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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

TRADUÇÃO

 

A reabilitação de um paradigma perdido: a psicologia política(*)

 

The rehabilitation of a lost paradigm: political psychology

 

La rehabilitación de un paradigma perdido: la psicología política

 

 

Alexandre DornaI; Tradução: Mariana Luzia AronII; Mariana Rocha OliveiraIII

IIProfessor de Psicologia Social e Política na Universidade de Caen, França. Presidente da Associação Francesa de Psicologia Política. Diretor de "Les C@ hiers de psychologie politique (online) (www.cahierspsypol.st.fr)
IIPsicóloga pela PUC-SP, mestre em Psicologia Social pela mesma instituição, doutoranda em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, professora na UPM (Universidade Presbiteriana Mackenzie) / marianaaron.psi@gmail.com
IIIGestora de Políticas Públicas formada pela EACH-USP, mestranda em Estudos de Gênero no Instituto de América Latina da Universidade Livre de Berlim / mariana.rcho@gmail.com

 

 


RESUMO

Observamos uma grave crise epistemológica nas ciências humanas e sociais. As diversas disciplinas conflitam em múltiplas microteorias auto-reprodutoras. A falta de um paradigma comum dificulta abordagens multidisciplinares. Nesse sentido a reabilitação da psicologia política tem um papel unificador configurando-se como uma abordagem heurística transversal, onde variáveis políticas e sociológicas são compreendidas como um todo histórico e cultural. Além disto, a Psicologia Política é capaz de analisar com uma visão de conjunto os principais problemas da sociedade contemporânea e inaugurar novos campos de pesquisa sobre as debilidades democráticas e o congelamento das elites políticas.

Palavras-chave: Psicologia Política; crise, elites políticas.


ABSTRACT

Abstract We observe a serious epistemological crisis in the human and social sciences. The different disciplines conflict in multiple self-reproducing micro-theories. The lack of a common paradigm makes multidisciplinary approaches difficult. In this sense, the rehabilitation of political psychology has a unifying role, configuring itself as a transversal heuristic approach, where political and sociological variables are understood as a historical and cultural whole. In addition, Political Psychology is able to analyze the main problems of contemporary society with an overview and to inaugurate new fields of research on democratic weaknesses and the freezing of political elites.

Keywords: Political Psychology; Crisis, Political elites.


RESUMEN

Observamos una grave crisis epistemológica en las ciencias humanas y sociales. Las diferentes disciplinas entran en conflicto en múltiples microteorías que se reproducen a sí mismas. La falta de un paradigma común dificulta los enfoques multidisciplinarios. En este sentido, la rehabilitación de la psicología política tiene un rol unificador, configurándose como un enfoque heurístico transversal, donde las variables políticas y sociológicas se entienden como un todo histórico y cultural. Además, la Psicología Política es capaz de analizar los principales problemas de la sociedad contemporánea con una visión de conjunto e inaugurar nuevos campos de investigación sobre las debilidades democráticas y el congelamiento de las élites políticas.

Palabras clave: Psicología Política; Crisis, Élites políticas.


 

 

Original publicado: DORNA, A. (2004). La re-habilitation d'un paradigme perdu: la psychologie politique. Psicologia Política, 4(8),225-254.

Disciplina praticamente desaparecida do ensino universitário - sua reabilitação é indispensável num momento histórico que coloca um número considerável de questões sobre este assunto. É uma vasta área de estudo que está praticamente em situação de abandono; o que resulta na necessidade de reflexão, não só sobre a disciplina em si, que ainda tem contornos imprecisos, mas também sobre seus limites e suas relações com o conjunto dos conhecimentos em ciências humanas e sociais. De fato, o objetivo deste texto é traçar uma breve interpretação de suas principais questões e resumir de maneira prática os conteúdos teóricos já expostos.

Penso que é necessário esclarecer imediatamente um mal-entendido: a psicologia política não é a aplicação da psicologia social na política, é uma abordagem inteiramente à parte que se encontra à escuta do contexto social que atravessa nossa época.

 

O Impacto da Crise da Modernidade nas Ciências Humanas e Sociais (CHS)

A psicologia política faz sua renovação dentro de uma crise da modernidade que atinge todas as áreas. Uma série de perturbações provocam um novo tipo de impasse. O sufocamento progressivo do projeto político das luzes e o marasmo democrático estão envolvidos nesse processo. A sociedade está bloqueada devido a uma verdadeira colisão. Ao mesmo tempo, um vasto terremoto epistemológico atravessa as disciplinas científicas exatas e por ricochete atinge também o conjunto das ciências humanas e sociais. A fragmentação do saber é colocada em evidência pela multiplicação de questões deixadas sem resposta tanto pela ideologia liberal como pelo marxismo. De fato, as observações feitas pelos autores pós-modernos (especialmente Lyotard, Giddens, Habermas, Beck) cristalizam as controvérsias ainda mais antigas, como a famosa polêmica entre os filósofos (socráticos) e os sofistas.

Porém, é preciso reconhecer que a modernidade é vítima de um enorme efeito perverso. Ela se apoiou na ciência a fim de construir um projeto de sociedade vindouro, sem perceber, provavelmente, que isso resulta em sua própria desarticulação. A razão (re)descobe as zonas de incerteza, pois as "microteorias" funcionam com forças centrífugas, resultando no aumento exponencial das informações, tornando cada vez mais complexa a realidade estudada, além de impedir sua integração em um conjunto teórico coerente. A lógica explode devido à sobrecarga.

Esquematicamente, a situação é, a grosso modo, a seguinte: a pesquisa se tornou um arquipélago de "pequenos mundos", sem um paradigma unificador (macroteoria), um vasto terreno onde os pesquisadores e os experts (especialistas) cavam cegamente profundas galerias subterrâneas, para construir microteorias (às vezes bonitas) com a convicção de estar fazendo a boa ciência e na esperança de contribuir para o conhecimento geral. Cúmulo da perversão, a proliferação dessas microteorias conduz a uma (tal) massa de dados e a uma (tão) grande acumulação de informações que o tratamento do conjunto dos dados se revela impossível. Em suma, não há nenhuma macroteoria emergente. Disso resulta uma lenta e persistente perda de sentido, agravada por crescentes estratégias ideológicas de êxito institucional e pessoal, a experiências cada vez mais especializadas, que evoluem para rivalidades "microtéoricas" levando a querelas entre grupos fechados (ou laboratórios) baseadas em um fundo de ignorância mútua.

Um outro efeito perverso é visível: a multiplicação das técnicas (e dos dispositivos) é inversamente proporcional ao desenvolvimento de um quadro global de reconhecimento. Um físico, J. P. Levy-Leblond (Levy-Leblond & Jaubert 1975), lembra que nós vivemos, em matéria de ciência, sob a herança e as conquistas do século XIX e do início do século XX, o que vem depois é uma bricolage tecnológica. Porque se as ciências exatas conseguiram desenvolver uma tecnologia cada vez mais impressionante, as teorias científicas (no sentindo das leis gerais) não conseguem ultrapassar suas crescentes incertezas epistemológicas.

É a síndrome das "microteorias" que se desenvolve cada vez mais nas ciências humanas e sociais. Quanto mais elas se multiplicam (via experiências de laboratório), menos dispõe-se de uma teoria social explicativa compatível com a evolução vertiginosa do mundo. Em consequência, o conhecimento do homem se desintegra, se fragmenta e acaba por se transformar em conhecimento de nada, pontualmente e rapidamente desatualizado.

Por outro lado, esse paradoxo é reforçado pela intervenção dos políticos, os quais se cercam de especialistas fortemente influenciados pela síndrome das microteorias, que trazem uma visão parcial, porque técnica, desprovida de sensibilidade histórica e afetiva. Os políticos não gostam das teorias nem dos conhecimentos dos generalistas (tradição, cultura e psicologia), eles as julgam especulativas. Os homens do poder são muito pressionados pela urgência para conseguir se ocupar do que é importante. A elite política no poder se tornou muito amante do tecnocratismo. Não há mais grandes perspectivas nem grandes visionários.

