamben e Jacques Derrida, respectivamente. Debruçado nos testemunhos dos sobreviventes da shoah - o grande extermínio arquitetado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial -, o filósofo italiano parte da compreensão de que os esforços empreendidos pelos regimes totalitários ultrapassaram o desaparecimento forçado dos corpos. Para além do assassinato desses corpos, o que pretendiam era a demolição do humano que os habitava, o assujeitamento perpétuo ao algoz, o submetimento à condição de vida nua. A lacuna seria uma condição inerente ao testemunhar, fazendo aparecer as marcas dessa condição no sujeito (Agamben, 2008).
Já o filósofo franco-argelino, preocupado com a tarefa ética e estética do escritor - na literatura, na história e na filosofia -, marca a importância do testemunho para narrar a morte, o intraduzível, as guerras e, podemos acrescentar, as violências que não são nomeadas.Afirma Derrida (2015, p. 36) que "o testemunho está em parte sempre ligado à possibilidade ao menos da ficção, do perjúrio e da mentira. Se eliminada tal possibilidade, nenhum testemunho será mais possível, e não teria mais, em todo caso, seu sentido de testemunho"; tomar-se-ia puramente prova, informação - como no conceito clássico de atestação no âmbito jurídico. A concepção de testemunho almejada, conforme abordado anteriormente, não possui como último objetivo a comprovação da veracidade dos fatos e o julgamento de seu algoz.
Todavia, o autor expõe as sombras que rondam um testemunho imbricado na ficção. O receio em afirmar uma ficção como testemunho provém da ideia de que o testemunho verdadeiro seria aquele que é sério, real e responsável. Da mesma forma, Agamben sustenta que fato de o testemunho carregar consigo uma lacuna coloca em questão a identidade e a credibilidade das testemunhas.
Tais características fazem eco ao que encontramos em nossa experiência, em que os testemunhos dos jovens e suas famílias vêm acompanhados de uma suspeição, são facilmente deslegitimados, negados, colocados em cheque, contrastando com uma narrativa oficial dos acontecimentos, a que Walter Benjamin (1987) chama de história dos vencedores. Em se tratando de violência de Estado, esses testemunhos raramente são escutados. Há uma invisibilização dessas histórias e daqueles que são seus protagonistas. Os atingidos/as diretos pela ditadura, em nosso passado recente, ou os jovens internados e suas famílias, na atualidade de que falamos no presente, sofrem uma violência que não é somente contra o corpo, mas também em relação ao modo como são subjetivados.
No que se refere à experiência de atendimento aos atingidos/as pela violência do Estado ditatorial, diferente daquela do Grupo Tortura Nunca Mais, de que falamos em nossa introdução, podemos referir o projeto Clínicas do Testemunho, proposto pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça como política de reparação psíquica. Durante seu funcionamento (2013-2017), o projeto visou acolher os testemunhos de pessoas afetadas pela ditadura civil-militar no Brasil, discutindo os efeitos psíquicos, sociais e políticos da violência de Estado no país. Entre as reflexões produzidas a partir dessa experiência (Sigmund Freud Associação Psicanalítica, 2014; Clínicas do Testemunho RS e SC, 2018)2, encontramos outras duas características do exercício testemunhal, para além do seu caráter lacunar e ficcional. A primeira delas diz da forma compartilhada da construção do testemunho, sempre tecido conjuntamente entre aquele/a que foi afetado/a pela violência e aqueles/as que o escutam: trata-se de uma co-construção. O testemunho não é uma criação unilateral; nossa escuta é parte ativa no processo de construí-lo. Um testemunho, portanto, só pode se materializar no espaço constituído entre quem fala e quem escuta. É nesse entre que deslocamentos e transformações ocorrem, à diferença do depoimento, que não pode nunca ser mudado.
A segunda característica remete às condições sociais de recepção, referidas ao contexto em que esse testemunho é tecido. A forma e o tempo com que um testemunho vai sendo construído, se reflete a elaboração singular do sujeito, também diz de uma elaboração social.
