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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Encarceramento feminino: reflexões acerca do abandono afetivo e fatores associados

 

Female incarceration: reflections of affective and associated factors

 

Encarcelamiento femenino: reflexiones acerca del abandono afectivo y factores asociados

 

Incarcération des femmes: réflexions sur les facteurs associés

 

 

Jessika Borges Lima SantosI; Márcio Santana da SilvaII

IPsicóloga formada pela Universidade Salvador – UNIFACS, atua como psicóloga clínica e está membra do Grupo de Trabalho Psicologia e Políticas para Mulheres pelo Conselho Regional de Psicologia CRP 03 – Susede Sertão Recôncavo, em Feira de Santana (BA); jessikabls28@gmail.com
IIPsicólogo, pós-doutor em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia (PPGPsi-UFBA). Professor Assistente-III no curso de Psicologia da Universidade Salvador – UNIFACS; marcio.santana78@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho aborda histórica e criticamente o encarceramento feminino, bem como o abandono afetivo experienciado pelas mulheres encarceradas. A pesquisa foi realizada com base em revisão de literatura, tendo sido investigado a partir das características da mulher criminosa desenvolvido pela criminologia positivista no final do século XIX, até o acervo literário mais atual sobre essa temática do encarceramento feminino, o rompimento do ideal de mulher estabelecido historicamente despontou como um dos principais fatores, juntamente com as relações de poder de base patriarcal instituídas sobre essas mulheres. Junto a isso, buscou-se apresentar de que maneira as relações de poder atravessam o corpo das mulheres encarceradas por meio de estratégias de dominação, apontar os significados que permeiam a entrada das mulheres na criminalidade, bem como a maneira com as quais elas são punidas. Nesse último quesito, foi apresentada a direta relação que a desigualdade de gênero se aloca nas atuações de quem se relaciona diretamente com a população carcerária feminina.

Palavras-chave: Sexismo; Encarceramento feminino; Sistema prisional; Sociedade patriarcal; Abandono afetivo.


ABSTRACT

The present work approaches historically and critically the female incarceration, as well as the affective abandonment experienced by imprisoned women. The research was carried out based on a literature review in which aspects from the characteristics of the criminal women developed by positivist criminology at the end of the 19th century to the most current literary collection on the female incarceration 's subject were delineated. The breaking of the ideal of women established historically along with the patriarchal base power relations instituted upon these women emerged as main factors. Additionally, it was presented how power relations cross the body of imprisoned women through strategies of domination and to point out the meanings that permeate the entry of women into criminality, as well as the manner in which they are punished. Based on this last issue, the direct relationship between gender inequality and the actions of those directly involved with the female incarcerated population was presented.

Keywords: Sexism; Female imprisonment; Prison system; Patriarchal society; Affective abandonment.


RESUMEN

El presente trabajo aborda histórica y críticamente el encarcelamiento femenino, así como el abandono afectivo experimentado por las mujeres encarceladas. La investigación fue realizada con base en revisión de literatura, siendo investigado a partir de las características de la mujer criminal desarrollada por la criminología positivista, a finales del siglo XIX, hasta el acervo literário más actual acerca de la temática del encarcelamiento femenino, el rompimiento del ideal de mujer establecido históricamente surgió como uno de los principales factores, junto con las relaciones de poder de base patriarcal instituidas sobre estas mujeres. Junto a eso, se buscó presentar de qué manera las relaciones de poder atraviesan el cuerpo de las mujeres encarceladas por medio de estrategias de dominación, apuntar los significados que permean la entrada de las mujeres en la criminalidad, así como la manera con que ellas son castigadas. En este último aspecto, se presentó la directa relación que la desigualdad de género se asigna en las actuaciones de quienes se relacionan directamente con la población carcelaria femenina.

Palabras-clave: Sexismo; Encarcelamiento feminino; Sistema penitenciário; Sociedad patriarcal; Abandono afectivo.


RÉSUMÉ

Le présent travail aborde historiquement et de manière critique l'incarcération des femmes, ainsi que l'abandon affectif vécu par les femmes emprisonnées. La recherche a été réalisée sur la base d'une revue de la littérature, après avoir étudié les caractéristiques de la femme criminelle développée par la criminologie positiviste à la fin du XIXe siècle, ainsi que la collection littéraire la plus récente sur l'incarcération des femmes, la rupture de l'idéal de la femme. établi historiquement est apparu comme l'un des principaux facteurs avec les relations de pouvoir patriarcales établies sur ces femmes. En même temps, l'objectif était de montrer comment les relations de pouvoir traversent le corps des femmes emprisonnées par le biais de stratégies de domination, afin de mettre en évidence les significations qui imprègnent l'entrée des femmes dans la criminalité, ainsi que la manière dont elles sont punies. Dans cette dernière question, le lien direct entre l'inégalité entre les sexes et les actions de ceux directement liés à la population carcérale féminine a été présenté.

Mots-clés: Sexisme; Emprisonnement féminin; Système pénitentiaire; Société patriarcale; Abandon af-fectueux.


 

 

Introdução: noções de normalidade e estratégias de dominação

Este artigo teve como objetivo, dentro de uma literatura escassa, apontar quais motivos influenciam o abandono afetivo sofrido pelas mulheres encarceradas, bem como sua incidência e analisá-lo através da perspectiva do sexismo enquanto fator institucional. Entendendo o sexismo como "a crença na superioridade do masculino que se estabelece por um conjunto de características que resulta em privilégios aos homens." (Mendes, 2012, p. 189), tal compreensão foi buscada e refletida por intermédio de levantamento bibliográfico acerca do tema e de análises de estudos de caso que abarcam esta perspectiva.

As atividades punitivas destinadas aos criminosos foram transpostas para o âmbito prisional entre o final do século XVIII e início do século XIX (Foucault, 1999), com o objetivo de punir todos os infratores de maneira igualitária e tendo o poder de quantificar as penas aplicadas. Somente ao final do século XIX, surgiram alguns estudos sobre a mulher criminosa, através da criminologia positivista, uma escola que se interessava inicialmente em compreender como e quais fatores levam um homem a cometer delitos, com estudos baseados em uma perspectiva biológica e padronizada, que anos após foram direcionados também para as práticas femininas.