Essa é a questão epistemológica que justifica novamente as disciplinas transversais, diante da dispersão dos conhecimentos gerais, em particular no domínio das ciências humanas e sociais, o que constitui uma das razões de fundo do retorno da psicologia política. Uma outra razão é a atualização da questão do sujeito e da subjetividade.

 

O retorno paradoxal da problemática do tema

Paralelamente à fragmentação das ciências sociais, uma transformação epistêmica ocorreu na valorização do tema e da afetividade. Diversos pensadores colocam um marco no retorno à subjetividade, com Foucault e as questões sobre o poder, Habermas e suas interpretações sobre a comunicação, passando pela reflexão de Dumont sobre o individualismo e o holismo, até a antropologia sacrifical de Girard, sem esquecer o brilhante pensamento psico-histórico-sociológico de Elias sobre a dinâmica do Ocidente.

Cúmulo do paradoxo, A. Touraine (1984), um dos mestres da sociologia contemporânea, se expressa em favor da atualização do assunto, até o ponto de colocar em dúvida a pertinência de sua própria disciplina mãe: a sociologia. Ele aceita claramente "a ideia de que a sociedade deve ser eliminada da análise da vida social" (sic). E acrescenta: "A crise da sociologia está em sua definição mesma.... O tempo das emoções, no sentido psicológico como no antigo sentido histórico da palavra, voltou... Nos falta romper com esse objetivismo ao qual estamos acostumados.... Hoje ocorre a passagem de uma imagem cosmocêntrica a uma imagem antropocêntrica da vida social....E enfim, não sem ambiguidade, Touraine exulta: "Essa ruptura com a sociologia clássica só é possível se nós cessarmos hoje de identificar o autor com suas obras, o sujeito com a história, se abandonarmos as visões épicas, sobre as quais estão fundadas as ideologias políticas que nos sufocam, para adotar na maioria das vezes uma posição mais romântica, para reencontrar o ator em sua prisão ou na solidão, ao invés de encontrá-lo no triunfo de suas obras."

Essas afirmações revelam uma surpreendente reviravolta. É preciso lembrar que a sociologia foi a nau capitânia do pensamento positivista. Assim, a posição de Touraine está longe de ser neutra, e provavelmente, sem premeditar, ela reabre a porta para o retorno da psicologia política.

Em consequência, a crise contemporânea da política coloca em evidência, de maneira brilhante, a importância de um paradigma perdido: o lado psicológico da cidade. No coração do debate se encontram as antigas noções de democracia, República, cidadania e Estado-Nação.

 

Compreender a psicologia política por suas próprias qualidades

Hoje, as grandes orientações que atravessam a psicologia política atual ilustram perfeitamente a dificuldade de lhe dar uma definição genérica, ou de lhe atribuir uma teoria comum. Porém, elas compartilham uma visão conjunta, apesar da heterogeneidade dos olhares (Dorna, 1998, 2001), marcada por uma sensibilidade ao mesmo tempo no âmbito da ciência e dos negócios da cidade, como os barulhos da rua, os movimentos de massa, os conflitos da sociedade, o engajamento dos cidadãos e a ação política em si mesma.

A psicologia política atual não se apresenta como um bloco, uma vez que ela exprime múltiplas preocupações teóricas e a observação de problemas diversos. É um mosaico, cuja coerência se descobre na implementação de uma abordagem transversal e na inclusão do processo histórico e cultural. É essencialmente um esquema heurístico, cujas diversas orientações já descrevi (neste livro).

Podemos nos surpreender? O modelo dominante é individual, sustentado pela ideologia liberal. O homem moderno é um ser idealmente autônomo, racional (cognitivo), independente e livre. A partir daí vem a hostilidade ou indiferença diante da coisa política. E a vitória planetária da democracia (representativa) está se associando ao fim da história e do político sob sua forma participativa.

É curioso que nenhum grande e sério debate foi organizado sobre esse assunto, por falta de interesse por parte de uma maioria de psicosociólogos, salvo algumas exceções: Billing, Martin-Baró, Ibañez. Porém, uma posição mais intermediária e pragmática se manifestou nos últimos tempos. Beauvois (1994) exprime esta posição nestes termos: "façamos seriamente a psicologia política, porque não a temos feito suficientemente. Somente então é que veremos se as questões que nos foram colocadas, a partir de nossa problemática, e as respostas provisórias que nós trouxermos, têm alguns benefícios úteis na cidade."

Assim, a questão continua aberta, mas com o mérito de ter sido colocada.

 

Os campos recentes da psicologia política

A vivacidade da psicologia política se mede pela profundidade da crise. A questão não é refazer o inventário dos incômodos e das representações (Dorna, 1998), mas apenas dar um breve parecer dos campos de estudo mais pertinentes hoje em dia, em especial: a memória coletiva, o discurso político, o neopopulismo, o carisma, o maquiavelismo e sobretudo o pano de fundo: a crise da democracia representativa. Existem outros campos que se desenvolvem passo a passo: a cidadania, a justiça, a corrupção, as mídias, as mulheres na política, a democracia participativa, as estratégias identitárias, o novo sindicalismo etc. Estes campos se referem a preocupações concretas das nossas sociedades e merecem toda nossa atenção, a fim de tentar resolver ou atenuar certas disfunções sócio-políticas que ameaçam o equilíbrio social.

Eu desejo evocar brevemente o escopo de cada um desses campos.

 

O primeiro campo: fazer o diagnóstico de crise da sociedade moderna

Esse é um vasto campo. Compreender as mudanças e as crises faz parte dos questionamentos da psicologia política. É preciso insistir num ponto: a crise atual da modernidade é tão profunda porque resulta de uma aglutinação de crises anteriores. Essa é uma das razões que explicam em parte a impotência do discurso político contemporâneo e o encolhimento da consciência cidadã. Por isso, é indispensável um diagnóstico o mais completo possível. A arte da análise necessita não somente de identificar os elementos em jogo e de delimitar as questões, mas sobretudo de propor uma visão do conjunto e uma estratégia de ajuste ou mudança.

Uma abordagem estrutural ainda não foi claramente considerada, salvo em um caso excepcional: no momento da ascensão do fascismo na Alemanha, com a criação do Instituto de Pesquisas Sociais em Frankfurt.

Para lembrar: a Escola de Frankfurt representa a admissão mais sistemática do desenvolvimento da psicologia política nos anos 30 na Alemanha. Foi o agrupamento, na urgência, de um número considerável de pensadores ao redor de um projeto de explicação do autoritarismo antissemita e fascista.

Os núcleos da reflexão são:

• Sociológicos-econômicos: o nazismo não é um acidente histórico, mas fruto de uma conjuntura precisa aos olhos do desenvolvimento do capitalismo monopolista.

• Políticos: o capitalismo monopolista encontra uma solução para suas contradições num regime autoritário fascista.

• Psicológicos: se a sociedade aceita o nazismo, descobre-se a razão na formação psicossocial dos preconceitos e da cultura.

É um trabalho teórico considerável e inacabado empreendido pela Escola de Frankfurt sobre o deslocamento do objeto de estudo econômico e político para o político, psicológico e o cultural. É uma tentativa de retomar uma abordagem crítica da sociedade no momento da ascensão do nazismo. Eu já abordei em outros lugares esse ponto. Mas, a retomada das minhas proposições é um fio condutor ainda válido para realizar o novo diagnóstico.

É importante lembrarmos de alguns elementos. A história das crises políticas trata dos períodos críticos (a etimologia é a mesma: discernir, decidir, julgar) entre dois pontos de equilíbrio. A crise é uma conjuntura que dá à luz ideias inovadoras e comportamentos extremos, mas também o estremecimento de regimes até então sólidos... A dinâmica e a energia das crises estão em relação direta com a ideia de que os homens são feitos a partir das consequências de suas ações. Aí é que o fator afetivo é decisivo.

O transbordamento emocional enfraquece a consciência; o indivíduo não consegue escapar da experiência imediata do perigo; o quadro perceptível (o grau de consciência) encolhe; o processo de integração das percepções (novas) e os mecanismos da coerência ficam mais rígidos. O episódio psicótico representa um caso extremo onde a separação entre a experiência imediata e a explicação evocada se torna brutal.

