Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
A subjetividade sob dominação: um diálogo entre 'the intimate enemy' de Nandy e 'nervous conditions' de Dangarembga*
Subjectivity under domination: a dialogue between Nandy's 'the intimate enemy' and Dangarembga's 'nervous conditions'
Subjetividad bajo dominación: un diálogo entre “El enemigo íntimo” de Nandy y “Condiciones nerviosas” de Dangarembga
La subjectivité sous domination: un dialogue entre “L'ennemi intime” de Nandy et les “Conditions nerveuses” de Dangarembga
Lucia Rabello de Castro
Doutora em Psicologia (University of London) e é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi fundadora e diretora geral do Centro de Pesquisa Interdisciplinar em Infância e Juventude da mesma universidade (NIPIAC/UFRJ) e é, no momento, sua diretora científica. Também é editora chefe de DESIDADES â Revista Eletrônica de Divulgação Científica na Área de Infância e Juventude da América Latina
RESUMO
Este artigo analisa duas diferentes tentativas de compreender os efeitos da dominação sobre a subjetividade e os caminhos tortuosos pelos quais se busca a emancipação. Um exemplo é tirado da obra de Ashis Nandy, The Intimate Enemy (1983) e o outro do romance de Tsitsi Dangarembga Nervous Conditions (1988). Argumenta-se que a dominação fere profundamente a psique humana de forma que a busca bem-sucedida da emancipação política de indivíduos e grupos oprimidos depende de como se lida com a abominável realidade da opressão, não apenas externamente, mas - principalmente - internamente. Neste sentido, a emancipação política consiste em uma política de identificação que deve contemplar tanto as ações coletivas para a liberdade quanto a reconstrução interna de um self vilificado e rebaixado.
Palavras chave: Subjetividade; Dominação; Emancipação; Condição Nervosa; Inimigo Interno.
ABSTRACT
This paper analyses two different endeavours to understand the effects of domination on the self as well as the tortuous ways whereby emancipation is sought for. One is taken from Ashis Nandy 's work The Intimate Enemy (1983), and the other, from Tsitsi Dangarembga's novel Nervous Conditions (1988). It is argued that domination deeply scars the human psyche so that the pursuit of political emancipation of oppressed individuals and collectives depends on how the abhorred reality of oppression is dealt with, not only externally, but mainly internally. In this vein, political emancipation consists of a politics of identification in that it must address both collective action towards freedom and an inner reconstruction of a vilified and downgraded self.
Keywords: Domination; Emancipation; Nervous condition: Intimate enemy.
RESUMEN
Este artículo analiza dos intentos diferentes de comprender los efectos de la dominación sobre la subjetividad y las formas tortuosas en que se busca la emancipación. Un ejemplo se toma del trabajo de Ashis Nandy, The Intimate Enemy (1983) y el otro de las Condiciones nerviosas de Tsitsi Dangarembga (1988). Se argumenta que la dominación perjudica profundamente la psique humana, por lo que la búsqueda exitosa de la emancipación política de los individuos y grupos oprimidos depende de cómo se aborde la abominable realidad de la opresión, no solo externamente sino, especialmente, internamente. En este sentido, la emancipación política consiste en una política de identificación que debe contemplar tanto las acciones colectivas por la libertad como la reconstrucción interna de un yo vilipendiado y degradado.
Palabras clave: subjetividad, dominación, emancipación, estado nervioso, enemigo interno.
RÉSUMÉ
Cet article analyse deux tentatives différentes pour comprendre les effets de la domination sur la subjectivité et les manières tortueuses dont l'émancipation est recherchée. Un exemple est tiré de l'ouvrage d'Ashis Nandy, The Intimate Enemy (1983), et l'autre de Nervous Conditions (1988) de Tsitsi Dangarembga. On prétend que la domination nuit gravement à la psyché humaine, de sorte que la poursuite de l'émancipation politique d'individus et de groupes opprimés dépend de la manière dont on gère la réalité abominable de l'oppression, non seulement à l'extérieur, mais surtout à l'intérieur. En ce sens, l'émancipation politique consiste en une politique d'identification qui doit envisager à la fois des actions collectives pour la liberté et la reconstruction interne d'un moi vilipendé et dégradé.
Mots-clés: subjectivité, domination, émancipation, état nerveux, ennemi interne.
A insídia do processo de dominação tem sido discutida, principalmente, em relação ao impacto causado pelas estruturas objetivas e instituições que praticaram escravidão, tortura, exploração e aniquilação de povos e grupos. De forma menos notável, o processo de dominação também engloba os diversos, intensos e duradouros efeitos da opressão e exploração nas subjetividades 'daqueles que foram dominados. Como Mbembe (2013, p. 235) aponta, a dominação sob o colonialismo engloba dois eventos decisivos para o sujeito humano: uma alteração radical, e talvez irreversível de suas relações consigo e com o outro, e a extraordinária vulnerabilidade da psique frente aos traumatismos do real. Esses, quer sejam em expressões individuais ou coletivas, revelam as profundas e persistentes cicatrizes na psique humana causadas pela dominação, mesmo quando as condições objetivas de opressão e exploração já foram alteradas e superadas. Neste caso, a questão fundamental parece se voltar para a profunda transformação do sujeito, cujo processo de emancipação pode ser parcialmente, ou até mesmo totalmente, minada ou impedida.
Este artigo tem como objetivo discutir diferentes respostas humanas à dominação, quando estão em jogo tentativas de encarar e lidar com a violência por ela ocasionada e restaurar a condição de liberdade do sujeito. A discussão é baseada em duas narrativas que tratam do tema das vicissitudes da construção da subjetividade sob dominação. Elas proporcionam diferentes percepções sobre as maneiras dolorosas e tortuosas por meio das quais os indivíduos procuram recuperar sua dignidade e autoconhecimento. Ambas as narrativas usam a experiência colonial de dominação - uma na índia e a outra na África - como inspiração paradigmática para revelar as lutas internas daqueles que tiveram que lidar com os males da dominação e reinventar maneiras de restaurar seu senso de liberdade e autoestima. O trabalho de referência do psicólogo clínico e político Ashis Nandy, The Intimate Enemy: Loss and Recovery of Self under Colonialism, publicado em 1983, representa uma longa discussão sobre as estruturas morais produzidas sob o colonialismo britânico na índia que emaranha tanto os opressores quanto as vítimas numa relação compulsória. Cotejo a obra erudita e convincente de Nandy com o excepcional romance de Tsitsi Dangarembga, Nervous Conditions, publicado primeiramente em 1988. Nele, a condição interna do sujeito colonial é analisada em interseção com a dominação patriarcal feminina. O livro contém uma narrativa singular e envolvente da subjetividade humana, em especial de uma menina, sob a dominação britânica no Zimbabwe e sujeita a estruturas opressivas de geração, gênero e raça. Embora distantes geograficamente e diferentes no que se refere a seus gêneros discursivos, ambos os livros demonstram a familiaridade de seus autores com os efeitos da dominação na constituição psíquica. Para ambos, a situação do oprimido favorece a resistência, mesmo que malfadada. Entretanto, os autores usam lentes diferentes através das quais compreendem as complexidades da luta contra a opressão, e consequentemente as formas disponíveis para a emancipação e consciência crítica.