Em relação à mulher criminosa, a criminologia positivista postulava que "a imagem da mesma se assemelha a um ser fraco, tanto física quanto mentalmente. Seria, portanto, 'resultado de falhas genéticas'" (França, 2014). Esta visão, junto aos preceitos da sociedade patriarcal que, de acordo com Saffioti (2004, p. 60), estima-se ter cerca de 2.603 anos, ou seja, instaurada desde a Idade Média com a instituição da igreja e sua ideologia cristã da moral, dá margem à perspectiva causal de que as mulheres são tanto incapazes, quanto devem subalternidade aos homens por se constituírem como seres inferiores. Dessa maneira, a mulher não seria capaz de compreender normas, se adequar ao que é moral ou se estabelecer com autonomia na sociedade.

A partir disso, a mulher se constituía na sociedade como filha e/ou esposa, em um status social que a identificava através da sua relação com um homem e, assim, passava a aprender desde muito nova a maneira com a qual precisava se comportar nos lugares, as atividades que deveria desempenhar e os hábitos que poderia incorporar à sua vida. Se inscrevendo, dessa forma, como um ser constituído por regimes de conduta que ditavam sua maneira de existir. Essa forma de dominação "indica um poder que produz domínios e rituais de verdade com a intenção de adestrar, de impor uma "docilidade-utilidade" com o objetivo de manter a própria dinâmica social" (Oliveira & Cavalcanti, 2007, p. 40), enquadrando a mulher em posições de passividade, em um sistema que condiciona o homem como detentor de toda ordem social, tendo em vista que de um lado, à mulher é destinado o dom natural de maternar, de cuidar da casa e servir o homem e, do outro lado, o homem como ser altivo, provedor e capaz de comandar qualquer espaço.

A mulher criminosa cumpre sua pena tanto no setor penal, quanto moral, partindo do pressuposto que, ao cometer um crime, esta viola seu lugar (posição) na sociedade de subalterna ao poder masculino. Essa dupla punição se desenvolve exponencialmente no âmbito judiciário que se utiliza da imposição de uma vontade particular e soberana sobre o meio social constituindo relações de poder capazes de impor sua suposta justiça. De acordo com Lispector (1941, citado por Camuri, 2012, p. 45):

Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. [...]. Surge na sociedade um crime, que é apenas um dos sintomas dum mal que forçosamente deve grassar nessa sociedade. Que fazem? Usam o paliativo da pena, abafam o sintoma (...) e considera-se encerrado o processo.

Assim, tendo sua imagem convertida a um estigma de transgressora e, portanto, passível de privações que ultrapassam as determinações do âmbito jurídico, a mulher encarcerada passa a servir como o sujeito a quem são direcionadas discriminações e abandono, sem que haja uma investigação acerca do atravessamento de forças que a mesma está sendo marcada, ou seja, o que fundamentam as formas de tratamento e demais práticas que lhes são destinadas. Como efeito disso, pode-se apontar o afastamento de familiares e, principalmente companheiros, quando as mulheres ingressam no sistema carcerário.

Esse afastamento familiar se caracteriza como uma forma de punição para esta mulher que não se manteve na sua condição de docilidade e obediência, situação que se inscreve no meio social como tão necessária quanto a privação de liberdade, o que dispõe à mulher um retorno ao lugar subserviente que lhe condiz. De acordo com Oliveira e Cavalcanti (2007, p. 40), "a violência então seria toda e qualquer ação que torna alguém desprovido de autonomia ou causa a sua violação, estabelecendo assim uma 'condição geral de subordinação'". Ou seja, uma mulher que comete um crime, independentemente da circunstância, se apropria de uma posição ativa e, protagonista desse cenário que rompe com o seu lugar social, tem como resposta não apenas o aprisionamento jurídico, mas a violência multifacetada que se direciona ao seu gênero, marcada por abandono e negligência.

Além das diferenças de tratamento pautadas no gênero, é necessário mencionar o quanto o papel da justiça e da sociedade em geral se aplica com severidade às mulheres negras e pobres. Ao analisar os dados estatísticos do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias InfoPen Mulheres-2018, do Ministério da Justiça (2018) que apontam que 62% da população prisional feminina é composta por negras e 66% ainda não acessou o ensino médio, é possível observar que, diferentemente do senso comum que prega a junção entre pobreza e criminalidade, o questionamento mais coerente é se a justiça condena mais "em função de sua classe social do que em função de seu crime" (Rauter, 2003, p. 77). Portanto, o processo de privação e condenação feminina perpassa por técnicas de sujeição existentes no meio de coerção que se pautam não somente no gênero, como também na raça e classe social, alicerçando maneiras muito específicas de punição.

 

Exercício do poder: do social ao jurídico

De acordo com o InfoPen Mulheres (Ministério da Justiça, 2018), a média das visitas realizadas por pessoa ao longo do semestre nos presídios masculinos é de 7,8, em contrapartida, nas unidades femininas e mistas, essa média cai para 5,9 por pessoa presa. Não obstante, nos estados do Amazonas, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte, a média de visitas realizadas nas unidades masculinas é 5 vezes maior que a média nos estabelecimentos femininos. Assim, sabendo que a realidade feminina diferencia-se drasticamente da vivenciada pelos homens presos, se faz possível constatar uma assimetria que se desvela no campo do sexismo e se desdobra como fator preponderante no abandono afetivo experienciado pelas mulheres encarceradas.

Através desse panorama, percebe-se que as opressões e assimetrias que se desvelam no ambiente carcerário feminino se desenvolvem a partir de uma sociedade machista e patriarcal, reflexos de uma hegemonia que abarca todo o contexto social contemporâneo a partir de uma lógica estrutural advinda da gênese. De acordo com a criminologia positivista desenvolvida por Lombroso, Ferri e Garofalo no final do século XIX, as pessoas delinquentes eram geneticamente destinadas para o mal e a mulher criminosa, em específico, seria fisiologicamente passiva e inerte, caracterizadas como inferiores até para cometer delitos Lombroso (2004, citado por Mendes, 2012, p. 47).

