Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
Discursos e assimetrias na reparação dos danos decorrentes do desastre da barragem da Samarco
Speeches and asymmetries in the repair of damage arising from the Samarco dam disaster
Discursos y asimetrías en la reparación de daños derivados del desastre de la presa de Samarco
Discours et asymétries dans la réparation des dommages résultant de la catastrophe du barrage de Samarco
Diovana Renoldi VieiraI; Marta Zorzal e SilvaII
Ijornalista graduada na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), especialista em Economia e Gestão da Sustentabilidade pela UFRJ e mestre pelo programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UFES / diovana@gmail.com
IIpós-doutora pela Universität Basel, Suíça. Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Laboratório de Estudos Políticos e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais da UFES / mazorzal@gmail.com
RESUMO
O artigo analisa os discursos da Fundação Renova, no âmbito do processo de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração da Samarco, ocorrido em 05 de novembro de 2015, no município de Mariana (MG). Os impactos atingiram populações e ecossistemas, em um trecho de quase 700 km, após a lama percorrer o Rio Doce e desaguar na costa marítima do Espírito Santo. Para reparação e compensação dos agravos interdimensionais, foi instituído um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) entre o governo federal, os governos estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo e as empresas mineradoras (Samarco, Vale e BHP Billiton), assinado em 2 de março de 2016. A análise focaliza as práticas discursivas da Fundação Renova, instituição protagonista na intermediação das relações entre os diversos atores envolvidos no processo de reparação, os quais compõem uma complexa rede de relações assimétricas, tanto em recursos institucionais como simbólicos. Conclui-se evidenciando a importância do discurso em seu caráter socialmente constitutivo, enquanto mantenedor de relações hegemônicas de poder e seus efeitos nas estruturas sociais, sendo o próprio discurso objeto de disputa na articulação ou desarticulação de tais hegemonias.
Palavras-chave: Desastre; Samarco; Fundação Renova; Discurso; Relações de poder.
ABSTRACT
The article analyzes the discourses presented by the Renova Foundation in the matter of repairing the damage caused by Samarco's tailings dam collapse, which occurred on November 5th, 2015, in the city of Mariana (MG). The toxic mud flowed through the Doce River and spread along 700km affecting populations and ecosystems until it reached the coast of Espirito Santo. A Term of Transaction and Adjustment of Conduct (TTAC) was established among the federal government, the state governments of Minas Gerais and Espírito Santo and the involved mining companies (Samarco, Vale and BHP Billiton), to repair and compensate the multiple failures and interdimensional grievances, which was signed on March 2nd, 2016. The analysis focuses on the discursive practices of the Renova Foundation, which is the main protagonist institution in the mediation of relations among the several actors involved in the repairing process. Those form a complex network of asymmetrical relations of both institutional and symbolic resources. Therefore, the conclusion highlights the importance of socially constituted discourse, while maintaining hegemonic relations of power and their effects on social structures, being the discourse itself the disputing object in the articulation and disarticulation of such hegemonies.
Keywords: Disaster; Samarco; Renova Foundation; Discourse; Relations of power.
RESUMEN
El artículo analiza los discursos de la Fundación Renova en el ámbito del proceso de reparación de los daños causados por el rompimiento de la represa de deshechos de minería de Samarco, ocurrido el día 5 de noviembre de 2015, en el municipio de Mariana (MG). Los impactos afectaron poblaciones y ecosistemas en un trecho de casi 700 km, después que la lama había recorrido el Rio Doce y desaguado en la costa marítima del Estado de Espírito Santo. Para fines de reparación y compensación de los daños inter-dimensionales fue instituido un Término de Transacción y Ajuste de Conducta (TTAC) entre el gobierno federal, los gobiernos de los estados de Minas Gerais y de Espírito Santo y las empresas mineras (Samarco, Vale e BHP Billiton), firmados el día 2 de marzo de 2016. El análisis enfoca las prácticas discursivas de la Fundación Renova, institución protagonista en la intermediación de las relaciones entre los diversos actores involucrados en el proceso de reparación, los cuales componen una compleja red de relaciones asimétricas, tanto en recursos institucionales como simbólicos. Se concluye evidenciando a importancia del discurso en su carácter socialmente constitutivo, en cuanto mantenedor de relaciones hegemónicas de poder y sus efectos en las estructuras sociales, siendo el propio discurso objeto de disputa en la articulación o desarticulación de tales hegemonías.
Palavras-chave: Desastre; Samarco; Fundación Renova; Discurso; Relaciones de poder.
RÉSUMÉ
L'article analyse les discours de la Fondation Renova, dans le cadre du processus de réparation des dommages causés par la rupture du barrage de résidus miniers de Samarco qui a eu lieu le 5 novembre 2015 dans la municipalité de Mariana (MG). Les impacts ont frappé les populations et les écosystèmes sur près de 700km après que la boue se soit déversée dans la rivière Doce et atteint la côte maritime de l'Espírito Santo. Pour la réparation et l'indemnisation des réclamations interdimensionnelles, un accord de Transaction et d'Ajustement de Conduite (TTAC) a été conclu entre le gouvernement fédéral, les gouvernements des états de Minas Gerais et de l'Espírito Santo et les sociétés minières (Samarco, Vale et BHP Billiton), signé le 2 mars 2016. L'analyse porte sur les pratiques discursives de la Fondation Renova, institution chargée de l'intermédiation des relations entres les différents acteurs impliqués dans le processus de réparation, ces derniers constituent un réseau d'intéraction asymétrique complexe, autant du point de vue institutionnel que symbolique. L'article souligne l'importance du discours dans son caractère socialement constitutif des rapports de pouvoir hégémoniques et leurs effets sur les structures sociales, le discours est lui-même objet de contestation dans l'articulation ou la désarticulation de cette hégémonie.
Mots-clés: Catastrophe; Samarco; Fondation Renova; Discours; Relation s de pouvoir.
Introdução
Entendido como um fenômeno inerentemente social (Quarantelli, 2005) e com origem no próprio sistema social, segundo Quarantelli, (2005), o desastre-crime ocasionado pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro de Fundão, em Mariana (MG), de propriedade da mineradora Samarco - e suas acionistas, Vale e BHP Billiton do Brasil - produziu rupturas no funcionamento dos ecossistemas e nos modos de vida das populações atingidas em Mariana e ao longo da calha do Rio Doce. Após a destruição provocada pela lama de rejeitos de minérios, uma multiplicidade de atores - comunidades atingidas, empresas responsáveis, órgãos governamentais e do sistema jurídico - vê-se compelida a interagir em busca do equacionamento dos mecanismos de intervenção mais adequados à reabilitação do sistema socioambiental e socioeconômico. Conforme Rodrigues (em Viégas, Pinto & Garzon, 2014, p. 120), o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) é usado pelos órgãos públicos como uma forma extrajudicial de resolução de conflitos, "tendo como objeto a adequação do agir de um violador ou potencial violador de um direito transindividual (direito difuso, coletivo ou individual homogêneo) às exigências legais".
