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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

A comissão nacional da verdade e a construção de memórias sociais

 

The national truth commission and the construction of social memories

 

La comisión nacional de la verdad y la construcción de memorias sociales

 

Commission nationale sur la vérité et la construction de mémoires sociales

 

 

Karen Sibila Strobel Moreira WeimerI; Denize Cristina de OliveiraII; Luis Flávio Chaves AnunciaçãoIII

IPsicóloga. Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Cuiabá (UNIC); karen.weimer@hotmail.com
IIEnfermeira. Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutora em Psicologia Social pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris/França. Atualmente é Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; Professora Titular da Área de Pesquisa na Faculdade de Enfermagem/UERJ; dcouerj@gmail.com
IIIPsicólogo. Doutor em Psicometria pela Pontifícia Universidade Católica (PUC- Rio), Mestre em Saúde Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Especialista em Métodos Quantitativos (McGill University). Atualmente, é professor do Departamento de Psicometria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da ANOVA - Estatística e Psicometria; luisfca@gmail.com

 

 


RESUMO

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi uma iniciativa visando esclarecimento sobre violações de direitos humanos cometidos entre 1964 e 1985. Por sua intrínseca participação social, pode-se também estudar uma característica da memória social, que é o esquecimento. Com o objetivo de analisar os aspectos psicossociais da memória em relação à ditadura por meio da percepção e sentimentos gerados em torno da CNV, 159 participantes (51,6% mulheres, 68,6% de esquerda), estudantes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foram entrevistados e responderam questões atitudinais e emocionais sobre a CNV. Os resultados evidenciaram que o conhecimento sobre a Comissão e a orientação política dos entrevistados têm efeitos significativos sobre o conjunto de variáveis analisadas. Participantes auto declarados de esquerda apresentaram maior acordo com a atuação da CNV, além de maior intensidade de sentimentos positivos e negativos. Participantes auto declarados de direita apresentaram maior concordância com ações de esquecimento. Esta pesquisa traz contribuições ao estudo das atitudes e da memória social frente à CNV e se constitui como fonte geradora de novas hipóteses sobre o tema.

Palavras-chave: Psicologia Social; Memória Social; Ditadura; Comissão Nacional da Verdade; Esquecimento.


ABSTRACT

The Brazilian National Truth Commission (NTC) was an initiative aimed at clarifying human rights violations that occurred between 1964 and 1985. Because of its intrinsic socialparticipation, it allows the study of one characteristic of social memory, which is forgetfulness. With the aim of exploring psycho-social aspects such as perceptions and attitudes toward Brazilian Truth Commission, 159 participants (51.6% women, 68.6% left-wing) undergrad students from the State University of Rio de Janeiro were interviewed and answered attitudinal and emotional questions about the NTC. The results revealed that knowledge about the NTC andpolitical orientation have significant effects on the set of analyzed variables. The self-declared left-wing participants have had a greater agreement with NTC enterprises, in addition to having a greater intensity of positive and negative feelings about the NTC. The self-declared right-wing participants have had a greater agreement with forgetfulness actions. This research brings important contributions to the study of attitudes and social memory toward Brazilian Truth Commission, and facilitates the development of new hypotheses about social memories.

Keywords: Social Psychology; Social Memory; Dictatorship; National Truth Commission; Forgetfulness.


RESUMEN

La Comisión Nacional de la Verdad fue una iniciativa para esclarecimiento sobre violaciones de derechos humanos cometidos entre 1964 y 1985. Por el motivo de su participación social intrínseca, también es posible estudiar una característica de la memoria social, que es el olvido. Con el objetivo de explorar aspectos de la memoria de la ditadura militar, 159 participantes (51,6% mujeres, 68,6% con orientación política de izquierda), estudiantes de la Universidad del Estado de Río de Janeiro fueron entrevistados y respondieron cuestiones actitudinales y emocionales sobre la CNV Los resultados muestran que el conocimiento sobre la CNVy la orientación política tienen efectos significativos sobre el conjunto de variables analizadas. Participantes auto declarados de izquierda presentaron mayor acuerdo con la actuación de la CNV, además de mayor intensidad de sentimientos positivos y negativos. Los participantes auto declarados de la derecha, tienen mayor concordancia con acciones de olvido. Esta investigación trae contribuciones al estudio y se constituya como como una fuente generadora de nuevas hipótesis sobre la memoria social.

Palabras-clave: Psicología Social; Memoria social; Dictadura; Comisión Nacional de la Verdad; Olvido.


