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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Mediação audiovisual e território: cenas migrantes em um percurso de formação

 

Audiovisual mediation and territory: migrant scenes in a formative path

 

Mediación audiovisual y territorio: escenas migrantes en un camino de formación

 

 

Allan Henrique GomesI; Kátia MaheirieII

IProfessor Adjunto na Universidade da Região de Joinville - SC lecionando no curso de Psicologia e atuando como docente permanente no Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE- -UNIVILLE). Doutor em Psicologia (PPGP/UFSC) com mestrado realizado no mesmo programa. Graduado em Psicologia pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Integra o Grupo de Pesquisa em Políticas e Práticas para Educação e Infância (GPEI) e coordena o projeto de pesquisa-intervenção: Percurso de Formação e Trabalho Docente no campo da Desigualdade Social (PERFORMA/UNIVILLE). Professor no curso de Psicologia da Associação Catarinense de Ensino - ACE. Membro do GT ANPEPP Psicologia, estética e arte. Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), Joinville, Brasil / allanpsi@yahoo.com.br
IIGraduada em Psicologia pela UFSC, com mestrado e doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Fez estágio pós doutoral em Educação na UNICAMP; em Psicologia Social na Universitat Autónoma de Barcelona (ES); e em Psicologia Social na PUC/SP. É professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP). É pesquisadora Produtividade do CNPq, atuando no Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política, onde desenvolve trabalhos de pesquisa e extensão voltados a estética e política em diferentes contextos sociais. Foi editora da Revista Psicologia & Sociedade de 2008 a 2011 e foi editora geral da Revista de Ciências Humanas (UFSC) de 2013 a 2019. Atualmente é editora geral da Revista Psicologia Política (2020-2023). Foi membro da Comissão Qualis Periódicos da CAPES 2015-2017 e membro da Diretoria da Associação Nacional de Pesquisa e Pós- -Graduação em Psicologia (2018-2020). Suas investigações são na área de Psicologia Social, com ênfase em estética, música, política, movimentos sociais, ações coletivas e políticas de assistência social. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil / maheirie@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de um encontro de pesquisa- -intervenção com trabalhadoras do Sistema Único de Assistência Social, participantes de um percurso de formação com ênfase na mediação audiovisual. A audiência e discussão de um documentário tematizando a cidade-território de atuação das trabalhadoras possibilitou uma análise inspirada nos pressupostos de Lev Vigotski e Jacques Rancière. Em termos de resultados, pode-se destacar que o encontro em análise está ligado aos encontros anteriormente produzidos no percurso formativo. O que se destaca deste quinto encontro de mediação audiovisual é processo denominado de "desinformação", que significa decompor o documentário na discussão desde as afetações e experiências das participantes espectadoras, especialmente, as vivências de migração. Neste sentido, o artigo tensiona questões raciais na produção da memória da cidade. Por fim, considera-se que a mediação audiovisual mobilizou um processo de significação da cidade e reflexões sobre questões históricas e territoriais.

Palavras-chave: Políticas públicas; Território; Mediação audiovisual; Percurso formativo.


ABSTRACT

This article presents the results of an intervention-research meeting with workers from the Sistema Único de Assistência Social (Brazilian Unified Social Assistance System), participants in a formative training course focused on audiovisual mediation. The audience and discussion of a documentary on the working city-territory of the workers allowed an analysis inspired by the assumptions of Lev Vigotski and Jacques Rancière. In terms of results, it can be highlighted that the meeting under analysis is linked to the meetings previously produced in the training course. What stands out in this fifth audiovisual mediation meeting is a process called "disinformation", which implies in breaking up the documentary into the discussion of the affections and experiences of the spectator participants, especially the migration experiences. In this sense, the article stresses racial issues in the production of the city's memory. Finally, it is considered that audiovisual mediation mobilized a process of signifying the city and reflecting on historical and territorial issues.

Keywords: Public policies; Territory; Audiovisual mediation; Formative path.