No caso em análise, foi assinado, em 02 de março de 2016, um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), visando dar tratamento aos múltiplos problemas gerados a partir do colapso da barragem. Trata-se de um Acordo extrajudicial firmado entre a União e os governos dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, de um lado, e as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton do Brasil, de outro. O objetivo do Termo é recuperar, mitigar, remediar, reparar, indenizar e, nos casos em que não houver possibilidade de reparação, compensar os impactos socioambientais e socioeconômicos decorrentes do desastre (TTAC, 2016). Desse modo, foram instituídos 42 programas de ação direcionados à resolução dos danos socioeconômicos e socioambientais causados, a serem executados de acordo com planos tecnicamente fundamentados e sob fiscalização e supervisão do poder público. Para a execução e gestão de todos os programas foi criada uma fundação de direito privado - denominada Fundação Renova - que deve ser mantida pelas empresas mineradoras responsáveis pela barragem (TTAC, 2016; Fundação Renova, 2018). E, para supervisionar e fiscalizar a Fundação Renova, o TTAC instituiu um Comitê Interfederativo (CIF), como instância externa e independente da Fundação, com a finalidade de acompanhar, monitorar e fiscalizar a execução das medidas impostas pelo Acordo (TTAC, 2016). Posteriormente, em julho de 2016, o CIF criou 11 (onze) Câmaras Técnicas, como órgãos consultivos para subsidiar suas atividades de supervisão, acompanhamento, monitoramento e fiscalização da atuação da Fundação Renova (CIF, 2016a, 2016b). Desde o rompimento da barragem de rejeitos até agosto de 2016, as iniciativas de reparação dos danos foram conduzidas pela Samarco. Com a organização da Fundação Renova, a partir de agosto de 2016, ela passou a assumir a responsabilidade pela execução e gestão dos programas previstos no TTAC (Samarco, 2017). Para tanto, a Fundação foi instituída como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, dotada de autonomia administrativa, patrimonial, financeira e operacional, o que lhe concede grande poder, visto que ela é responsável pelos aportes financeiros a ela destinados, bem como por executar e gerenciar diretamente todos os programas previstos no TTAC (Fundação Renova, 2016).
Apesar de o TTAC estar orientando as ações da Fundação Renova, vale frisar que, imediatamente após a assinatura do Acordo, ele foi amplamente questionado pela sociedade civil, via universidades, institutos federais de ensino e movimentos sociais, como o Fórum Capixaba de Defesa do Rio Doce, além de diversas outras ONG's do ES e de MG, o que levou à sua suspensão em 30 de junho de 2016 (quatro meses após sua assinatura), a pedido do Ministério Público Federal (Dornelas et al., 2016). Entre as muitas contestações direcionadas tanto às normas previstas quanto à forma como o TTAC foi concebido, destaca-se o fato de que o processo negocial que resultou no Acordo não contou com a participação das populações atingidas, nem tampouco de lideranças municipais como prefeitos e vereadores.
Como resultado, o Ministério Público Federal não homologou o Acordo. Entretanto, apesar da não homologação e do fato de o Acordo carecer de legitimidade entre os atingidos e seus representantes, mesmo assim o TTAC se tornou referência para formulação das ações de reparação e compensação, sem considerar os questionamentos que desautorizavam sua execução. Frente à urgência e à amplitude dos problemas provocados pela tragédia, notadamente devido à impossibilidade do uso das águas do Rio Doce para as comunidades que as utilizam para geração de renda ou subsistência - tais como pescadores artesanais, pequenos agricultores, populações indígenas e comerciantes (Ibama, 2015) - o TTAC tornou-se então o instrumento base no qual as empresas rés se fundamentaram para definir as ações emergenciais de reparação e compensação.
Desse modo, observa-se que a Fundação Renova - enquanto representante, em grande medida, dos interesses dos atores governamentais que negociaram o Acordo e dos atores corporativos que a instituíram - está situada numa posição vantajosa nessa relação de forças. Em posição oposta, encontram-se as comunidades atingidas, notadamente as mais fragilizadas nas suas capacidades de ação e de interlocução, sobretudo por estarem à margem das esferas de decisão institucionalizadas pelo TTAC e, além disso, dependerem da Fundação Renova para viabilizar os seus trâmites em relação às violações de direitos fundamentais dos atingidos e aos danos diversos causados pelo desastre. Isto porque o arranjo institucional definido pressupõe que todo o processo reparatório e compensatório seja efetuado por meio do sistema de governança criado pelo Termo. Significa dizer que a Fundação Renova tem papel central, na medida em que ela é responsável pelo cadastramento e reconhecimento dos atingidos e respectiva inclusão ou não dos mesmos como sujeitos de direitos a serem atendidos pelos programas.
Em Parecer produzido pelo Ministério Público, o qual fornece informações consistentes quanto à percepção das comunidades atingidas sobre as ações da Fundação Renova, um dos pontos abordados refere-se aos critérios adotados pela Renova para classificação de uma pessoa como "atingida" no âmbito do PIM (Programa de Indenização Mediada) que, ausentes de fundamentações relevantes, são marcados pela arbitrariedade e assimetria de poder. Conforme denúncias dos atingidos em relatório produzido pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos, "não há ampla negociação coletiva, com parâmetros e critérios definidos coletivamente, o que deveria anteceder o programa" (CNDH, 2017, p. 34). Na distribuição de cartões de auxílio-emergencial, por exemplo, os relatos circundam o fato de a Fundação estar contemplando e excluindo simultaneamente atingidos que se encontram em situações semelhantes. Além disso, a exigência de documentos comprobatórios formais das atividades agropecuárias e comerciais tem provocado a exclusão de parcela significativa dos atingidos, tendo em vista que a economia rural é marcada por relações comerciais informais e de posse. Já no processo de classificação dos atingidos, um dos pontos críticos é o tratamento de maneira fragmentada, não considerando a integralidade dos danos causados a cada atingido, mas, antes, a forma em que estão estruturados os programas de reparação instituídos pelo TTAC (MPF, Ramboll, 2018). Sobre isso, atingidos entrevistados para esta pesquisa enfatizam que não concordam com o fato de terem que escolher apenas um tipo de dano para serem ressarcidos, já que suas vidas não foram afetadas em somente um, mas em múltiplos aspectos. Muitos fizeram questão de salientar que foram "afetados em praticamente tudo" (Entrevista: M-36), que são "multi-impactados" (Entrevista: H-40) ou que o desastre "não afetou parcialmente, afetou totalmente" (Entrevista: H-33) a vida das comunidades.
Diante desse cenário, o olhar analítico deste artigo está voltado para as teias de relações de poder que se estabelecem a partir dos discursos dos atores envolvidos no processo de reparação pós-rompimento da barragem da Samarco. O foco da análise centra-se nas práticas discursivas da Fundação Renova. A intenção deste artigo é explicitar os significados e lógicas hegemônicas exercidas pela Renova nessa relação de forças. Para tanto, adota-se como pressuposto a perspectiva de que a estruturação de práticas discursivas em modos particulares nas ordens do discurso reflete e materializa posições hegemônicas. Estas se naturalizam e ganham ampla aceitação na sociedade na medida em que propagam uma visão particular de mundo, de modo a generalizar um interesse de um grupo específico travestindo-o em interesse da sociedade em geral. Essas relações se articulam mediante relações de forças "no sentido de um modo de dominação que se baseia em alianças, na incorporação de grupos subordinados e na geração de consentimento" (Fairclough, 2001, p. 28). Ademais, os discursos determinados como legítimos ocupam representação hegemônica no espaço social e simbólico, enquanto os discursos desqualificados ou invisibilizados posicionam-se em lugar inferior na hierarquia das relações de poder estabelecidas nesse campo (Foucault, 2008).
Assim, utilizando a Análise do Discurso (AD) como ferramenta metodológica, selecionamos uma série audiovisual de 19 episódios produzida e divulgada pela Fundação Renova como corpus principal da AD. A partir dos fundamentos teórico-metodológicos de Foucault, buscou-se analisar o discurso da Fundação Renova não de forma descontextualizada e isolada, mas sempre em relação a outras forças. Dessa maneira, a análise e a problematização desenvolvida levou em conta, ainda, os demais dados auferidos ao longo da pesquisa (Vieira, 2019) como corpus suplementar, tais como as manchas perceptivas dos atores sociais atingidos, que traduzem o contraponto às práticas discursivas da Fundação.