RÉSUMÉ

La Commission nationale de la vérité (CNV) était une initiative visant à clarifier les violations des droits de l'homme commises entre 1964 et 1985. Par saparticipation sociale intrinsèque, onpeut également étudier une caractéristique de la mémoire sociale, à savoir l'oubli. Avec le but d'analyser les aspects psychosociaux de la mémoire en relation avec la dictature à travers la perception et les sentiments générés autour de la CNV, 159 participants (51,6% de femmes, 68,6% de gauche), étudiants de l'Université de l'État de Rio de Janeiro (Brésil), ont été interrogés et ont répondu à des questions d'attitude et d'émotion au sujet de la CNV. Les résultats ont montré que la connaissance de la Commission et l'orientation politique des personnes interrogées avaient des effets significatifs sur l'ensemble des variables analysées. Les participants autoproclamés de gauche ont montré un plus grand accord avec les performances du CNV, ainsi qu'une plus grande intensité de sentiments positifs et négatifs. Les participants auto-déclarés de droite ont montré un plus grand accord avec les actions d'oubli. Cette recherche apporte des contributions à l'étude des attitudes et de la mémoire sociale devant la CNV et constitue une source de nouvelles hypothèses sur le sujet.

Mots-clés: Psychologie Sociale; Mémoire Sociale; Dictature; Commission Nationale de La Vérité; Oubli.


 

 

Introdução

A Comissão Nacional da Verdade (neste texto conhecida como CNV) se configura como um instrumento para investigar diferentes aspectos na relação entre sujeitos, política e democracia. Entre os diversos países em que Comissões da Verdade foram criadas, percebe-se que tal iniciativa só foi possível graças à unificação de frentes de luta, no sentido de denunciar, frear ou impedir as possíveis voltas de regimes autoritários e violadores dos direitos humanos. No Brasil, isso não foi diferente. Nesse país, a CNV foi criada com a Lei nº 12.528/2011, de 18 de novembro de 2011, uma vez que se entendeu que o esclarecimento público das violações de direitos humanos cometidos por agentes do Estado entre 1964 até 1985 era vital ao funcionamento democrático da sociedade.

Dessa maneira, entende-se que a CNV foi um instituto fundamental e necessário na transição de um regime totalitário para a democracia que temos hoje, bem como para assegurar a reparação daqueles que sofreram com as graves violações de direitos humanos. Em linhas gerais, a CNV teve como função principal a reconciliação do Estado com a sociedade, dado que foi uma tentativa de recuperar a memória daqueles atingidos pelos processos de violação dos direitos humanos (Canabarro, 2014).

Entre as infrações e crimes cometidos pelos militares durante esse momento histórico estão demissões sumárias de servidores públicos, aposentadorias compulsórias, suspensão de direitos políticos, cassação de mandatos, perseguição a sindicalistas e líderes estudantis, perda de vaga em escola pública ou expulsão de escola particular, expulsão do país, exílio forçado, práticas de detenções arbitrárias. Ainda, aponta-se o uso da tortura, os sequestros, estupros e assassinatos.

A operacionalização da CNV apresentou algumas características que merecem destaque. Em função da larga extensão territorial do Brasil, a CNV foi consolidada em diferentes níveis e desenvolveram-se comissões municipais e estaduais que, por sua vez, alimentavam a CNV de dados e outras informações. Em relação a seu tempo de atuação, desde o início (2012) até o término (2014), passaram-se dois anos e, ao fim foi divulgado um extenso relatório contendo as informações levantadas ao longo de seu período de trabalho.

Para Schmidt (2014), não cabia à CNV punir ou julgar culpados, mas lançar luz sobre uma série de crimes perpetrados por agentes governamentais, em especial no período da ditadura civil-militar iniciada em 1964, esclarecendo suas circunstâncias, motivações e agentes, entre outros aspectos. Para o autor, mesmo com inúmeras dificuldades, trata-se de uma iniciativa fundamental para que se possa encarar de frente uma série de situações traumáticas, próprias desse passado recente, que insiste em não passar e que macula até hoje a democracia brasileira.

Assim, entre as diferentes propostas, a CNV defendeu que a memória e a verdade sobre o período de repressão deveriam vir ao conhecimento da população para que situações de violação de direitos humanos não voltassem a acontecer e para que pudesse haver reconciliação. Na busca pela memória e verdade foram utilizados documentos da época do regime militar disponibilizados por meio da Lei de Acesso a Informação; pesquisas anteriormente realizadas sobre os mortos e desaparecidos; cooperação e o diálogo com comissões da verdade estaduais, municipais, universitárias, sindicais e de seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) (CNV, 2014).