As obras recentes de Garzon e Seoane (1996) sobre os sistemas de crenças "pós-modernas" se enquadram nessa perspectiva. Elas renovam o estudo das mentalidades e da historicidade psicológica. Um modelo geral a partir de três dimensões (política, social e cultural) foi proposto. A dimensão política é o reflexo da vontade e da direção que os homens querem em um dado momento; a dimensão cultural corresponde a suas representações do mundo, e a dimensão social não é nada além da expressão de seus sentimentos.

Enfim, para melhor compreender o sentido e a erupção das crises, é prioritário não só atualizar certos temas (por exemplo, a submissão à autoridade, o modelo da personalidade democrática, a personalidade maquiavélica), mas ainda explorar a psicopatologia das situações, a liderança carismática, a experimentação dos comportamentos de contra-poder, examinar os métodos de educação cívica, os testes de coesão social, o conhecimento do ritmo político, o tradicionalismo sob suas diversas formas.

 

O segundo campo: a memória social em reconstrução

A memória coletiva é um dos mais ricos canteiros de que dispõe a psicologia política atualmente. Se suas fontes são antigas, Bartlett, Berr, Blondel, Halbwachs e outros, a atualização está em andamento e tece uma grande tela que engloba outras disciplinas que eram antigamente próximas, mas atualmente divididas pelas estruturas acadêmicas.

É o caso da França, nesses últimos anos, onde no quadro da psicologia social e clínica, numerosos estudos, Jodelet (1992), Rouquette (1994), Hass e Jodelet (1999), Kiss (1999), realçam de uma maneira muito pertinente o papel e o alcance da memória nos contextos políticos.

H. Arendt (1972) já tinha evocado uma vez, a propósito do processo de Eichmann, o significado da psicologia política, mostrando o funcionamento tecnocrático da máquina de matar do nazismo. Mas a análise de Jodelet (1992) coloca luz sobre o significado da memória dentro dos conflitos entre as próprias vítimas durante o julgamento de Klaus Barbie. Por um outro lado, o estudo monográfico de Hass (1999) articula finamente a memória coletiva com o processo identitário, em função dos traços históricos que impregnam a história da cidade de Vichy. O ensaio de Rouquette (1994) sobre a psicologia das massas reserva um bom lugar para a memória social, mas sem analisa-la diretamente. Quanto ao trabalho clínico-social de Kiss (1999) sobre a obediência contrária aos direitos humanos, ficam claros os processos da memória a partir das entrevistas com os "colaboradores", os torturadores, os criminosos de guerra e os ditadores.

Outras contribuições podem ser encontradas nas obras do sociólogo Namer (1987) e na obra de Halbwachs e as práticas comemorativas na França. O filósofo Debray (1998) propõe uma grade de leitura muito erudita sobre os "monumentos" como mediação da memória coletiva. O monumento esconde uma tragédia: é uma massa que tem valor pelo vazio, escreveu ele. É o jogo entre o esquecimento e o motivo. O parecer que ameaça não ser mais que um vestígio na falta de uma educação pública do sentido. A memória é uma questão de poder, tal como alguns a colocam hoje.

Por outro lado, é preciso insistir, a memória não é uma coisa. Ela é mutante, mas obedece a regras de transformação; ela é por vezes seletiva e cultural; ela incorpora as experiências afim de fabricar novas coerências a medida em que os acontecimentos ocorrem, se armazenam e se atualizam; portanto, um processo social e histórico. Uma "bricolage" de peças de origens diferentes dentro de uma nova coerência cultural.

Porém, a memória trabalha ao mesmo tempo para esquecer e para lembrar. Existe um tipo de solidariedade nos termos desde que os dados da memória não são fixos para sempre. A sinergia da memória se manifesta na relação entre o afetivo e a razão que existe no seio de uma história, de uma cultura e de uma sociedade. Mas, bem entendido, nada se passa sem conflitos. Quando o passado possui uma autoridade transcendente, o presente se reproduz, é a dimensão normativa da memória social. Mas o conflito é latente com aqueles que são atraídos pela mudança. É a dimensão inovadora, cada um se apropria do passado segundo suas releituras e suas inserções. Certamente, esse conflito não é inexorável: a tradição pode incorporar as inovações e vice-versa.

A tradição, escreve Thompson (1995), se refere a quatro elementos:

• A hermenêutica: existe um quadro perceptivo com o qual os indivíduos e as massas explicam a realidade e dão sentido ao presente em função das experiências passadas;

• O normativo: é o magistra vitae. A tradição dá a definição do que é lícito, tolerável, aceitável ou não dentro de uma dada situação.

• O identitário: a tradição colabora para proteger a identidade social, para dar especificidade e para fornecer uma "estratégia identitária" (Cuche,1999);

• A legitimação: a memória dos mitos fundadores é fonte de legitimidade do poder tradicional.

Essa grade se torna útil na análise das "correlações de forças" entre as dimensões normativas e inovadoras, mas é um erro crer que a segunda substitui claramente a primeira. A sociedade tende a consolidar uma memória oficial dentro de uma nebulosa de lembranças que se tornaram símbolo e quase invisíveis a olho nu. Palavras perdidas, então? É aí que a atualização das memórias pode constituir uma estratégia de resistência, pois a história oficial acaba, apesar dela ou por causa dela, por se tornar uma fonte alienante de dominação.

Este é o lugar onde a memória pode ser percebida como um espaço estratégico de resistência. A presença de um fenômeno "carismático" (Dorna, 1998) no seio de uma sociedade em um momento de crise, ou quando o afetivo e a lógica do político se confrontam, é o momento propício para a atualização da memória inovadora.

Para ilustrar, brevemente, essas afirmações, é útil recorrer a uma situação atual largamente veiculada na mídia: a erupção do exército zapatista de liberação nacional (EZLN) no México e o surgimento de um líder carismático (o sub-comandante Marcos), cuja palavra, a perseverança e a estratégia midiática marcam uma reviravolta na história política desse país. Esse é um caso verdadeiro para a escola de estudos de memória coletiva política. Aqui, a relação sujeito-história-memória-política se mostra a céu aberto.

O EZLN, cujo nome evoca a figura mítica de Emiliano Zapata, possui uma história (popular) e um discurso (político) onde a memória da nação indígena é a peça principal. É um desafio para a cultura já retificada e para a ideologia no fim da história que exprime a necessidade de redefinir os termos da relação entre democracia e o neoliberalismo, a ideia de sociedade civil como sujeito histórico e a questão do indigenismo e do destino dos oprimidos Estranha mistura de tradição e de modernidade, de culturalismo e de cosmopolitismo, de figuras revolucionárias e de uma utilização surpreendente das mídias. Existe aí uma versão transversal das principais questões ideológicas atuais e uma vontade de superar os impasses da mundialização. Desse modo, o discurso zapatista faz uma crítica à democracia (representativa) dominante e à política institucional oligárquica que se tornou uma "gaiola de ferro" para o povo. O zapatismo (re)introduz a questão da subjetividade dentro da política e o papel (psicológico) da história dentro da política contingente.

A memória se ilustra por imagens fortes. Por exemplo, Marcos a cavalo com armas a tira colo é uma imagem que a memória mexicana atualiza, pois traz à memória a figura de uma personagem legendária: Zapata. Se Marcos remete à figura de Zapata, este remete à figura do general Morelos (herói da independência do México), que tem raiz, por sua vez, na memória bíblica.

A história é um encadeamento de lembranças feito de imagens, das quais o poder e a política se utilizam, seja para apagá-las, seja para utilizá-las como bandeiras ou ritualizá-las. Daí a observação clássica: o futuro é apenas o reflexo da forma como o passado é tratado.

Finalmente, parece útil, a fim de demonstrar mais uma vez a necessidade de retornar à questão de fundo da memória política, colocada pela psicologia política: reconstruir um olhar do todo. Não somente no sentido da re-introdução do assunto, em que todos concordam, mas de debater com aqueles que tendem a fragmentar o tema da história.