Esta discussão, pondo em diálogo obras de dois gêneros muito diferentes, uma ficção e uma análise de cunho psicanalítico e cultural, que detalha respostas subjetivas ao trauma da dominação, procura examinar como as figuras retratadas pelos dois autores escolhidos usam seus recursos internos e culturais para resistir à sua condição opressiva. Neste sentido, os quatro personagens em análise são construtos textuais e assim, devem ser considerados como ficcionais, mesmo que dois deles - Kipling e Aurobindo, que aparecem na obra de Nandy - tenham sido pessoas reais. Entretanto, a reconstrução de Nandy das histórias de vida de Kipling e Aurobindo, embora fieis às descrições autobiográficas, se mantém como uma metanarrativa que busca levar em conta o destino dos inimigos internos constitutivos das subjetividades oprimidas desses personagens. Kipling, por exemplo, é reconstruído por Nandy como uma 'figura trágica', que reproduziu em sua própria vida a violência de um mundo imperialista externamente repressivo (Nandy, 2010, pp. 37-38), interpretação que enfatiza a limitação interna de Kipling de reconstruir as relações do self com o outro, além da divisão Ocidental/não Ocidental, o que reflete suas próprias divisões internas e seu empobrecimento psicológico.1 O objetivo aqui é, desta forma, seguir a construção narrativa desses personagens dada por cada autor, de forma que uma outra reconstrução (minha própria) atenta às diferentes maneiras de se detalhar e enfrentar a experiência da fragmentação e o despedaçamento interno produzido pela dominação colonial possa ser posta em primeiro plano. Assim, tanto o romance de Dangarembga quanto o ensaio de Nandy são lidos de modo a se estabelecer uma interlocução dialógica, mas não necessariamente convergente das escolhas dilemáticas que incidem sobre a condição paroxística de relações do self com o outro sob a dominação colonial. As construções de Nandy sobre Kipling e Aurobindo transmitem a perspectiva política do colonialismo visto como uma missão civilizatória e a produção de uma relação distinta, cognitiva, moral e psicológica entre o self e o outro. De uma outra forma, o romance de Dangarembga é uma "textualidade multifacetada para negar os efeitos de homogeneização ao se recuperar uma voz singular da margem" (Patchay, 2003, p. 147), segundo a qual as ambiguidades, indecisões e apreensões discrepantes do destino do sujeito colonial não proporcionam um desenlace linear de seus dilemas. A tarefa de aproximar a delicada polifonia do texto de Dangarembga e a análise psicocultural acadêmica de Nandy também questiona de que forma a emancipação, como um processo concomitantemente político e psicológico, depende da reconstrução de uma interioridade cujo objetivo não deveria consistir em vencer o inimigo interno - o opressor - mas, sim, de ser capaz de sustentar a fragmentação e tormento interiores causados pela dominação. Apoiar-se na memória cultural e nos valores coletivos de forma a desemaranhar os contornos alienados das fronteiras e identificações do 'eu-nós' pode ressignificar a experiência pessoal dos terrores do passado dentro de um contexto coletivo de busca por um destino comum.
Ashis Nandy e o "inimigo íntimo"
O encontro entre o sujeito colonizado e seu opressor sela um destino arriscado para ambos. Para Nandy, o colonialismo produz degradação e patologia para ambos os lados - para os sujeitos colonizados e suas culturas, assim como para as sociedades colonizadoras e seus supostos vencedores. Esse ponto de vista não só contraria a sabedoria popular de vitimizar o oprimido como, acima de tudo, estabelece uma perspectiva a partir da qual se interroga pelos males ocultos e, muitas vezes, não reconhecidos mas internalizados pelos próprios opressores, mesmo quando normalizados no âmbito de um ethos legítimo. A brutalidade da opressão e da dominação estabelece uma relação inexoravelmente compulsória onde tanto o senhor quanto o escravo encontram-se presos, viciosamente sufocados e permanentemente assombrados um pelo outro. Não sobra nenhum espaço para atitudes e expectativas inesperadas no relacionamento, já que tanto o opressor quanto o oprimido estão amarrados no nó das maciças identificações projetivas (Joseph, 1991)2. A dominação estabelece uma condição de aprisionamento, restringindo de forma abrangente o desejo do sujeito através do efeito totalizador de uma fantasia de perseguição recorrente: o que o outro quer de mim?
Focando-se na subjetividade e nos perigos de sua constituição sob a dominação, Nandy pondera sobre as chances de seus personagens conseguirem negociar brechas nas vidas tolhidas pela miséria da alienação. As vidas do escritor Rudyard Kipling (1865-1936) e do escritor, ativista e iogue indiano Sri Aurobindo (1872-1950) são estudadas e contrastadas em relação às escolhas que cada um faz para levar uma vida mais desejável. As vidas de cada um começam de forma diferente, Aurobindo como um sujeito colonial sob o domínio da Índia britânica, e Kipling, nascido na Índia, representando o lado do colonizador. A escolha de Nandy por Kipling e Aurobindo segue sua proposta argumentativa: colocar em evidência a alienação humana em qualquer lado da relação.
O Kipling de Nandy foi vítima de intensa ambivalência sobre as coisas indianas e a indianidade: sua infância inesquecivelmente idílica na Índia envolveu uma perigosa aproximação e inclinação para com a cultura supostamente inferior do colonizado. A criança interna indiana de Kipling, mimada e ternamente cuidada por servos indianos, foi cuidadosamente superpreservada como uma memória adulta idealizada e intacta, uma parte do self aparentemente não-comunicável, que não teve o efeito de contaminar suas outras atitudes e convicções do seu eu adulto consciente sobre a colonização e o papel dos britânicos na Índia. Embora Kipling tenha podido sentir na pele a malignidade da solidão, opressão e humilhação que vivenciou quando criança em um colégio interno em Southsea, na Inglaterra (Kipling, 1994), essa experiência não produziu nenhuma identificação com os indianos oprimidos3. Mesmo mortificado com tal experiência, essa foi assimilada como uma parte valiosa de si mesmo idealizada como um traço cultural de superioridade e força, presente naqueles que têm a prerrogativa de conquistar e comandar. Assim, a reconstrução de Kipling por Nandy coloca em evidência as profundas rachaduras internas de Kipling que acabaram por evitar que ele formulasse uma crítica emancipada do mal da colonização e da violência.
Nandy argumenta que, para Kipling, "a vitimização que conheceu na Inglaterra poderia ser evitada, talvez até glorificada, através da identificação com os agressores, especialmente através da identificação com os valores dos agressores" (Nandy, 2010, p. 68). O custo de tal operação psíquica pressupunha construir barreiras internas rígidas contra qualquer escalada de alguma parte de seu eu mais compassiva e flexível, cuidadosamente mantida como um reservatório interno de inspiração literária e lembranças, para sempre desconectadas do que era considerado vida real e emancipação adulta. Esses aspectos no processo de construção da subjetividade mantiveram-se emaranhados no paradigma hegemônico da dominação masculina, direcionada a um eu que deveria livrar-se de quaisquer sentimentos de dependência e vulnerabilidade4. Indubitavelmente, estão em jogo aqui tanto as noções de realidade e idade adulta, construídas como ícones primordiais da descrição da evolução social e da subjetividade no Ocidente. A realidade coloca-se em oposição ao mito e à superstição (Horkheimer & Adorno, 1986); é o domínio da objetificação do mundo como forma de se calcular e instrumentalizar a razão. Por conseguinte, a realidade não pode ser alcançada pela imaginação ou pela fantasia, considerados modos infantis; à medida que se encaminham para a emancipação, as crianças devem superar seu atraso cognitivo. Neste sentido, tornar-se adulto significa adquirir essa segunda natureza, deixando para trás a vida imaginária e as inclinações e predisposições afetivas. É uma verdade assumida no mundo ocidental moderno que o caminho para a emancipação (adulta) está integrado ao ato de libertar-se de quaisquer inconvenientes da experiência infantil que possam prejudicar o processo de construção da racionalidade, para além dos afetos, emoções e autocontrole, para além da vulnerabilidade, e da autoconsistência, para além da incongruência e da autocontradição.