RESUMEN

Este artículo presenta los resultados de un encuentro de investigación intervención con trabajadoras del Sistema Único de Asistencia Social, participantes de un camino de formación con énfasis en la mediación audiovisual. La audiencia y discusión de un documental sobre la ciudad-territorio de atuación de las trabajadoras permitió un análisis inspirado en los presupuestos de Lev Vigotski y Jacques Rancière. En términos de resultados, se puede resaltar que el encuentro bajo análisis está vinculado a los encuentros previamente producidos en el camino de formación. Lo que se destaca de este quinto encuentro de mediación audiovisual es el proceso llamado de "desinformación", que significa descomponer el documental en la discusión a partir de las afectaciones y experiencias de las participantes espectadoras, especialmente, las vivencias de migración. En este sentido, el artículo enfatiza cuestiones raciales en la producción de la memoria de la ciudad. Por fin, se considera que la mediación audiovisual ha movilizado un proceso de significación de la ciudad y reflexiones sobre cuestiones históricas y territoriales.

Palabras clave: Políticas públicas; Territorio; Mediación audiovisual; Camino formativo.


 

 

Introdução

Este artigo compõe uma pesquisa-intervenção em Psicologia, que teve a hipótese de que a mediação audiovisual poderia ser uma estratégia potencializadora para um percurso de formação com os sujeitos da pesquisa, que são trabalhadores/as do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), especificamente da proteção social básica, uma modalidade que atua no fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e tem na dimensão territorial uma de suas ênfases socioassistenciais.

O SUAS foi pensado em um princípio descentralizado, com oferta de serviços em bases territoriais que expressam maiores demandas para o atendimento socioassistencial. O desdobramento deste princípio traduz-se com a implantação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), um equipamento com a oferta de serviços que visam a proteção de famílias e indivíduos, tais como o Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Também compõem as ações do CRAS alguns programas de transferência de renda, entre eles o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Esse conjunto de ações exige uma "lógica de trabalho em rede, articulado, permanente e não ocasional, no reconhecimento da realidade local, na sua complexidade, nas suas brechas, nas suas possibilidades de alterar o que está posto" (Alberto, Freire, Leite, & Gouveia, 2014, p. 151).

Portanto, com a Política Nacional de Assistência Social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004) novos conceitos e perspectivas começaram a ser incorporadas aos olhares dos/as trabalhadores/as do SUAS. É neste sentido que o audiovisual se tornou uma ferramenta privilegiada para os encontros com trabalhadoras destes serviços, pois, além de apontar para a possibilidade de estratégias inovadoras no trabalho com grupos, também o audiovisual pode fazer emergir discussões sobre a dimensão territorial. Pensando nisto, elegemos para o encontro com estas trabalhadoras, somente filmes produzidos na cidade de Joinville - SC. A cidade está localizada no litoral norte catarinense, com população estimada em 583 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018).

A expressão audiovisual foi emprestada aqui para designar filmes de curta, média e longa-metragem que tiveram como propósito exibir alguma história, ficcional ou não, e que possuem algum reconhecimento no circuito audiovisual da cidade. Este texto tem como objetivo analisar aspectos significativos da expectação e discussão relativa ao documentário escolhido por um grupo de trabalhadoras do SUAS em um percurso formativo que teve como ênfase a mediação audiovisual. O filme Do Cais ao Mercado (Tobal, 2010) retrata o centenário do mercado público de Joinville/SC.

 

Percurso Metodológico

O percurso formativo durou cinco meses e teve ao todo sete encontros, cada um deles com três horas de duração e gravados em câmera de vídeo com autorização por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A proposta de uma formação com ênfase na mediação audiovisual (Gomes, 2016), foi oferecida pelos pesquisadores à Secretaria Municipal de Assistência Social de Joinville - SC como um projeto de extensão universitária.