O relatório foi levado a conhecimento público em 2014 e, desde então, vem sendo alvo de pesquisas acadêmicas em diversas áreas do conhecimento, como a comunicação social (Sanglard & Neves, 2016) e as ciências políticas.

A presente investigação se insere no campo da Psicologia Social, sendo esta uma disciplina autônoma, que tem por objeto específico a interação social (Sá, 2005). Tem como enfoque a teoria da memória social proposta inicialmente por Halbwachs (2006). Para o autor,

O que subsiste em nosso pensamento não são imagens totalmente prontas, mas está na sociedade todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, pois a memória sempre está relacionada a grupos e/ ou fatos sociais. Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que muda segundo o lugar que se ocupa e, esse mesmo lugar, muda segundo as relações que se mantém com outros ambientes. (p. 81)

Sá (2005) articula uma sistematização entre vertentes de foco individual e social acerca da memória. O autor propõe quatro eixos orientadores, sendo que os dois primeiros consideram a memória como uma construção feita em função de recursos proporcionados pela sociedade, porém, quem de fato se lembra e se esquece de algo são os indivíduos que participam dessa sociedade. Os demais eixos consideram que emoção, afeto e motivação são sempre partes integrantes das versões do passado, construídas pela memória e que a sua construção, manutenção e transmissão dependem sempre da interação e da comunicação social (Sá, 2005, 2007, 2012, 2013, 2015; Sá et al., 2009).

A presente pesquisa tem como foco de investigação um elemento complementar da memória, a saber, o esquecimento. Para Huyssen (2014), a cultura contemporânea é obcecada pela memória, enquanto o esquecimento é malvisto e, na melhor das hipóteses, aparece como uma parte inevitável da memória.

Segundo Ricoeur (2007) as versões do passado que se perpetuam na construção de memórias, o que é lembrado ou o que é esquecido, precisa ser compreendido num campo de termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão - fenômenos estes que revelam um espectro de estratégias tão complexo quanto o da própria memória. Para Sá (2015, p. 3)

Uma memória persiste porque foi objeto de uma construção social, ou seja, de um investimento por parte de pessoas e grupos sociais. Caso isso não ocorresse, o fato ou circunstância a que ela se refere teria simplesmente "caído no esquecimento". A tendência dos acontecimentos e mesmo das situações prolongadas é passar, serem esquecidos. Os que permanecem, ou seja, que são lembrados, é porque tiveram sua memória socialmente construída e mantida ou, como também comumente se diz, "cultivada".

A memória e o esquecimento social nesta pesquisa são analisados considerando os processos pelos quais um fato social tende a ser mantido por um grupo de indivíduos como alvo de construção de uma memória ou tende a cair no esquecimento.

Pretende-se contribuir para a discussão do esquecimento inserido no campo da Psicologia Social da memória, bem como auxiliar no preenchimento de uma lacuna de estudos que visam analisar empiricamente as atitudes de universitários quanto aspectos sociais que envolvam o que se entende, também, pelo dever de memória, reforçado pelo trabalho da CNV no país. Para Gagnebin (2006), alguns acontecimentos históricos, como os horrores de Auschwitz e, por que não, as atrocidades cometidas em regimes de exceção, são o emblema daquilo que não pode, não deve ser esquecido: daquilo que nos impõe um "dever de memória".

É possível encontrar literatura diversa sobre tais condições sob os pontos de vista histórico e sociológico. No entanto, ainda há poucas pesquisas que fazem uso de técnicas quantitativas, como as escalas de atitudes, que reúnem opiniões, crenças e valores sobre o tema. Dessa maneira, busca-se aqui explorar esse fenômeno a partir de uma pesquisa exploratória, com resultados analisados à luz do campo em construção da teoria psicossocial da memória, em que se considere também o esquecimento, com o foco no contraponto entre dever de memória e a necessidade de esquecimento.

Este estudo foi realizado tendo por inspiração três outras pesquisas desenvolvidas na América Latina, respectivamente Chile, Argentina e Peru (Arnoso, Cárdenas, & Páez, 2012; Espinosa, Schmitz, & Cueto, 2015; Zubieta, Maitane, Bombelli, Muratori, & Mele, 2013). Eles partiram de premissas psi-cossociais e estão entre os poucos já realizados em países da América Latina.