Nessa perspectiva, Lombroso em A mulher delinquente de 1895, ao analisar características físicas e psicológicas das mulheres, aponta que estas podem se subdividir em três categorias: normais, prostitutas e criminosas, sendo a primeira representada exclusivamente por aquelas que realizam a maternidade, sendo posta como a detentora da conduta ideal de sua condição biológica, e as duas últimas, configuradas como mulheres degeneradas, separadas em mais três modalidades: as criminosas natas que, apesar dos "defeitos genéticos", se aproximavam mais das características masculinas, podendo possuir um comportamento mais perverso do que os homens, as criminosas por ocasião que, de maneira dissimulada, se utilizava de artifícios femininos para cometerem seus crimes com mais facilidade, e as criminosas por paixão, que agiam de maneira passional, de acordo com a intensidade do que sentiam (França, 2014).

A partir desse contexto classificatório, era recomendado que para cada modalidade de mulher fosse destinado um tratamento específico, conforme aponta França (2014) "a casa de incorrigíveis, os manicômios criminais e penas restritivas de liberdade". Entendendo que as mulheres se tipificavam a partir de características correlacionais com sua condição física, biológica e psíquica, por um lado, os estudos da criminologia positivista destacaram que as mulheres classificadas como normais e conservadoras eram menos propensas a cometer crimes devido à imobilidade do óvulo, e grande ocupação com suas responsabilidades domésticas e familiares. Por outro lado, as mulheres criminosas tinham um comportamento perverso advindo da "alguma atividade mórbida do centro psicológico, que intensifica as qualidades ruins da mulher e induz-lhe a procurar alívio na maldade" (Ishiy, 2014, p. 54).

Tais características demonstradas pelo modelo positivista corroboravam com a afirmação de um pensamento que tipificava a mulher de acordo com atribuições que estas estavam destinadas a ter. Ou seja, entendendo que a mulher criminosa era um desvio do padrão geneticamente inferior enquanto mulher, bem como da transgressão que já dividia a sociedade apontando apenas os homens como detentores dessa capacidade criminosa, assim, esta "foi concebida como um monstro, concepção correspondente à de bruxa e feiticeira das teorias demonológicas" (Ishiy, 2014, p. 54).

As teorias psiquiátricas, por outro lado, trabalhavam o crime feminino a partir das perspectivas individual e social. Conforme aponta Serrano Tágarra e Gonzáles (2006, citado por Cezimbra & Terra, 2015), a primeira teoria compreendia que este advinha de:

um transtorno mental, uma enfermidade que faz a mulher delinquir. Já a segunda perspectiva, explica a pouca existência de delinquência feminina por uma perspectiva mais social, dizendo que vai ser uma implicação do trato diferenciado dos homens e das mulheres por parte dos sistemas de controle. (p. 149)

Deste modo, ao apontar a criminalidade feminina de uma perspectiva biológica e social que reforça a concepção dualista da mulher - passiva e dotada de uma bondade suprema ou predominantemente perversa e má, desvela-se um antagonismo presente até os dias atuais na lógica criminal em que a mulher criminosa está inserida. Desencadeando consequências concretas devido às perspectivas abarcadas pela criminologia positivista, "tanto nos meios de comunicação, quanto nas práticas policiais e judiciais, a criminalidade feminina permanece sendo considerada mais um caso de psiquiatria, do que jurídico-penal, e as mulheres continuam taxadas mais de loucas, do que de delinquentes" Swaaningen (1990, citado por Ishiy, 2014, p. 60).

Por conseguinte, de acordo com Camuri (2012, p. 51), Foucault analisa no seu curso Os anormais (2001) que, desde o final do século XVIII, a noção de transgressão passou a ser substituída pela de irregularidade, podendo ser esta a explicação da realização das condutas criminosas. Ou seja, todos os casos de atos que rompiam com a norma moral estabelecida da época foram estigmatizados pela psiquiatria juntamente com o aparelho judicial, discurso que Foucault neste mesmo curso afirma estarem "ligados a um mecanismo de poder que os faz não instâncias do controle de crime e de tratamento das doenças, mas de controle do anormal." Esta afirmação do poder pode ser observada a partir da Lei de Internação Francesa de 1838, que não apenas legitimava, como incitava o segregamento de pessoas "loucas" para que estas fossem tratadas em instituição asilar até se recuperarem, entretanto, ao invés dessa determinação possuir uma concepção genuína de tratamento, se estabelecia com o objetivo de assegurar a manutenção da ordem e segurança pública.

O exercício do poder se conjectura, dessa maneira, por toda a sociedade, atuando de maneira distinta a cada destinatário de acordo com os benefícios correspondentes. A divisão em categorias e padrões de normalidade, criminalidade e loucura se aloca como convém à classe dominante. O desenvolvimento do poder enquanto força dominante se acoplava à psiquiatria servindo de instrumento amplificador de repressão e exclusão dos indivíduos que escapassem às regras estabelecidas de ordem. O poder é, na teoria foucaultiana, uma força que circula em uma relação assimétrica entre indivíduos e grupos que sustenta a autoridade e emerge com o saber. Nesta perspectiva, Foucault (1979, citado por Carvalho, 2014, p. 44) afirma que temos

de um lado uma legislação, um discurso, uma organização do direito público articulados em torno do princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada qual, de sua soberania ao Estado e, concomitantemente, uma trama cerrada e de coerções disciplinares que garante a coesão desse mesmo corpo social. [...] Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina: é entre esses dois limites [...] que se pratica o exercício do poder.

Partindo do pressuposto que o poder não é exercido em continuidades ou especificações, "mas ele só se exerce e existe em ato" Foucault (1999), entende-se que em toda a sociedade recaem forças instituídas das relações de poder, participando de múltiplas sujeições enquanto corpos não-soberanos e, em específico, encarcerados em uma instituição de estrutura dominante e opressora - como é o caso do sistema prisional, seja ele penitenciário ou manicomial.

A interdição se instaura como uma maneira de classificar, culpar, corrigir e silenciar os indivíduos que ferem as normas, com a finalidade de manter os valores instituídos e distanciar o criminoso e louco da possibilidade de "infectar" a burguesia com seus comportamentos imorais e desviantes. Com o objetivo de impelir os indivíduos da sociedade a compactuarem com uma dinâmica que corresponde à normatização e moralização impostas, Camuri (2012, p. 66) explicita:

Nesse tipo de instituição 'manicomial-prisional', o 'microcosmo judiciário' é elevado à enésima potência. [...] não se tem mais a expectativa de uma 'correção', mas sim de um 'controle', porém, a 'cura' continua significando 'não resistência' e 'adequação' às normas da casa.