A audiência do documentário Do Cais ao Mercado aconteceu no quinto encontro com a participação de nove trabalhadoras nas dependências de uma instituição de ensino superior, local de trabalho de um dos pesquisadores. No primeiro momento do encontro foi projetado o filme e, depois, foi realizado um tempo de diálogo mobilizado pela audiência.

O processo de expectação seguido de uma roda de conversa pode ser caracterizado como grupo de discussão na pesquisa, pois "constituem uma ferramenta importante para a reconstrução dos contextos sociais e dos modelos que orientam as ações dos sujeitos." (Weller, 2006, p. 246). Ou seja, contribuem para o compartilhamento e a discussão no acontecimento do grupo/encontro, mobilizando falas e reflexões que individualmente não seriam cogitadas. Nesta proposta não foi preparado roteiro de entrevista, os pesquisadores realizaram questões ao grupo mobilizadas no encontro, perguntas motivadas por falas e assuntos que surgiram na discussão do filme.

Para uma compreensão da integralidade do percurso formativo, produzimos uma síntese dos procedimentos disparadores em cada um dos sete encontros, situando objetivamente a mediação audiovisual no contexto de produção das informações - quadro 1. Na fase de análise das informações produzidas no percurso, tratamos o material em uma perspectiva indiciária, ou seja, buscando nos detalhes e nas minúcias compreender as relações, os sentidos e os movimentos do campo, a saber, os passos do percurso (Ginzburg, 2007; Goes, 2000).

Com uma primeira escrita dos encontros elaborada e a transcrição integral em mãos, permitimo-nos deslocar o olhar para detalhes que marcaram o percurso. Escolhemos trabalhar com a montagem da cena na pesquisa, uma proposta metodológica que "consiste em eleger uma singularidade aonde as condições de possibilidade tentam se reconstruir a partir de uma exploração de todas as redes de significações que se tecem ao redor dela2." (Rancière, 2014, p. 99, tradução nossa).

As informações que foram escolhidas para integrar as análises e, com isso, montar as cenas da pesquisa, são aquelas que evidenciam a intervenção espectadora em pesquisa, ou seja, indicam o modo como o documentário sofreu uma decomposição no grupo de discussão. Dessa forma, a montagem das cenas de pesquisa apresentadas nos resultados e discussões, foram refletidas no processo de análise considerando as relações entre mediação audiovisual e território.

Uma cena de pesquisa não pode ser uma ilustração e nem ter a finalidade de comprovação conceitual. Ela é em si uma diversidade de problemáticas que em uma dimensão microssocial retêm efeitos de uma esfera universal. Assim, nos resultados e discussões constam algumas citações do campo, recortes de falas das participantes da pesquisa. Estas citações não são tratadas como sentidos particulares, mas compartilhados e relativos às questões que perpassam à cena migrante e seus desdobramentos no trabalho socioassistencial.

 

Resultados e Discussões

Indícios da necessidade de apropriação do território

Antes de refletir sobre os efeitos e as reverberações da expectação do documentário Do Cais ao Mercado, serão descritos alguns detalhes que indicam no percurso de formação, certa demanda das trabalhadoras pela audiência de filmes relativamente históricos.

No segundo encontro quando apresentamos para as trabalhadoras os títulos de obras que havíamos mapeado no circuito audiovisual da cidade, mediante a escolha delas, assistimos História de Joinville - o projeto (Porto, 2010). Assisti-lo foi uma vivência interessante na medida em que elas identificavam lugares da cidade e também se divertiam com as situações do próprio enredo do filme. No dia do encontro não atentávamos ainda, o que significava esta escolha delas por uma obra que sugeria exibir a história da cidade. Contudo, no processo de análise foi se percebendo que assistir a um filme que protagonizasse Joinville era uma necessidade de apropriação da cidade. Ao final da exibição uma delas pergunta: "e cadê a história da cidade?".