Nesse aspecto, Amoso, Cárdenas e Páez (2012) buscaram analisar o impacto psicossocial da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação de 1990 e da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura de 2003 na opinião pública no Chile, assim como emoções e atitudes relacionadas ao processo de verdade, justiça e transição resgatados pelas comissões. Para isto, foi realizado um estudo quantitativo em quatro regiões do país. A amostra foi 1.278 participantes de ambos os sexos e entre 18 e 90 anos. As variáreis de caracterização sociodemográfica abrangiam também nível socioeconômico e orientação política.

Os resultados mostraram que a maior parte dos participantes aprovava o trabalho das comissões instauradas no país, corroborando a ideia de aprender com os erros passados a fim de evitar repeti-los. Os participantes que se mostravam favoráveis à busca pela verdade e memória justificavam seu posicionamento afirmando que este resgate evitaria que a violência se repetisse na sociedade, e também pelo direito de familiares das vítimas de conhecerem a verdade sobre o que aconteceu nos anos de repressão. Uma parcela menor dos participantes expressou desacordo com a ideia de abrir velhas feridas. Os posicionamentos que davam preferência ao esquecimento estavam relacionados às consequências que os grupos atribuíam a esta lembrança, pois remexer o passado causaria mais dor e poderia gerar reações abrindo novos ciclos de vingança.

Zubieta, Maitane, Bombelli, Muratori, e Mele (2013), na Argentina tiveram por objetivo analisar o grau de conhecimento e aprovação sobre o trabalho realizado pela "Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas", bem como a eficácia percebida e a o posicionamento político-ideológico (direita ou esquerda) nessas avaliações. Os resultados revelaram diferenças em função da orientação política-ideológica. Aqueles que se consideraram de direita julgaram menos efetivos os trabalhos da comissão no auxílio para criar uma história integradora, também consideram menos efetivos os trabalhos da Comissão de julgar os responsáveis pelos crimes ocorridos no período de repressão e de colaboração para que episódios desse tipo não voltem a acontecer no país. Destaca-se que quanto mais de direita se posicionaram os indivíduos, menor foi a informação que possuíam a respeito do tema (Zubieta et al., 2013).

No Peru, Espinosa et al. (2015) analisaram o impacto da Comissão da Verdade e Reconciliação em um conjunto de atitudes sociais e políticas de estudantes de uma universidade de Lima, Peru. Quase metade dos participantes do estudo afirmaram ter pouco ou nenhum conhecimento sobre a CRV e as situações que levaram a sua instauração como instância de justiça transicional. O desconhecimento sobre a CRV se vinculou a um maior acordo com as atitudes frente ao esquecimento e uma atitude mais favorável frente à violência como mecanismo de controle social, aspectos que aparecem como fatores de risco na prevenção de ciclos de vingança ou no surgimento de novas formas de violência. Os resultados obtidos mostram que um maior conhecimento da CRV está associado a atitudes mais positivas sobre a mesma. De maneira específica, os que reportam maiores níveis de informação sobre a CRV refletem uma maior valoração e aprovação do trabalho da mesma. Consistentemente, os resultados mostram que um maior conhecimento da CRV vai associar-se com maiores níveis de compartilhamento social, tanto sobre a comissão quanto sobre a época de violência.

Posto isso, o objetivo desta pesquisa é o de analisar, especificamente, aspectos psicossociais da memória em relação à ditadura por meio da análise da percepção e dos sentimentos gerados pela CNV entre estudantes universitários. Em adição, pretende-se oferecer novas evidências sobre o campo teórico da memória social, além de propor novas hipóteses sobre o tema.

 

Metodologia

Participantes

A presente pesquisa foi realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), campus Maracanã, Rio de Janeiro - RJ. Os participantes foram alunos de graduação de diferentes cursos das áreas de ciências humanas e sociais; exatas e da terra e da saúde e biológicas. Nas áreas das ciências humanas e sociais foram reunidos os cursos: letras, direito, economia, administração, ciências sociais, filosofia, pedagogia, história, psicologia, comunicação social. Nas áreas das ciências exatas e da terra foram agrupados os cursos de: matemática, estatística, engenharia de produção, engenharia elétrica, ciências da computação, engenharia civil, engenharia eletrônica, engenharia ambiental, física. Nas áreas das ciências da saúde e biológicas foram reunidos os cursos: educação física, enfermagem, biologia, medicina, odontologia.

