Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA
Afeto e comum: enfrentamento do racismo por crianças e jovens quilombolas no contexto escolar
Affection and common: coping with racism for children and young people quilombolas in the school context
Afecto y común: enfrentando el racismo de niños y jóvenes kilomboles en el contexto escolar
Affect et commun: faire face au racisme des enfants et des jeunes kilomboles dans le contexte scolaire
Ana Flávia de Sales CostaI; Odair José Câmara EdmundoII; Maria Ignez Costa MoreiraIII
IFormada em Psicologia pela UFMG, mestre e doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas; especialista em Psicologia Social, Gestão da Política Pública de Assistência Social e Psicologia Clínica. Atua na Política Pública de Assistência Social há 15 anos / anaflaviasalescosta@gmail.com
IIFormado em Psicologia pela FCV, possui graduação tecnológica em Logística pelo UNIFEMM. Atua como professor de apoio em escola da rede particular / odair.j.c.e@gmail.com
IIIGraduada em Psicologia e Mestre em Psicologia pela UFMG, Doutora em Psicologia Social pela PUC SP. Professora da Faculdade de Psicologia/Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas / maigcomo@uol.com.br
RESUMO
O presente artigo originou-se de uma pesquisa de doutoramento em curso, no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC-MINAS e objetivou compreender as relações entre o afeto e o comum para a ampliação da potência política de crianças e jovens da comunidade quilombola. A psicologia socio-histórica foi o referencial teórico adotado, através das categorias afeto, comum e política, tendo Vigotski, Espinosa e Sawaia como autores principais. A metodologia foi a pesquisa-intervenção psicossocial na qual foram analisadas 65 rodas de conversa com crianças e jovens entre 07 e 18 anos. A escola mostrou-se como um espaço em que práticas racistas são vivenciadas pelas crianças e pelos jovens quilombolas quando saem da comunidade para estudar na zona urbana, causando sofrimento ético-político. Este contexto, além de representar um ambiente de reprodução do racismo, também se mostra como possibilidade de seu enfrentamento através da afetividade e da constituição do comum.
Palavras-chave: Psicologia socio-histórica; Comunidade quilombola; Racismo; Afetividade e comum.
ABSTRACT
This article originated of doctoral research in progress in the postgraduate program in psychology at PUC-MINAS and aimed to understand the relationships between affection and the common for the expansion of the political power of children and young people in the quilombola community. Social-historical psychology was the theoretical referential adopted, through the categories of affection, common and political, with Vigotski, Espinosa and Sawaia as the main authors. The methodology was the psychosocial intervention research in which 65 conversation circles with children and young people between 7 and 18 years old were analysed. The school showed itself as a space in which racist practices are experienced by children and young quilombolas when they leave the community to study in the urban area, causing ethical-political suffering. This context, in addition to representing an environment of reproduction of social inequality, also shows itself as a possibility of coping through affectivity ande the constitution of the common.
Keywords: Psychology socio-historical; Quilombola community; Afetctivity and common.
RESUMEN
El presente artículo se originó a partir de una investigación doctoral en curso, en el Programa de Postgrado en Psicología de PUC-MINAS y tenía como objetivo comprender las relaciones entre el afecto y lo común para la expansión del poder político de los niños y jóvenes en la comunidad quilombola. La psicología sociohistórica fue el marco teórico adoptado, a través de las categorías de afecto, común y político, con Vigotski, Espinosa e Sawaia como autores principales. La metodología fue la investigación-intervención psicosocial en la que se analizaron 65 círculos de conversación con niños y jóvenes de entre 7 y 18 años. La escuela demostró ser un espacio en el que niños y jóvenes experimentan prácticas racistas cuando abandonan la comunidad para estudiar en el área urbana, causando sufrimiento ético y político. Este contexto, además de representar un ambiente para la reproducción del racismo, también se muestra como una posibilidad de enfrentarlo a través del afecto y la constitución de lo común.
Palabras clave: Psicología sociohistórica; Comunidad quilombola; Racismo; Afectividad y comun.
RÉSUMÉ
Le présent article est issu d'une recherche doctorale en cours, dans le programme de troisième cycle en psychologie de XXX et visait à comprendre les relations entre l'affection et le commun pour l'expansion du pouvoir politique des enfants et des jeunes dans la communauté quilombola. La psychologie socio-historique a été le cadre théorique adopté, à travers les catégories d'affection, commune et politique, avec Vigotski, Espinosa et Sawaia comme auteurs principaux. La méthodologie était la recherche-intervention psychosociale dans laquelle 65 cercles de conversation avec des enfants et des jeunes entre 7 et 18 ans ont été analysés. L'école s'est avérée être un espace dans lequel les enfants et les jeunes quilombolas vivent des pratiques racistes lorsqu'ils quittent la communauté pour étudier en zone urbaine, provoquant des souffrances éthiques et politiques. Ce contexte, en plus de représenter un environnement propice à la reproduction du racisme, se présente également comme une possibilité d'y faire face par l'affection et la constitution du commun.
Mots-clés: Psychologie socio-historique; Quilombola Communauté; Racisme; Affectivité et commune.