O importante trabalho dos historiadores sobre a memória dos locais o ilustra perfeitamente: para fazer isso, eles fragmentam a unidade nacional e propõem implicitamente uma política descentralizada. É a micro-história: a história feita de acontecimentos, que se opõe à história como um processo.

Em suma: não há mais uma história geral nem uma identidade comum, mas uma fragmentação. É uma maneira sutil de apagar uma história passada para estabelecer ligações inéditas com o passado a serviço de um presente. As ressonâncias da memória não são inocentes nem sem perversões possíveis.

 

O terceiro campo: o discurso político

O mais clássico dos meios políticos é o discurso. É um campo inesgotado e inexaurível. A pesquisa na França é rica, imensa e periodicamente reexaminada, com resultados ainda muito limitados.

As obras sobre o discurso político se multiplicaram nos últimos anos e as referências universitárias o testemunham (Bellenger, 1992; Brechon, 1994; Breton 1996; Cotteret, 1973). Mas é dentro do quadro da "comunicação contratual" (Dorna, 1995; Dorna & Ghiglione, 1990; Ghiglione et al., 1986, Ghiglione et al. 1989), que se pode constatar os avanços mais significativos. O discurso é um processo dialético de co-construção da realidade; a realidade social não é um dado que a linguagem traduziria, copiaria e veicularia, mas uma realidade que se constrói (se renova) pelas transações semânticas que as pessoas atualizam em suas interações sociais. O postulado de base se resume assim: toda palavra pretende-se persuasiva. Outros estudos (Argentin, Ghiglione e Dorna (1990), Dorna (1991), propõem como complemento um quadro de análise gestual do discurso, a fim de identificar o impacto persuasivo dos gestos numa situação política real e direta.

Essas pesquisas de laboratório permitiram identificar alguns postulados teóricos:

• A palavra política faz parte do paradigma da influência e da persuasão social;

• O discurso político visa um objetivo: fazer com que o outro aja no sentido desejado pela fonte;

• Existe ainda dentro do processo de persuasão discursiva uma questão independente da importância da mesma;

• Existem padrões estratégicos e lógicas persuasivas;

• A persuasão discursiva, especialmente na política, está articulada por uma lógica do provável e dos contratos de comunicação em certas situações a dados momentos.

Trognon e Larrue (1994) participam na pesquisa sobre o discurso político com outra ferramenta metodológica: a análise conversacional no quadro da linguística pragmática. É a palavra de afrontamento num debate público ou quando da troca de pontos de vista entre militantes. Tanto em um caso como em outro se opera uma co-construção do referencial, onde detecta-se as trocas sucessivas. Tudo se passa dentro do quadro das regras conversacionais e é a regra de alternância que se revela uma peça chave da estratégia discursiva.

Os discursos políticos, analisados por diversos métodos, mostram todo o peso semântico das palavras e a força persuasiva da retórica dentro do quadro das estratégias argumentativas. É assim que os grandes debates na televisão oferecem os momentos mais tocantes da manipulação pelas palavras. O afrontamento entre Mitterrand Giscard (Labbé,1963) ainda é um clássico. O vocabulário de Miterrand, apesar de sua riqueza léxica, não se diferencia do dos outros homens políticos de sua época. Ora, é seu carácter aristocrático que o fazia parecer temível e lhe permitia, por meio da escolha de figuras, guardar uma distância ao mesmo tempo educada e fascinante. Também era temível a máquina retórica de J. Chirrac: as trocas ágeis do debate Chirrac-Fabius (Ghiglione et al., 1989) é um dos exemplos para se guardar nas antologias de análise do discurso político. É nesse discurso que a maestria e o peso da técnica retórica de Chirac prevaleceu sobre o discurso monótono e tecnocrático de Fabius.

Fica claro que o conjunto dessas obras faz do discurso somente o lugar de articulação entre a língua e as condições (sociológicas) da produção discursiva. Assim, o discurso político é vazio de seus outros componentes, especialmente de emoção. Certamente, o reconhecimento de uma intencionalidade permanece, mas seu tratamento puramente cognitivo não leva em conta a parte afetiva. A tarefa resta então inacabada. Existe, evidentemente, uma nova pista para o trabalho empírico. Uma questão a verificar.

 

O quarto campo: a crise da democracia representativa

Alguns temem o estudo da crise política moderna. Longe de ser um problema teórico, é uma questão eminentemente prática. É a aceitação passiva de um consenso flexível que reforça o status quo e o deslizamento em direção a um modo de existência onde a vontade cidadã é substituída pela vontade de uma nova casta de experts e de tecnocratas firmemente incrustrados em todas as esferas de decisão, marcando assim a subordinação do político (interesse geral) ao corporativismo dos interesses particulares. As instituições políticas são duramente atingidas, algumas (a Justiça, o Parlamento, o governo, a educação, a República) não estão mais em acordo, com relação no seu funcionamento, nem com os princípios fundadores nem com a demanda atual. Não é claro que a atual Constituição francesa congela ainda mais a ação política. A deriva se tornou visível inclusive num campo em que a reflexão parecia parada: o Estado de direito. Pois, é evidente (Guéraine, 1998) que a influência crescente do poder constitucional sobre a sociedade vem acompanhada de um mal-estar intenso. O consenso legal democrático rói o interior do regime democrático. É preciso se lembrar que o declínio da vontade política marca o fim da integração dos homens na sociedade política? O excesso de direito ameaça matar o direito de fazer política sem intermediários. É nesse contexto que diversas obras, dentro de áreas muito variadas (trabalho, prisões, hospitais, escolas, municípios), retratam uma pesquisa sobre as muralhas da democracia participativa onde misturam ao mesmo tempo questões de Direitos Humanos e os princípios do contra-poder. O elemento-chave desse movimento de recarga social continua a ser na tradição francesa (Duchesne, 1998) a noção de cidadão.

O sistema democrático representativo moderno (Manin, 1995) é uma sábia alquimia de regimes políticos contraditórios. Um compromisso entre o autoritarismo monárquico e o liberalismo utópico. E, se a abordagem moderna continua incerta, a antiga está ainda enraizada. A razão é simples e a forma, complexa. Diferentemente do mundo de ontem, o de hoje corre em direção ao futuro sem dar tempo de terminar o presente nem de se lembrar do passado. Os pontos de referência na escala individual diferem daqueles da escala coletiva. A percepção é próxima, mas virtual. Querer perceber o mundo em sua globalidade contraditória é uma carga psicológica muito pesada. Donde seu caráter seletivo, no qual uma de suas consequências é a desintegração dos valores comuns. Desse modo, moral e política se procuram em um jogo de esconde-esconde polêmico que conduz a impasses. São impasses onde o ideal grego de virtus se transformou em simples representação no sentido cênico do termo e da vontade em resignação. Miopia ou renúncia? Não é a ausência de lucidez que caracteriza os homens políticos em situações críticas, mas a ausência de coragem.

O enfraquecimento dos valores da modernidade e o desmoronamento das instituições democráticas torna cada vez mais legítimas as práticas de manipulação e a demagogia. Também, a ambiguidade está de volta à democracia, mas com um elemento suplementar e auto-mutilador: a estagnação. É uma democracia tal que está produzindo uma República sem republicanos e uma elite maquiavélica e técnica.

 

O quinto campo: a ambiguidade maquiavélica do homem democrático

A questão das elites ainda está no coração dos impasses e o maquiavelismo no raciocínio dos homens de poder. Le Bon não designou Maquiavel como o primeiro dos psicólogos da política? Mosca e Pareto não mostraram os mecanismos da circulação das elites e suas práticas suicidas?

É claro, a reflexão teórica sobre o maquiavelismo ganhou amplitude: cinco séculos de polêmica se chocaram. A psicologia política encontra no maquiavelismo (Dorna, 2001) um antigo campo cognitivo que faz ligação com a crise do político.