Neste mesmo dia, quando foram apresentados os títulos de obras identificadas como produzidas na cidade, algumas trabalhadoras já indicavam a vontade de assistir Do Cais ao Mercado. Depois, no quarto encontro, quando listamos obras para uma expectação mais detalhada de um filme produzido em Joinville, este documentário foi lembrado por diversas trabalhadoras e combinamos que iniciaríamos o quinto dia do percurso assistindo esta obra.

Do Cais ao Mercado - um século de histórias (Tobal, 2010), apresenta fatos históricos sobre o mercado público de Joinville. Tem duração de 26min, foi dirigido por Henrique Tobal Neto e realizado com apoio do Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura - SIMDEC e em parceria com uma historiadora.

Apesar do investimento na pesquisa histórica, do ponto de vista técnico o documentário se apresenta como uma narrativa plenamente linear. O narrador acompanhado de uma trilha sonora orquestrada e harmoniosa, descreve cronologicamente uma série de eventos e curiosidades sobre o mercado. A sonoridade da voz e dos instrumentos é somente interrompida pela participação de outros sujeitos que ajudam a contar a história.

A entoação do documentário que combina harmoniosamente a música ao fundo e a voz em off, fazem quase passar despercebidas questões dos depoimentos e outros fatos que permitem desconfiar que a história do mercado poderia ser contada em outras versões. Então, apesar de um estilo de vídeo bastante comum, com curiosidades e fatos cotidianos que ajudam a desvendar a história de um espaço central da cidade, o documentário apresenta de modo mais amplo, uma história de Joinville.

Mediante aquilo que foi assistido, as participantes foram trazendo cenas de suas histórias pessoais, especialmente duas trabalhadoras com maior tempo de vida na cidade, inclusive a infância vivida em Joinville. Foram tecendo suas memórias com a discussão relativa ao filme e, também, atendendo a curiosidade das demais integrantes sobre o passado da cidade. No processo narrativo, as demais participantes foram contando sobre suas vindas à Joinville e ali, foi-se percebendo como migraram para este lugar por conta do trabalho, na maioria dos casos, acompanhando algum membro familiar, pais e/ou companheiros.

Do ponto de vista histórico é necessário ressaltar que dois principais processos migratórios caracterizam a trajetória da cidade. O primeiro diz respeito ao contrato assinado em 1849 entre a Sociedade Colonizadora de Hamburgo e o casal de príncipes responsáveis pelas terras da província de Santa Catarina, posteriormente conhecida como Colônia Dona Francisca. Desde então, "à população luso-brasileira e negra juntaram-se, sobretudo, os germânicos (a maior parte alemães e suíços, além desses, noruegueses, austríacos, suecos, dinamarqueses, belgas e holandeses), franceses e italianos" (Joinville, 2017, p. 12)

O segundo processo está relacionado ao crescimento industrial da cidade nas últimas décadas do século passado, momento em que Joinville tornou-se a "Manchester Catarinense" - alusão à cidade de Manchester e seu apogeu econômico durante a revolução industrial - devido à expressiva oferta de empregos que mobilizou o fluxo de migrantes de várias regiões brasileiras. Nesse sentido, aos descendentes dos primeiros imigrantes, somaram-se pessoas de outras regiões do próprio Brasil (Gunlanda, 2020).

Esses processos migratórios produzem novas inscrições no corpo urbano, possibilitam diversos encontros, mobilizam inúmeras tensões e visibilizam múltiplas experiências que implicam diretamente os sentidos produzidos sobre a cidade. A partir desses encontros configuram-se modos de pensar e transitar na cidade, bem como produzir relações com os seus territórios.