Inicialmente, foram selecionados de forma intencional 200 alunos de graduação cursando qualquer dos períodos da graduação, que se declararam tendo orientação política de "direita", "centro-direita", "esquerda", "centro-esquerda" e "outros". Considerando os objetivos do estudo, categorizaram-se as opções "direita" e "centro-direita" como "direita" e as opções "esquerda" e "centro-esquerda" como "esquerda", sendo os sujeitos com opção "outros" não utilizados nas análises desta pesquisa. Dessa maneira, a amostra final deste estudo foi composta por 159 participantes. A Tabela 1 apresenta as principais características dos participantes.

Instrumentos

Para a coleta de dados foram utilizados os seguintes formulários aplicados por meio de entrevista: caracterização de dados sociodemográficos e formulário para análise do envolvimento e posicionamento sobre a CNV e o regime militar brasileiro. Este último instrumento foi elaborado com base naqueles adotados em pesquisas semelhantes no Chile (Arnoso, Cárdenas, & Páez, 2012), na Argentina (Zubieta et al., 2013) e Peru (Espinosa, Schmitz & Cueto, 2015), readequados para as particularidades históricas, sócio-políticas e culturais do Brasil.

O formulário de caracterização sociodemográfica identificava as características dos participantes com informações tais como: i. sexo; ii. idade; iii. cidade de residência e bairro; iv. curso de graduação cursado na UERJ com período letivo; v. forma de ingresso na universidade; vi. orientação religiosa; vii. orientação política; viii. participação em organizações sociais ou políticas; ix. conhecimento sobre a CNV; x. veículos de informação sobre a CNV e o de maior acesso e xi. grau de informação sobre a CNV.

O segundo instrumento foi formado por três grandes blocos de questões fechadas. O primeiro bloco de questões buscava identificar aspectos relacionados à CNV. Dessa forma, uma escala composta por oito itens gerais indagava sobre o conhecimento da CNV, o grau de acordo com relação à Comissão, o julgamento que o participante possuía sobre os resultados alcançados e a contribuição social obtida pela CNV. As respostas eram dadas em uma escala Likert de quatro pontos que começava em "discordo totalmente" até "concordo totalmente".

O segundo bloco investigava as emoções que a CNV despertava nos participantes e foi particularmente adaptado da escala de Fredrickson (2009) e Etexberria e Páes (1989). Esta escala incluía uma lista de oito emoções, algumas positivas e outras negativas (esperança, ira, culpa, vergonha, alegria, orgulho, medo e tristeza) e o participante deveria apontar o quanto pensar no relatório da CNV lhe causava cada uma dessas emoções. A escala possuía cinco pontos, que começavam em "nada" até "muito".

O terceiro bloco visava explorar a predisposição para revisar o passado adaptando a escala de Gibson (2004), que teve três itens mantidos. O primeiro interrogava sobre a possibilidade de pessoas que sofreram violações de direitos humanos perdoarem àqueles que cometeram tais atos. O segundo era sobre a relevância de aprender sobre o passado para que se evite repetir tais erros e o terceiro referia-se à opinião sobre abrir velhas feridas falando do que aconteceu no passado. Nessa escala, os itens caracterizavam-se também por respostas do tipo Likert de quatro pontos, em que o primeiro nível era igual a "absolutamente não está de acordo" e o nível máximo significava que o participante estava "totalmente de acordo".

Procedimentos

Os participantes foram abordados nos corredores da universidade e convidados a participar da pesquisa. Após a explicação do detalhamento ético e somente após a concordância do participante, coletaram-se as informações sociodemográficas. Entre tais informações, questões relacionadas ao gênero, curso, período e orientação político-ideológica.

Após esse momento inicial, averiguou-se o conhecimento da CNV pelo participante, a partir de uma pergunta direta ("Você conhece a CNV?"). Caso a resposta fosse negativa, o participante era informado sobre a CNV por meio de um texto explicativo, construído com base nas pesquisas anteriormente citadas e que apresentava assertivamente os objetivos e as realizações alcançadas pela CNV. Essa etapa foi realizada pela autora principal e teve duração média de trinta e cinco minutos.

Após essa etapa, foi aplicado o instrumento de questões abertas e fechadas sobre os temas: percepção sobre a Comissão Nacional da Verdade; situação atual do país; violência, direitos humanos e igualdade social; regime militar.