Nesse sentido, parte-se da hipótese de que a Fundação Renova, enquanto instituição de natureza híbrida, é utilizada como um mecanismo de poder pelos atores corporativos e políticos que a instituíram. Atores estes que se afastam da problemática, enquanto a Fundação Renova ocupa o lugar de centralidade, produzindo um campo discursivo pautado pelo afastamento de debates que aprofundem a reflexão acerca dos efeitos nocivos e sistemáticos produzidos pela indústria da mineração. Ao contrário, a pauta discursiva se desloca para aspectos positivos - aludindo a conceitos como soluções, oportunidades, melhorias, reconstrução, aprendizado, união - posto que estes são os fins que foram imputados à Fundação por meio do TTAC. Entretanto, como veremos, as estratégias discursivas não se sustentam quando as narrativas se mostram distantes da realidade social, o que resulta na criação de novos campos de luta diante da rejeição das populações atingidas.
Em síntese, o artigo pretende lançar luz acerca do contexto da reparação dos danos gerados pelo rompimento, entendido aqui como campo de relações de poder, lócus privilegiado de atuação da Fundação Renova - instituída por meio dos instrumentos extrajudiciais - cuja presença nessa relação de forças visa, sobretudo, "limpar" a imagem das empresas causadoras da tragédia, retirando de cena as práticas predatórias da exploração mineral, no Brasil, que em última instância conduziu ao colapso da barragem de Fundão. A utilização da análise e a problematização das estratégias discursivas é feita a partir da compreensão do discurso como socialmente constitutivo, o qual reflete na manutenção de relações hegemônicas de poder e, portanto, nos seus efeitos nas estruturas sociais, sendo o próprio discurso um foco de lutas para a articulação ou desarticulação de tais hegemonias. Para tanto, além desta introdução, a seguir trazemos uma breve reflexão sobre marco analítico que pautou as análises realizadas, bem como sobre o material que constituiu o corpus discursivo utilizado. Em seguida, tecemos observações sobre a prática social discursiva, e concluímos sintetizando algumas considerações finais.
2 - Perspectiva sobre Análise do Discurso e Corpus da Análise
Antes de adentrar na investigação discursiva e na apresentação do corpus de análise, é importante aprofundar algumas ideias acerca das perspectivas teórico-metodológicas adotadas nesta análise, que têm base, especialmente, nas contribuições de Michel Foucault e Norman Fairclough. Em primeiro lugar, seguindo a perspectiva foucaultiana, ressalta-se a pretensão do estudo de examinar os discursos ao nível do que está dito, enfatizando a forma como os discursos constituem o contexto social do qual fazem parte e são por ele constituídos. Em outras palavras, não se pretende aqui buscar o sentido oculto dos discursos ou distingui-los entre verdadeiros e falsos, mas evidenciar sua positividade, isto é, seu lado transformador, produtivo, por meio de suas regras de formação e como são estabelecidas suas relações com outros acontecimentos discursivos, pertencentes às instituições ou ao sistema econômico e político, pois, como ressalta Foucault, o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história (Foucault, 2006, 2008; Machado, 2008). Não se trata também de buscar por trás do discurso alguma coisa que seria o seu poder ou a sua fonte, como o autor explica:
Eu parto do discurso tal qual ele é! Em uma descrição fenomenológica, se busca deduzir do discurso alguma coisa que concerne ao sujeito falante; tenta-se encontrar, a partir do discurso, quais são as intencionalidades do sujeito falante - um pensamento em via de se fazer. O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O Poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder. (Foucault, 2006, p. 253)
Faz-se relevante também aprofundarmos aspectos conceituais propostos por Fairclough (2001) no que concerne à concepção tridimensional do discurso (ver figura 1). As três dimensões que o compõem podem se apresentar imbricadas e pulverizadas na AD, sendo elas:
análise do texto, análise dos processos discursivos de produção e interpretação textual (incluindo a questão de quais tipos e gêneros de discurso são tornados e como eles são articulados) e análise social do evento discursivo, em termos de suas condições e efeitos sociais em vários níveis (situacional, institucional, societário) (Fairclough, 2001, p. 82)
Ao utilizar o termo discurso, portanto, o que se ressalta é essa concepção multidimensional. Sublinha-se que, nesta AD, a dimensão texto recebe destaque como um dos elementos do discurso. Por texto se faz referência a um produto escrito ou falado, de maneira que a transcrição de uma conversa, por exemplo, é denominada um texto. Ademais, a dimensão da prática social da qual o discurso faz parte é também abordada, intrinsecamente vinculada às demais dimensões, e também em separado, em termos especialmente de sua relação com as estruturas e as lutas sociais. Acrescenta-se que, como diz Fairclough (2001), não existe procedimento fixo para a realização da AD, cada pesquisador a aborda conforme a natureza específica do seu projeto, de modo que, tal como neste estudo, foram selecionados indicadores e categoriais particularmente mais relevantes e úteis dentro dos objetivos e limitações da pesquisa.
2.1- Definição do corpus de análise: Série "Diálogos: No Caminho da Reparação"
O processo de seleção do corpus consistiu na busca por materiais que não abordassem somente conteúdos técnicos e rotineiros da Fundação Renova, ou seja, focados apenas nas ações e processos operacionais relativos às especificidades dos programas de reparação. Ao mesmo tempo, pretendia-se ao máximo obter um material que fornecesse uma visão global acerca das práticas discursivas da instituição, no que se refere à abrangência de sua atuação e em como ela contribui para a constituição do campo social do pós-rompimento - e, consequentemente, como é constituída por ele. Por esse motivo, entre os materiais produzidos e divulgados pela Fundação, foi selecionada a série audiovisual "Diálogos", que integra um projeto denominado "No Caminho da Reparação" e consiste em um conjunto de 19 episódios, publicados entre 18 de setembro de 2018 e 18 de janeiro de 2019 (o número refere-se à quantidade de episódios publicados até o fechamento da pesquisa, a saber que novos materiais foram publicados posteriormente). Os vídeos, que abordam temáticas diversas presentes no processo de reparação dos danos gerados pelo desastre, encontram-se disponibilizados na página da Fundação Renova no Youtube.
O projeto intitulado "Diálogos" se propõe a mostrar uma série de bate-papos que acontecem entre o presidente da Fundação Renova, Roberto Waack, e um convidado diferente em cada episódio. Todos os vídeos reproduzem um mesmo formato quanto à narrativa, que, de forma geral, consiste em uma conversa entre as duas pessoas, em que Waack aborda temas relacionados às especialidades e/ou vivências do convidado em questão. Assim, temos uma amostra de 19 episódios - e, então, 19 convidados diferentes - que nos fornecem, como conjunto, o corpus a ser explorado. Salienta-se que, este artigo, privilegia um recorte da pesquisa expandida e apresenta uma análise restrita à dimensão texto, focalizando, portanto, as falas dos personagens, tidas como o corpus principal desta AD.
2.2- Codificação e análise do corpus
Seguindo a linha de compreensão que enfatiza o discurso por si e a força dos ditos, esta seção se dedica à descrição dos principais conteúdos que foram abordados na série Diálogos. Em outras palavras, busca-se responder à pergunta: sobre quais assuntos os personagens da série falam? Ao respondê-la, mostram-se quais tópicos foram priorizados durante as conversas e, intrinsecamente, as formas como o discurso é ordenado, os padrões de concatenação de ideias e as conexões estabelecidas entre elas. Nesta etapa de análise, examinamos tanto as falas de Waack quanto as dos convidados, a considerar que, de uma forma ou outra, o conteúdo é inserido na série devido ao interesse da Fundação Renova, visto que todas as falas foram pré-determinadas, estimuladas, conduzidas e editadas pela instituição.