A descrição de Kipling por Nandy destaca a resposta de Kipling à incongruência de suas experiências na infância: por um lado, Kipling sofreu o mal da dominação e muito provavelmente odiava seus compatriotas por esse motivo; por outro, sentia-se exigido de que fosse um dos colonizadores, fiel aos valores da civilização ocidental, mesmo que um deles - a violência - tivesse sido pessoalmente experimentada como dor. O fracasso em protestar contra seus próprios opressores pelo mal cometido poupou Kiplingde ter que sustentar uma grande incongruência psíquica: aderir aos valores britânicos e detestar a estupidez nacional. Para Nandy, a resposta de Kipling levou-o a uma total adesão aos valores britânicos, pavimentando o caminho para uma convicção consciente sobre a legitimidade da violência, seja em nome do progresso ou civilização pelos conquistadores, ou como uma espécie de contra-violência das vítimas para com seus torturadores. Além disso, essa manobra psíquica o impeliu a cortar qualquer acesso à sua parte do eu violada e mortificada, cuja possibilidade de afetar sua subjetividade só poderia ser recalcada de forma a manter qualquer conflito interno resultante da identificação com as vítimas (ele mesmo e outros) sob controle permanente. Tais clivagens internas salvaguardaram uma identificação completa e consistente com os ideais e valores britânicos, ao custo de repelir e alienar quaisquer de suas partes do eu e experiências de vida que lhes fossem incongruentes. Como tal, a autoconsistência exigia uma clara delimitação do que ele escolheu ser: um cidadão britânico, não um indiano; um conquistador, não uma vítima.
A consistência subjetiva tem sido, há muito tempo, considerada uma medida de bom ajustamento psicológico na versão ocidental da competência adulta, de forma que ser "um" deveria significar ser capaz de abafar as contradições e incongruências internas a não ser que se queira enfrentar as consequências de uma identidade estigmatizada, como a do lunático ou a do psicologicamente imaturo.
Para Nandy, o desenlace das relações de dominação aponta para que o oprimido vá além da sua atual clausura de horror e dor para retomar uma humanidade apagada, e assim desemaranhar-se do abraço mortal da dominação. Emancipar-se da violência e da opressão depende, então, do discernimento e da iniciativa do oprimido que, segundo Nandy, "deve ter categorias, conceitos e até defesas mentais com as quais possa transformar o ocidente em um vetor razoavelmente controlável dentro de outras visões de mundo tradicionais" (Nandy, 2010, p. 13). Os aspectos que contam como recursos contra a opressão são as potencialidades internas latentes das vítimas, disponíveis através de suas histórias de vida e herança cultural. Logo, a vitória sobre o inimigo reside na possibilidade de se recodificar o imenso, contraditório e abrangente mal da opressão sob um diferente regime simbólico - que habilmente racha a aparente inevitabilidade da opressão e a cumplicidade das vítimas para com ela. Para o oprimido, a escolha de sobrevivência, mais do que a morte, significou conformidade, obediência e rendição aos opressores. Embora a morte pareça mais heroica que a sobrevivência, em algum momento pode reforçar uma aparente superioridade do senhor na medida em que ele consegue eliminar todos os seus oponentes. Por outro lado, a conformidade não heroica representa não apenas a preservação do valor maior - a própria vida - como também a preservação da cultura, valores e visão de mundo dos oprimidos, que devem igualmente sobreviver. Em sua narrativa biográfica, Rigoberta Menchú descreve um momento em que ela e sua família inteira tiveram que assistir às cenas de horror da tortura e morte de um irmão mais novo (Burgos, 2013). Naquele momento, resistir causaria mais tortura e morte para aqueles que abertamente desafiassem os militares; o extremo sofrimento em ativamente não fazer nada só poderia ser suportado porque mantiveram a fé na continuidade da luta por justiça e liberdade para seu povo. Ao se escolher a conformidade ao invés da morte, o apagamento total do outro vitimizado - odiado por ser quem é - é evitado; uma oportunidade é garantida para a sobrevivência dessas memórias, estilos de vida e valores que, pela morte da vítima, seriam aniquilados.
A futilidade de se reduzir a opressão a meras condições objetivas, à figura encarnada do senhor, pode ser vista nas afirmações de Nandy sobre os efeitos muito menos visíveis da dominação - a saber, o inimigo interno assimilado na vítima que é capaz de assombrar a vida da vítima, mesmo depois da morte do inimigo real. A emancipação, desse modo, refere-se à forma de se lidar com o inimigo interior, de como integrar aquelas partes do eu que estão para sempre contaminadas e maculadas pelo horror da opressão5. É na análise que Nandy faz de Sri Aurobindo que essa questão é trazida à luz e ganha contornos complexos.
Aurobindo foi marcado por uma severa educação colonial por meio da qual os Brahmos urbanos, de acordo com Nandy, foram criados como ingleses, de forma que "nada indiano pudesse chegar perto [deles]" (Nandy, 2010, p. 87). Aos cinco anos de idade, Aurobindo ingressou em um colégio interno na Índia; sua governanta e sua mãe postiça, como seus colegas, eram ingleses. Um sentimento dominante de solidão e alienação o acompanharam desde esses dias, ecoando a estranheza de ser indiano e ter que cumprir com uma educação, estilo de vida e ideais de eu britânicos. Aos sete, tornou-se residente na Inglaterra, junto com seus irmãos, onde se tornaram estudantes do conhecimento ocidental, do latim e grego à literatura inglesa, e se impregnaram da autoridade discursiva do ocidente acima de outros conhecimentos e culturas. A completa desnacionalização, nas palavras do próprio Aurobindo, segundo Nandy, chegou com fortes sentimentos de estranhamento e depressão que pareceram só amenizar quando ele retornou à Índia depois de 14 anos na Inglaterra.
A educação colonial não só foi conducente a um ataque mortífero aos recursos e possibilidades internas de Aurobindo, mas também, sobretudo, teve um efeito aniquilador em seu senso de ser real. Esse sentimento de irrealidade acompanhou Aurobindo por toda a sua vida. O psicanalista Donald Winnicott aponta que sentimentos de irrealidade estão associados com intensas experiências de sofrimento nos primeiros anos de vida que podem danificar gravemente a sensação de que a vida vale ser vivida (Winnicott, 2005). Aurobindo teve que lutar por toda a vida para resgatar seu eu da completa aniquilação e/ou de uma escolha suicida. Isso acarretou um projeto de reconstrução de sua indianidade pelos seus próprios meios, longe da autoimagem desacreditada que ele tinha internalizado. Sua tentativa o levou a um processo de restauração de um universalismo mais inclusivo e humanizado no qual os colonizadores e o ocidente não fossem demonizados, mas se mantivessem como "uma realidade humana interna", como Nandy coloca (2010, p. 87).
A condição de vítima e a resistência são, de acordo com a visão de Nandy, indivisíveis; logo, a busca pelo significado da dor e do sofrimento causado pelo colonialismo pode se desdobrar num processo de resistência não apenas contra a autoridade estabelecida como também contra a convencionalidade e contra a realidade em si. Dentro de um sistema de total dominação, quando a manifestação de rebeldia parece ser inócua, as vítimas resistem ao proteger suas posses mais preciosas; geralmente está "no coração [da vítima]", como Nandy coloca, que a resistência necessária para expor as falácias ou a superioridade do homem branco, ou de quem quer que seja, está alojada, mesmo se a resistência é mantida em segredo e não é autoconsciente; mesmo que isso pareça exteriormente um pacto com o mal. Assim, manter-se vivo, ou escolher sobreviver, representa a opção não heroica, mas essa opção abriga a possibilidade de um entendimento de opressão para além de sua própria lógica, de modo que possa ser superada não só pela contra-opressão ou contra-violência, mas também pela perspectiva esclarecida da vítima (Nandy, 2010, p. 99).
Quando Aurobindo retornou à Índia, depois de sua estadia na Inglaterra, envolveu-se em insurgências e em conflitos para derrubar o domínio britânico, e em razão disso foi acusado de conspiração e enviado para a cadeia. Paralelamente ao seu ativismo político havia uma apropriação gradual de recursos culturais latentes: a espiritualidade indiana apresentou-lhe uma alternativa "exótica" (Nandy, 2010, p. 96) para auxiliá-lo a lidar com a experiência da dor e opressão que eram inexplicáveis em termos de conhecimento e códigos ocidentais. Ele ansiava por experimentar algum sentido de liberdade que ainda pudesse acessar; assim como, por uma diferente relação do eu com o outroe um caminho alternativo para alcançar a inter-relação com o universo orgânico; e por uma visão de perfeição que desafiasse a sabedoria convencional sobre como se comportar em um mundo de violência e exploração.