O testemunho enquanto ato público, por excelência, devolve à história sua dimensão coletiva. No entanto, igualmente, é um gesto que se oferece aos fluxos que tecem o político, em que se tramam as disputas sobre os sentidos da história e da memória coletiva. Nesse sentido, apostamos no efeito de transformação que a recepção social de um testemunho possui sobre o sujeito. O testemunho é sempre uma co-criação, em que a posição do sujeito frente ao vivido é constantemente re-fabricada na medida em que condições sociais de recepção de seu relato são possibilitadas. (Indursky & Conte, 2017, p. 155)
Assim, para além de uma transformação do sujeito como consequência da recepção social de seu testemunho, nossa escuta aposta nos efeitos do testemunho no plano social. O testemunho de uma violência de Estado nunca é apenas uma história individual; a maneira como o escutamos e o que fazemos para lidar com seus efeitos diz de nossa práxis social. A escuta de testemunhos de violência de Estado em um país com uma democracia incipiente e débil nos confronta com a brutalidade da violação de direitos a que as mães e seus filhos são submetidos todos os dias. O reconhecimento destes testemunhos, carregados de uma violência que tem seu lastro em nossa história de escravidão racial, ultrapassa a escuta de um para constituir a enunciação coletiva do que se passa com os modos de viver em nosso país. Uma nova questão se coloca quando esta matéria pulsante do que se escuta nos invade: como escutar um testemunho que aponta uma crise em nós?
Acompanha-nos neste percurso uma tensão do nosso tempo: o silenciamento renitente de um testemunho cotidiano na história deste país - a escravidão e o racismo. Ainda que sejam ditas e escritas muitas palavras sobre as agressões que os adolescentes sofrem ao serem apreendidos, sobre a violação de direitos a que suas mães são submetidas, em suma, sobre a violência de Estado que a população majoritariamente preta, pobre e periférica sofre diuturnamente no Brasil; ainda que essas palavras façam furo em discursos duros e quadrados, é possível perceber os novos muros que se vão erguendo contra essas vozes.
Desde a colonização indígena e o extermínio dos povos originários, passando pela escravidão da população negra até a última ditadura civil-militar, em que pese um recente aumento das narrativas em torno desses acontecimentos, observamos um silenciamento do Estado, a falta de esforços em atribuir valor aos testemunhos dos que são atingidos/as por esses eventos ou, ainda, a deslegitimação dessas narrativas e a desresponsabilização do Estado na produção da violência. Por conseguinte, quando falamos em silenciamento da violência estatal brasileira, acusamos um silêncio constituído menos pela escassez de palavras e mais pela ausência de escuta.
Ora, um dos grandes aprendizados com os estudos realizados a partir da escuta das vítimas é de que, nós o vimos acima, não há testemunho sem a escuta de um outro. O testemunho localiza-se precisamente em nós; para desatar um nó, é preciso encontrar ao menos as duas pontas de uma linha. Entre essas duas pontas, podemos vislumbrar a construção de uma ponte, algo que parta de um e alcance o outro. A sustentação dessa ponte a ser criada exige, portanto, corresponsabilidade entre quem passou pelo evento de violência, quem se coloca como testemunha ao escutar essa experiência e, fundamental acrescentar, o Estado. Vítima, sociedade e Estado entrelaçam-se como uma trama cujos fios fornecem as bases de uma memória coletiva. Quando uma das partes se ausenta, isto é, quando um dos fios se rompe, o resultado é um tecido roto - uma memória vacilante do passado e um frágil futuro.
O modo de subjetivação moderno, ao nos atar ao indivíduo interiorizado, impede reconhecer a história de nossas dores como a história de uma coletividade. Nossa coletividade - brasileiros e brasileiras - carrega a história silenciada da escravidão. Silenciamos a memória de uma nação feita da perda da história de outra nação. Se não soubermos contar a dor dessa história, não nos reconheceremos habitantes desta terra e seguiremos à espera de um lugar por habitar.
Considerações finais
O horizonte testemunhal - aqui sustentado como narrativa singular dessas mulheres cuja dor nós escutamos, narrativa ancorada em um espaço de responsabilidade ética entre quem fala e quem escuta - coloca acento no reconhecimento às violações, contra a deslegitimação atuada especialmente pelas figuras de autoridade. A desprivatização da experiência de violência ocorre na medida em que uma ponte pode ser construída entre quem viveu e quem escuta, sem seguir um tempo cronológico, sem convencer o outro; sua construção dá-se concomitante ao seu compartilhamento, a uma saída da redoma privada, enlaçando experiência pessoal com história e memória coletivas. A construção de testemunhos permite tecer histórias que, ainda que narradas em primeira pessoa, têm como sujeito o "nós". São histórias individuais e coletivas que fazem parte de uma memória social, uma memória política. Junto com Benjamin (1987), constatamos que a memória é sempre produto de disputas políticas, e não basta termos palavras para garantir a transmissão de uma história. Lembremos que anonimato e silenciamento compõem as estratégias com que opera a necropolítica, tornando surdos os nossos ouvidos. Não mais se trata de constituir, necessariamente, uma denúncia ou de alcançar uma maior publicização ao ocorrido. O desafio que se apresenta é outro: ouvir essas histórias sem a pretensão de julgar a veracidade dos fatos, sem enquadrá-los em provas objetivas e a serviço de julgamentos. Mais do que provas, os testemunhos tornam-se peças-chaves na construção da história coletiva, a qual ganha novas tonalidades e versões que contrastam com a história dos vencedores. (Benjamin, 1987)
A experiência nos conduz a um desvio na forma de olhar para a história tal qual a conhecemos: da escrita objetiva em letra padrão para os buracos e gagueiras do testemunho. Ao destacar-se a escuta aos sujeitos atingidos pela violência estatal e a abertura de espaço para a construção dos testemunhos, impõe-se uma profunda reflexão sobre a responsabilidade ética das testemunhas.