Assim, com o auxílio do software NVivo, todo o conteúdo falado nos 19 vídeos foi - após transcrição - submetido a uma codificação, processo que consiste em reunir fragmentos que versem sobre um mesmo tema, tópico ou caso, dentro de um mesmo nó. Os nós são nomeados de acordo com o significado que o pesquisador lhe concede, a partir de tendências ou padrões evidenciados no material. A seleção dos trechos foi feita manualmente, de forma a codificar fragmentos que representassem um tema relevante ao contexto - tendo por base todo o estudo prévio, os objetivos da pesquisa e os pressupostos teórico-metodológicos já referidos. Não foi estipulado mínimo ou máximo de palavras para codificação, sendo que os fragmentos variaram de curtas frases a extensos parágrafos, embora os trechos muito extensos, com duração prolongada nas falas, tenham sido codificados mais de uma vez, para que a codificação gerasse um gráfico cuja fundamentação é quantitativa.
A seguir são apresentadas as 10 principais tendências verificadas após codificação do material, separadas por grandes tópicos, dentro dos quais serão abordados também seus respectivos nós descendentes, que correspondem ao refinamento e às conexões do caso. Os grandes agrupamentos podem ser visualizados no gráfico gerado pelo NVivo (Figura 4), que expõe a hierarquia dos nós em relação ao número de suas ocorrências, ou seja, o maior quadrante do gráfico refere-se ao tópico que teve maior densidade de aparição na série como um todo (independente se bem distribuído entre os episódios). Já em relação às cores, a representação mais escura significa que o nó foi verificado na maior quantidade de episódios, portanto, um assunto que a Fundação Renova tem grande interesse de colocar em pauta.2.2.1- Visão de futuro, jovens e foco no que vem pela frente
Este nó representa um dos padrões de maior evidência no corpus analisado, que consiste na frequente abordagem da temática "futuro" por parte dos personagens, geralmente em referência ao futuro das comunidades e regiões atingidas a partir dos resultados obtidos com as ações de reparação. Assim, os trechos aqui reunidos dão ênfase à visão do que está por vir, aos "sonhos" e, especialmente, à geração futura, centralizando a importância dos jovens nesse contexto. Por vezes, tais fragmentos se conectam a tópicos que integram outros nós, como "Estímulo à participação e ao engajamento", "Temporalidade" e "Educação e sua importância", que veremos a seguir. As falas, abaixo, evidenciam essas expectativas:
Como é que vai ser esse equilíbrio entre a reparação, que é urgente e dramática, precisa ser feita, com o desejo do que é o Rio Doce do futuro, que está na mão da próxima geração e que certamente não somos nós aqui que vamos nem dizer para eles que têm que ser assim o Rio Doce. Ele vai ter que ser construído com essa participação, e os jovens têm um papel fundamental. (R. Waack, Episódio Sergio Mindlin, em 7min11s)
A gente pode pensar em construir um futuro que não está amarrado à reparação do passado. O que tem que reparar tem que reparar, ponto! Isso é indiscutível... (Convidado, Episódio Rodrigo Rubido, em 6min49s)
2.2.2- Falas técnicas, segundo a área de cada especialista
Aqui foram reunidos fragmentos que versam sobre as especialidades dos convidados da série, ou seja, falas que abordam assuntos técnicos associados a suas experiências profissionais ou mesmo sobre suas vivências pessoais, relacionadas de alguma forma ao contexto do desastre. Em geral, são trechos que não se encaixaram em outros nós e que percorrem três grandes linhas de abordagem: (a) questões técnicas relativas à área socioambiental, em que se destacam os seguintes temas: monitoramento da biodiversidade; rejeito e qualidade da água; "abordagem da paisagem"; indústria florestal brasileira; "ciência cidadã"; e temas relacionados à recuperação do meio ambiente em geral, como educação ambiental, restauração florestal - sobre mudas, plantio de sementes etc. - e similares. (b) Informações sobre a organização/instituição na qual o convidado atua. Algumas enfatizadas nas falas dos personagens são: o Comitê da Bacia do Rio Doce; o Instituto Terra; o Instituto Elos; a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN); e o Projeto Douradinho. (c) Relatos de histórias pessoais pertinentes ao contexto do desastre, como por exemplo: os relatos de Dodora sobre como sua comunidade reagiu aos efeitos da passagem da lama pelo Rio Doce; a história de Ricardo sobre sua relação com o Rio Doce, associada à criação do Projeto Douradinho; e os relatos de Zezinho sobre o processo de reassentamento e de reconstrução de Bento Rodrigues, associando aos modos de vida que ele e sua comunidade tinham antes e depois do rompimento.
2.2.3- Danos ambientais prévios ao rompimento da barragem ou danos causados pelo homem atualmente
Outra tendência verificada com grande intensidade nos episódios é a menção aos fatos históricos prévios ao rompimento da barragem, especialmente sobre questões relativas à poluição e à degradação ambiental já existentes antes do desastre e/ou que se perpetuam até os dias atuais. Foram vinculados a este nó também os tópicos que abordam os variados danos ambientais provocados pela ação humana (que ultrapassam o contexto do desastre, alcançando nível Brasil ou mundo), além de citações acerca de possíveis soluções e alternativas a tais problemáticas. Seguem alguns exemplos:
porque eu já vi esse processo do Rio Doce muito degradado. O Rio Doce não é de agora, não é do acidente. Eu tenho 38 anos, não é de 38 anos pra cá. É claro que esse processo em trinta oito anos avançou muito, né, com toda essa urbanização e expansão, mas aqui já é um processo muito avançado de degradação, na região do Rio Doce ... (Convidado, Episódio Ricardo Abrahão, em 6min30s)
É bastante difícil fazer uma diferenciação direta e segura daquele impacto que já existia e o impacto que aconteceu por causa do rompimento da barragem. O impacto da barragem em si pode ter potencializado vários impactos que já existiam ou ele pode estar agindo em conjunto com impactos que já existiam...(Convidado, Episódio Bruno Pimenta, em 00min44s)
Se a gente não entender profundamente esse contexto histórico e, através desse contexto histórico, como ele influenciou a vida das pessoas de hoje... A construção das expectativas do futuro depende muito do entendimento dessa visão do passado, então quando a gente fala dos desafios da Fundação, eles vão muito além de simplesmente ir lá executar o processo de reparação com o programa a, b ou c, está tudo absolutamente interconectado (R. Waack, Episódio José Carlos Carvalho, em 5min48s).