Introdução
Desde a Constituição Federal de 1988, a sociedade brasileira tem aprofundado o debate e o encaminhamento de propostas para a promoção dos direitos humanos e para a superação da desigualdade social. Porém, a recente e moderna democracia tem sido construída a partir de uma lógica neoliberal extremada, que mina as possibilidades de constituição do comum e do acesso igualitário aos direitos. Há uma responsabilização individual dos sujeitos, uma redução do Estado e o discurso da meritocracia tem sido imperativo, o que escamoteia da discussão a questão central da produção de desigualdade. Fortalece-se a concepção de um indivíduo privatizado, construída numa sociedade desigual e de classes, a qual se presta a um modo de vida que despotencializa os sujeitos políticos.
A despolitização da vida cotidiana tem enfraquecido as possibilidades de constituição do comum e atendem aos interesses de dominação de uma minoria, detentora dos bens de produção, das riquezas materiais e do poder nos espaços políticos instituídos, resultando na subordinação da maioria. Nesse jogo de forças antagônicas, a desigualdade social persiste. De acordo com Lopes (2005) e Chor e Lima (2005), o termo desigualdade diz de uma relação hierárquica entre dois ou mais elementos, com a comparação em torno das diferenças de acesso às condições econômicas, políticas e sociais; consideradas necessárias para uma vida digna. Diferenças estas que privilegiam uns e subalternizam outros, gerando opressão e sofrimento.
A desigualdade entre brancos e negros, no que tange às possibilidades de exercício da cidadania e de uma vida digna, tem tido graves consequências para a população negra, evidenciando que a categoria racial é importante para a compreensão do tema. Assim, o racismo se configura como uma variável na produção e reprodução da desigualdade social. Para Almeida (2019), o racismo "é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagem ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem" (p. 32). O autor defende que todo racismo é estrutural, pois, advém dessa engrenagem em que todos estamos inseridos e da qual não é possível escapar. Ainda que individualmente não pratiquemos ou soframos atos racistas de modo consciente, tendo-se em vista o sistema econômico, político, social e cultural, estamos todos enredados nessa estrutura, e a depender do grupo social ao qual pertencemos, brancos ou negros, ocupamos um lugar de privilégios ou desvantagem.
Segundo o Centro de Referencias Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP, 2017), o racismo é uma estratégia de dominação que estrutura nossas relações sociais, ou seja, não é uma ação isolada ou momentânea, mas foi construído histórica e sistematicamente para possibilitar manter alguns, os brancos, no lugar de superiores e outros, os povos negros, no lugar de inferiores. Vivemos o racismo estrutural, em que todo um sistema de dominação é sustentado na diferença racial, convertida em desigualdade; no caso uma raça (compreendida como raça social) é tida como superior à outra, o que se torna justificativa para a manutenção de privilégios da população branca, sendo uma de suas consequências o sofrimento ético-político causado ao povo negro enquanto um afeto a bloquear a potência de vida e, com isso, manter a servidão presente em suas vidas.
Sawaia (2009a) denomina de sofrimento ético-político o processo psicológico e político de reprodução da desigualdade social, fruto da relação entre as ameaças, geradas pela própria desigualdade, e as respostas afetivas daqueles que a ela estão submetidos, qualificando-o como uma "dor mediada pelas injustiças sociais" (p. 102). É diferente do sofrimento ontológico ao qual todos os seres humanos estão submetidos. No primeiro caso, ele aparece como consequência da desigualdade, enquanto negligências do Estado e da sociedade, em relação a determinados grupos e indivíduos. A autora define o sofrimento ético-político como:
Um fenômeno da ordem da exploração econômica, da opressão política e das relações de poder, mas que é vivido como sofrimento individual, como necessidade do eu, e que, portanto, para ser superado, exige ações em todas as dimensões. E o que é mais importante, destacar a desigualdade é afirmar que o objetivo da Psicologia Social é a transformação social. (Sawaia, 2015, p. 13)
Quando Sawaia (2009b), formulou o conceito de sofrimento ético-político, a autora chamou nossa atenção para um tipo específico de sofrimento que não é vivido por todos os sujeitos, mas apenas por aqueles submetidos a condição de exclusão social, configurando uma herança perversa de uma sociedade de classes, racista, sexista e patriarcal. Ela propõe um conceito que nos possibilita pensar a desigualdade social como algo, também, do campo de estudos específico da psicologia, por produzir um padecimento da existência.
O racismo "produz um sofrimento específico, histórico e coletivo." (CREPOP, 2017, p. 20). A potência é retirada do sujeito, deslocando-o para o estado das "paixões tristes", recorrendo a Espinosa (1983). Não só lhe é retirada a possibilidade de resistência e de transformação, como o leva a formas de organização da vida e de comportamentos que são contrários a ele mesmo, ou seja, o sujeito é afetado de modo a ter reduzido seu poder sobre si mesmo, sobre o mundo e age como o opressor de si, tendo bloqueada a sua capacidade de ação. Há uma perda de si mesmo como uma repercussão da servidão.