Voltemos à experiência que nos moveu a pensar, o Coletivo Fila. Se de início enxergávamos apenas as mães como testemunhas daquilo que ocorria a seus filhos, passamos a nos perguntar se nós, a quem suas histórias são endereçadas, também não ocupamos a posição de testemunhas, sustentando a ampliação dessa função para além da testemunha ocular. Somos contagiadas pelos testemunhos; precisamos agenciá-los. É preciso escutar e transmitir. É assim que a questão de que nos ocupamos nesta pesquisa também deslocou-se e transformou-se; ao nos perguntarmos como escutar a violência, passamos a desdobrar nossa análise em relação aos modos de sustentar nossa presença como testemunhas disso que nos contam, num percurso de formação em psicologia que afirma uma clínica política.
Nossa pesquisa buscou dar duração à fila no plano do conhecimento, fazendo-o repercutir a vida de mães brasileiras em cujos ventres se aninha nossa história ancestral. Assim, a fila-escuta cria nó: a recepção de um testemunho é enlaçada em uma rede de herança, transmissão e responsabilidade coletiva. Ao voltarmos para a fila, sentimos a mudança. O que escutamos das mães naquela zona de espera já não é uma história pronta. À medida que oferecemos um gesto de acolhida, uma escuta, algo se transforma naquele entre - não mais uma história para sair no jornal, não a grande verdade sobre o fato ou uma denúncia a ser apurada. O testemunho é compreendido, desta feita, como uma construção que ocorre à medida que se abre espaço para o reconhecimento da verdade do sujeito; verdade que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva - uma co-construção entre aquele que tem algo a dizer e aquele que pode escutar.
A transmissão almejada, portanto, não é unidirecional. Como dissemos de início, pôr-se a escutar um testemunho é não somente ofertar reconhecimento à história de quem sofreu a violência, mas também reconhecer essa história como nossa, como história de nosso país. Por isso também é preciso dar atenção aos efeitos do testemunho em quem o escuta, na medida em que nos reconhecemos implicados em uma mesma história.
"Para transmitir é preciso primeiro que existam as bases para um processo de identificação, para uma ampliação inter-geracional do 'nós'.", afirma Elisabeth Jelin (2002, p. 126). Conforme a pesquisadora argentina, essa identificação do nosso lugar na sociedade em que vivemos é imprescindível para legitimar e institucionalizar o reconhecimento público de uma memória. A transmissão de uma história implica em olhar atentamente para o que nos foi transmitido. Produzir as torções necessárias no modo como escutamos aqueles que, alvos da necropolítica, são marcados por constantes violações requer questionarmos a maneira como produzimos conhecimento, as nossas referências de verdade e o lugar em que nos posicionamos, desde as práticas em psicologia, nos limiares do silenciamento. Neste percurso, como psicólogas que atuam em processos de formação, percebemos que o testemunho de quem sofre violência estatal se desdobra numa escuta que implica no testemunho daqueles/as que vivem esta prática clínica como estratégia para compor uma psicologia de nosso tempo. O exercício ético da transmissão nos leva ao compromisso com o sentido que esta experiência produz na formação de psicólogos/as e pesquisadores/as, constituindo uma estética dos modos de aprender e cuidar do fazer psi em diálogo com as vozes que lutam pela vida em nosso país.
Referências
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Recebido em: 19/04/2018
Aprovado em: 30/01/2019
1 Referência à música "O Haiti", de Caetano Veloso (1993).
2 Materiais disponíveis em: <http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro-clinicas-do-testemunho.pdf>; <www.sig.org.br/sig/projetos-sig/intervencoes-psicanaliticas/ ; www.appoa.com.br/livros/>