A representação que os homens comuns fazem da situação de crise atual evoca um perfume de poder maquiavélico. O poder político republicano (oriundo dos valores da modernidade) é cada vez mais percebido como uma oligarquia tecnocrática, e paradoxalmente, com a ajuda de antigos estereótipos com os quais o maquiavelismo vulgar é julgado: cinismo, manipulação, engano, arrogância, frieza, desprezo, linguagem estereotipada da propaganda política , e sobretudo em razão de Estado. A partir de algumas questões (im)pertinentes em relação ao olhar das elites modernas: e se o progresso não fosse progresso? E se a evocação dos direitos fosse um grande disfarce bem orquestrado por uma elite maquiavélica? E se a ausência de moral política dos governantes fosse diretamente responsável por um sufocamento jurídico que parece esvaziar de sentido a ação política em proveito dos líderes?

Questões que remetem ao pretendido amoralismo do pensamento maquiavélico. A ambiguidade das situações de crise torna a moral inalcançável. Não é nesses momentos, em que vale tudo, que surgem os personagens variados e pró-ativos por todos os lados? Esse pensamento não é a expressão de um sentimento profundo e de vazio coletivo nos períodos de mudança de paradigmas e de grande mutação? Esse pensamento não seria a interiorização da explosão das individualidades em que a vontade de poder parece sem medida? O mérito de Maquiavel consiste provavelmente em ter observado com perspicácia, num contexto tumultuado, as relações dos homens políticos com o poder, e desses mesmos homens com outros homens, e iluminou assim a zona de sombra que cobre as paixões humanas e deixa (muito) sutis os raciocínios. Enfim, a sociedade está vivendo uma transformação da moral no seio da crise da democracia representativa moderna?

A pesquisa empírica fornece informações que podem aumentar ainda mais o total de informações a esse respeito. Christie e Geis (1979) são os primeiros a estudar o maquiavelismo de um ponto de vista experimental. Suas pesquisas se estendem sobre um longo período que começa nos anos 60. No começo, Christie se interessa particularmente pelo sujeito manipulador cujo comportamento se revela muito diferente daquele de indivíduos comuns. Seu perfil é bem claro: um grande desprendimento a respeito das convenções sociais, assim como uma relação pouco afetiva com outrem. Daí se origina a hipótese de que o indivíduo manipulador tire o máximo de benefício de um comportamento racional estratégico. Após um programa de experiências, a elaboração de uma escala permite identificar o tipo maquiavélico e as situações nas quais sua influência é a mais atuante.

Algumas experiências do quadro de pesquisas psicossociais e políticas da Universidade de Caen corroboraram os resultados obtidos pelos experimentalistas americanos, apesar de não se tratar de replicações idênticas. Algumas já foram publicadas (Desmezières & Lehodey, 1994; Dorna, 1996, 2001; Reboul, 1994;), mas seus objetivos se concentram em novas situações. Por exemplo, o estudo das relações entre o posicionamento político dos sujeitos e seu grau de maquiavelismo se prova estatisticamente significativo. Esquematicamente os resultados indicam que o maquiavelismo político se estabelece desse modo:

Certamente, as diferenças são mínimas, mas elas existem. Existem pistas para explorar mais em detalhe. Uma outra enquete procura precisar a capacidade persuasiva dos sujeitos maquiavélicos e não maquiavélicos. Ainda que os resultados não permitam concluir, os dados brutos indicam que "dentro da situação explorada" (redigir um texto sobre a semana de 32 horas, e em seguida defender a ideia diante de alguém), contrariamente ao esperado, os não maquiavélicos pareciam mais convincentes que os maquiavélicos. É uma situação onde os grandes maquiavélicos são menos motivados, mas a questão não é definitiva. Em contrapartida, outros elementos se somam: se a riqueza de vocabulário nos diversos textos foi considerável, o número de palavras não maquiavélicas foi mais importante. Por sinal, há algumas diferenças na estrutura de seus discursos. Os maquiavélicos têm uma estrutura mais marcada por verbos factuais do que por verbos declarativos, eles personalizam mais os seus discursos, utilizam mais modelagens. Mais originais são duas observações qualitativas: de um lado se convence melhor seus pares, de outro, é mais convincente quando se parte de uma posição crítica.

Por outro lado, se o conjunto de resultados visa a existência de um sistema de pensamento, é ao colocar em evidência o peso da ambiguidade das situações que o torna mais efetivo. O homem maquiavélico não é um frio computador astuto e sem escrúpulos, são certas situações de interação que reforçam esses comportamentos. À saber: as relações face a face, pouco estruturadas (ambiguidade reina), e quando as regras e os meios não são definidos previamente. Ainda mais quando as situações são de uma grande intensidade afetiva, a performance dos não maquiavélicos se deteriora.

O perfil da personalidade maquiavélica parece confirmado. O que a torna temível é a neutralidade emocional e o gosto pelas relações de força. O homem maquiavélico sabe mensurar o poder das situações com grande domínio de si mesmo. De fato, o grande maquiavélico não se deixa abalar pelas limitações, convenções morais ou culturais do seu próprio meio. A capacidade de perfurar as fraquezas de outrem, a calma, a falta de engajamento ideológico, lhes são vantajosos. Daí a aura de cinismo e a lógica fria que o envolvem no seu poder. A ação dos maquiavélicos circunscreve na ordem estabelecida das coisas.

Em suma, o maquiavelismo ronda as situações de crise. Como ninguém consegue identificar o que vem no futuro, ele é como um peixe na água. Um sentimento de falta de sentido se apropria da ação cidadã. O medo da liberdade, segundo a famosa fórmula de Fromm, continua sendo a síndrome do nosso tempo. Há aí uma situação que a ambiguidade transforma num viveiro de maquiavelismo, no qual os grandes comem os pequenos, no silêncio e na impotência das massas órfãs de um projeto de outra sociedade.

Enfim, o maquiavelismo das elites é um sintoma. Quando a democracia não responde mais às aspirações profundas das massas que a aclamaram, então a decepção é grave. É um congelamento súbito.

O "reinado" de F. Mitterand pode se prestar para uma interpretação desse tipo, mas aqui não é o lugar para desenvolver o caráter democrático-maquiavélico do personagem, nem de analisar o que vem antes ou depois do processo político que lhe é próprio; basta apresentar a hipótese.

Na verdade, as crises democráticas são verdadeiras "caixas de Pandora". O espectro da revolta pode ser lido pelos índices socioeconômicos, mas ainda melhor na ansiedade social, a violência latente, a apatia, o individualismo desenfreado, a fascinação do efêmero. Há também uma busca mítica por certezas e verdades palpáveis.

Entre essas questões, o populismo oferece nesse caso uma porta de saída calorosa, e um impulso para desbloquear as situações de difícil solução.

 

O sexto campo: carisma e populismo

Formidável velho campo em expansão, o leadership, ou "liderança" é uma noção capital que atravessa toda a problemática do homem e da vida. É o vetor psicológico fundador de todas as organizações que compõem a estrutura social. Não é por acaso que a questão da liderança se encontra no olho do ciclone da crise global da modernidade. O ideal de autonomia do homem moderno se decompõe bem como o sistema lhe dá sentido. O conformismo se casou com o individualismo e o status quo torna a situação tensa entre uma massa à espera de um salvador e uma elite cada vez menos em contato com a realidade concreta. É nesse quadro que o carisma se junta ao populismo sempre latente nos sistemas democráticos.

Como reconhecer a síndrome populista?

A atitude populista (Dorna, 1999) é a constituinte de toda política democrática: pois não há discurso político sem referência ao povo. É um fenômeno de transição eruptivo e quase efêmero, que se desenvolve sob a pressão de uma crise generalizada que se tornou crônica. É o dilema das massas populares diante da imobilidade de uma aristocracia no poder, que se considera proprietária de seu lugar.

Uma constatação se impõe: o populismo está associado seja ao fracasso dos regimes autocráticos, seja ao fracasso dos regimes democráticos corrompidos. É a falta de liberdade tanto quanto a desilusão da igualdade que empurram as massas na direção de outras questões.

O mais pungente e, ao mesmo tempo, o mais insondável da realidade populista: o fundo emocional que a estimula. O cimento não é sociológico, mas psicológico, o verdadeiro pedestal sobre o qual os outros componentes (sociológicos e econômicos) se instalam. A surpreendente vitalidade que libera o populismo é, em última análise, mais uma campainha de alarme do que uma explosão violenta capaz de levar tudo em sua passagem. Mas, o pano de fundo é uma reação de raiva e desconfiança em relação às instituições.