"Como a liberdade passa a fazer parte da 'natureza' humana, 'o internamento será apenas uma tradução, em termos fatídicos e jurídicos, de uma abolição da liberdade já ocorrida a nível psicológico" (Fonseca, 2002, citado por Camuri, 2012, p. 64). Nesse sentido, sabendo que as instituições são instâncias de saber que perpassam, capturam e moldam espaços, indivíduos e suas relações sociais, percebe-se que a maneira com a qual a punição é imposta aos transgressores serve como método de regozijo por parte de quem está em dominação nas relações de poder, por reativarem o lugar e imagem que desejam ocupar permanentemente na sociedade em um estado de retroalimentação, disfarçado de "controle da periculosidade".

Sabendo que as relações de dominação embasam o desenvolvimento punitivo no que tange à criminalidade, e a mulher criminosa foi investigada biologicamente no século XIX, resultando na dualidade de bondade e perversão, o patriarcado se instituiu concomitantemente ao desenvolvimento da sociedade e as questões políticas acompanham esses ideais, se faz possível compreender que existe uma correlação entre o abandono afetivo experienciado pelas mulheres encarceradas e a maneira que as relações de poder se constituem como reforçadoras de assimetrias sexistas. Ou seja, ao observar o sistema prisional, evidencia-se uma disparidade tanto na aplicação das leis quanto nas formas de tratamento - que se destinam aos homens criminosos em um sistema carcerário que é, por sua vez, predominantemente masculino. Essa característica pode ser conferida como integrativa à desigualdade com a qual a mulher criminosa é tratada, um comparativo que amplia a discussão de gênero da especificidade do abandono afetivo para o macro, com a sujeição desproporcional que o poder institucional lhe confere.

Partindo do pressuposto que o judiciário se baseia em uma estrutura androcêntrica de tratamento carcerário, os regimentos institucionais costumam igualar ao invés de equiparar as necessidades de sua população. Nessa dualidade de tratamento, o sistema punitivo iguala o que é normatizado e instituído, o que desencadeia prejuízo na inclusão da individualidade, violando, em muitos casos, direitos fundamentais, como visitas íntimas e atenção voltada ao que tange a maternidade e demais especificações femininas. Além disso, se a partir de uma linha histórica que pune a mulher a partir de preceitos direcionados a seu gênero, implicando na diferenciação da punição entre homens e mulheres, o abandono afetivo que recai sobre as mulheres encarceradas é uma consequente característica evidenciada.

 

Agenciamento da mulher através de uma ordem de gênero

A mulher criminosa, assim como toda mulher na sociedade, está inscrita em um papel social que impõe quais devem ser seus costumes e comportamentos, e determina o que é esperado dela através de padrões patriarcais, é dessa maneira que seus laços sociais, amorosos e familiares são constituídos. Por estabelecer vínculos em uma base social tradicional e sabendo que o principal papel da mulher em sociedade é manter a estrutura familiar, quando esta ingressa no sistema carcerário, se desvela o rompimento de uma delimitação que lhe foi imposta desde os primórdios.

O conflito com as normas de gênero vigentes, expresso pelo contrassenso, é a condição da ação ou agência dos sujeitos, num ato de resistência que busca a subjetivação e a individualidade, num emaranhado de forças que tendem a normatizar os corpos. (Costa, 2017, p. 53)

Se de um lado, tem-se a criminalidade feminina que, em alguns casos, se instaura pela mulher ser introduzida na criminalidade através de um papel secundário, representado por cuidar das drogas quando seus companheiros estão fora e por atividades de "aviãozinho", partindo da premissa que na escala do tráfico, geralmente o homem desempenha papel de chefe, por outro lado, tem-se a mulher construída socialmente como dócil e cuidadora que rompe a barreira normativa da passividade e se coloca como autônoma de suas escolhas e passível de cometer crimes, cultivando uma sensação de prazer possibilitada pela transgressão às normas que lhe garantem papel de destaque e poder na criminalidade. Neste ponto, Costa (2017, p. 51) afirma que elas "são duplamente estigmatizadas, como transgressora da ordem social e como descumpridora do papel materno e familiar, na lógica do patriarcado em que a mulher deve manter-se no espaço privado".

Apesar da dualidade que envolve os motivos do acesso da mulher na criminalidade, o abandono afetivo que recai sobre as mesmas se desenvolve pelo ideal instaurado de feminilidade que a identifica de uma maneira uno: ser cuidadora, dócil e subalterna é o que compõe o ser mulher. Sabendo que "as primeiras mulheres oficialmente condenadas à pena de privação de liberdade foram aquelas classificadas como libertinas, perigosas, prostitutas e homossexuais." Faria (2007, citado por Carvalho, 2014, p. 112) e que, atualmente, essas mulheres são percebidas como cruéis, marginais, subversivas, imorais e desviadas, entende-se a causalidade que fazem com que as mulheres encarceradas sejam vistas com repúdio pela sociedade em geral e, por conseguinte, por seus familiares.

Somente entre o final do século XVIII e início do século XIX, as atividades punitivas destinadas a criminosos foram sendo modificadas, à medida que a demonstração de crueldade através de castigos físicos, fator que intensificava a sociedade do espetáculo, foi substituída pela prática de uma justiça realizada de maneira encoberta e mascarada. A punição, que outrora se fazia incisiva e letal, deu lugar a uma justiça coercitiva e privativa de liberdade, a qual tem como principal intenção atenuar o sofrimento do criminoso deslocando o castigo estritamente físico para o que é incorpóreo, como afirma Foucault (1987, p. 20): "não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições".