Sawaia (2009a) propõe-nos refletir sobre os processos de exclusão, causados pela desigualdade social, a partir da afetividade associada à emoção, como uma questão ético-política. Assim como o sofrimento ético-político é produzido nas relações, nos encontros, no comum, é por meio destes, que ele também pode ser transformado. Os encontros tornam-se, então, a possibilidade de construção de ações políticas, por terem a potência de fortalecer o comum, sendo, assim, uma importante ferramenta para a superação da desigualdade social. Segundo a autora, "a transformação social não se dá pela derrubada do tirano. Ela requer ações diferentes, mas combinadas para combater as relações de servidão, e uma delas é sempre a mais urgente: agir no sofrimento ético-político" (Sawaia, 2009b, p. 370). Esta é uma importante pista sobre as possibilidades de atuação da psicologia, diante das questões raciais, pois revela um escopo de atuação - o sofrimento ético-político provocado pelo racismo.
Abordando o racismo numa perspectiva microssocial, o contexto escolar destacou-se nesta pesquisa por revelar práticas e discursos em que o racismo ainda é percebido como um fato distanciado da realidade deste ambiente. Trindade (1994) aponta que pela diversidade étnica e cultural, as realidades experimentadas pelos usuários das instituições educacionais, possibilitam o risco de invisibilizar a problemática racial, recaindo sobre a escola o papel de produção e reprodução da desigualdade social, de discriminações, sobretudo do racismo.
De acordo com Munanga (2004), historicamente as pessoas negras sofreram privações das instituições sociais, sucumbindo ao precário e quase inexistente acesso à cultura e história de si próprios na constituição histórica e cultural do país dentro desses espaços. O modelo pedagógico brasileiro em linhas gerais, ainda vê e apresenta os povos negros como secundários, uma vez que há visibilidade apenas na perspectiva histórica escravocrata. Nesse sentido, estudantes negros raramente se percebem contemplados na instituição escolar e nos componentes curriculares.
No Brasil, tivemos alguns avanços, tais como a criminalização do racismo em 1989, as políticas públicas de ações afirmativas, em 2000; e, em 2003, a instituição obrigatória do ensino geral da história da África e dos afrodescendentes. Através da Lei n. 10.639/2003, pretende-se uma revalorização da cultura africana e afrodescendente no Brasil, mostrando um lado até então não ensinado nas escolas: as contribuições de tal população para aquilo que somos hoje, no que diz respeito à nossa cultura, nossa força e nossa potência simbólica e material.
Apresentamos a seguir os resultados de uma pesquisa-intervenção psicossocial realizada com um grupo de 15 crianças e jovens de uma comunidade quilombola do interior de Minas Gerais. Esta é uma comunidade rural, localizada a 14 km da área urbana de um município de pequeno porte. Possui aproximadamente 90 famílias, tendo sido reconhecida como uma comunidade remanescente de quilombo ou quilombola1 pela Fundação Palmares. (Ministério da Cultura, 2016).
Nosso objetivo foi compreender as relações entre o afeto e o comum para a ampliação da potência política de crianças e jovens da comunidade quilombola. No caso específico deste artigo, privilegiamos a reflexão sobre o contexto escolar e o enfrentamento do racismo. Construímos um percurso em que compreendemos a concepção de política, numa perspectiva ampla, em que o comum seja o fio condutor da ação e a sua constituição se dê pela via da afetividade que se estabelece nos encontros cotidianos.
Racismo e sofrimento ético-político: reflexos da escravização na contemporaneidade
O racismo apoiou-se em teorias que proclamavam a inferioridade racial do negro em relação ao branco e que viam nessa população menor capacidade intelectual, racial e social. (Telles, 2003). Está presente nas relações de dominação étnico-raciais no Brasil, produzindo humilhação social e sofrimento dos negros, sendo importante evidenciar as contribuições da psicologia para o enfrentamento dessa problemática.
Sawaia (2018) propõe que o afeto seja uma categoria analítica da desigualdade social e o comum, um norte da práxis psicossocial. Na perspectiva espinosana, ser afetado é um poder e a alegria, a tristeza e o desejo são as três afecções primárias. Segundo Espinosa (1983), a "alegria (Laetitia) é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma perfeição maior" (p. 212), tendo a sua capacidade de agir aumentada. Já "a tristeza (Tristitia) é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma perfeição menor" (p. 212), tendo a sua capacidade de agir diminuída. E o desejo, por sua vez, é definido como "o apetite de que se tem consciência" (p. 182), aquilo que nos move em direção a algo de modo intencional.
Somos movidos pelos nossos desejos, que nos impulsionam na direção daquilo que realiza o nosso ser e nessa caminhada somos afetados por paixões alegres e tristes, que aumentam ou reduzem a nossa potência de ação. Há uma produção que se dá nas relações entre os corpos e destes com o mundo ao nosso redor. A psiquê deveria ser estudada em transformação e na perspectiva de suas afetações, do que é potência e do que despotencializa formas de viver bem, levando-se em conta mecanismos que aceleram ou bloqueiam o desenvolvimento, sendo este não linear, etapista ou genético, mas histórico. (Vigotski, 2000).
Quando o sujeito se encontra numa condição de sofrimento ético-político, a potência lhe é retirada, deslocando-o para o estado das "paixões tristes". Não só lhe é retirada a possibilidade de resistência e de transformação, como o leva a formas de organização da vida e de comportamentos que são contrários a ele mesmo, ou seja, o sujeito acaba por agir como o opressor de si mesmo, bloqueando a sua própria capacidade de ação.