2.2.4- O desastre gerou oportunidades ou coisas boas
Aqui são reunidas as menções que, de alguma forma, associam um significado positivo ao desastre e aos seus desdobramentos, mas, especialmente, aludindo ao sentido de que o rompimento gerou "oportunidades" as quais podem e/ou devem ser aproveitadas. A partir disso, foram gerados três subnós, que significam as conexões decorridas desse pensamento: (a) O caso da recuperação do Rio Doce serve ou servirá como uma referência, um exemplo a ser seguido; (b) O desastre chamou atenção para a importância da conservação e/ou do bem natural e; (c) Repercutiu em união da comunidade, gerando novos hábitos sociais. Falas que ilustram, na respectiva ordem, os três subnós mencionados:
pode virar o Vale do Rio Doce uma agenda de restauração florestal que nenhum outro lugar do Brasil tem, e poucos lugares no mundo tem... (R. Waack, Episódio Raoni Rajão, em 7min55s)
não é só a população do Rio Doce, é a população do Brasil inteiro. Exatamente. Então isso é um paradigma que está sendo rediscutido, né... infelizmente sob a perspectiva de uma tragédia, mas que deve ser aproveitado, essa oportunidade deve ser aproveitada para que toda a sociedade reflita sobre a maneira como ela se relaciona com um bem natural. (Convidado, Episódio Bruno Pimenta, em 9min18s)
Todo o processo de busca de direitos foi um exercício de cidadania. E essa participação intensiva nos debates, para mim, é um dos maiores legados. Eles aprenderam a conversar, eles aprenderam a negociar, eles aprenderam a conversar com a Renova, eles aprenderam a conversar com o Ministério Público, eles aprenderam a conversar com advogado, e saber o que eles estavam falando, de reivindicações, de direitos... E a defesa do Rio também para mim foi uma grande bandeira, que até então não tinha isso. Era tudo tão natural, o Rio estava ali, nós estávamos aqui. Não, nós precisamos proteger o rio agora! E isso para mim foi assim um grande salto em termos de uma consciência ecológica que até então não tinha também. (Convidada, Episódio Dodora, em 3min21s)
2.2.5- Temporalidade
Por "temporalidade" entende-se nesta análise as falas que abordam como deve ser encarada a questão do tempo decorrido no contexto da reparação, no que diz respeito à demora ou à agilidade das ações em consonância com suas prioridades, bem como as consequências dessas escolhas. Das mais de 20 referências que integram este nó, grande parte delas menciona a questão do equilíbrio necessário entre as ações de reparação pensadas para curto, médio e longo prazos. Segue exemplo:
você precisa também ter um certo cuidado para não correr demais e não plantar no lugar errado, que não vai gerar um resultado, e daqui a 10, 20 anos quando a gente vai querer avaliar, colher os frutos disso, os frutos não vão estar lá. (Convidado, Episódio Raoni Rajão, em 4min27s)
2.2.6- Necessidade de compreender a realidade, os desejos e o lado sensível das pessoas
Os trechos aqui agregados mostram a preocupação ou a importância com o lado sensível das pessoas, sobretudo quanto às vontades e aos desejos das comunidades atingidas, no sentido de que tal percepção deve ser o fundamento para guiar as ações de reparação. Exemplo:
A visão dos desafios e dos problemas não pode ser uma visão externa. Tem que ser uma visão baseada nas pessoas que estão sofrendo, que estão completamente envolvidas na situação. (R. Waack, Episódio Yolanda Kakabadse, em 3min55s)
2.2.7- Ações de reparação: um desafio
Este nó foi criado a partir da percepção do uso frequente de palavras qualificadoras como "desafiador", "complexo" ou "heterogêneo", acompanhando e, portanto, atribuindo significado às "ações de reparação" ou outros termos relativos ao contexto do desastre, muitas vezes também usados em substituição. Esse padrão é considerado relevante devido às já existentes disputas no campo discursivo da tragédia, que dizem respeito ao uso de determinados conceitos, como ocorre, por exemplo, desde o dia 5 de novembro de 2015, sobre qual seria a adequada definição dada ao rompimento da barragem da Samarco (a disputa entre os atores gira em torno principalmente dos termos "desastre", "evento", "acidente" e "crime"). Assim, para a composição deste nó considerou-se a codificação de trechos que relacionam o contexto do processo de reparação como algo difícil, desafiador, complexo, heterogêneo, sem solução fácil ou sem solução pronta. De todos os nós, este é o campeão em termos de quantidade de episódios em que aparece, significando dizer que é mencionado em quase todos os vídeos da série. Os diálogos a seguir revelam essas percepções:
O envolvimento do Tião nos desafios da reparação já é muito importante porque ele traz essa longa experiência de desafios impossíveis de engajamento, de sonhos, para dentro desse conjunto de desafios que a Fundação Renova tem. (Waack, Episódio Tião Rocha, em 00min18s)
tem que ter muita coragem para fazer o que você está fazendo e o que a tua equipe está fazendo, para assumir esses desafios, esses riscos... (Convidado, Episódio Marcelo Furtado, em 7min28s)
Por ser tão complexo, por ser uma questão tão inusitada, a gente não tinha uma solução pronta, né... (Convidada, Episódio Juliana Bedoya, em 1min28s)
2.2.8- Estímulo à participação e ao engajamento
Reúnem-se aqui os fragmentos que, mesmo que indiretamente, fomentam a participação e o engajamento das comunidades e/ou dos diversos atores envolvidos no processo de reparação, narrados por meio de exemplos de pessoas e grupos engajados ou por meio da alusão de que tal comportamento é necessário e/ou importante à resolução dos problemas, à construção do futuro, à efetiva apropriação por parte dos atores coletivos do processo de mudança, entre outros. Exemplos:
sinceramente, eu acho que precisamos de mais desse tipo de engajamento no processo. O sonho, de certa forma, da Renova é ajudar nesse movimento de reconstrução, muito mais do que fazer a reconstrução, né? (R. Waack, Episódio Rodrigo Rubido, em 7min37s)
E se a população da cidade se engaja com isso, se potencializa muito essa agenda de restauração. (R. Waack, Episódio Rachel Biderman, em 4min31s)
2.2.9- Comunidades como protagonistas do processo de reparação, e o legado que ficará para os atingidos
O protagonismo dos atores sociais também é valorizado, em conexão com a necessidade ou a importância da participação e da apropriação do processo de reparação por parte dos atingidos, para que seja gerado um legado positivo. Ou seja, para que sejam gerados resultados permanentes e de acordo com os anseios da comunidade. Exemplo:
então essa ação de trazer os impactados e os envolvidos e interessados para a mesa é fundamental, não só pelo direito que têm de participar da tomada de decisão, mas porque eventualmente, com essa construção, as decisões tomadas serão mais robustas, serão mais justas, serão mais verdadeiras... (Convidado, Episódio Marcelo Furtado, em 8mim54s)
2.2.10- Importância do "coletivo", da construção conjunta e da convergência de visões diferentes para a construção das melhores soluções
Sempre em conexão com outros tópicos já descritos, este nó une fragmentos que incorporam a valorização do "coletivo" e fazem referência à importância da construção conjunta das soluções para os problemas gerados. Trata também da importância da integração dos diversos atores envolvidos na questão - por exemplo, ONGs, universidade, empresariado e, principalmente, as populações atingidas. Muitos desses fragmentos fazem alusão à importância da diversidade, da convergência de visões diferentes e contraditórias para a construção das melhores soluções. Os exemplos, a seguir, são elucidativos:
Estamos sempre em busca de tecnologias, nas universidades, de parcerias... ONGs têm muito conhecimento prático de como funcionam as coisas e a Renova, ela tem essa intenção de colocar todo mundo pra conversar para um objetivo comum que é o da reparação. (Convidado, Episódio Juliana Bedoya, em 7min02s)
a gente sabe que, nesse processo de construção, têm momentos de embate, têm momentos de muita discussão, tem visões diferentes. Mas eu acho que é todo mundo querendo acertar, eu acho que o importante é isso... o objetivo da gente ter o melhor para a bacia do Rio Doce. (Convidado, Episódio Lucinha Teixeira, em 8min56s)
Devido à inviabilidade de descrição da totalidade dos nós codificados no processo de análise, nós restringimos neste artigo aos 10 supracitados, a saber que outros nós, com menor comparecimento, mas também relevantes ao contexto tratado, podem ser verificados na versão completa da pesquisa da qual este artigo foi extraído.