Ainda neste seio da sociedade patriarcal, as mulheres deviam sua honra e submissão aos maridos, e sua vida era conduzida de acordo com os mandamentos dos mesmos, sendo assim, eram considerados delitos toda e qualquer atividade que fossem de encontro às regras estabelecidas pelo conservadorismo desse tempo, como sorrir demais, usar decote, andar no mesmo carro que outro homem que não fosse seu pai ou marido, querer trabalhar fora de casa, dentre outras situações que indicassem qualquer indício de autonomia. O destino dado às mulheres consideradas transgressoras - fossem elas casadas ou não - era sempre a contenção: em casa, sendo impedidas de sair como forma de castigo, levadas à força para os hospitais gerais e manicômios ou, ainda, julgadas e levadas à guilhotina, forca ou fogueira em praça pública (Foucault, 1987).

Junto ao cenário de negligência que circunda a vivência das mulheres delituosas desde o início dos estudos da criminologia até os dias atuais, destaca-se o rompimento dos laços afetivos que se desdobram na vida das mulheres encarceradas, questão que pode ser observada de um ponto de vista ainda mais criterioso partindo do pressuposto que, de acordo com o InfoPen Mulheres (Ministério da Justiça, 2018), cerca de 62% das mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. Ou seja, mais da metade das mulheres presas não possuem envolvimento direto ou de dominação com o crime cometido, a maioria delas realizam essas atividades por intermédio de companheiros afetivos que são protagonistas no tráfico e precisam de alguém que realize o serviço de entrega das drogas. Em alguns casos, quando seus companheiros são presos ou mortos, passam a ocupar posições de alto nível no tráfico, experimentando a sensação de poder e lucro que os cargos proporcionam. Nessa perspectiva, colocam em voga a potência que toda mulher tem de praticar delitos, esta que muito tempo é ocultada devido às imposições de feminilidade que lhes direcionam e sobre os limites comportamentais de uma mulher.

Em consequência das mulheres serem subalternizadas na sociedade patriarcal em que estão inseridas, há uma expansão e agravamento deste no contexto carcerário, o que gera desdobramentos que vão desde o social, como supracitado, até as relações afetivas, que se deterioram a partir do momento que estas ingressam na prisão. De acordo com Santos et al., 2017, p. 8, "tem uma interrupção das relações familiares e o afrouxamento significativo dos vínculos das relações pregressas. Após a condenação, verifica-se um esfacelamento do núcleo familiar", por haver um abandono por parte destes que não as visitam, tampouco enviam objetos pessoais. A questão de gênero se instaura nesse sentido também através do lugar que a mulher é indicada para ocupar em sociedade, identificada como aquela que serve, demonstra doçura, prontidão e cuidado, assim, cometer um delito pode ser visto não exclusivamente no contexto criminal, mas questionado como moralmente transgressor ao seu gênero.

Seja por intermédio de outrem ou pelo protagonismo alicerçado em desejo de poder, é importante destacar que ser presa significa sair desse lugar de inferioridade, que é delimitado pela noção de normalidade da mulher como sujeito passivo, para ocupar um lugar ativo, do indivíduo que pratica o crime, e este fato resulta em invisibilidade e exclusão porque, em consequência, essa mulher deixa de realizar em sociedade os papéis de subserviência sexista que lhes são impostos. Assim, sabendo que no campo acadêmico são escassas as discussões acerca do encarceramento feminino e, em especial, do abandono afetivo que recai sobre essas mulheres, se faz pertinente explorar e questionar esses fatores ao longo da pesquisa.

 

Metodologia

Este trabalho se pauta na abordagem qualitativa, por não objetivar encontrar generalizações, "a análise de dados terá por objetivo simplesmente compreender um fenômeno em seu sentido mais intenso, em vez de produzir inferências que possam levar à constituição de leis gerais" (Appolinário, 2009). Assim, este procedimento se configurou como o mais indicado para que se pudesse compreender e analisar de que maneira é desencadeado o abandono afetivo experienciado pelas mulheres encarceradas e qual a influência do sexismo na ocorrência deste. O projeto foi desenvolvido com base na revisão de literatura que é vantajosa por ser, segundo Gil (2002, p. 44), "um material já produzido em livros e artigos científicos, abrangendo todo referencial teórico já construído sobre o tema de pesquisa", bem como pela facilidade de acesso a estudos históricos que dificilmente seriam coletados de outra maneira.

Pelo projeto de pesquisa ter objetivado fazer reflexões acerca do abandono afetivo experienciado pelas mulheres encarceradas, este se baseou primordialmente em revisão de literatura. A metodologia utilizada foi predominantemente exploratória por "ter como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuições" (Gil, 2002, p. 41), tendo contribuído, assim, como uma facilitadora no que tange à descoberta e análise de conceitos e ideias do tema abordado, visto que este exige flexibilidade de investigação.

Para a realização da revisão de literatura, foram coletadas informações através de livros, periódicos científicos, teses e dissertações e outras redes de dados disponíveis para acessar este conteúdo. O principal instrumento utilizado para a coleta de dados foi a caixa de busca da base de dados da Scientific Electronic Library Online (SciELO) e do Portal Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nos quais, com o objetivo de identificar, comparar e levantar hipóteses acerca do tema proposto, foram pesquisados os termos "encarceramento", "sistema prisional", "mulheres encarceradas", "abandono afetivo", "família", "abandono" e "sexismo". Devido à especificidade do tema, os estudos acadêmicos encontrados se restringiram aos últimos dez anos, escassez que se constituiu como um dado relevante para o desenvolvimento da pesquisa.

 

Resultados e discussão

Os resultados encontrados no presente estudo indicam que as mulheres encarceradas são abandonadas afetivamente principalmente por fatores que corroboram com as implicações do sexismo na instaurada sociedade patriarcal, que reverberam tanto no meio familiar, quanto institucional, conforme salienta Colombaroli (2010) sobre as mulheres receberem pouca visita íntima "porque o sistema penitenciário é carregado de objetivos moralizantes em relação a elas, buscando incutir um sentimento de pudor e passividade". À medida que as dificuldades sociais e de gênero corroboram para esse cenário, há uma forte utilização da instituição carcerária de impelir o seu poder a estas mulheres de maneira que não apenas as façam cumprir as suas penas pelos crimes cometidos, como também por se instaurarem como representações do gênero a que pertencem.