Destes primeiros indícios que apontam para a dimensão territorial presente nas memórias das trabalhadoras, podemos supor que as relações entre migrações e territórios são inexoráveis e marcadas por um processo contínuo e complexo de significação das relações entre objetivação e subjetivação dos lugares vividos e habitados. Um dos sinais que aponta para esta miríade de sentidos pode ser lida nos desdobramentos da audiência do documentário, a começar, pelo tempo da discussão realizada neste encontro. No planejamento dos pesquisadores era desejado assistir com as participantes outras obras de curta metragem, como uma forma de ampliar o contato delas com a produção audiovisual de Joinville. Em virtude das tantas palavras compartilhadas e do diálogo fluído, não propusemos nenhuma outra exibição, porque nem mesmo o grupo pausou para um intervalo formal.

Documentário para desinformar: efeitos da presença do espectador

A história exibida no cinema pode ser compreendida como uma história do presente pelo tempo de sua produção e com isso, pelas questões que atravessam a realização de uma narrativa audiovisual sobre determinado objeto histórico, mas também, porque as relações entre história e cinema não podem ignorar a presença do espectador, notadamente, no modo como aqueles que assistem, veem a obra tomados pelas suas próprias histórias e contextos de vida. Assim, "essas narrativas, estabelecendo um tipo específico e recortado de organização do mundo, seriam todas, independentemente de serem puras fantasias ou baseadas em acontecimentos 'reais', recriações humanas" (Nova, 2009, p. 134).

A partir deste embasamento nas discussões que já permeiam as relações entre narrativas históricas e cinematográficas, ao conceber a desinformação como efeito da mediação audiovisual, não se dirigirá a análise para a fidedignidade das informações transmitidas no documentário. O argumento da desinformação aponta para os modos como as trabalhadoras decompuseram o documentário desde suas histórias pessoais, lugares, sentidos, experiências. Do Cais ao Mercado se transformou em material lapidável na expectação e discussão do grupo.

A construção cronológica do documentário que sequencia os fatos históricos com uma voz explicadora, ainda que por vezes sem a relação devida com as imagens em tons nostálgicos, expressa uma tentativa de instrução histórica. Uma das trabalhadoras assim o definiu: "parecia mais uma narrativa, com alguns documentos". Tecendo uma relação entre educação estética e o documentário em cena, lembramos a crítica de Vigotski (2003) sobre as tentativas de emprego da arte com o propósito de ensinar questões sociais. Assim, o formato cronológico e a disposição das informações deixam pistas generosas sobre o espectador presumido na obra.

Não estamos negando a existência de um espectador presumido no processo de criação artística (literária ou audiovisual), na realidade, o espectador é parte da obra desde a sua constituição (Bakhtin, 1992). A crítica está no modo como a obra - produto final - se lança ao público, o quanto ela intenciona oferecer de sentido ao espectador. Iniciativas desta ordem tomam a arte como um meio e não como um processo psicológico integral, pois definem de antemão o modo de participação e os conteúdos a serem apreendidos pelo espectador. Isto se conjectura pela forma didática e monológica de edição do filme, que expressa uma vontade de explicar e transmitir um significado linearmente organizado.

Estas reflexões também encontram suporte conceitual na obra O Mestre Ignorante, especialmente, quando trata do embrutecimento (Rancière, 2004). Este conceito refere-se aos efeitos da submissão de uma inteligência/vontade à outra inteligência/vontade no contexto escolar, mas pode ser pensado também no contexto do cinema. O embrutecimento pode significar o estabelecimento de uma pedagogia do filme, de uma compreensão a ser desvelada no plano de uma racionalidade onde o espectador aparece submetido ao explicador. Nestas ocasiões, o explicador (ou efeito explicativo) se sobrepõe aos espectadores, seguindo "a lógica da transmissão direta e fiel: há alguma coisa, um saber, uma capacidade, uma energia que está de um lado - num corpo ou numa mente - e deve passar para o outro." (Rancière, 2012a, p. 18).