O populismo contemporâneo, mutatis mutandis, ganhou novo impulso com a sociedade de consumo e os meios de comunicação modernos. Aí está uma perversão marcante das atitudes populistas de outros tempos. É preciso então ter cuidado com as falsificações, pois o neo-populismo pode parecer com o neo-fascismo, apesar de ser um erro estratégico confundi-los. A mídia, principalmente a televisão, multiplica em imagens o foco do discurso, a forma emocional se sobrepõe ao discurso refletido.

Háum apelo para o povo. O populista se dirige a todo o povo, mas sobretudo à aqueles que não tem poder, que se submetem em silêncio ao beco sem saída da miséria. O apelo aos mitos fundadores está presente nesse discurso, essa é a força e raison d'être. Os símbolos desempenham um papel de reconhecimento, fortemente acelerado pela esperança de um retorno ao equilíbrio de antes.

Para melhor compreender, movimento populista sempre se encarna em uma das figuras mais clássicas de líder, o homem providencial carismático. O estilo do líder conta muito: a forma conduz à questão de fundo. É o jogo da sedução e do savoir-faire, a fineza para se esquivar, o contato direto e caloroso. A dimensão anti-depressiva não está ausente. O líder carismático usa a retórica, mas raramente a demagogia. Se a impostura ameaça o chefe demagogo, a desmesura acompanha o líder populista.

O líder populista emerge de uma maneira abrupta, aparentemente de nenhum lugar, sem aparelho estruturado nem doutrina elaborada. É um self-made man. É popular tanto pela sua abordagem quanto pela sua linguagem, ele encarna a tradição da terra e a inovação técnica com uma feroz vontade de contestação. Ele não é um profeta, muito menos um César, mas alguém que atravessa a atmosfera social e política como um meteoro imponente e um discurso estrondoso.

O líder populista se distingue de outros tipos carismáticos Dorna, 1998) pela sua maleabilidade pragmática e habilidade emocional exuberante com a qual ele fertiliza o tempo para a mudança. A atitude é aquela de um grande irmão próximo e que procura fazer contato direto e dialogar com todos. A comunicação é horizontal e calorosa. As trocas são abertas, vivas, diretas. É a imagem viva do homem disponível, simples, que aparece sem grandes afetações e cálculos.

Alguns pesquisadores pensam (Barbuto, 1997; House, 1992; Rondeau, 1986) que o líder carismático assume um papel de transformação. Quatro pontos são evocados:

• a inspiração: o líder incita os membros do grupo a se excederem para o êxito do conjunto;

• a consideração: o líder age como um mentor para aqueles que precisam de ajuda para se desenvolver;

• o encorajamento: o líder estimula novas maneiras de alcançar a mudança de crenças e valores;

• a identificação: o líder representa a encarnação de um projeto coletivo e a adesão do maior número de pessoas.

Por outro lado, o líder carismático é definido essencialmente a partir de suas relações com a emoção da fala. El possui o controle de suas emoções ao mesmo tempo que desencadeia fortes emoções. Não é um traço de caráter, mas uma forma de saber, saber que se aprende e se desenvolve mesmo tardiamente. (Goleman, 1995). É necessário lembrar que a lógica da síndrome neo-populista é de natureza afetiva. O discurso explicativo puramente racional não é suficiente. Ainda pior, ele induz a erros de diagnóstico e negligência, por falta de conhecimento, os dados subjetivos, ou seja, as verdadeiras questões de uma sociedade em crise.

Nada substitui numa argumentação o apelo ao exemplo vivo. Se nós tivéssemos evocado na introdução a figura de Berlusconi, outros também poderiam ser identificados. Tratá-los como epifenômeno seria um erro oriundo da falta de conhecimento do pano de fundo neo-populista que atravessa o mundo. Existem outros, a figura de Berlusconi é apenas um dos exemplos europeus. Dar uma olhada ao redor pode ser útil. O que pensar do neo-populismo carismático de Hugo Chavez e da recente tentativa de golpe de estado da qual ele foi objeto?

Todas as condições de um neo-populismo estavam reunidas quando da tumultuosa chegada de Hugo Chavez à presidência da Venezuela em 1998. A recente tentativa de expulsar Chavez do poder e a reação popular que o restabeleceu em sua cadeira são uma prova suplementar do caráter carismático de sua liderança.

A reviravolta da situação venezuelana coloca novamente a questão das causas e das formas do populismo, cuja história é longa e complexa. Mas as transgressões e os desafios da "mão invisível" se espalham como uma mancha de óleo em um contexto de aquecimento global no planeta.

Chavez encarna em seus país, de maneira paradigmática, a renovação e o renascimento midiático do neo-populismo. Jovem coronel em 1992, depois de um golpe abortado, ele se tornou o símbolo da causa bolivariana (obstinado mito de uma América Latina autônoma e unificada) e o porta voz de um discurso liberador. Não se pode esquecer que ele também é graduado em Ciências Políticas na prestigiosa Universidade Simon Bolivar. Nenhuma surpresa ao observar que seus primeiros atos políticos foram em favor de uma luta aberta contra o establishment e a corrupção, associados à crise estrutural do país. Enfim, uma vez presidente, seu programa de governo o conduz a levar para votação várias leis sobre a desapropriação de terras improdutivas e o controle da indústria petrolífera.

Recapitulemos: esse exemplo, face ao constrangimento conceitual, permite identificar alguns sinais de reconhecimento, a fim de melhor capturar as características da questão populista e suas manifestações carismáticas. Disso podemos tirar três conclusões:

Primeira conclusão: o populismo não é um simples movimento de massa, mas a resposta das massas à ação (julgada corajosa) de um homem carismático. O estilo do líder conta muito pois a forma conduz à questão de fundo. É o jogo da sedução e do savoir-faire, da fineza para se esquivar, do contato direto e caloroso. A energia sendo contagiosa, a dimensão anti-depressiva do carisma não está ausente. O líder carismático desposa a retórica, mas raramente a demagogia e, se a impostura espreita o chefe demagogo, a excessividade acompanha o líder populista.

Segunda conclusão: a efervescência social não é a característica principal do populismo, mas a vontade feroz de ruptura. O cimento não é sociológico, mas psicológico, o verdadeiro pedestal sobre o qual os outros componentes (sociológicos e econômicos) se instalam para formar um novo mundo imaginário.

Enfim, a terceira conclusão: o apelo populista se dirige a todo o povo, a todos aqueles que sofrem em silêncio o impasse e a miséria. O apelo aos mitos fundadores está presente nesse discurso, essa é sua força e razão de ser. Os símbolos desempenham um forte papel de reconhecimento.

Por outro lado, é preciso insistir no contexto: o populismo sempre emerge associado a uma situação de crise societal. Sua significação se dá quando o funcionamento do Estado se tornou incompreensível para o povo e a classe política culpada do confisco sorrateiro do poder. Isso acompanhado de uma exaustão cultural e ideológica, de uma falta de confiança no futuro e uma dose letal de conformismo. A coesão social (nacional) deixa de ser um baluarte contra o processo de desintegração e contra a ação corrosiva do imobilismo das instituições. De onde advém a sensação de envelhecimento. Na realidade, existe uma ausência de projeto comum. É o encadeamento de três fatores: a decepção, a frustração e a espera. A crença no governo se desfaz e o futuro assusta. A dúvida se transforma em silêncio político cúmplice e em individualismo estreito. Existe um sentimento, difuso e contraditório, por ordem e por mudança.

Em suma, o neo-populismo não anuncia o fim do sistema, nem o começo de um outro, mas a decadência da governança democrática.

Para voltar ao caso de Chavez, nos encontramos diante de uma das múltiplas experiências atuais de recomposição de forças políticas institucionais no mundo. Se os partidos de esquerda e de direita se decompõem em um liberalismo gerenciador, movimentos de resistência encarnam a forma de remakes populistas inesperados. A questão neo-populista se tornou, hoje, o sintoma político da crise da democracia representativa.