3- Prática Social: algumas considerações
A reflexão sobre a análise social do evento discursivo, ou sobre as conexões estabelecidas relativas às forças antagônicas encontradas neste campo, por meio da contraposição entre as narrativas da Fundação e as das comunidades atingidas, portanto onde os discursos estão permeados por percepções acerca da manutenção e da sustentação das relações hegemônicas de poder, evidencia a trama das lógicas subjacentes a essas conexões. Um dos aspectos evidenciados relaciona-se à concepção de positividade trazida pelas análises foucaultianas sobre o poder. Afastando-se da ideia do poder como um fenômeno restrito fundamentalmente à lei e à repressão e aos seus aspectos negativos - como a coerção, a violência, o castigo, a censura - Foucault evidencia o seu lado positivo, isto é, produtivo, transformador, e que tem como alvo o corpo humano, não para mutilá-lo, mas para adestrá-lo (Machado, 2008). Em convergência com os significados dos ditos expostos ao longo desta seção, verifica-se que o interesse da Fundação é exatamente em uma eficácia produtiva, de forma que não lhe interessa, por exemplo, restringir as pessoas em suas atividades e em seus modos de vida, mas dar-lhes os meios de fazê-lo, sendo que a Fundação é quem estará à frente da gestão e do controle de suas ações. No contexto estudado por Foucault, essa concepção é associada a objetivos ao mesmo tempo econômicos e políticos: aproveitar a força de trabalho como utilidade econômica e diminuir a capacidade de resistência e de luta, neutralizando os efeitos de contra-poder. No caso em foco, evidenciam-se os discursos especialmente como um mecanismo de poder que definem códigos de normalização e regras naturais, uma vez que afirmam como devem agir os atores envolvidos na questão da reparação. Assim, tal mecanismo é sustentado por meio dos saberes e dos discursos de verdade, mas também pelos regulamentos jurídicos que subjazem a toda conjuntura em debate, ou seja, os acordos e as negociações judiciais e extrajudiciais que ditaram as normas de funcionamento dos processos de reparação e definiram as responsabilidades de cada parte, bem como as normas de interação entre elas. Esse sistema de regras - que representa em grande medida os interesses políticos e econômicos dos atores que o projetaram - é usado como respaldo às ações de tais atores e instituições legitimadas.
Neste ponto, vale mencionar algumas reivindicações frequentemente expressas pelas comunidades atingidas em relação à atuação da Fundação Renova. Em Parecer1 produzido pelo Ministério Público (2018) é apontado que, no âmbito dos programas e ações do TTAC, já em implementação pela Renova, muitas críticas são direcionadas, por exemplo, à lentidão de obras em execução, sendo relatadas desconfianças a respeito de obras desnecessárias e possivelmente superfaturadas. Em concordância com essa percepção, falas captadas por meio de observação participante2 também indicaram indignação quanto a gastos e investimentos supérfluos por parte da Renova - por exemplo, com eventos, festas, "lanchinhos" para as comunidades - que teriam o objetivo de agradar a população ou repercutir uma imagem positiva, mas não o de gerar mudanças efetivas na vida das pessoas. Neste aspecto, também foram feitas menções, em desaprovação, sobre os conteúdos divulgados pela Fundação em suas mídias digitais, que estariam associando a ela uma imagem positiva, como uma forma de publicidade, como um meio de autopromoção. Mencionaram, ainda, que os nomes das empresas Samarco/Vale/BHP quase não aparecem associados às questões do desastre, insinuando ser uma estratégia proposital para não criar impacto negativo à imagem das empresas.
No entanto, as referidas reivindicações dos atores sociais atingidos são contrapostas por meio de argumentos legais, os quais encontram respaldo no sistema de governança criado. Significa dizer que dinâmicas muito complexas se verificam na interação entre os governos (federal e estaduais de MG e ES) e suas diversas instituições envolvidas, o Comitê Interfederativo e as Câmaras Técnicas, de um lado, e a Fundação Renova e suas mantenedoras, de outro. A visualização das metas e dos objetivos dos programas a serem implementados confluem para um processo decisório, no âmbito do CIF, que nem sempre encontra trânsito fácil3. Impasses e conflitos, seja no âmbito das Câmaras Técnicas seja no âmbito do CIF, acabam gerando morosidade na definição das ações dos programas e, por conseguinte, atrasos e não atendimento das populações atingidas na urgência necessária que a situação de desastre socioambiental exige4
Em contrapartida, os discursos sustentados pela Fundação Renova - exemplificados na seção anterior - são recebidos pelos atores sociais como uma postura desrespeitosa e antiética, uma afronta diante do sofrimento social no qual estão imersos e que, em grande medida, é agravado pela própria Fundação Renova por meio de suas estratégias de relacionamento com as comunidades. Cita-se o exemplo das ações - no âmbito das negociações financeiras - que são desenvolvidas por meio de uma abordagem individualizada, em detrimento de uma resolução coletiva dos casos. A diferenciação nos atendimentos, aplicada a casos similares, reflete em fragmentação e conflitos entre os atores sociais, que desgastam a malha social até os níveis mais capilares das relações interpessoais. Enquanto isso, os ditos da Fundação evidenciam a importância da participação da coletividade nas ações desenvolvidas - por ela própria - apresentando esse engajamento como necessário para a produção de soluções efetivas, especialmente aquelas de longo prazo.
O "futuro", por outro lado, aparece como que condicionado à adesão dos grupos sociais às iniciativas que estão sendo desenvolvidas no âmbito do sistema institucionalizado. Contudo, o que se verifica nas manchas perceptivas é que o futuro é preterido pelos atingidos em função dos problemas emergenciais, onde estão estacionadas as suas preocupações. Problemas estes, em parte, criados pela própria Renova e que os impossibilita de direcionar o olhar aos planos futuros e, porventura, aderir aos discursos da Fundação. Isto posto, a discrepância entre os conteúdos dos discursos e a realidade social de fato se torna um objeto de contestação. Neste caso, os discursos da Fundação que prezam pelo "coletivo" são colocados em contraposição às percepções sociais que realçam a atuação da Fundação como causadora de fragmentação social.
Nessa mesma lógica, os ditos da Fundação conclamam os atores sociais a ocuparem a centralidade, como "donos" do processo de reparação. Todavia, na prática, omite o fato de ela própria centralizar o controle da gestão e execução das ações de reparação. Em contraste, a vida social dos "donos" é permeada por arbitrariedades e negação de direitos fundamentais básicos sentenciados pela própria Fundação Renova. Soma-se a isso a percepção social negativa acerca da vinculação da Fundação às empresas responsáveis pelo crime, tanto por serem suas mantenedoras como pelas lógicas corporativas herdadas da Samarco advinda do processo de transposição das atividades para a Fundação Renova. O afastamento ou mesmo a ausência de quaisquer menções a respeito das empresas configura os esforços lançados pela Fundação à essa desvinculação e à marcação de sua independência. Em contrapartida, este se torna um ponto dentro do embate discursivo que os atores sociais se empenham em pontuar, de modo a enfatizar a responsabilidade da Samarco/Vale/BHP pelo desastre e estabelecer vinculação dessas empresas com a Fundação Renova. Como se verifica, o uso de formas e conteúdos discursivos ambivalentes e contraditórios se reflete na emergência de mais campos de luta e de contestação, diante da rejeição das populações atingidas.
Em suma, evidenciamos aqui a dinâmica dos discursos da Fundação Renova em sua relação direta com a prática social à qual pertence. Como vemos, a ordem do discurso estabelecida pela instituição, como um sistema que reúne ditos e saberes visando à construção de discursos de verdade e seus efeitos de poder, nem sempre resulta nos efeitos calculados pela Renova, pois que estão interligados a outros acontecimentos discursivos, da mesma forma dotados de efeitos de poder. Efeitos tais que funcionam de modo a manter, reestruturar ou desafiar as estruturas hegemônicas existentes e que estão sempre em relação com outras forças e em constante mutação, nunca inertes. Assim, entender, por um lado, como esse discurso é moldado pelas estruturas sociais - no caso, as estruturas institucionais da Renova e as relações de forças específicas do contexto do pós-rompimento - e, por outro, como o discurso contribui para a representação, significação e transformação desse quadro social pode fornecer pistas importantes à compreensão das mudanças sociais que ocorrem nos processos de reparação dos danos gerados pelo desastre de mineração da Samarco.