Segundo Espinosa (1983), nós agimos em função de buscar aquilo que nos é útil para perseverar a existência e, quando nos associamos a outros, em função de interesses comuns, nos tornamos mais fortes. Aí se dá a constituição do comum, ou seja, relaciona-se à necessidade de união entre os homens em busca daquilo que traga o bem para todos. De acordo com Espinosa (1983), "o que conduz a sociedade comum dos homens, ou seja, o que faz que os homens vivam de acordo, é útil, e, inversamente, é mau o que traz a discórdia à cidade". (p. 249).
Chauí (2003) afirma que "a política não é a espiritualização da existência humana e sim a concretização do útil, isto é, do desejo natural de poder, segurança e liberdade" (p. 127). A noção de utilidade para Espinosa está relacionada àquilo que amplia a potência de ação de cada um; numa conexão com Vigotski, aquilo que possibilita o desenvolvimento pleno do ser humano. Nesse sentido, o político é da ordem da potência de vida que cada sujeito tem para sair da servidão, buscando aquilo que amplia sua ação na direção da liberdade, esta compreendida aqui não como um agir inconsequente, mas ao contrário disso, na sua dimensão ética, enquanto poder de realizar-se em sua felicidade e em comunhão com os demais.
A forma como a sociedade brasileira foi sendo constituída historicamente desde a colonização portuguesa até os dias atuais, resulta na privação de oportunidades e de possibilidades de acesso do povo negro, o que contribui para desencadear, manter o sofrimento ético-político e reduzir a sua potência de vida. No Brasil, tanto o mito da democracia racial, em que um arcabouço teórico foi construído para justificar uma suposta harmonia e convivência pacífica entre brancos e negros, fruto da miscigenação, assim como a ideologia do branqueamento, em que a imigração de europeus foi incentivada para substituir a mão de obra negra e miscigenar a população, de modo a branqueá-la gradativamente, foram estratégias utilizadas para "solucionar" a questão racial, após a abolição da escravidão.
Segundo o CREPOP (2017), a imensa população negra liberta viu-se num processo de competição desigual, pois não era capacitada tecnicamente, em comparação com a mão de obra imigrante e branca. Sem nenhuma política pública reparadora, foi incluída, de forma excludente, no processo produtivo, restando-lhe apenas afazeres nas regiões rurais economicamente menos rentáveis e nas atividades urbanas mais propícias de risco de morte. A história nos revela que a condição de liberdade era relativa, uma vez que o racismo, já instaurado, legitimava a interdição da cidadania aos negros, já não mais na condição de pessoas escravizadas, mas de uma inclusão perversa e excludente. Segundo Carone (2014):
o branqueamento poderia ser entendido, num primeiro nível, como o resultado da intensa miscigenação ocorrida entre negros e brancos desde o período colonial, responsável pelo aumento numérico proporcionalmente superior de mestiços em relação ao crescimento dos grupos negros e brancos na composição racial da população brasileira. O branqueamento, todavia, não poderia deixar de ser entendido também como uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a Abolição da Escravatura, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de condição para se "integrar" (ser aceito, ter mobilidade social) na nova ordem. (p. 14)
Para Bento (2014), o branqueamento no Brasil é tomado como um problema, num primeiro momento, dos negros que, insatisfeitos com sua condição, buscam identificar-se como brancos, miscigenar-se com eles, de modo a minimizar suas características raciais. Porém, na verdade, a autora constatou que este foi um processo criado, sustentado e utilizado pela elite branca, para afirmá-lo como um problema do próprio negro. Tal ideologia é usada para manter os lugares de privilégios de brancos e culpabilizar negros pela sua condição, sendo, portanto, imprescindível trabalhar na lógica dialética branquitude/negritude, para desnaturalizar os discursos racistas, construídos ao longo da história e legitimados por uma elite econômica, intelectual e política que mascara o papel dos brancos nesse processo.
Portanto, a população negra do país tem sido alvo de violência e criminalização, desde a escravização até os dias atuais. A disseminação do discurso discriminatório reforça a narrativa de desqualificação da cidadania do povo negro, que é respaldada pelo mito da democracia racial e pela ideologia do branqueamento da raça que funcionam como instrumentos de controle social, que legitimam a opressão. Desta forma, as desvantagens enfrentadas pela população negra foram se acumulando e sendo associadas à cor da pele, ao cabelo e aos demais traços físicos, à noção de um povo originado da escravização e menos capaz, deslocando-o para o campo das paixões tristes, negando sua potência e enfraquecendo o comum.
A pesquisa-intervenção psicossocial na comunidade quilombola
A pesquisa-intervenção psicossocial ocorreu entre novembro de 2017 e novembro de 2019, através de 65 rodas de conversa, com 15 crianças e jovens entre sete (idade no início do processo) e 18 anos de uma comunidade quilombola. Foi criado um grupo denominado pelas/os participantes de Bate Papo de 3ª, em referência ao dia da semana dos encontros e ao método dialógico utilizado. A intervenção seguiu os princípios da Análise Institucional (Lourau, 1993, 1995), buscando compreender a relação entre instituído e instituinte, as possibilidades de invenção e os atravessamentos, surgidos nas múltiplas afetações geradas pelo processo grupal.