Aurobindo escolhe ser um iogue e líder espiritual. A escolha da espiritualidade - a espiritualidade indiana - proporcionou-lhe um desvio da racionalidade ocidental, cujo amplo sistema de inteligibilidade tinha legitimado a violência da colonização no mundo inteiro em nome da civilização, da cristianização e da modernização (Mignolo, 2001b). Se a racionalidade em si, como discurso e prática social, estrutura a opressão institucionalizada, então, como Nandy afirma, é além da racionalidade dominante, ou mesmo na esfera do que é considerado irracional, que a resistência pode ser atualizada. Para Nandy, a luta de Aurobindo articulou-se a uma tentativa "insana" de resistência, desencadeada pela necessidade de proteger os valores preciosos do sujeitoe da cultura sob opressão, ainda que de uma forma eventualmente desconectada da convencionalidade dominante. A reciprocidade entre o eu e o outro basearam-se numa perspectiva de (auto) transformação e transcendência assegurada pela formulação mística de Aurobindo de uma humanidade inclusiva. Neste caso, o inimigo íntimo poderia ser resgatado e redimido na medida em que estivesse sincronizado com outra visão holística de emancipação e justiça.
A espiritualidade indiana não foi o único recurso na luta de Aurobindo contra a insanidade e aniquilação psicológica; havia também, de acordo com Nandy, a "tradicional capacidade da sociedade indiana de conviver com ambiguidades culturais" (Nandy, 2010, p. 107), onde uma certa permeabilidade entre o eu e o que não é eu é permitida, uma certa possibilidade de ser e existir em papeis contraditórios, como ser o que outro exige e se recusar a sê-lo. Para isso, a realidade externa assume uma certa qualidade absurda, ou 'onírica', e a resistência pode ser reduzida a "um mínimo gesto de protesto" (Nandy, 2010, p. 104). Entretanto, sob o princípio de apaddharma (o modo de vida em condições de perigo), afirma Nandy, atuar (demonstrando externamente comprometimento com o outro e suas demandas), enquanto se observa a si mesmo como um objeto, torna-se essencial para se manter vivo e tornar possível uma divergência aparentemente ineficaz ou ridícula. Isso, até certo ponto, preserva o eu mais profundo da absorção pelo outro dominante. Certamente, essa experiência subjetiva de tornar-se bi-, tri- ou em múltiplas partes contradiz um ideal de eu coerente e autônomo, mas proporciona mais tolerância à incoerência interna. Está em jogo a possibilidade de se sustentar partes do eu incompatíveis e algum grau de desconexão, e até mesmo, de auto alienação.
Sob uma ótica ocidentalizada, Aurobindo pode parecer uma figura bizarra cuja tentativa de superar a opressão e a violência colonial resultou em fuga da realidade e na construção de uma grandiosa teoria mística. Sua bizarrice pode parecer como um esforço atrapalhado e infantil de resistir e dar sentido à sua vitimização e de acolher o inimigo interno. A partir desse ponto de vista, pode-se afirmar que seu esforço resultou em uma emancipação malfadada, visto que ele falhou em construir a liberdade por meio de uma luta contra a dominação de modo realista e adulto (ou seja, demonstrando poder e efetividade). Entretanto, a ideia de emancipação deveria, por si só, ser problematizada, levando-se em conta que não pode ser pensada como uma maneira única e já antecipada de superar a opressão, sobretudo, uma maneira que implemente as formas e definições do inimigo - isto é, sua noção de efetividade e do que conta como realidade, e assim por diante. Neste sentido, Aurobindo ousou propor um caminho singular e exclusivo para a liberdade, mantendo o inimigo íntimo como uma fonte de motivação para se compreender o sofrimento que une o opressor ao oprimido. Kipling, diferentemente de Aurobindo, respondeu prontamente aos questionamentos de ser como o próprio opressor/inimigo, o que inevitavelmente acarretou sua fuga interior e sua repulsa em relação a suas próprias partes de eu vitimizadas. A escolha de Aurobindo pela sobrevivência o levou a desafiar a realidade tal como se apresentava, juntamente com seu alicerce, a racionalidade em si, visto que foi o que legitimou a violência infligida a ele e a seus companheiros. A brutalidade da violência como realidade e racionalidade tinha que ser ressignificada de forma a dar significado ao seu sofrimento e à vileza da opressão, mesmo que isso implicasse em sustentar outras realidades que pudessem abrigar a vívida e incomensurável experiência humana da dor.
Tsitsi Dangarembga e a condição nervosa do oprimido
Nervous Conditions, romance de Dangarembga, é uma emocionante narrativa sobre o problema do oprimido, encarnado em Tambudzai (ou simplesmente Tambu), uma menina de cerca de 12 anos que é criada no Zimbabwe pós-colonial durante o período das guerrilhas anticoloniais. No romance, as vicis-situdes da constituição subjetiva são evidenciadas sob as condições opressivas e sufocantes provocadas pela dominação masculina e pelo patriarcado. Embora sejam feitas algumas referências explícitas aos conflitos anticoloniais do período, o plano doméstico da violência de gênero se destaca, e é através das relações sociais e familiares que a violência política e o colonialismo ficam visíveis. Sobre esse aspecto, Thiong'o (2013) pontua que a restrição do ponto de vista do narrador à esfera doméstica - de uma menina na adolescência - é tanto o ponto forte quanto a limitação do romance 6. Os anos turbulentos e sangrentos da independência do Zimbabwe que marcam o contexto político e histórico de Nervous Conditions são mantidos nos bastidores para que a construção das subjetividades colonizadas - da narradora, sua prima e das outras mulheres na história - possa ser condensada principalmente através da política de gênero. A rebelião contra o colonizador aparece no contexto das relações da menina com Babamukuru, o africano 'embranquecido', que permanece como uma criação colonial útil para representar o sistema colonial de opressão.
A condição nervosa é a insustentável condição do sujeito colonial (Fanon, 1963) preso no impiedoso mal nele infligido ao mesmo tempo que se apoia na necessidade de sobreviver7. A violência torna-se uma prática fundamental - contra si e/ou contra o senhor. Ela mascara a agonia de se aderir aos valores, estilos de vida e crenças coloniais, e de ser como o colonizador, ao mesmo tempo em que se rejeitam os seus valores, conhecimento e herança de modo a preservar sua própria cultura e subjetividade nativas. Entretanto, nem uma nem a outra opção parecem consistentes por diversas razões, e a condição psicológica resultante leva a um paroxismo de conflitos, a um colapso interior, e até a uma violência contra si mesmo. Como o romance de Dangarembga revela, tal condição de aprisionamento ganha contornos vívidos, como mostrado nas subjetividades de Tambu, a personagem principal do romance, e também de sua prima Nyasha.
A história de Tambu trata-se, em suas próprias palavras, de 'sua fuga' (Dangarembga, 2004, p. 1) da opressão da pobreza - o fato de não ter comida suficiente, vivendo em condições de miséria - que é vivenciada com ainda mais pressão devido à sina da mulher de se submeter e se conformar com os comandos do homem. Desde muito cedo, Tambu percebe as diferenças no tratamento dado a ela a seu irmão, Nhamo, que pode usufruir de privilégios só porque é homem; e mais importante ainda, considera-se a educação (ocidental) um bem masculino para que os homens possam, em algum momento, tirar a família da pobreza. Tambu percebe a injustiça de sua situação: "pensando nisso, sentindo a injustiça disso, foi como eu deixei de gostar do meu irmão, e não só do meu irmão, mas do meu pai, da minha mãe - na verdade, de todos" (Dangarembga, 2004, p. 12). Desgostar da família faz com que ela se afaste das tentativas de ganhar sua aprovação e afeto e, de certa forma, a deixa mais confortável para desafiar seus valores e expectativas.