Considerações Finais
O artigo direcionou o olhar ao discurso, elemento integrante do sistema de poder que constituiu o cenário do pós-rompimento e que, interligado a outros componentes heterogêneos do conjunto, nos fornece informações contundentes acerca da problemática. Nessa relação de forças, vimos que a posição de vantagem da Fundação Renova advém das determinações impostas pelo TTAC. Esse instrumento lhe concede ampla autonomia gestora e decisória na definição e gestão dos programas de reparação, compensação e mitigação, apesar do controle do poder público via sistema CIF-Câmaras Técnicas. Porém, os recursos humanos e financeiros necessários ao cumprimento das tarefas imputadas pelo Acordo são garantidos pelas empresas Samarco/Vale/BHP Billiton enquanto mantenedoras que, mais do que reparar, querem também minimizar custos e reconstruir suas imagens. O escopo de atuação da Renova, ancorado nas normas dos acordos extrajudiciais estabelecidos, inclui a função de mediação com as comunidades atingidas e de interlocução com os demais públicos envolvidos na reparação, cabendo-lhe, ainda, promover a divulgação das ações e atividades que desenvolve por meio de seus canais de relacionamento e de comunicação. É no bojo dessa exigência do TTAC que, por exemplo, a produção da série "Diálogos" encontra respaldo, tendo em vista que consiste em um projeto "supérfluo", mas encontra justificativa na obrigatoriedade imputada à Renova em comunicar as próprias ações. De modo semelhante, as narrativas discursivas da Fundação afastam-se dos aspectos negativos inerentes aos danos do desastre e se centralizam na mobilização social para a construção do futuro, incorporando aspectos positivos - como soluções, oportunidades, melhorias, reconstrução, aprendizado, união - pois que estes são os fins que lhe foram outorgados por meio do TTAC.
Sob outro viés, a Fundação Renova se esforça também para demarcar os limites das suas obrigações. Como visto na AD, uma das tendências discursivas da Fundação está em evidenciar as condições de degradação ambiental do Rio Doce pré-existentes à ruptura da barragem, o que significa uma demarcação das questões que fogem à sua competência. Dentro dessa racionalidade, portanto, vai marcando sua posição no sentido de restringir-se apenas à recuperação dos prejuízos ocasionados pelo rompimento. Elemento esse que é corroborado nas ações da Renova e suas mantenedoras ao exigir que se prove a existência de nexo causal entre os danos e os efeitos do desastre. Tarefa essa complicada, sobretudo, em se tratando de questões relativas à perda de direitos, modos de vida, segurança alimentar, saúde, entre outros bens intangíveis. Além disso, essa é uma fronteira tênue, uma vez que a disrupção provocada no sistema social a partir do rompimento trouxe problemas novos que se somaram aos já existentes, aprofundando as mazelas sociais e ambientais já vivenciadas nas regiões atingidas. Ao empenhar-se em demarcar essa distinção, a Fundação amplia o tema da degradação ambiental para além do contexto do desastre, englobando temáticas como mudança climática, desmatamento e despejo de esgoto nos rios, além das possíveis soluções e alternativas a tais problemáticas. Nessa lógica, importa pontuar que a narrativa fomenta uma conscientização sobre os danos ambientais provocados pela ação humana predatória, sem que, no entanto, tenha emergido qualquer menção relativa à mineração e aos prejuízos socioambientais gerados pela atividade, mesmo que ela esteja intrinsecamente conectada ao contexto em debate.
A questão da temporalidade que surge na AD também é um ponto crucial nos debates sobre a reparação, especialmente no tocante à lentidão do processo e sua íntima relação com o sofrimento social das populações atingidas. Por esse motivo, a Fundação busca fortalecer a noção de que apressar as ações pode significar o risco de não obter resultados efetivos, sendo necessário o equilíbrio entre as medidas de reparação para curto, médio e longo prazos. A morosidade da atuação da Fundação também resulta da complexidade do sistema de governança no qual ela está inserida. Esse sistema opera por meio de inúmeras instâncias decisórias e de acompanhamento, tanto no âmbito interno da Fundação, que engloba a sua melindrosa relação com as empresas mantenedoras, como na esfera do poder público, que exige mediação entre a União, os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, além dos mais de 40 municípios afetados. Isto sem contar com os mecanismos de acompanhamento, fiscalização e controle instituídos pelo TTAC, que incluem uma auditoria externa, um Comitê Interfederativo e onze Câmaras Técnicas. E, no âmbito mais geral do controle público, órgãos do Ministério Público e das Defensorias Públicas, além da própria sociedade civil. Elementos esses que acrescem complexidade aos processos decisórios em razão dos inúmeros interesses que confluem nas instâncias de decisão e de imposição de sansões. Tal processo de idas e vindas resulta em um círculo vicioso de pouca eficácia, que gera lentidão na implementação das ações previstas nos 41 programas instituídos e, ao mesmo tempo, descontentamento, sofrimento e dor para as populações atingidas.
Observa-se, portanto, o emprego de práticas discursivas por parte da Fundação Renova direcionadas à facilitação do cumprimento de suas próprias funções, a começar pelo incentivo à participação e à adesão das comunidades e dos outros atores às normas instituídas no âmbito do sistema de governança engendrado. Assim, ao situar os atingidos como protagonistas das decisões e das ações em curso, colocando ela própria como coadjuvante, na verdade ela exercita uma forma de manutenção de sua posição hegemônica, que se efetiva nos ordenamentos e nas formações discursivas, isto é, em sua positividade, nas palavras de Foucault. Além de se afastar da imagem de autoridade central que dita "verdades" sobre quais os melhores caminhos a serem percorridos no processo de reparação, a Renova propõe que a construção das soluções seja feita de forma conjunta, por meio da convergência de visões e de conhecimentos heterogêneos. Como é visto na AD, a presença dos convidados, os quais "falam pela Fundação Renova" determinados conteúdos - pautados e estimulados por ela mesma - são utilizados como mecanismo para sancionar tais ideias como verdadeiras, trazendo à cena, por exemplo, a forma do discurso científico e as instituições que o produziram, o que se reflete em efeitos regulamentares de verdade e, em consequência, de poder.
Em contrapartida, como vimos, determinadas estratégias discursivas podem gerar novos campos de luta quando são utilizadas para simular uma condição não condizente com a realidade. A discrepância entre o real e o simulado se deflagra na emergência do contra-discurso, advindo da realidade social diária dos atores sociais e também formulado sob um ordenamento específico e dotado de efeitos de poder. Em sua historicidade, ele abarca um longo e histórico contexto de luta contra o discurso hegemônico, além de, como vimos, carregar uma incisiva desconfiança e descrédito em relação à atuação da Fundação Renova. A causalidade dessa "desproporção" de expectativa, evidente nas manchas perceptivas sociais, pode ser condensada em dois aspectos principais, que dizem respeito a incoerências inerentes à Fundação: i) a organização nasceu de um Acordo sem legitimidade por parte dos atingidos, especialmente por estes terem sido afastados das discussões e negociações que presidiram sua elaboração; além disso, a ausência de participação dos atores sociais - em equivalência de poder - estendeu-se a todas as instituições integrantes do sistema de governança criado pelo TTAC, incluindo a própria Fundação Renova; ii) a vinculação da Fundação com as empresas mantenedoras Samarco/Vale/BHP, a qual se acentua por dois motivos: o primeiro refere-se ao processo de transição da Samarco para a Fundação Renova, que deixou como legado - a uma fundação - lógicas próprias do setor corporativo e, mais especificamente, da própria Samarco. Isso porque, ao iniciar suas atividades, a Fundação foi conduzida pelos funcionários da Samarco, ou seja, a empresa causadora do dano gerenciava a reparação, cabendo-lhe cuidar, por exemplo, da relação com os atingidos e da gestão do aporte financeiro, proveniente dela própria. O segundo motivo é a representatividade das mantenedoras na estrutura de governança interna da Fundação. Para ilustrar, o órgão que detém poder decisório, o Conselho Curador, possui seis representantes das empresas Samarco/Vale/BHP de um total de nove membros, sendo que as decisões do Conselho são tomadas pelo voto favorável de, pelo menos, cinco deles. Tais proporções já indicam uma assimetria de poder, institucionalizada por meio dos Acordos extrajudiciais assinados. Sob esses termos se ancoram as percepções dos atingidos que associam a Renova a uma empresa de responsabilidade social a serviço das mineradoras, cujas práticas, bem conhecidas no setor de mineração, caracterizam-se pela estratégia de criar uma relação amistosa com a comunidade, visando à adesão e ao respaldo social, bem como à redução de contestações para a viabilização de um convívio profícuo aos interesses das empresas (Vieira, 2017).