O acesso a comunidade foi favorecido pelo contato pré-existente entre uma das pesquisadoras e os morados, devido ao seu trabalho com psicóloga do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) do município. A forma de contato foi através da nossa presença nas visitas do CRAS à comunidade. Acompanhamos a equipe do serviço, nos dias em que realizava a atividade dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e conversamos com aquelas/es crianças e jovens que estavam presentes. Depois de duas idas à comunidade, fizemos um convite escrito, na forma de um bilhete; pedimos àquelas/es jovens que ali estavam e demonstraram interesse para distribuir entre as/os demais. Somente participaram aquelas/es autorizadas/os formalmente por suas mães, pais ou responsáveis, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Quadro 1 - Clique para ampliar
Realizamos rodas de conversa, em que foram privilegiadas as narrativas dos sujeitos, suas experiências e a produção de um conhecimento sobre si mesmos e sua comunidade. Nada havia sido planejado a priori, a não ser os primeiros momentos, que tinham como objetivo nos conhecer e apresentar a proposta. Em alguns encontros, levamos atividades mediadoras, como colagens e desenhos. Passada essa primeira fase, todas as atividades aconteceram segundo sugestões feitas pelos próprios membros do grupo.
Após o momento inicial de formação de vínculos entre as/os participantes do "Bate Papo de 3ª" e nós, pesquisadores, começamos a perceber a existência de um fio condutor para as narrativas: o racismo. De alguma forma, o que saltava aos olhos, ao longo de cada conversa, era o fato de que a maioria delas/es sofria racismo, em especial no contexto escolar, em função especialmente da cor da pele e do tipo de cabelo. Várias foram as situações narradas por elas/es - a diferença no modo de serem cumprimentados: "quando era alguém branca a pessoa pegava na mão e dava beijinhos, quando era uma pessoa negra cumprimentava de longe" (Elza), as piadas no contexto escolar sobre o cabelo e a cor da pele, a indiferença de alguns professores quando relatavam situações racistas sofridas por elas/eles na escola.
Ao mesmo tempo em que elas/es contavam suas histórias, era possível perceber como cada uma/um era afetada/o por elas, de acordo com a sua singularidade. Para uma parte das/os participantes do grupo, a estratégia era fingir que nada estava acontecendo. Tupac foi um dos que afirmou: "eu finjo que não é comigo, que não me importo" (Tupac). Já para outras/os, alteravam seus corpos numa tentativa de adequá-los ao padrão eurocêntrico. Elza contou como teve uma inflamação no couro cabeludo de tantos produtos químicos que utilizou para alisá-lo. Luana relatou como, para ela, a boneca branca era mais bonita que a negra. Todas/os relataram assumir para si, como uma limitação pessoal, as diferenças na maneira como eram tratadas/os em função de sua cor de pele ou tipo de cabelo, alterando a própria aparência, assumindo a estética branca com padrão ou não demonstrando os desconfortos provocados. Apenas Sol relatou um enfrentamento mais sadio das situações, em alguns momentos, se percebendo como referência estética positiva para as colegas, já que adotou o cabelo crespo há um tempo.
O racismo no contexto escolar é uma realidade vivida pelas crianças e pelos jovens do grupo, que lidam de maneiras diferentes com a situação, desde o silenciamento até a mudança estética do corpo, para uma adequação ao padrão instituído (por exemplo, o alisamento do cabelo relatado por Elza). O que há de semelhante em ambos os posicionamentos é a despolitização de tais situações, que foram naturalizadas. O sofrimento é vivido nos corpos e nas subjetividades pelo desejo de ser diferente do que se é, de ter outra cor, outro cabelo, outros olhos. Há um obscurecimento das construções históricas e sociais dos padrões de beleza eurocêntricos, sobre os processos de escravização, e de quais objetivos o racismo atende na contemporaneidade.
A escola, espaço de inclusão social por excelência, revelou-se excludente nas relações cotidianas entre seus membros, sendo reprodutora do racismo. Gomes (2002) reflete sobre os apelidos na escola, como as primeiras experiências públicas de rejeição do corpo negro, algo percebido na narrativa de Elza, quando relatou ter sido chamada de "tição, macaca, nega preta", entre outros apelidos pejorativos e desrespeitosos. Ela contou que foi perseguida durante dois anos por um grupo de alunos e que quase abandonou a escola. Contudo, Gomes (2002) também aponta que a escola desempenha a função de abertura para a vida social, diferente das relações que são estabelecidas nos microssistemas, como a família.
As/os mais velhas/os do Bate Papo de 3ª já passaram pela experiência de estudar na escola da comunidade rural até o quinto ano do ensino fundamental e, a partir daí, saírem para a escola da zona urbana, podendo ser compreendido como o primeiro momento de estabelecer relações mais contínuas e duradouras com um universo diferente daquele familiar e comunitário. Pela primeira vez, elas/es experimentaram as relações inter-raciais de modo tão intenso. Não é por acaso que a escola se tornou o espaço privilegiado das narrativas sobre o racismo. É importante ressaltar que, o "ser da roça", também, era trazido por elas/es como um fator que gerava discriminação no contexto escolar, ainda que o município tivesse uma população rural maior que a urbana.