 

Análise estatística dos dados

Inicialmente, a base de dados foi verificada buscando assegurar a adequação de formato de codificação e ausência de eventuais erros. Em seguida, as variáveis foram analisadas em função de seu nível de medida. Não houve nenhuma exclusão de outlier, necessidade de imputação de valores ou ajustes post-hoc pela realização de múltiplas comparações. A caracterização sociodemográfica foi explorada por frequências e proporções, bem como por suas médias e desvios-padrão. As variáveis dos questionários foram tratadas como contínuas e apresentadas por médias e desvios-padrão. O Coeficiente Alfa de Cronbach foi utilizado para explorar a consistência interna dos dados.

A etapa inferencial foi realizada pela versão robusta do Teste T (Welch Test) e considerou independentemente as diferenças que o Conhecimento (sim ou não) sobre a CNV e a orientação política (esquerda ou direita) apresentavam nas médias das respostas dos questionários. O tamanho do efeito foi calculado a partir do d de Cohen. As correlações foram obtidas pelo Produto-Momento de Pearson.

Todos os testes inferenciais foram bicaudais e a signifi cância foi previamente fi xada em 0,05. O software R versão 3.51 foi utilizado com adição dos pacotes tidyverse (Wickham, 2016), psych (Revelle, 2015) e effsize (Torchiano, 2017).

Considerações éticas

Foi disponibilizado aos participantes um termo de consentimento livre e esclarecido para assinatura, após informações pertinentes, conforme Resolução n º 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Os aspectos éticos desta pesquisa foram assegurados pela submissão do projeto a Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (COEP - UERJ) aprovado em 08 de junho de 2017 com o parecer de número 2.108.481.

Resultados

Os resultados sobre as Atitudes frente à CNV foram analisados em função do conhecimento que os participantes apresentavam sobre a CNV e sua orientação política. A Tabela 2 apresenta esses achados.

Aqueles participantes que afirmaram ter conhecimento da CNV tiveram maior pontuação no que se refere ao acesso às informações por jornais, revistas ou livros (p = 0.01). No entanto, ter esse conhecimento não teve efeito significativo nas pontuações obtidas nas outras questões sobre as atitudes frente à CNV. Houve uma diferença estatisticamente significativa entre participantes de esquerda e direita no que se refere ao grau de acordo sobre a atuação da CNV. Participantes de esquerda tiveram maior grau de concordância com a atuação da CNV (M = 3,66, DP = 0,49) quando comparados aos de direita (M = 3,32, DP = 0,65) com tamanho do efeito médio (d absoluto = 0,59).

Em relação às emoções negativas e positivas, houve uma diferença significativa entre as pessoas que tinham conhecimento da CNV e aquelas que não tinham no que diz respeito à Tristeza e Esperança, conforme exposto na Tabela 3.

Participantes com conhecimento relataram mais tristeza (M = 1,61, DP = 1,08) do que os participantes que desconheciam a CNV (M = 1,19, DP = 0,59) e a magnitude da diferença foi entre baixa à média (d = 0,48). Em relação à orientação política, diversos sentimentos foram significativamente diferentes e mais intensos em pessoas de esquerda, que relataram mais tristeza (M = 1,51, DP = 0,94), esperança (M = 3,35, DP = 1,29), alegria (M = 1,55, DP =0,92), orgulho (M - 3,55, DP = 1,17) e medo (M = 1,45, DP = 0.93). Quando essas emoções são agrupadas em seus conteúdos positivos e negativos, aquelas pessoas que tinham conhecimento sobre a CNV apresentaram mais manifestações emocionais, tanto negativas (M = 7,43, DP = 6,23), como positivas (M = 9,62, DP = 2,67) do que aqueles sem conhecimento sobre a CNV. Participantes de esquerda também apresentaram mais emoções negativas (M = 7,35, DP = 3,58) e positivas (M = 9,71, DP = 2,7), quando comparados aos de direita.

No que diz respeito às crenças sobre perdão e atitudes de esquecimento e recordação, não houve diferença significativa nas respostas entre pessoas que tinham conhecimento da CNV e aquelas que não tinham esse conhecimento, conforme exposto na Tabela 4.

Pessoas de direita têm significativamente mais concordância sobre "não abrir velhas feriadas falando do que aconteceu no passado" (M = 1,74, DP = 0,75) do que as de esquerda (M = 0,75, DP = 1,21), e o tamanho do efeito é grande (d = 0,82). É importante mencionar que na amostra estudada, pessoas de esquerda, quando comparadas às de direita, também não concordaram que as pessoas que sofreram violações de direitos humanos possam perdoar aqueles que cometeram tais atos e que devamos aprender com os erros do passado. A ausência de significância estatística pode ser entendida pelo baixo poder de generalização. Nota-se, também, que a precisão destes itens é baixa (a = 0,48), também indicando que as respostas podem não ser consistentes.