Pode parecer ingênuo se referir a Pascal para relembrarmos que a lógica da razão derrapa sem a visão da lógica do coração. Mas, incontestavelmente, é aí que se encontra o calcanhar de Aquiles da ciência política clássica, e mais, das elites tristes no poder, presas pelas algemas da democracia e da calculadora mecânica do pensamento único. A psicologia política encontra aí uma se suas razões de existir.

 

O sétimo campo: a cidade como centro da insegurança

A cidade é geralmente o centro de numerosas representações associadas à política, assim o estudo deste fenômeno se tornou um campo para a psicologia política. Para os responsáveis da famosa Escola de Chicago, a cidade é um "estado da alma" (R. Park), tanto é que a matriz psicológica urbana marca profundamente as mentalidades e os comportamentos de seus habitantes.

Cada um sabe que a política é o resultado da urbanização. A raiz etimológica de cidade (cité) e política é a mesma: polis. Dessa forma, todas as cidades têm uma história política. O urbano gera representações afetivas, comportamentos estratégicos, personalidades "citadinas", emoções que aterrorizam ou encantam. A cidade é atraente e repugnante e produz estilos de vida contraditórios.

É preciso lembrar da importância sempre concedida pelo poder político ao desenvolvimento do espaço público na cidade¿ Isso faz parte da legitimação do Estado pois a memória coletiva das massas se alimenta disso permanentemente. Existe na cidade, no meio dos jardins e à sombra dos monumentos uma verdadeira agenda histórica de identidade política dos povos, de seus heróis e mártires, de suas batalhas, e a idealização de grandes projetos, mas raramente a lembrança de grandes fracassos.

Por outro lado, no fim do século XIX, a cidade (as megalópoles e mais particularmente as periferias) é vista sob a ótica do perigo e da insegurança: o sentimento de ameaça permanente se traduz em uma demanda cada vez mais forte de medidas repressivas. A literatura psicológica sobre a síndrome dos "loucos delinquentes" está na base das interpretações políticas ao final do século XIX. Hoje, a questão da segurança se tornou o centro e ao mesmo tempo obstáculo dos discursos políticos.

A ideologia política se alimenta das cenas da vida cotidiana das cidades: o barulho, a promiscuidade, a sujeira, as doenças, o vício, a desordem, a fusão cultural, o anonimato, e a marginalidade, mas cresce igualmente a partir de outros fatores positivos: a mudança, a velocidade, intercâmbio, animação, tecnologia, entretenimento e equipamentos esportivos e culturais. Ninguém ignora que o gigantismo das cidades se tornou ao mesmo tempo um símbolo da gestão política e vitrine da ambiguidade intrínseca à modernidade. Singapura, México, São Paulo, Nova Iorque são cidades que estão aí para nos lembrar da potência e da arrogância do poder.

O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas em Nova Iorque combina em um mesmo ato político as múltiplas representações contraditórias da urbanização, da ideologia e do sentimento de insegurança.

 

O oitavo campo: a economia política e suas relações com a psicologia

É preciso dizer que esse campo está em plena evolução, à procura de autonomia funcional. Se a velha questão do poder político é representada por um antigo tríptico muito antigo, cujos elementos são representados por uma figura triangular em movimento rotativo, a economia política introduz novamente o psicológico, mas de uma maneira equivocada com a fórmula do homo economicus. Pois, aqui, a questão psicológica gira ao redor do líder num dado momento. Lembrete: todo poder (comando) tem um rosto.

A história dos processos políticos e de seus regimes ilustra perfeitamente a complexidade da interação de seus componentes. Alguns autores clássicos postularam uma circularidade eterna da estrutura do poder. Porém, sem voltar às brigas ideológicas, parece útil situar novamente um quarto componente do poder, que progressivamente caracteriza de forma determinante o conjunto, no qual a particularidade é de sempre permanecer à sombra, apesar de em nossos dias sua presença estar em evidência: o sistema econômico.

 

 

Se nessas últimas décadas houveram múltiplas tentativas para criar uma psicologia econômica (Albou 1884, Katona 1963; Lassare 1995), praticamente ninguém cuidou de suas ligações com os regimes políticos. Alguns quiseram introduzir uma aproximação com o conceito de "necessidade", mas a iniciativa se transformou em um simples pensamento positivo. Nem os economistas, nem os psicólogos chegaram a elaborar um conceito comum. O esforço é epistemológico. Seria necessário retomar o diálogo (subjetivo-objetivo) proposto por H. Berr e alguns de seus discípulos, principalmente Simiand, no quadro de uma teoria sintética. E sobretudo sem esquecer a obra de G. Tarde (1902) que já traz justamente o título de "psicologia econômica". Ele denuncia nesse curso no Collège de France, o erro de falta de conhecimento da natureza "eminentemente psicológica das ciências sociais, sendo a economia política apenas um ramo" (sublinhado por nós). Mas contrariamente a esse desejo, a economia política se situou fora do campo das ciências humanas e sociais para se tornar uma técnica.

É por isso que o "vazio" ainda persiste. A psicologia política é capaz de preencher esse "vazio", com a condição de exceder a simples utilização de métodos psicossociológicos para estudar os comportamentos de "consumo".

Para alcançar isso, seria necessário a reabertura dos antigos campos epistemológicos que reforçam a divisão de cada disciplina. Pois a falta de diálogo e de intercomunicação entre as disciplinas humanas e sociais contribuiu fortemente para seu próprio esgotamento, sob a forma de microteorias autônomas.

 

O nono campo: as estranhas ligações entre religião, psicologia e política

A questão da relação onipresente da religião com o conjunto dos fenômenos sociais, políticos e psicológicos é óbvia. Todos os autores clássicos concordam e a história é testemunha. Colocar essas relações dentro do quadro atual, quando a empresa religiosa é efêmera no Ocidente, depende de uma reflexão mais atual. O crescimento do islamismo no mundo e sua característica terrorista (atentado de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque) são fatos em que o amálgama é incômodo, mas não menos pertinente.

Sem querer evocar os clichês, largamente veiculados pela imprensa, as reflexões de alguns sociólogos e cientistas políticos tais como Barber (1997), Huntington (1996) mostram a importância contingente da questão religiosa nos nossos dias. O islã é a ponta de um iceberg, o reavivamento religioso se encontra no coração da transmutação cultural, do desconforto da sociedade moderna e da crise política da democracia representativa.

Voltando ao tema da religião, é preciso lembrar a hipótese de seu papel na organização social, nos primórdios da humanidade, e nos períodos de crises profundas (a Idade Média no Ocidente ainda é um paradigma). Utilizamos a figura abaixo para mostrar a interação das grandes representações de poder, e no topo da pirâmide, a ordem "política" é substituída pela ordem religiosa no sentido teocrático.

 

 

Sem reunir as conclusões do ensaio de S. Huntington (1996), prestar atenção no eventual retorno da repressão religiosa é uma atitude pura. A sociedade ocidental saiu de um momento de guerras de religião, embora a virulência e a duração do conflito da Irlanda do Norte nos deveriam fazer pensar melhor. Aliás, a separação do Estado e da Igreja ainda é um voto piedoso em um Ocidente profundamente marcado pela tradição judaico-cristã.

O forte despertar do Islã faz parte de uma longa série de eventos que mostram a fragilidade dos valores laicos e o encolhimento das posições materialistas, científicas e racionalistas.

O retorno da religião na política - sob suas diversas formas - faz parte da crise que atravessa há mais de um século a cultura dita ocidental. Devemos insistir no fato de que se trata de crise de "sentido" mais do que uma crise de "verdade"? Aí existe um grande terreno vazio, anteriormente ocupado bem ou mal por aquilo que alguns ainda chamam de "sagrado", quer dizer a relação psicológica do homem com o cosmos. Questão antiga, mas jamais realmente ultrapassada, que encontra um lugar nas novas relações que a religião constrói com a política através da reconversão religiosa dos antigos países comunistas, a visão providencial da ideologia liberal de G.W. Bush, ou ainda o engajamento dos islamistas no terrorismo político.