Havia uma dupla vivência de inadequação. Elas/es saíram do ambiente protegido, de iguais (ainda que com os seus conflitos), da comunidade rural para a cidade, diversa, hierarquizada. Naquele momento, os elementos de desigualdade e diferenciação, especialmente a afrodescendência e a origem rural, tornaram-se incontornáveis para elas/es, uma vez que passam a conviver com os alunos e professores da cidade. Havia uma hierarquia entre o "da roça" e o "da cidade", entre o branco e o negro. Segundo Gomes (2002), a medida que as relações para além do círculo familiar das crianças e dos jovens negros se ampliam, mais se percebe um campo de tensão nas relações intra e extrafamiliares.
O racismo na escola e o seu não enfrentamento geram formas perversas de exclusão, em que as/os alunas/os negras/os sentem-se desprotegidas/os, na instituição que deveria protegê-los. Muitas vezes, acabam sendo culpabilizados por não saberem lidar com tal situação, conforme narrado por Elza, quando falou sobre seu desejo de desistir de estudar. As paixões tristes assumem um lugar central na relação desses sujeitos com a escola.
Atitudes racistas e desigualdade de oportunidades geram afetações que levam a paixões tristes, estado em que não se dá a ação, ou seja, o sujeito se encerra em si mesmo, embotando a sua capacidade de enfrentamento. Isto impossibilita a constituição do comum e, por consequência, a emergência dos sujeitos políticos, uma vez que há interesses de classe em cena, quando numa sociedade se mantêm a desigualdade estrutural para a obtenção de lucros e privilégios.
Fazia-se necessário identificar quais afetações possibilitavam experiências capazes de produzir novos sentidos para os seus corpos, as suas histórias e, a partir daí, posicionamentos que os fortalecessem enquanto sujeitos políticos e revelassem a potência de ação presente entre elas/es. Nesse contexto, o sofrimento ético-político, gerado pelo racismo, e o seu enfrentamento viraram um dos pontos centrais de constituição do comum, materializado na iniciativa de Elza de propor um projeto para a diretora da escola em que o Bate Papo de 3ª fosse o responsável pela execução. No trabalho desta pesquisa, começava a se estabelecer uma conexão pelas afetações que provocavam paixões tristes, mas que, naquele momento, possibilitaram um comum, através do sofrimento ético-político vivido por todas/os do grupo.
Segundo Sawaia (2009), além de envolver as múltiplas afetações do corpo e da alma que mutilam a vida, o sofrimento ético-político pode ser um instrumento potente para experienciar o comum. A vivência do racismo, enquanto manifestação da desigualdade, tornou-se um ponto de conexão no Bate Papo de 3ª, possibilitando o surgimento de uma experiência do comum, relacionando-se à necessidade de união em busca daquilo que traga o bem para todos, no caso, o enfrentamento do racismo.
Para Ansara (2008), a construção de uma identidade coletiva e pessoal saudável para os negros é possibilitada pelo sentimento de pertença ao grupo racial negro, que gera laços de coesão e a revalorização de suas capacidades. Pensando na lógica de Espinosa, a constituição do comum seria uma possibilidade de enfrentamento do racismo, ou seja, de construção de um posicionamento ético-político em favor da igualdade racial, o que impacta tanto os sujeitos singulares quanto coletivos, negros e brancos. Porém, esse é um campo em disputa, já que há uma tensão social gerada pela disparidade dos lugares de privilégios. Há um embate entre forças instituídas e instituintes. De um lado, são criadas estratégias para a manutenção do status quo, no qual negros encontram-se numa posição de subalternidade interessante ao modus operandi de uma sociedade de classes e racializada; e de outro, a luta pela transformação das relações sociais, para se criar novos modos de vida, fundamentados na igualdade e na justiça social.
O projeto para a escola foi uma iniciativa de Elza que, após relatar as situações de racismo naquele contexto, procurou pela diretora e pediu o seu apoio. Esta concordou com a ideia, desde que Elza trouxesse uma proposta escrita. A escola, enquanto uma instituição, fez uma exigência formal para responder às suas regras instituídas de documentação de suas ações. É interessante observar que Elza foi responsabilizada por produzir um projeto escrito para que este fosse executado, algo que pode ser compreendido com uma reedição do racismo já que responsabiliza a vítima pela sua resolução.
A jovem, então, trouxe a demanda ao Bate Papo de 3ª e, conjuntamente, decidimos escrever o projeto com a participação de todos os 15 membros do grupo, com o objetivo de contribuir para a desconstrução do pensamento racista presente na escola. A potência de agir começava a aparecer, a partir das afetações provocadas pelo grupo, enquanto espaço de uma fala potente que rompia com as naturalizações das situações racistas vivenciadas, criando condições para a desalienação. Surgia uma força instituinte que irrompia, para questionar o papel da escola enquanto reprodutora das desigualdades raciais, ao mesmo tempo em que esta poderia ser ressignificada como o lócus de seu enfrentamento.