 

Campo legislativo, ambiente carcerário e suas assimetrias

Em contrapartida ao instaurado historicamente, atualmente, as mulheres devem ser julgadas igualitariamente pelas leis que regem os homens, como propõe a resolução promulgada em 31 de agosto de 1955, ao dispor na primeira regra do sexto princípio básico que "não haverá discriminação alguma com base em raça, cor, sexo, língua, religião, etc." (Ministério da Justiça, 2014). Entretanto, no âmbito prático, percebe-se que as mulheres continuam sendo negligenciadas em várias esferas no sistema carcerário, tanto no que concerne especificamente ao convívio penitenciário, quanto no que se referem às condições sociais em contexto geral. As vestimentas disponibilizadas pelo sistema prisional são masculinizadas e despersonalizantes, as necessidades básicas e individuais das mulheres são ignoradas, como a escassez de papel higiênico e absorvente, além da carência de atendimento especializado de médicos ginecologistas, tendo em vista que de acordo com dados do Infopen (Ministério da Justiça, 2014, p. 75), existem apenas 37 médicos ginecologistas no sistema penitenciário do Brasil, sendo que o país conta com 103 unidades exclusivamente femininas e 239 unidades mistas.

Concomitantemente aos indicativos instituídos no ambiente carcerário, as necessárias especificações direcionadas ao sexo feminino são quase inexistentes. França (2014, p. 221) afirma que "a mulher presa é mencionada uma única vez no texto penal. Isso ocorre no Artigo 19º, que trata da assistência educacional." Nessa perspectiva, entende-se que, se o ambiente prisional é majoritamente masculino -em população, funcionários e normas -, há uma homogeneização populacional que ceifa as diferenças específicas do feminino, fator que se relaciona diretamente com o sexismo.

No que tange à criminalidade, sabe-se que as relações de dominação embasam o desenvolvimento do sistema punitivo e, por conseguinte, a mulher criminosa foi investigada no âmbito biológico pela criminologia positivista no final do século XIX, que teve como resultado a dualidade bondade e perversão. À vista disso, se faz possível compreender de que maneira as relações de poder no sistema carcerário atual se constitui de uma punição que reforça a assimetria dessas forças no campo do sexismo. Dessa maneira, os elementos supracitados corroboram com o processo de mortificação do eu (Goffman, 1987, pp. 24-39) experienciado pelas mulheres encarceradas que, além de todos os atravessamentos existentes pelo sistema carcerário como um todo, rompe de maneira direcionada com suas características físicas, pessoais e de gênero.

Representando uma parcela mínima em relação à população carcerária masculina, as mulheres recebem um tratamento que foi desenvolvido e efetivado para os homens. Na Lei Brasileira de Execução Penal nº 7210/84, há sete disposições direcionadas às mulheres, sendo apenas duas originárias da sua data de promulgação, fator que evidencia a exponencial omissão de direitos que recai sobre as mulheres através da falta de equidade, quando esta deveria ser desenvolvida partindo da premissa que há especificidades que devem ser reconhecidas entre as necessidades de homens e mulheres.

As diferenciações pautadas no gênero existentes no sistema carcerário violam direitos fundamentais que desencadeiam em abandono afetivo, se sobrepondo no que tange a maternidade, que não fundamenta a proposta deste trabalho, mas contribui para reflexão, e às visitas íntimas que, até 1999, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) dispunha de uma resolução que estabelecia direito à visita íntima apenas aos homens. Somente a partir do Programa de Visita Íntima destinado a mulheres presas estabelecido pela Resolução nº 01/99 do CNPCP, foi imposto às instituições carcerárias que se organizassem quanto a permissibilidade desta garantia legal ocorrer pelo menos uma vez por mês.

Apesar da regulamentação das visitas íntimas às mulheres, muitas instituições carcerárias ainda desenvolvem obstáculos, dispondo de regras estabelecidas pela própria administração. Colares & Chies (2010, p. 11) apontam que "para as presas que ingressam solteiras no cárcere, as visitas íntimas só podem ocorrer mediante um namoro de 70 dias. Em caso de separação, a mulher deverá esperar três meses para reatar as visitas", situação que se caracteriza como mais uma violação de direitos, tendo em vista que tal burocratização tem como objetivo manter o corpo feminino dentro de uma norma moralizante e dominável, em que o poder disciplinar castra suas possibilidades de liberdade sociais, sexuais, afetivas e subjetivas. Dessa maneira, diferentemente do funcionamento com os homens presos, quando a visita íntima é permitida às mulheres, aparece "condicionada à participação da mulher presa em um curso preparatório, o qual tem a função de orientá-las em relação ao controle da natalidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis" (França, 2014, p. 221).

Os pré-requisitos direcionados à população carcerária feminina se desenvolvem de maneira totalitária em ideais pautados no seu gênero para que, através de estratégias de dominação, sejam ceifadas suas possibilidades de agenciamento do seu corpo, vida e escolhas dentro das mínimas condições que o encarceramento poderia dispor. A sexualidade feminina, através da ótica social vigente, serve apenas para fins reprodutivos, como se o desejo e habilidade para maternar fosse inato e, se essa não é a finalidade da sua relação sexual, o controle do seu corpo se sublinha no ambiente carcerário. Não obstante, nem se a mulher quisesse, a instituição concederia, tendo em vista que o Estado não quer se responsabilizar pela oferta dos direitos e serviços necessários, ou seja, "as mulheres dentro da prisão não são donas dos seus corpos, não podem engravidar, não podem ter vontades sexuais" (Vingert, 2015, p. 31), pois o ambiente carcerário tende a aparar todas as arestas de emancipação da sua existência.

A visita íntima serve como uma chance da população carcerária manter o vínculo afetivo com seus cônjuges e restringir esse processo é um facilitador de afrouxamento desses laços. Não obstante, além de penalizar psiquicamente as mulheres reforçando o estigma do abandono, se desencadeia em uma forma de castração sexual, já que impede que os desejos sexuais e, consequentemente, afetivos sejam satisfeitos. Nessa perspectiva, percebe-se que o encarceramento tende a aprisionar a mulher em todas as suas instâncias, punindo-a não somente pelo ato infracional, mas pelas diversas arestas de significado que atravessam o feminino.

 

Punição pelo rompimento do ideal de mulher

Sob a ótica da dupla punição que se desencadeia tanto através do rompimento das expectativas da mulher ideal, quanto do delito cometido, visões opostas podem caracterizar a raiz da veemente punição imposta para mulheres criminosas.