Desafiar a sina da menina ou da mulher tornou-se a luta permanente de Tambu. Segundo a mãe de Tambu, uma mulher feroz que daria sua vida pela família, "a condição feminina é um fardo pesado" (Dangarembga, 2004, p. 16). Ela admira a determinação de Tambu e é sensível aos desejos da filha de ir além de sua própria situação, embora, de maneira geral, não apoie tanta audácia. Apesar de Tambu sofrer pela miséria da mãe, ela encontra alívio ao se contra-identificar com seu destino e no desejo de fazer o que a mãe não fez. O pai de Tambu permanece como uma figura fraca, psicologicamente frágil, dependente dos favores e da condescendência do irmão mais velho. E é ao último, seu tio Babamukuru, que Tambu recorre, visto que ele é uma figura dotada de experiência e 'savoir faire' para se tornar bem-sucedido na vida. O tio teve que superar a pobreza e o preconceito para alcançar a posição de professor regente de uma escola de missões - "o único africano morando em casa de brancos" (Dangarembga, 2004, p. 63); ele é um homem educado e reconhecido entre seus companheiros. É a ele a quem Tambu recorre como alguém que pode oferecer as condições materiais para sua educação - a oportunidade de fugir de sua condição atual. Então, depois da morte do irmão, Tambu deve convencer seu tio de seu valor para que possa adentrar uma posição privilegiada e supostamente natural do homem de obter educação e ajudar a família.
Na casa de Babamukuru, Tambu consegue aos poucos traçar seu caminho em direção à emancipação. No dia de sua partida para a escola das missões para viver com seu tio, a visão da absoluta tristeza e decepção da mãe, e sua recusa em deixá-la ir, não afetam Tambu, que se sente "triunfante" e "vingada" (Dangarembga, 2004, p. 57). Para ela, "meus horizontes estão saturados de mim, do meu ir, meu partir. Não há espaço para o que eu deixei para trás" (Dangarembga, 2004, p. 58). Mãe, pai, irmãs são todos partes de um "cenário excedente", já que ela sente a força de mudar sua própria sina, que as "circunstâncias não são imutáveis" e nenhum fardo é tão compulsório que não possa ser deixado (Dangarembga, 2004, p. 58).
Para Tambu, a educação, "sobrevivência do espírito", "criação de consciência" (Dangarembga, 2004, p. 59), é o portal para a emancipação. Dessa forma, o tio Babamukuru representa aquele que conseguiu livrar-se da condição desafortunada da família para ajudar os parentes a saírem da degradação material. Tambu enxerga o tio com admiração e respeito, ansiosa por cumprir com seus comandos e expectativas, pois ser como ele, "um exemplo de retidão" (Dangarembga, 2004, p. 95), parece assegurar o resultado final de ser livre da necessidade e adquirir poder e conhecimento. Entretanto, a identificação projetiva de Tambu para com seu tio como forma de emancipação acaba selando sua submissão às vontades e ordens dele e impede que ela encontre o seu próprio caminho para a salvação. Esse contraponto, como veremos, é representado por Nyasha, e sua constante rebeldia contra o pai, o quê Tambu desaprova totalmente. Para Tambu, Nyasha "não tinha o direito de ficar triste" (Dangarembga, 2004, p. 60), já que ela parecia ter tudo.
Indubitavelmente, a nova situação de Tambu na casa do tio deixou-a diferente - tão diferente que ela "gostava de pensar na [minha] transferência para as missões como a [minha] reencarnação" (Dangarembga, 2004, p. 94). De fato, externamente, em boas roupas, limpa e com boa aparência, ela é diferente. Embora seu eu íntimo possa ser assaltado por dúvidas e conflitos, esses têm que ser domados e contidos em nome de seu pragmatismo: ser bem-sucedida academicamente, ser apreciada pelos professores e que Babamukuru reconheça suas habilidades acadêmicas.
Dominada por sentimentos de gratidão e admiração, mesmo que em seu coração tenha críticas à rigidez e à severidade de Babamukuru, Tambu sente-se em obrigação com seu "benfeitor", a quem deve obediência, amor e respeito e de quem seria pecaminoso sentir raiva (Dangarembga, 2004, p. 151).
Entretanto, em uma ocasião, discorda abertamente dele: quando seu tio insiste em providenciar uma cerimônia de casamento para seus pais. A falta de propósito da ideia e a farsa que ela envolve - além de ridicularizar seus pais pelo mero interesse de satisfazer as fantasias de Babamukuru - enfraquece os mecanismos intensamente repressivos contra suas próprias ambiguidades. Fica internamente desorganizada em suas incertezas. Como ela mesma diz,
Vir para as missões, continuar minha educação e nela ser bem-sucedida, essas têm sido as coisas que importavam. E já que essas coisas têm progredido de acordo com o plano por quase dois anos, eu tinha pensado que ambiguidades não mais existissem. (Dangarembga, 2004, p. 166, itálicos do autor)
Apesar do casamento se realizar, Tambu mantem sua decisão de não ir, embora tenha medo de confrontar o tio. Mas esta indisposição com o tio permanece como uma situação peculiar de efeitos aparentemente não prolongados em seu eu consciente no que diz respeito a determinar o curso de sua vida ou quem ela deseja se tornar. Logo após esses eventos, outro grande passo deve ser tomado para a continuidade de sua educação. Em relação a isso, não tinha dúvidas: quer ir para Sacred Heart, uma escola católica multirracial, para prosseguir com seus estudos. Ela havia ganhado uma bolsa integral.
Ela está convencida de que esse é o caminho para a liberdade, "outro passo para longe das moscas, dos cheiros, dos campos e dos trapos; longe dos estômagos raramente cheios, longe da sujeira e da doença, da reverência abjeta de meu pai para com Babamukuru e da letargia crônica de minha mãe" (Dangarembga, 2004, p. 186). Para sua mãe, isso é "massacre", um insidioso massacre cultural, um processo de se "tornar inglês" e estrangeiro que já tinha matado seu filho Nhamo. Tambu não se ocupa dos medos de sua mãe, embora sinta que uma "semente de desconfiança" (Dangarembga, 2004, p. 207) tenha sido plantada em seu coração. Esse sentimento é logo dissipado quando vai para Sacred Heart e desfruta dos "livros, dos jogos, dos filmes, dos debates - todas essas coisas eram coisas que eu queria" (Dangarembga, 2004, p. 208). Novamente, as ambiguidades e dúvidas são reprimidas para proporcionar amplo espaço para o plano pré-determinado de Tambu de reconstruir sua própria subjetividade de acordo com o ideal internalizado de emancipação através da educação que Babamukuru representa de forma icônica.
O romance de Dangarembga leva o leitor à angústia diária, constante e, de certa forma, febril desta menina africana no Zimbabwe colonial enquanto reconta sua jornada para resgatar sua dignidade e autoestima dentro das estruturas de dominação de classe, gênero e raça. A educação - isto é, a educação ocidental - parece ser o caminho para conseguir esse objetivo. É notório que a educação não é problematizada como possível aprisionamento, uma possível perda de si no outro ao tornar-se inglês e estrangeiro, especialmente se não abre espaço para as tormentas e ambiguidades e para as sementes daautodesconfiança. Se a educação pode abrir a mente, o preço a ser pago pode ser uma aliança com outros opressores, e a tentadora divinização daqueles supostamente possuidores de conhecimento e poder (Okere, Njoku, & Devisch, 2011).
A relação entre as primas Tambu e Nyasha é uma relação de confidência e intimidade. Quase da mesma idade, podem compartilhar opiniões, gostos, sonhos e esperanças. Tambu é fascinada e intrigada pelo jeito de sua prima - ela é "chocante, engraçada, desrespeitosa e irrepreensível" (Dangarembga, 2004, p. 97) - mas também sente-se temerosa do caos que Nyasha pode causar ao seu plano bem arranjado de autonomia. Como ela mesma diz, "a maior parte de mim procurava por ordem. A maior parte de mim era prática e categórica. Essas partes desaprovavam intensamente de Nyasha e desconfiavam dela", "tudo nela me falava de possibilidades que, se seriamente consideradas, trariam o caos ao plano perfeito que eu tinha estabelecido para a minha vida" (Dangarembga, 2004, p. 96). Assim, à medida em que o romance se desenvolve, o leitor se torna testemunha da distância cada vez maior entra as duas garotas enquanto enfrentam os dilemas de construção da subjetividade sob o domínio das estruturas opressivas de gênero e raça.