O primeiro dilema foi o foco do projeto. Segundo algumas/ns das/os participantes, alguns professores com os quais conversaram trouxeram esse questionamento sobre qual seria a questão central: para os profissionais, a dúvida era entre trabalhar o racismo que "atinge apenas uma parcela dos alunos" (sic), entendidos por eles, como apenas os negros, ou o preconceito no sentido mais amplo que envolve toda a comunidade escolar (por exemplo, citaram os alunos com deficiência). Foram necessários inúmeros debates sobre racismo e preconceito até o grupo chegar a uma decisão. Essa tensão, envolvida na escolha do tema, reflete uma encruzilhada entre enfrentar e trazer à cena o racismo, ou promover a sua diluição em um tema mais genérico que retira a potência do debate; demonstra uma compreensão do racismo restrita às agressões verbais no contexto escolar, encobrindo sua face mais perversa, enquanto sistema de opressão que nega oportunidades iguais às populações negras. E, também, como algo que afeta exclusivamente pessoas negras numa lógica dicotômica e não dialética, retirando o papel dos brancos na sua manutenção. Num dado momento, através de uma votação realizada pelas/os participantes do Bate Papo de 3º (todos os presentes no dia e nós, pesquisadores), o racismo foi o tema escolhido. Ao longo da construção do projeto, o grupo foi problematizando a opção feita e identificando a necessidade de se abordar diretamente o racismo.
O segundo desafio foi a escrita. Se, por um lado, o projeto escrito é um modo de a escola documentar a iniciativa, ter compreensão e segurança maior sobre a proposta das/os alunos, além de o ato de escrever, em si, ser capaz de trazer para o concreto aquilo que antes se dava no nível das ideias, por outro, escrever era uma dificuldade. Não era habitual para as/os integrantes do Bate Papo de 3º redigir, na forma de projeto. A lentidão, a rotatividade e o esvaziamento do grupo caracterizaram esse momento do processo grupal. A escrita despertava sentimento ambíguo, ora de possibilidade de enfretamento do racismo, ora da dificuldade de sustentar o discurso e as consequências de sua explicitação. É possível compreender a exigência da escrita pela escola como uma forma de perpetuação concreta do racismo, pelas barreiras criadas, fazendo mesmo quase desistir. A nossa presença enquanto profissionais de psicologia nesse momento foi importante, pois fortaleceu o grupo, instrumentalizando-os para a escrita, trabalhando os bloqueios desse processo, encorajando-os e sendo ponte com a escola.
As ausências, nessa fase, revelaram as dificuldades em lidar com a tarefa de escrever e, também, em trabalhar a temática no próprio grupo, pois trazia à tona o sofrimento a ser enfrentado, materializando-o em um documento que significava, ao mesmo tempo, afirmá-lo e enfrentá-lo. Algumas vezes, houve o questionamento no grupo de quais os efeitos a execução do projeto poderia trazer; foram acenadas tanto a possibilidade de sensibilizar pessoas quanto o temor de tornarem-se alvos mais visíveis do racismo. Havia o desejo e também o medo.
Esse movimento grupal pode ser compreendido na lógica do racismo institucional, que à luz de Werneck (2013), é analisado como uma falha institucional e coletiva de um órgão, em ofertar serviços qualificados as pessoas por sua raça e cor de pele. Os sentimentos de incapacidade e diferenciação gerados por tal desigualdade são mecanismos geradores de exclusão, subordinação e redução da capacidade de reivindicar direitos básicos, que por ora deveriam ser assegurados de forma universal e equânime.
Aos poucos, um texto coletivo foi produzido. A muitas mãos, surgiu a proposta: uma intervenção no espaço físico da escola com frases e imagens; uma roda de conversa mediada pelo Bate Papo de 3ª, com convidados que atuem ou militem na temática racial; uma história em quadrinhos a ser distribuída e a confecção de um documentário sobre a comunidade.
Não foi possível realizar o projeto no ano de 2018. Ao mesmo tempo em que a escola se mostrou aberta à iniciativa do grupo, a dinâmica escolar não era favorável à execução do projeto. Rosemberg (1998) aponta que as pessoas negras enfrentam diversas dificuldades no ambiente escolar, mesmo que em uma escola pública, sendo ainda compreendido como hostil e de precário acolhimento, evidenciado pela omissão a contribuição dos povos negros para a formação sociocultural do país, seja em aulas, ou livros didáticos. O instituído se fez forte, através das regras, do tempo, das atividades estruturadas e dos poucos espaços para a inventividade do projeto temático sobre o racismo.
Em agosto de 2019, realizamos o projeto na escola ao longo de três semanas. Na primeira semana fizemos a intervenção com as imagens e frases no pátio. Na segunda, duas rodas de conversa com todo o ensino médio, no caso, aproximadamente 150 alunos, com a mediação de um militante do movimento negro. E na terceira, a panfletagem das charges em todas as salas. O documentário ainda está em construção.
O grupo começou a questionar o quanto era difícil enfrentar o tema do racismo dentro da escola, algo naturalizado na maioria das vezes. O instituído na escola é o lugar de aprendiz dos alunos e não da abertura de espaços para que estes possam criar e, em certa medida, inverter a lógica, colocando-se como educadores. Porém, brechas foram criadas para que o tema pudesse vir à tona; provocações foram feitas à comunidade escolar como um todo, já que novos discursos que envolviam a desigualdade racial começaram a ser produzidos.