De um lado, alguns estudos apontam que um grande número das mulheres encarceradas se envolve com a criminalidade enquanto mediadoras de práticas criminosas mais estruturadas, como Costa (2017, p. 51) afirma observar que "nas estatísticas policiais e penais, o envolvimento da mulher na maioria das vezes é como coadjuvante, trabalhando na parte da entrega, guarda ou foguete (que avisa a chegada da droga, dos policiais ou de gangues rivais)", ou seja, vinculadas ao tráfico de drogas através de companheiros ou outros homens, tendo em vista que o masculino costuma ocupar o lugar de poder também no mercado do tráfico de drogas. Esta representação indica, em alguns casos, uma possível posição de passividade perante o crime cometido, servindo como potência que corrobora com a estrutura social patriarcal que incute à mulher uma posição de subalternidade.

Por outro lado, apesar da fidedignidade dos estudos, eles não têm o poder de estigmatizar as causas da criminalidade feminina através de uma totalização, tendo em vista que existem muitas possibilidades circunstanciais que podem desencadear o comportamento delituoso. Inclusive, França (2014, p. 217) afirma que, não desejando mais serem tratadas como inferiores, algumas mulheres "desejaram ser vistas, ouvidas e reconhecidas, e para tanto, tiveram que romper com normas e valores estabelecidos, adentrando no mundo da criminalidade", assim, não é possível deslegitimar a atitude ativa que muitas mulheres criminosas podem ocupar, rompendo com a sua posição de vítima na história para se constituir como autora primária dos seus atos e, não obstante, opostas ao seu lugar de figura feminina dócil, frágil, dependente, materna e subserviente.

Tais perspectivas antagônicas estão imbrincadas de acordo com a estrutura social vigente, ou seja, tanto nos fatores causais da ocorrência dos delitos, quanto na forma de tratamento às mulheres criminosas, conforme explicitado por Martins (2009, p. 121):

O mito de que a mulher não comete delitos não é relacionado a questões biológicas que a diferem do homem, mas a sua repressão diferenciada no tempo e espaço, por códigos que se preocupam em neutralizar aquela que colocaria em risco a instituição da família para além da segurança pública.

Faz-se possível compreender, dessa maneira, a perpetuação do tratamento à mulher criminosa ser de caráter incisivo do que ao destinado aos homens, tendo em vista que cometer o ato infracionário em si já faz com que estas mulheres rompam diversos ideais estabelecidos, principalmente dos que concernem aos valores de manutenção da família e demais atitudes destinadas ao feminino. A partir desse seguimento, o sistema penal se direcionou a penalizar as mulheres através de estratégias de dominação e controle que têm como base o poder androcêntrico, que se desenvolve imprescindivelmente em forma de violação de direitos.

No estudo realizado por Mariana Barcinski no Rio de Janeiro sobre a participação feminina no tráfico de drogas, as participantes, "ao descreverem as suas trajetórias criminosas, referem-se ao poder experimentado como bandidas como o maior motivador para a entrada na rede do tráfico" (Barcinski, 2009, p. 9). Este poder apontado pelas entrevistadas é mais um indicador de como o papel de gênero reflete sobre as mulheres que cometem delitos, tenham elas acessado ou não o sistema penitenciário. O protagonismo que está em se empoderar dos seus próprios corpos junto aos comportamentos destinados à prática criminal deixa a mulher em uma posição de alvo frente às estruturas dominantes. Esta, por sua vez, se estabelece através do controle penal que, de acordo com Carvalho (2014, p. 62):

seria, portanto, uma instância suprema para a correção de condutas que não foram devidamente reguladas pela família, escola e outros mecanismos informais que operam socialmente reproduzindo as diferenças de gênero e reforçando as estruturas sociais discriminatórias contra a mulher, a partir da ação articulada de sistemas de opressão.

Essas relações de poder que atravessam as mulheres encarceradas, juntamente com as características que favorecem determinadas práticas tidas como delituosas, desenvolvem nessas mulheres outras maneiras de atuação, a partir de novas particularidades que constituem esse cenário enquanto percepção e vivência. A mulher criminalizada transgride o modelo vitimológico e inferiorizado a que são destinadas e, dessa maneira, são obrigadas a experienciar o encarceramento em um ambiente que criminaliza pelo delito, pune com estratégias de dominação masculinizantes e viola direitos destinados ao seu gênero.

 

Fatores que predispõem o abandono afetivo

Para construção desse artigo, foram consultados 19 textos, entretanto, para exploração e análise do processo que circunda o abandono afetivo experienciado pelas mulheres encarceradas, a bibliografia foi consultada a partir de uma literatura ainda mais escassa sobre essa temática. De maneira específica, foram encontrados apenas sete textos, sendo três artigos, duas monografias e duas dissertações, publicados entre os anos 2000 e 2018 - seis deles entre 2011 e 2018. Essa escassez de bibliografias publicadas sugere uma falta de interesse pela temática, que pode ser um efeito da sociedade patriarcal que ainda ignora questões pertinentes que são direcionadas ao público feminino, logo, obstruindo as discussões sobre ela.

Sabendo que as opressões de gênero se configuram como antecessores e consequentes do encarceramento feminino, fatores correlatos circundam a experiência de abandono afetivo sofrido pelas mulheres presas. Além destes, o abandono está também associado às dificuldades que são comuns a toda a população carcerária, como as situações socioeconômicas desfavorecidas dos familiares e distância das prisões dos grandes centros urbanos.

Devido à execução do ato infracionário estar concomitante ao rompimento das determinações instituídas às mulheres, grande parcela dessa população é abandonada por seus familiares ao adentrarem o sistema penitenciário, principalmente pelos do sexo masculino. De acordo com Vingert (2015, p. 29), "apenas as mães das detentas acompanhadas dos filhos pequenos as visitam, sendo raras as visitas de pais e maridos. Geralmente os companheiros refazem a vida, casando-se novamente ou se encontram presos também.", nesse último caso, considera-se que mesmo ao cometer um crime, o homem está exercendo seu papel de provedor, forte, viril e detentor de prestígio social.