Acrescenta-se que a atuação do Estado faz-se presente desde a sua participação ativa na propositura e na implementação do TTAC (e da Fundação Renova) até a sua participação pulverizada nos órgãos de governança que monitoram e fiscalizam a Fundação. Fazem-se presentes entes governamentais de diversos âmbitos de atuação e níveis territoriais, cuja representação está distribuída especialmente nas cadeiras do CIF e das Câmaras Técnicas, de forma a acompanhar a execução dos programas socioeconômicos e socioambientais, especialmente em sua interface com as políticas públicas, na medida em que esbarram nas competências dos entes governamentais. Desse modo, neste estudo caracterizamos a Fundação Renova como uma instituição de natureza híbrida, tendo em vista a sua configuração como: uma instituição do terceiro setor, que internaliza funções de Estado e pratica lógicas corporativas. Ao ser colocado em funcionamento, na função central de gestão da reparação, esse mecanismo aprofunda a assimetria de poder desvelada nessa relação de forças, em que as populações atingidas se veem desfavorecidas, enquanto os interesses governamentais e corporativos - representados pela Fundação Renova - localizam-se em posição oposta. Por meio dessa lógica, os atores corporativos e políticos se ausentam desse campo discursivo, pois não compete a eles responderem pelas ações do processo de reparação, considerando que essa responsabilidade é transferida à Fundação. Assim, temos que ambas as partes, Estado e empresas, instituem a Fundação Renova enquanto mecanismo de poder, concedendo-lhe poderes materiais e simbólicos, ao mesmo tempo em que se afastam do conjunto de problemas que eles próprios provocaram. Por meio dessa aliança, portanto, são suprimidos, no plano discursivo, possíveis debates que poderiam suscitar a problematização e o questionamento sobre o modelo de desenvolvimento tecnológico-industrial vigente, o qual intensifica a exploração mineral e seus efeitos sistemáticos e deletérios provocados às populações e ao meio ambiente.
De forma oposta, a Fundação Renova, cumprindo seu papel conforme as prerrogativas do TTAC, coloca em prática estratégias discursivas que criam narrativas desconectadas do motivo causador do desastre e, ainda, ressignifica o quadro catastrófico provocado pelo rompimento da barragem. Por esta via, ultrapassa o limiar ético em sua política de comunicação, já que seus discursos são recebidos pelos atingidos como uma afronta, diante à discrepância com a realidade social vivenciada por tais grupos, como mais um peso que adensa o sofrimento social. A articulação desses grupos contra o discurso hegemônico da Fundação emerge como via necessária nesse campo de forças, tendo em vista o grande poder que ela representa, bem como a força do discurso enquanto constituidor da estrutura social, das relações sociais e dos próprios sujeitos sociais. Dessa forma, a ausência de determinadas informações no campo discursivo do pós-rompimento e a sua explícita desconexão com a realidade social é entendida, neste estudo, como resultado dos efeitos das relações de poder que ali se exercem.
Para além do contexto da reparação do desastre da Samarco, esta apropriação discursiva, que enfraquece a reflexão e a problematização da causalidade da tragédia, significa um alto custo à sociedade. Mesmo diante de um rastro de destruição provocado, além da constatação da urgente necessidade de colocar em pauta os efeitos deletérios da exploração mineral e de reforçar a discussão sobre as reformas políticas para o setor, vimos nos últimos anos à ausência de debates em profundidade com a sociedade civil e, ainda por cima, a implementação de projetos que flexibilizam as licenças para exploração mineral, em detrimento das preocupações sociais e ambientais. Como resultado, assistimos a mais devastações provocadas por desastres da mineração no Brasil. Um exemplo, particularmente trágico por ceifar a vida de mais de 300 pessoas soterradas pela lama, foi o colapso da barragem da mina Córrego do Feijão, de propriedade da mineradora Vale, em Brumadinho (MG), no dia 25 de janeiro de 2019. Ainda que o modelo de produção mineral vigente tenha se tornado um sistemático produtor de riscos, em menores ou maiores proporções, esta narrativa permanece inferiorizada perante as narrativas hegemônicas sustentadas nas ordens de discurso institucionais. A complexidade das ocorrências se amplifica diante à inoperância dos atores estatais - seja em razão da incapacidade estatal ou dos interesses mesclados aos do capital - em evitar e prevenir tais acontecimentos e, também, em gerir o caos e os problemas públicos quando estes surgem de forma inesperada, podendo evoluir para um quadro catastrófico se não devidamente remediados e controlados.
Em conclusão, a pesquisa que ancorou este artigo evidencia a importância dos discursos e seu caráter socialmente constitutivo, que influi na manutenção de relações hegemônicas de poder e, portanto, nos seus efeitos nas estruturas sociais, sendo o próprio discurso um foco de luta para a articulação ou desarticulação de tais hegemonias. Decorridos mais de quatro anos do maior desastre-crime socioambiental da história do Brasil, as contínuas lutas sociais já resultaram em conquistas relevantes no que tange à diminuição das assimetrias de poder entre as partes envolvidas, mas ainda há muito a se percorrer "No Caminho da Reparação". Por fim, enfatiza-se particularmente a necessidade de reavaliação das diretrizes de comunicação da Fundação Renova, visando à maior harmonização com as expectativas dos atingidos, bem como à redução do sofrimento social sentido por essas comunidades.
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Zorzal e Silva, M., Cayres, D. C., & Souza, L. A. M. (2019). Desastre socioambiental e Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) como instrumento de política pública: O caso da barragem de Fundão, MG. Civitas, Porto Alegre, 19(2),464-488. [ Links ]
Recebido em: 11/10/2019
Aprovado em: 05/12/2019
Agência de Fomento: Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Agência Nacional de Águas (ANA), no âmbito da chamada 6/2016, "Apoio a Redes de Pesquisa para Recuperação da Bacia do Rio Doce".
1 Trata-se de um Parecer, de autoria da "Força Tarefa Rio Doce - MPF" e da "Força Tarefa MPMG - Caso Samarco", desenvolvido como resultado de uma avaliação participativa realizada junto a comunidades atingidas de MG e ES para captar suas opiniões sobre a proposta do "TAC-Governança" e ao mesmo tempo contextualizar sua elaboração e informá-los acerca do documento. Desse modo, foram colhidas percepções também sobre o sistema de governança vigente e sobre a Fundação Renova, que dele faz parte. O trabalho em campo foi realizado em três grupos territoriais: Alto Rio Doce (MG); Médio Rio Doce (MG); e Baixo Rio Doce (ES), este abrangendo também a região litorânea capixaba.
2 Relatos captados durante a "Oficina de Participação, Diálogo e Controle Social", que aconteceu em Linhares (ES) nos dias 06 e 07 de dezembro de 2018, de iniciativa da Câmara Técnica de Participação, Diálogo e Controle Social, que contou com a participação de atingidos das comunidades dos municípios de Linhares, Sooretama e Colatina, localizadas no estado do Espírito Santo.
3 Para uma exposição sobre o sistema de governança ver: Zorzal Silva, M. et al. (2019).
4 Para as inúmeras situações de atraso na execução dos programas definidos pelo TTAC, ver: MPF. Ramboll, 2017 e MPF. Ramboll, 2018..