A temática racial começou a emergir no contexto escolar. Tupac contou que vem se tornando referência para alguns professores que querem conversar ou propor ações que envolvam o tema. Isadora relatou que aprendeu com a escrita do projeto, pois não tinha a noção de como se fazia isto. Tupac e Elza contaram que mudaram a postura diante dos colegas e que agora se defendem, de modo mais explícito, não aceitando "levar desaforo para casa". Jade, Sara, Julia e Luana mostraram interesse em realizar o projeto na escola da própria comunidade, que as atende até o 5º ano do ensino fundamental.
A escola apresentou-se como um espaço da disputa de narrativas: preconceito versus racismo, avanço versus recuo, a aceitação inicial da escola versus o adiamento da execução do projeto em função da limitação de tempo e da exigência de uma escrita formal, o desejo do grupo versus a reedição do racismo. Há uma tensão entre reproduzir ou enfrentar o racismo.
A intervenção psicossocial realizada inseriu-se nesse campo de contradições e disputas e o reproduziu, ora avançando na direção de práticas libertárias, ora retrocedendo e sucumbindo às forças instituídas e internalizadas no grupo. O cotidiano trouxe esses elementos reatualizados no pequeno grupo, como aponta Lane (1989), já que é na vivência diária que a desigualdade se manifesta e é possível adotar posicionamentos que podem contribuir para a autonomia, emancipação, solidariedade, ou para a submissão, a passividade e a alienação. Ou seja, pensar a vida como um todo em seu cotidiano, desde os acontecimentos simples até aqueles mais complexos, como o campo das relações sociais que contem em si, a dimensão política.
No grupo, os afetos provocados pela dinâmica das relações sociais e pelas situações surgidas no cotidiano da intervenção, tornam-se o ponto nodal a ser trabalhado. A constituição do comum através da afetividade gerada seria, então, o canal pelo qual os sujeitos políticos se tornariam mais potentes para enfrentar o racismo. As rodas de conversa produziram afetos que permitiram sair do silenciamento; falar daquilo que marca uma história de vida individual e coletiva e que produz um tipo de sofrimento específico e produzir caminhos possíveis para enfrentá-lo, ampliando a potência política singular e coletiva.
Considerações finais
O racismo estrutural está introjetado culturalmente e é perpetuado nas práticas institucionais e profissionais, sendo de difícil enfrentamento. A compreensão do espaço escolar demonstrou que as crianças e as/os jovens negras/os são afetadas/os, em seu cotidiano, por valores, crenças e padrões que tendem a provocar a perda da potencialidade de reconhecimento e pertencimento racial, provocando o deslocamento para o campo das paixões tristes e a diminuição de sua potência de ação.
Outra questão importante refere-se à compreensão da escola e das relações sociais nela desenvolvidas como reprodutoras dos diversos espaços da sociedade, que sustentam o racismo. Por outro lado, destaca-se a sua relevância social, enquanto possibilidade para o enfrentamento do racismo e a promoção de relações étnico-raciais mais igualitárias.
A intervenção psicossocial realizada mostrou que o sofrimento ético-político, causado pela vivência do racismo favoreceu a constituição do comum quando este pode ser compartilhado num espaço de segurança e abertura. Foi no comum e na compreensão da dimensão histórica do racismo que, através de múltiplas afetações, este pôde ser reinterpretado, adquirindo novos sentidos que fizeram emergir uma potência de ação, através do seu enfrentamento no contexto escolar, primeiro espaço de exposição pública, longe da família e da comunidade, e palco das contradições que envolvem a dimensão racial.
A participação da psicologia no combate ao racismo nas instituições é de inegável importância, uma vez que podemos viabilizar um espaço de reflexões e ações em prol do enfrentamento da questão racial. A persistência do racismo no país, pode ser pensada a partir das grades curriculares dos cursos de psicologia, em que este tema ainda é carente de pauta; na prática da psicologia, que por vezes insiste em reduzir os sujeitos a questões psíquicas e subjetivas de maneira individualista, sendo inadiável assumir o nosso compromisso com o combate ao racismo estrutural, compreendendo-o como um fracasso coletivo.
Alguns desafios surgiram ao longo do processo. Um deles foi a relação de dependência entre o grupo e nós, profissionais. As tarefas que ficavam para elas/es executarem, sem a nossa companhia, na maioria das vezes, não foram realizadas. Ou, quando aconteciam, nem todas/os participavam, em função de suas divergências. Essa era uma dificuldade para a sustentação do processo, em nossa ausência, bastante comum no trabalho dos profissionais nas políticas públicas. Fica a pergunta sobre qual é de fato o potencial transformador de uma intervenção tão datada no tempo. Faz-se necessário o investimento nas instituições que atendem de modo contínuo e permanente a tal comunidade para que ações de médio e longo prazo sejam planejadas e propiciem resultados mais duradouros.
Como sugestivos para os próximos trabalhos, salientamos a importância de estudos que compreendam a escola enquanto instituição preventiva, mas também ativa no processo de enfrentamento ao racismo, que analisem experiências exitosas e proponham ferramentas de intervenção neste lócus, no qual o aluno seja um agente ativo do processo. Também sobre como a psicologia pode contribuir com práticas antirracistas.
'Notas de fim'
1 Quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos (Ministério da Cultura, 2016).
2 Todos os nomes são fictícios.
3 A idade e série, apresentadas aqui, correspondem àquelas ao final do processo grupal que durou dois anos.
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Recebido em: 16/07/2019
Aprovado em: 30/12/2020