Nyasha parece dramatizar tanto uma firme rejeição ao patriarcado - encarnada na sua recusa em aceitar, ipso facto, que seu pai possua autoridade absoluta sobre ela - quanto uma busca febril por conhecimento autêntico, ou seja, conhecimento profundamente conectado com a própria urgência em expandir o eu, mas não submetido a propósitos instrumentais tais como o sucesso acadêmico ou econômico. Como tal, ela oferece um contraponto a Tambu, que parece priorizar os ganhos do investimento acadêmico em detrimento dos efeitos mais intangíveis do conhecimento para o próprio sujeito. Nyasha parece estar sempre colocando em risco as certezas definidas do conhecimento, especialmente quando é assimilado de forma não problematizada, trazido por uma autoridade incontestável. É através dela que o leitor é capaz de vislumbrar o que acontece no Zimbabwe colonial fora da atmosfera de clausura nas famílias, quando ela se determina a saber "porque a DUI [Declaração Unilateral de Independência] foi declarada" (Thiong'o, 2013, p. 119), quais foram as causas pelas quais os combatentes pela liberdade lutavam, se não foi por terrorismo como seu pai diz; ou, ainda, como é ruim quando um país é colonizado junto com o seu povo.8 Enquanto Nyasha desafia abertamente o pai, tem que enfrentar a humilhação (ao ser chamada de vadia), punição física (é severamente agredida) e ser expulsa de casa. Quando a situação chega ao extremo, Tambu se desestabiliza pelo jeito de Nyasha, pois a fez lembrar da sua própria intensidade e determinação no passado, embora agora se sinta "constrangida pela [minha] insipidez adquirida" (Dangarembga, 2004, p. 118). Para Nyasha, o que está em jogo é a sua liberdade "de não ser a coitadinha de ninguém", já que facilmente se pode se acostumar com isso e apenas continuar, então. "É o fim... Você está preso". (Dangarembga, 2004, p. 119). Assim, as duas garotas lutam por liberdade, se inspirando em livros e no conhecimento como forma de emancipação, e é Nyasha que traz à tona os tormentos interiores do sujeito colonial e como o conhecimento (ocidental), o progresso (ocidental) em conjunto com todo o processo de subjetivização do sistema colonial colocado em ação, tem que ser desafiado para que não se torne outra forma velada de aprisionamento e submissão. Ao longo desse processo, seu pai parece ser o adversário mais próximo, a personificação do projeto colonial "moldado pelos brancos à sua imagem do bom africano - que se deixou moldar sem nunca questionar nada", como coloca Thiong'o (2013, p. 129). Como Kona aponta, a educação (ocidental) torna-se parte e parcela da condição colonial, que perpetua povos colonizados se olhando em um espelho ocidental "procurando pelo rosto que nós pensamos ser nosso" (Kona, P., 2018). Contemporary Relevance of Tsitsi Dangarembga's Nervous Conditions, de http://www.pambazuka.org).
À medida que o romance se desenvolve, Tambu e Nyasha vão assumindo posições de contraponto, cada uma lutando para encontrar sua própria fuga das injunções opressivas de raça, classe e gênero. Como Tambu admite, "Ao lado de Nyasha [eu] era um modelo de comportamento feminino" (Dangarembga, 2004, p. 157); ela sente que deve aproveitar as chances da vida quando vêm, enquanto sua prima pode se dar ao luxo, por ser abastada, ao seu "idealismo obstinado" (Dangarembga, 2004, p. 183), que a leva em outras direções, para "outras lutas de se engajar além do ardente desejo de [me] emancipar e a [minha] família" (Dangarembga, 2004, p. 154). Conforme o romance vai chegando ao final, uma clara bifurcação de suas trajetórias mostra essas irreconciliáveis escolhas de vida contra o aprisionamento e a opressão: ou sendo verdadeiro consigo mesmo ou se deixando subjugar pelo outro; ou ansiando pelo conhecimento do opressor ou se recusando a tornar-se como ele; ou aceitando a autoridade estabelecida ou tentando superar seu poder lancinante. Tambu decide prosseguir seus estudos na escola Sacred Heart como se fosse "a última oportunidade" (Dangarembga, 2004, p. 182), enquanto Nyasha mergulha numa síndrome anoréxica seguida por um colapso nervoso. Em seu confuso estado de espírito, ela implora para ser ela mesmo e ser livre, acusando eles fantasiosos:
'Por que eles fazem isso, Tambu?' ela sussurrou amargamente, seu rosto se contorcendo de raiva, 'comigo, com você e com ele? Você vê o que eles fizeram? Eles nos levaram para longe.... Eles nos prenderam. Mas eu não serei presa. Eu não sou uma boa menina. Eu sou má.' (Dangarembga, 2004, pp. 204-205)
Para Tambu, o colapso de Nyasha soa como um aviso em relação a suas próprias ações, atiçando "uma crescente sensação de desgraça" (Dangarembga, 2004, p. 207). Entretanto, ela logo recupera suas certezas e sua autocompostura de racionalidade e pragmatismo. Afinal, ela sente "como se fosse uma pessoa muito mais razoável que Nyasha, porque eu sabia o que podia ou não podia ser feito" (Dangarembga, 2004, p. 208). O romance termina aqui, trazendo, por um lado, o trágico resultado das condições nervosas do sujeito feminino colonial, e por outro, os efeitos desconhecidos e imprevisíveis de uma fuga que, ao flertar com o inimigo, pode se provar como uma ilusão e um aprisionamento mais rigoroso e duradouro.
A psique para sempre marcada sob a dominação: limites e possibilidades de emancipação
Neste artigo, usei como estrutura interpretativa principal o questionamento das vicissitudes da subjetividade sob a opressão e suas formas de emancipação, baseando-me nas obras de Nandy e Dangarembga. As metáforas do inimigo íntimo e das condições nervosas evocam os efeitos devastadores da assimilação cultural nas relações sociais desiguais e violentas, que originam uma condição duradoura de internalizar partes abomináveis no próprio self resultantes de experiências de humilhação e degradação.
Os limites e possibilidades de emancipação dependem de como o sujeito lida com o sofrimento e a dor de forma que esses não sejam reprimidos ou banidos da consciência, para retornar como fantasmas persecutórios do sujeito, capazes de assombrar e subjugar o eu. Neste espírito, o conceito de dupla consciência de Dubois é esclarecedor (Du Bois, W. E. B. The Souls of Black People, de http://www. wwnorton.com/college/history/give-me-liberty4/docs/WEBDuBois-Souls_of_Black_Folk-1903.pdf). Esse extraordinário autor americano descreve de forma comovente a condição psíquica dos negros americanos: "um americano, um negro: duas almas, dois pensamentos, duas lutas incompatíveis, dois ideais beligerantes em um corpo escuro" (DuBois, 1903). A emancipação não pode ser atingida afastando o que é abominável dentro de si, como um tipo de esquecimento necessário para permitir a coesão consciente sobre o que se é ou o que quer se tornar. A personalidade e a vida de Aurobindo expressa de forma notável "os ideais beligerantes e as lutas incompatíveis" de quem mal conseguiu ser o mesmo. Ao invés disso, vencer o inimigo íntimo exigia que se admitissem as rupturas interiores como fonte de vulnerabilidade e sofrimento, que abriram possibilidades identificatórias além daquelas oferecidas pelo inimigo em si, cujos métodos podem ter parecido ser a única alternativa. Na verdade, não é o caso de se vencer o inimigo, já que essa expressão parece presa à mistificação dos vitoriosos, mas apenas reconfigurar as forças internas que podem aumentar a capacidade da vítima de sustentar sua resistência às pressões externas e à fragmentação interna, com o objetivo de manter a confiança nas suas próprias escolhas.
Tanto Nandy quanto Dangarembga concordam que a emancipação política depende da capacidade do indivíduo de se (re) construir depois de ter vivenciado a degradação nas mãos dos opressores. Todavia, suas narrativas são moduladas de forma diferente não apenas em relação ao que está em jogo mais significativamente sob o domínio da opressão, mas também em relação às possibilidades de o indivíduo reconstruir a dignidade e a autoestima.