Finalmente, como um dos interesses da presente pesquisa se relaciona com o perfil de associação entre as variáveis, a Tabela 5 apresenta as correlações entre questões relacionadas às "atitudes frente à CNV" e "atitudes de perdão". Dois padrões são claros: o item "Devemos aprender com os erros cometidos no passado" é positivamente correlacionado com todas as questões de atitude frente à CNV. Dessa forma, esses resultados se relacionam de modo positivo. Em oposição, o item "É melhor não abrir velhas feridas falando do que aconteceu no passado" é negativamente associado às atitudes frente à CNV.

Discussão

Os resultados permitem concluir que i. há um efeito significativo das respostas em função tanto do conhecimento sobre a CNV, quanto da orientação política do participante; ii. que os respondentes de esquerda e aqueles com conhecimento da CNV possuem resultados médios superiores quando comparados aos de direita em relação aos sentimentos positivos e negativos; iii. as crenças sobre a necessidade do esquecimento são mais elevadas entre os participantes de direita.

Observou-se que os universitários que afirmaram possuir conhecimento sobre a CNV e aqueles com orientação política de esquerda apresentaram índices mais elevados de conhecimento, a avaliaram positivamente e apresentaram maior grau de aprovação quanto aos seus objetivos. O estudo de Espinoza et al. (2015) desenvolvido com uma amostra de estudantes peruanos observou, nas questões relacionadas às atitudes frente à Comissão da Verdade (CV) que as maiores médias foram para aqueles com conhecimento sobre a CV, corroborando com os resultados encontrados nesta pesquisa. O estudo de Arnoso et al. (2012), realizado com moradores do Chile, utilizou a orientação política como uma das variáveis para comparação de médias. Os resultados mostraram que as políticas de esquecimento ganharam mais adeptos quanto mais à direita se considerava a população. Quanto mais à direita, menos conhecimento possuíam e maior era a desaprovação com relação aos trabalhos das comissões da verdade daquele país. Estes resultados confluem com os dados obtidos no presente estudo.

Observou-se que todas as emoções negativas e positivas descritas nos resultados demonstraram que as médias maiores foram para estudantes que afirmaram conhecer a CNV e, também, para aqueles que se auto classificaram com orientação política de esquerda. Dessa maneira, esses dois subgrupos são os que demonstraram ser mais tocados pela CNV e seus feitos, sendo despertados tanto sentimento positivos, quanto sentimentos negativos. Os resultados aqui encontrados diferem do estudo de Espinoza et al. (2015), que apresentou maiores médias de sentimentos positivos para o grupo com conhecimento sobre a CV do Peru. No entanto, há parcial consenso com o estudo de Arnoso et al. (2012), que encontrou que quanto mais à esquerda se situava os respondentes, mais emergiam emoções negativas com relação as duas CVs instituídas no Chile.

Dessa maneira, a presente pesquisa apontou que os subgrupos de estudantes universitários que afirmaram conhecer a CNV e aqueles com orientação política de esquerda são mais sensíveis as questões de violação de direitos humanos. A CNV pode ter despertado sentimentos negativos por remeter tanto ao sofrimento vivenciado pelas vítimas e familiares, quanto pelos anos em que essas memórias ficaram submersas pela história oficial sob a crença de que no Brasil as transições são pacíficas. No entanto, ela também remeteu a sentimentos positivos, uma vez que, mesmo que tardiamente, a CNV trouxe as memórias das vítimas ao conhecimento da população, o que permite o acesso a tais informações de maneira oficial e institucionalizada.

A dimensão das "crenças sobre perdão e as atitudes de esquecimento" também foi analisada com o intuito de verificar o apoio dos universitários aos objetivos da CNV. Observou-se que aqueles com orientação político-ideológica de direita tendem a ter atitudes mais afirmativas com relação à necessidade de esquecimento, com justificativa de que é melhor que não se abra velhas feridas falando do que aconteceu no passado. Já entre os participantes de esquerda, observou-se atitudes negativas com relação à necessidade de esquecimento. Na pesquisa similar de Arnoso et al. (2012), os resultados foram consonantes com a presente pesquisa e, também, evidenciaram diferenças significativas para as questões sobre "crenças sobre perdão e as atitudes de esquecimento" naqueles participantes de direita. Já em sentido oposto, o estudo de Espinoza et al. (2015) apontou maiores médias para atitudes de esquecimento para o grupo sem conhecimento sobre a CV, sem relação direta com a orientação política.