Como explicar esse renascimento religioso? São múltiplas as respostas. Spengler já havia falado no início do século XX sobre a "decadência do Ocidente" após o impacto da modernização e da tecnologia sobre as estruturas tradicionais, os traumatismos afetivos e sociais, da fragmentação do homem moderno, e das necessidades daí decorrentes em volta da busca de uma nova identidade em um mundo sem referências. Em suma, é uma reação em cadeia à laicização da sociedade, o relativismo cultural e moral, o individualismo e a solidão das massas. As consequências são uma reafirmação dos valores canônicos de ordem, disciplina, solidariedade de grupo e de coerência psicológica.

De alguma forma, a religião toma o lugar da ideologia de emancipação política e o nacionalismo confessional, toma o lugar do cosmopolitismo revolucionário produto das revoluções modernas. A força da transfiguração do religioso nos revela um fato surpreendente: o retorno da religião atinge todas as camadas sociais, principalmente nos países ocidentais: os setores urbanos, os imigrantes, os jovens e alguns intelectuais decepcionados com a modernidade.

É impossível então, agir como se esse campo não existisse. Os psicossociólogos e o psicólogos experimentalistas esboçam audaciosamente posições evoluídas em matéria de religião, salvo algumas exceções. É preciso se colocar ao lado da sociologia clássica e dos estudos em ciências políticas para retomar os traços de uma tão longa história e de uma volta tão pouco esperada, apesar dos sinais existentes há algum tempo.

 

O décimo campo: as relações entre o estado da ciência e a prática política

A influência do modelo das ciências exatas sobre as ciências humanas e sociais está corroída. São numerosas vozes que se pronunciam para uma revisão da questão.

A fragmentação das ciências humanas e sociais (CHS) na qual detectamos uma das razões do retorno da psicologia política e da tarefa de se criar uma nova interdisciplinaridade coloca um problema ainda maior: a crise do enfoque científico e dos modelos produzidos pela modernidade é responsável pela ausência de um projeto alternativo de sociedade?

A crise da modernidade atinge todas as áreas. É uma explosão cujas consequências são políticas. O marasmo democrático responde - na nossa opinião - ao sufocamento do projeto humanista e racionalista da época das luzes. De fato, as CHS se encontram no olho do furacão. Como não perceber que a fragmentação do saber nas CHS e a multiplicação de microteorias deixam sem resposta as grandes questões da sociedade desses dois últimos séculos.

Na realidade, a época contemporânea atravessa uma crise aguda de falta de síntese, cujo sintoma é a perda de sentido coletivo e de um horizonte teórico. O futuro é considerado subjetivamente e de uma maneira incerta e indecifrável. A ambiguidade embaralha as pistas, inverte as perspectivas e fragmenta a visão de mundo introduzida pela modernidade. O século das luzes obscurece. A percepção de seus grandes princípios fundadores (a racionalidade, o universalismo, o humanismo e a laicidade) perturba-se e a realidade se faz efêmera.

A sociedade atual é percebida consequentemente como mais complexa e seu processo de evolução pouco gerenciável. Os quadros de compreensão de suas raízes, a relação entre sociedade e indivíduo, cultura e política, se encontram profundamente alterados e além disso desconhecidos. Por um lado, se a sociedade moderna se encontra em uma nova fase de globalização, a transformação das relações humanas e das relações de produção modifica as mentalidades tanto quanto os contornos da civilização. De fato, nesse contexto, o modelo democrático mostra seus limites, curiosamente, no exato momento no qual ele começa a se impor na escala mundial.

De fato, a sociedade se tornou reflexiva, autocrítica e global, mas a sociologia da modernização está desenvolvendo um fatalismo negativo e comportamentos ao mesmo tempo mais competitivos e individualistas. Mudou a natureza das relações sociais e das expectativas psicológicas. Consequentemente, a abordagem das CHS não escapa a essa evolução geral.

Se uma tal incerteza atinge o domínio da experiência individual e o domínio das instituições coletivas, a questão é pertinente não somente aos governos, mas igualmente às ciências, tanto "naturais" quanto "sociais". Certamente a questão que se refere às ciências sociais não é nova, mas ela apresenta novamente dois problemas_ um evocado nos anos 60 por Snow, sobre a separação progressiva da cultura científica (dura) e da cultura literária (suave); o outro, um balanço paradoxal da produção do conhecimento em ciências sociais: a síndrome das "microteorias". Quanto mais elas se multiplicam (via experiências de laboratório ou de trabalhos puramente empíricos), menos se dispõe de uma teoria social explicativa compatível com a evolução vertiginosa do mundo. Em consequência, o conhecimento se esmigalha, se fragmenta e termina por se transformar em conhecimento de nada. Existem duas políticas do saber que os próprios políticos estão despedaçando: a atitude do especialista cada vez mais legitimada pelos poderes, é muito parcial, pois está munida da sensibilidade da história. Em contrapartida, a atitude do generalista corresponde melhor à urgência de levar em conta o conjunto. Trata-se de reverter ou reequilibrar a tendência à micro especialização e a não comunicação do saber que daí resulta. Uma maneira de contemplar esse enfoque consiste em reconciliar a razão e a emoção, a subjetividade e a objetividade, bem como a vontade de reduzir a distância entre as abordagens qualitativas e quantitativas. Para ilustrar a tarefa, abaixo está um esquema (provisório) das variáveis, considerando as análises das percepções da interação social e política.

 

Figura 3

 

Esse esquema (um simples quadro a ser revisto), introduz novamente três dimensões, na nossa opinião, negligenciadas pela psicologia social e pelas CHS, quando elas de debruçam sobre a pesquisa de busca de informação da realidade construída pelos homens, a saber: a cultura, a história e o tempo. Os elementos que chamamos de "antecedentes" são meio de ação para o hic(aqui) e nunc(agora), da mesma forma que as variáveis chamadas de expectativas (consequências percebidas pelos indivíduos) permitem contemplar o grande quadro onde se situa o processo psicológico das mudanças políticas.

No fundo, nossa abordagem se refere a uma visão do conjunto e à cooperação transversal dos conhecimentos oriundos do campo das CHS, a fim de encontrar a matriz original. Eis uma questão de uma heurística psicopolítica para observar os fenômenos em movimento, e as interações dos comportamentos humanos que podem vir a ser histórica (com suas continuidades e rupturas), sem fazer da racionalidade um sistema fechado, nem aplicar um conhecimento único e insuperável.

 

5- Em busca do tempo recuperado

Antes de concluir, provisoriamente, a utilidade da psicologia política se encontra na construção de um projeto heurístico no domínio das ciências humanas e sociais, onde o núcleo é a questão psicopolítica, e sobre o questionamento dos problemas "in situ" que atingem o contingente da sociedade contemporânea em sua história e em seu contexto cultural. Existe matéria para novas pesquisas, capazes de diminuir as relações concretas entre moral, ciência e política. A natureza complexa do universo político está aberta nesse caso para o exame rigoroso das atitudes e dos comportamentos, sob a condição de sair do quadro estreito dos resultados experimentais de laboratório e de uma reflexão por demais especulativa. A psicologia política propõe uma alternativa ao mesmo tempo à fragmentação dos conhecimentos científicos e à ambiguidade da pesquisa. Aqui (me) parece sugestivo lembrar uma reflexão quase romântica de Moscovici (1988): "uma pesquisa, por mais modesta que seja, começa por um gesto de indignação". É o coração que dita seu comportamento, mas a fórmula pode também ser invertida na tradição da racionalidade dos antigos: "uma indignação começa por uma ideia, por mais modesta que seja, de pesquisa-ação".

Emoção ou razão? Indivíduo ou massa? Essa é a dualidade imperativa do pensamento ocidental moderno. Mas, contrariamente à escolha excludente da razão pura, é em uma teoria da alma da cidade, numa época ainda não completamente terminada, que a ultrapassagem do paradigma cartesiano está se efetuando. Isso também vale para o individualismo liberal furioso que paira sobre o conjunto das ciências humanas e sociais contemporâneas.

 

Referências

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Recebido em: 28/12/2018
Aprovado em: 22/04/2019

 

 

* DORNA, A. (2004). La re-habilitation d'un paradigme perdu: la psychologie politique. Psicologia Política, 4(8), 225- 254.

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