Para Nandy, a vitimicidade da opressão consiste em uma experiência duradoura e profunda que interpela o sujeito, fazendo aderir aquela experiência de opressão à subjetividade da pessoa de forma irreversível. Tanto o oprimido quanto o opressor enfrentam a tarefa de ter que se reconciliar com o mal que vivenciaram, de terem sido desgraçados e escravizados ou de terem torturado e matado. Isso leva ao esforço psíquico de dolorosamente estabelecer conexões entre a experiência de tal mal e as possíveis outras (boas) experiências vindas das outras áreas da vida, para conferir a todas elas algum grau de conexão como parte de sua história pessoal. A análise que Nandy faz de Kipling e Aurobindo mostra como o eu odiado, vitimizado pela opressão, é situado de forma diferente dentro da dinâmica subjetiva de cada um deles. Kipling não apenas rejeita sua identificação com sua indianidade e os indianos oprimidos, mas também se recusa a abraçar seu próprio eu aviltado, visto que este parecia incongruente com seus ideais de domínio, performance e vida adulta. A supremacia dos conquistadores, os colonizadores britânicos, que em função de sua atestada superioridade permaneciam como modelos e vencedores incontestáveis, estava em jogo. Entretanto, para Nandy, a superioridade está do lado das vítimas, porque são elas que visualizam o mal da opressão e devem superá-lo, pelo seu próprio bem e também pelo bem dos opressores (Burgos, 2013, p. 271).9 Como são moralmente e cognitivamente superiores, elas devem fazer uso de seus próprios recursos - seu passado, sua herança cultural, suas memórias e mitos - como recursos de resistência. Aurobindo é um exemplo. Sua reconstrução interior encontrou uma maneira de acomodar sua inglesidade, adquirida nos longos anos de sua infância e juventude, ao lado de uma indianidade resgatada na forma de teoria mística de constituição e salvação humana, mesmo que tal acomodação desafiasse os cânones da racionalidade e da realidade ocidentais.
No romance de Dangarembga, o sistema colonial opressivo é responsável pelas condições assimetricamente violentas de existência para o sujeito colonial - miséria, falta de educação, fome, exploração do trabalho - das quais surge a luta pela emancipação. Como Basu aponta, o tropo central do romance envolve "aprisionamento, rebeldia e fuga" (Basu, 1994). Isso se faz possível na determinação de Tambu em "reverter seu destino natural" - de ser uma menina africana pobre no Zimbabwe colonial - através do processo de educação. Porém, conforme o romance se desenvolve, a aderência a um jeito ocidental de ser acarreta a trágica dimensão da identificação com o senhor, seja ele o colonizador, seus valores e conhecimento, seja ele o fantoche Babamukuru. O processo arranca violentamente Tambu de seu contexto original na direção de um eu idealizado e emancipado, cuja antevisão exige a contenção e o esquecimento de todas as ambiguidades, dúvidas e ansiedades que possam surgir ao longo da concretização desta posição idealizada. Por outro lado, o romance traz a personagem de Nyasha, que tipifica o sujeito atormentado que ousa duvidar e desafiar a autoridade do regime colonial, personificada em seu pai. A dramática condição nervosa de Nyasha expõe o colapso do sujeito ante dois ideais aparentemente incomensuráveis e antitéticos: a emancipação de tornar-se ocidental e internalizar o outro superior, e a emancipação ao manter-se fiel a si mesmo, a sua origem e cultura. Dessa forma, Nyasha tragicamente expõe o absoluto fracasso da missão civilizacional da colonização que demonstra sua violência e destruição para com as outras civilizações e modos de vida.
A escolha de Tambu pela emancipação depende de sua capacidade de "ser mais razoável que a prima", e assim racionalizar que o caminho para a autonomia é via educação ocidental. Ela também dispensa os tormentos internos de sua prima como uma espécie de artefato da burguesia, visto que ela podia bancar suas lutas por ter nascido em circunstâncias mais favorecidas. Para Tambu, não parece existir outro caminho para tornar-se emancipada a não ser aproveitar suas chances com aqueles que governam, aderindo a seus valores e conhecimento. Ganhos narcísicos, como ser reconhecida academicamente por superiores relevantes, reforçam a crença de que ela apostou na direção correta, apesar de dúvidas passageiras: "eu estava tomando cuidado suficiente?" (Dangarembga, 2004, p. 207). Algumas vezes, ela percebe que pode haver problemas nas escolhas que está fazendo, mas essas desconfianças são firmemente recalcadas permitindo a ela uma determinação menos titubeante e um eu consciente mais coerente. Seu desempenho adequado "se encaixa no sistema", como coloca Bahri (1994), e ela tenta triunfar dentro dele por um mínimo de satisfação: um título acadêmico, cujo poder de transformar os aprisionamentos patriarcais e coloniais parecem muito duvidosos. A advertência de Nyasha para que Tambu não se esqueça é relevante aqui. O aviso trata da intangibilidade e da amplitude de tudo o que está em jogo ao "se esquecer": a própria subjetividade de Tambu, seus primeiros e mais estimados desejos e o significado fundamental de liberdade. A memória, ou em outras palavras, a possibilidade de sustentar dentro de si o que conta como as partes de eu mais primitivas e incongruentes, pode proteger contra a servidão imprevista e velada.
Sob o colonialismo, a dominação adquire uma qualidade soberana e absoluta, criada por atos de violência múltiplos, diversos, reiterados e cumulativos estabelecendo, assim, um cenário de ódio e terror (Fanon, 1972). Para Fanon, a condição do sujeito colonial, vista como uma "luta permanente contra uma morte atmosférica" (Fanon, 2004), levaria necessariamente à morte do colonizador, como se somente o presente da contra-violência pudesse simbolicamente restaurar a igualdade humana do colonizado (Fanon, 2004). Mbembe argumenta que a teoria da violência de Fanon deve ser compreendida como uma escalada de humanidade dentro do contexto específico do colonialismo, por meio da qual o dominado - pelo derradeiro gesto do assassinato - dá luz à nova vida, um novo idioma, uma nova humanidade, transformando a coisa colonizada em um homem ou uma mulher (Mbembe, 2013). A contra-violência, tanto em sua forma simbólica quanto em sua forma material, contribui de forma decisiva na resistência contra o mal da dominação. Aqui, Nyasha e Aurobindo se encontram, visto que eles, de maneiras diferentes, usam a violência contra o inimigo: a primeira, em sua luta constante contra o pai, até mesmo chegando a agredi-lo fisicamente, e o último pegando em armas contra os britânicos.
Todavia, a questão permanece quanto às consequências da contra-violência. A contra-violência tem seu preço, já que pode transformar o humano vitimizado em um senhor como os predecessores, e não pode assegurar necessariamente uma inteligibilidade interna do mal sofrido. Portanto, muito mais pode estar em jogo no processo de se confrontar com o inimigo íntimo na direção de uma interioridade que deve ser reconstruída, como aponta Eboussi Boulaga (Boulaga, 2014). Este filósofo africano responde à questão de como a subjetividade humana pode se recuperar diante da alienação e da autonegação trazidas pela violência do colonialismo. Como a construção da razão histórica de uma coletividade pode se tornar uma práxis da liberdade? Recorrer à tradição como um modelo de memória vigilante, identificação crítica e utopia, discute o autor, depende de um abrangente processo individual e coletivo de introspecção crítica e reconstituição coletiva. Para Boulaga, tradição significa "um dado estar-junto e um ter-em-comum real que evoca um destino comum através da mediação de um agir-em-conjunto racional e razoável" (Boulaga, 2014, p. 149), de modo que o passado é, assim, promovido na ação e na relação com um projeto. Assim como a identificação e a memória, a tradição atua na afirmação da subjetividadee da cultura da coletividade, mas também na reconstrução critica de um passado mistificado (para o bem ou para o mal), para que o presente possa se tornar um objeto de vigilância. Ao se abrir ao retorno do que é fundamental na subjetividade,e ao evitar o arcaísmo, "a tradição é estritamente revolucionária" (Boulaga, 2014, p. 157).