Dessa maneira, pelos resultados aqui encontrados, pode-se inferir que as diferenças apontam que os estudantes com orientação política de direita mostram-se mais distantes do respaldo ao resgate da memória realizado pela CNV, pois acreditam que o esquecimento é benéfico ao país. Os participantes que conhecem a CNV brasileira e que se consideram de esquerda, são os que expressam maior grau de aprovação quanto aos seus objetivos e, também, são aqueles que possuem maior concordância com relação às recomendações institucionais e são mais tocados afetivamente pelo tema da comissão.

Os itens relativos à "dimensão do conhecimento e atitudes frente à CNV" foram correlacionados com os itens de questões referentes à "dimensão das crenças sobre perdão, atitudes de esquecimento e recordação". De maneira global, as atitudes de perdão presentes na afirmação de que "as pessoas que sofreram violações de direitos humanos podem perdoar quem cometeu esses atos" se vinculam de maneira positiva, ainda que com relações fracas, com as atitudes frente à CNV. Esta tendência também é verificada de maneira moderada entre as atitudes de lembrança presentes na afirmação de que "devemos aprender com os erros que se fizeram a fim de não cometê-los novamente" e as atitudes frente à CNV. Finalmente, observa-se uma correlação negativa, mesmo que fraca, entre atitudes de esquecimento na afirmação de que "é melhor não se abrir velhas feridas falando do que aconteceu no passado" e atitudes frente à CNV.

Portanto, está correlação apontou que uma melhor avaliação da CNV se correlaciona com índices mais elevados de atitudes de reconciliação, perdão e lembrança, mas correlaciona-se também com menores atitudes de esquecimento. Isto indica que quanto mais os estudantes universitários concordam com os feitos da CNV, mais acreditam que vítimas e violadores de direitos humanos devam reconciliar-se e perdoar uns aos outros. Indica, também, que este subgrupo de estudantes seja favorável a manutenção da lembrança de violações de direitos humanos e contrários ao esquecimento, demonstrando assim respaldo e concordância para com os trabalhos desenvolvidos pela CNV. O estudo de Espinoza et al. (2015) demonstrou que as atitudes de perdão se vinculam de maneira positiva com as atitudes frente à CNV. Esta tendência também é verificada, ainda que em menor medida, em relação às atitudes de lembrança e atitudes frente à CNV e correlação negativa entre atitudes de esquecimento e atitudes frente à CNV, o que tem mesmo direcionamento de evidência aos resultados da presente pesquisa.

 

Conclusões

Um dos objetivos da presente pesquisa foi o de analisar os aspectos psicossociais da memória em relação à ditadura por meio da análise da percepção e dos sentimentos gerados pela CNV. Dessa forma, os resultados e as discussões trazidas neste trabalho também atravessam um dos principais fenômenos adaptativos da memória, que é o esquecimento, além de trazer contribuições para a Psicologia Social da memória.

Destaca-se o ineditismo desta pesquisa, uma vez que se utilizou uma metodologia quantitativa para explorar o tema, enquanto grande parte da literatura atual é calcada em questões históricas e sociológicas. Apesar dos resultados apontarem diferentes direções cujas interpretações são promissoras, esta pesquisa não está livre de limitações. A amostra estudada foi intencional e sabe-se que esse tipo de amostra tem uma baixa capacidade de generalização dos resultados. Apesar de parte dessa limitação ter sido contornada, uma vez que se buscou suprir esta carência por meio da inserção de participantes das diversas áreas do conhecimento e pela eleição de testes estatísticos robustos, recomenda-se não generalizar os resultados a outros contextos e grupos sociais. Outra observação refere-se à noção de que técnicas estatísticas dizem respeito diretamente aos dados coletados e não às teorias subjacentes e que resultados correlacionais não devem ser vistos como causais, em nenhuma hipótese.

Os resultados encontrados nesta pesquisa oferecem novas evidências sobre o campo da memória social, além de contribuírem para o processo de criação de outras hipóteses sobre os impactos da CNV na sociedade atual.

 

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Recebido em: 01/02/2019
Aprovado em: 24/06/2019

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