A diferenciação do tratamento direcionado às mulheres e aos homens atingem várias esferas e com as visitas não seria diferente, partindo do pressuposto que historicamente os homens não são instruídos a serem companheiros e leais, características essas que são sujeitadas às mulheres, conforme evidenciado pela diferenciação dos gêneros que visitam a população carcerária e a quem se destinam. Agnes, detenta de um complexo penitenciário feminino de Minas Gerais, entrevistada por Carvalho (2014, p. 76) aponta que as mulheres "são

muito facilmente abandonadas pelos companheiros pelo fato de não serem as únicas: 'você vê a mulher visitando o homem, não o homem visitando a mulher'", dessa maneira, nos dias de visita, as filas são compostas majoritariamente por mulheres e, remetidas às detentas, geralmente as c são as únicas presentes.

Nessa perspectiva, por existirem poucas prisões femininas, estas geralmente estão alocadas em grandes cidades, dificultando o acesso das famílias devido à distância da sua cidade de origem. Não obstante, outro fator que corrobora com a solidão das detentas, é o fato de que, "diferentemente dos homens cumprindo pena, as mulheres sentem vergonha por a mãe e a filha terem que passar pela constrangedora revista necessária para a visita, um exame humilhante, muitas vezes preferindo receber apenas cartas." (Vingert, 2015, p. 29). Entende-se, dessa maneira, que além dos fatores externos, particularidades de cunho passional se restituem junto às condições patriarcais que incidem, em gênese, à necessidade de aceitação, característica diretamente ligada à passividade. Estes aspectos, que compõem a subjetividade das mulheres criminosas, corroboram de maneira direta com o abandono experienciado por elas, que preferem sujeitar-se ao distanciamento a fazerem seus familiares passarem por situações vexatórias.

Acerca do cenário da visitação, para que esta possa ser realizada, é necessário que haja uma infra-estrutura destinada à realização dessa atividade nas unidades prisionais, entretanto, de acordo com dados do InfoPen Mulheres (Ministério da Justiça, 2018), 1 em cada 2 unidades femininas possuem estrutura adequada e, nas prisões mistas, somente 3 a cada 10 unidades. Ainda de acordo com esses dados, com relação à estrutura para exercício da visita íntima, que deve assegurar dignidade e privacidade, 41% dos estabelecimentos exclusivamente femininos contam com esses locais e, nas unidades mistas, apenas 34% dispõem desses espaços.

Apesar da Lei Brasileira de Execução Penal nº 7210/84 regulamentar tanto a visita social quanto a íntima, esta última está sujeita às regras e normas especificadas pelos diretores de cada estabelecimento prisional e, adicionando o agente sexista na sua atuação profissional, encontra-se uma burocratização desse acesso. Nesse aspecto, há também uma incompatibilidade da maneira com a qual a permissão é dada aos presos masculinos, conforme afirma Buglione (2000) ao fazer uma análise nos presídios de Porto Alegre:

Na prisão masculina tal procedimento é informal, basta à companheira uma declaração por escrito de sua condição para que tenha acesso às visitas conjugais até oito vezes ao mês, duas vezes por semana. Já na casa de detenção feminina a visita é regulamentada por uma portaria da Instituição. Para a apenada ter direito à visita do companheiro, este deverá comparecer às visitas familiares semanais, sem possibilidade de relação sexual, por quatro meses seguidos e ininterruptos. Caso não falte nenhum dia, ainda dependerá da anuência do diretor da penitenciária para que a presa tenha direito a visita íntima por no máximo duas vezes ao mês. (p. 02)

Em casos de relacionamento homoafetivo, as dificuldades com relação à visitação são agravadas, visto que apesar da Resolução nº 175/2013 de 14 de maio de 2013 que habilita a celebração ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, o acesso ou impedimento deste acontece de acordo com os preceitos morais do diretor e funcionários que trabalham nas penitenciárias. Assim, além do estigma da mulher encarcerada, a homofobia surge como reforçador nesta realidade de direitos negados.

 

Conclusão

Tratar as particularidades do encarceramento feminino através dos aspectos históricos de construção do feminino, juntamente com a atuação do patriarcado, possibilitou perceber os fatores que compõem a experiência das mulheres encarceradas, bem como os que predispõem seu abandono afetivo. Dessa maneira, sabendo que as opressões de gênero se desencadeiam como fator preponderante na análise situacional das mulheres encarceradas, pode-se perceber que a punição vivenciada por elas ultrapassa as questões infratoras, se constituindo estruturalmente através das relações de poder pautadas no patriarcalismo.

A partir dessa perspectiva, este artigo permitiu realizar reflexões acerca da realidade experienciada pelas mulheres no cárcere a partir de uma perspectiva histórica, objetivando identificar os fatores que favorecem as práticas de relação de poder e abandono afetivo, visto que, diferentemente da realidade feminina, "os homens presos, em geral, mantém seus vínculos familiares durante o período de encarceramento" (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional [CEJIL] et al., 2007, p. 37). Evidenciou-se que as estratégias de dominação que atravessam essas mulheres estão fortemente pautadas no sexismo, ampliando a desigualdade do tratamento destinado a este gênero no ambiente carcerário, que pode ser percebida pela negligência das necessidades individuais, como objetos de higiene pessoal e assistência ginecológica.

Alguns dos principais fatores que predispõem o abandono afetivo às mulheres encarceradas são o estigma de transgressão às normas e moral incutidas ao feminino, as dificuldades que algumas instituições carcerárias impõem às visitas íntimas, os constrangimentos que os familiares passam em dias de visita no momento de revista, que faz algumas presas preferirem abdicar desse direito, e a distância das prisões femininas. Conforme supracitado, se acrescentam as especificidades de cada instituição que diminuem possibilidades de manutenção e fortalecimento dos vínculos afetivos, devido às discriminações específicas do gênero feminino.

Vale mencionar, ainda, que o presente trabalho não visa se colocar como contrário à responsabilização dos crimes cometidos pelas mulheres, mas destacar os fatores que desembocam em sistemas de injustiça de cunho discriminatório, tendo em vista a demasiada violação de direitos que alicerça a experiência das mulheres encarceradas.

 

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Recebido em: 10/07/2018
Aprovado em: 23/04/2019

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