A política da emancipação se vale de uma política de identificação subjetiva pois os indivíduos e os grupos colonizados procuram reconfigurar suas fronteiras do self- quem eu/nós sou/somos; quem eu/nós queremos ser - que foram ofuscadas pelos traumas do colonialismo. Através desse processo, multifacetado dentre as culturas e indivíduos dominados, o mal do passado pode ser suturado por"um senso de ter-em-comum tendo em vista um destino comum" a ser atuado coletivamente. É importante notar, todavia, que enquanto Aurobindo podia contar com a indianidade e a espiritualidade indianas como elementos significativos para reconfigurar o seu senso de "ter-em-comum frente a um destino comum", para Nyasha não parecia haver nenhuma "africanidade" (Mafeje, 2011) para a qual ela podia recorrer para encarnar sua resistência e emancipação. A guerra de Nyasha é voltada para seu próprio corpo como o único local de resistência (Bahri, 1994). Também a "africanidade", como um solo epistêmico sobre o qual a negação das negações impostas aos africanos, pudesse ser construída (Soyinka, 2012) poderia ter encorajado em Tambu uma atitude recalcitrante e, assim, uma maior inclinação a não idolatrar o conhecimento ocidental e, ao invés disso, a afirmar uma identidade e herança cultural negadas.
Se as estruturas da dominação colonial estão aqui explicitamente associadas com a Índia e com a África sob o domínio dos poderes europeus, é também verdade que outras partes do sul global sucumbiram à ocidentalização e à imposição de maneiras de pensamento, idioma, fé e hábitos sociais. Como afirma Mignolo, nos últimos 500 anos, todo o planeta teve que responder de alguma forma à expansão do ocidente (Mignolo, 2011b), que representou o processo devastador de colonização das mentes. Mudimbe (1988) aponta alguns de seus efeitos de longo alcance: a marginalização e a degradação das outras culturas, e a crença de que nenhum conhecimento verdadeiro pode ser aprendido das outras culturas a menos que já seja nosso (dos colonizadores). O colonialismo tem produzido o estabelecimento de várias formas de dupla consciência (Mignolo, 2011b), por meio da qual a diferença colonial tornou-se outra, subalterna, inferior e degradada e re-internalizada no sujeito colonial com uma outra forma dela mesma. Neste espírito, Nyasha e Tambu parecem representar dialeticamente a insolúvel contradição entre a violência de tornar-se outro e perder contato com o seu eu verdadeiro e a ânsia em ser como o outro superior e ganhar respeito e reconhecimento 'legítimos'.
A complexa dinâmica das condições subjetivas é mobilizada na busca pela emancipação. Esforços políticos na busca de liberdade (Mignolo, 2011b) parecem depender das capacidades subjetivas de se sentir real e sustentar suas escolhas diante da descrença e do ostracismo. Lutas políticas acontecem no território pantanoso das relações intersubjetivas, moduladas pelas tensões de separação e dependência em relação ao outro. A recusa em se admitir a condição constitutiva da dependência e da vulnerabilidade humana podem levar a estratégias de dominação e submissão do outro (Benjamin, 1988). A figura do inimigo íntimo consiste na advertência de que o mal, embora encarnado pelo opressor, pode ser, no final das contas, considerado como um aspecto de sua própria constituição, como criticamente destacado em Isopanisad: "Aquele que vê todos os seres em seu próprio eu e se vê em todos os outros seres, ele, por causa dessa visão, não abomina nada" (citado em Nandy, 2010, p. 108). O desconhecimento do próprio mal interior, bem como da inexorável dependência do outro podem frustrar a luta por emancipação. Como mostrado aqui nas estruturas das escolhas de vida do sujeito, a liberdade, como um esforço coletivo e individual, parece depender das maneiras pelas quais as realidades abomináveis permanecem acessíveis não apenas para outras lutas de indivíduos e grupos uma vez oprimidos, como também para o desejo de alguém de ser ele mesmo.
Agradecimentos
A autora agradece à psicanalista professora Claudia Garcia pelos relevantes comentários à este artigo.
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Recebido em: 10/01/2019
Aprovado em: 02/02/2019
Financiamento: Este trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico Processo: 471568/2013-9; Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Ref. Proc. n.º 202.979/2015.
* Tradução do original “The self under domination: a dialogue between Nandy's The Intimate Enemy” and Dangarembga “Nervous Conditions”, publicado em Postcolonial Studies (2018), 21(2),192-209. Com permissão de Taylor & Francis.
1 N. A.: optou-se traduzir "self " e "selves" do texto original por subjetividade(s), mesmo que estas duas noções apresentem nuances distintas sobre a constituição subjetiva. Por subjetividades entendem-se as produções de sujeito circunstanciadas por suas condições históricas e materiais.
1 A posição que eu assumo aqui, ao invés de checar a veracidade das afirmações de Nandy sobre as vidas dos dois protagonistas, foca em estabelecer uma meta-análise interessada em desembaraçar como ele constrói sua estrutura de análise para compreender o problema do self sob a dominação.
2 Joseph aponta que podem haver objetivos múltiplos para as diferentes formas pelas quais as identificações projetivas funcionam. Uma delas - livrar-se das partes do self indesejáveis pode causar ansiedade ou sofrimento - pode ser implementada para evitar sentimentos de dependência, admiração e suas consequências, tais como sentimentos de perda, raiva e inveja. Veja, Betty Joseph, Identificação projetiva - alguns aspectos clínicos', in Melanie Klein Hoje, E. B. Spillius (ed.), Rio de Janeiro: Imago, 1991, pp. 146-158.
3 Kipling se referiu a esta pensão como a 'Casa da Desolação'. Para considerações literárias, veja, Rudyard Kipling, BaaBaa, BlackSheep, Collected Stories, New York Alfred Knopf, 1994, pp. 407-438.
4 Esta questão tem sido discutida na escrita feminista. Veja, por exemplo, Jessica Benjamin, The Bonds of Love Psychoanalysis, Feminism and the Problem of Domination, New York Pantheon, 1988; Gisella Bock e Susan James (Eds.), Beyond Equality and Difference. Citizenship, feminist Politics, Female Subjectivity, Londres: Routledge, 1992.
5 A internalização do senhor abusivo pode ter efeitos duradouros e devastadores na vida de alguém, levando até ao suicídio. No Brasil, muitos que sofreram a dor da violência, perseguição e tortura durante a ditadura militar, após serem libertos, deram fim à vida, incapazes de continuar vivendo sob o horror para sempre vivenciado. Veja, por exemplo, Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, Um homem torturado: nos passos de Frei Tito de Alencar, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
6 "As ações, os conflitos, os confrontos de perspectiva movem-se apenas no plano doméstico" Ngugi Thiong'o, In the Name of the Mother - Reflections on Writers and Empire, Suffolk James Currey, 2013, p. 136.
7 O título é tirado do Prefácio escrito por J. P. Sartre para o livro de F. Fanon, The Wretched of the Earth, New York: Grove Press, 1963. 'O status de "nativo" é uma condição nervosa introduzida e mantida pelo povo colonizado com o seu consentimento' (p. 20).
8 Como Thiong'o afirma, "o que é conhecida como a DUI (Declaração Unilateral de Independência), aconteceu em 11 de novembro de 1965. Mas naquele momento as guerrilhas ZANLA e ZAPLA já tinham entrado no país... Zimbabwe se torna independente em abril de 1980". (Thiong'o, In the Name of the Mother, p. 119).
9 Novamente, Rigoberta Menchú é uma inspiração nesta questão. Ela diz: "Como eu digo... minha causa não surgiu de algo bom, mas de algo ruim, algo amargo. Minha causa se radicalizou precisamente em razão das condições miseráveis do meu povo; em razão da desnutrição que sofremos como povos indígenas." (Burgos, Me llamo Rigoberta Menchu y así me nació la conciencia, p. 271)