A desinformação diz respeito às modificações de sentidos que uma obra pode sofrer em uma mediação audiovisual, inúmeras delas jamais concebidas pelo diretor/autor de uma obra. Estas alterações significativas indicam o que poderá se constituir como o campo imagético, que em nossa perspectiva, extrapola a visualidade projetada em uma tela: "a imagem não é o duplo de uma coisa. É um jogo complexo de relações entre o visível e o invisível, o visível e a palavra, o dito e o não dito." (Rancière, 2012b, p. 92). Este processo poderá colocar em cena também a história e outros aspectos constitutivos da vida e das experiências do(s) espectador(es).

No caso do percurso com as trabalhadoras, o documentário estava no acervo por conta do critério de obras produzidas na cidade. E apesar da crítica nos parágrafos anteriores sobre as formas didáticas que podem atravessar um filme, a audiência do documentário foi uma escolha das participantes, entre outros possíveis títulos. Além disto, a mediação audiovisual potencializou a expectação pela possibilidade de ir além da obra com as discussões no grupo.

Observamos uma questão conceitual e metodológica sobre a mediação audiovisual. O facilitador não pode estar identificado com a obra, isto quer dizer, ele não pode ter a temática do filme como uma intencionalidade sobre o grupo. Esta reflexão encontra suporte na censura que Vigotski faz aos usos da educação estética como um fim em si mesmo. No caso da mediação audiovisual, a crítica se estende à leitura interpretativa de uma obra na busca de um sentido original, da "explicação do que o autor quis dizer." (Vigotski, 2003, p. 227).

A educação estética e/ou a mediação audiovisual não pode propor uma função para o objeto artístico. Este talvez seja um dos princípios que nos apropriamos da obra de Vigotski, que já nos anos 20, compreendia que qualquer ensino que pretende fazer da arte um meio para o entendimento da realidade, acaba por subtrair em muito a potência de uma obra de arte.

Neste sentido, o processo de significação e recriação de uma obra, depende de, pelo menos, duas condições. Se por um lado (esta forma de exposição não pretende fragmentar as relações sensíveis de recepção audiovisual) o espectador depende das qualidades artísticas de um filme para transcender o visível da obra, por outro lado, a arte cinematográfica não se completa sem a condição ativa de recepção do espectador.

Esta hipótese, tem como pressuposto que diretor e espectador desfrutam de inteligências semelhantes, não há genialidade de um mestre explicador que busca pela obra transmitir uma realidade a ser percebida pelo espectador tal qual ele a esboçou. O que potencializa esteticamente uma obra é o material que ela recolhe da vida sem ter a pretensão de gerar um efeito exclusivo. Por isso, "na arte, a realidade está sempre tão transformada e modificada que não é possível fazer uma transferência direta do significado dos fenômenos da arte para os da vida." (Vigotski, 2003, p. 228).

Documentário e memória do território

Este encontro das trabalhadoras com o documentário foi marcado por uma tonalidade narrativa. Apesar das reflexões que foram feitas a partir do documentário, o que efetiva e afetivamente mobilizou o encontro foram os relatos daquelas que, embora migrantes, viveram a infância na cidade. É importante recuperar a notícia de que no encontro anterior não havia nenhuma participante que tivesse nascido em Joinville. Então, nos primeiros momentos após a audiência, fizeram um mergulho nas lembranças associadas aos espaços urbanos exibidos no documentário, juntando curiosidades do filme com inquietações pessoais. Este momento foi possível pela participação das trabalhadoras que chegaram a Joinville ainda quando crianças. Depois disto, emergiram relatos de quem chegou mais tarde na cidade e, com isso, as marcas pessoais deste processo migrante.

No trabalho de análise foi sendo possível compreender que não foi gratuita a insistência delas para assistir ao documentário. A vontade de ver Do Cais ao Mercado pode ser lida a partir daquilo que o título da obra sugeria para elas, ou seja, a existência de uma obra sobre um dado território e épocas diferentes da cidade, estava indicando a possibilidade de articular a história pessoal com as histórias de Joinville. Para sustentar conceitualmente a presença de indícios de uma dimensão territorial em um encontro de mediação audiovisual, ancoramo-nos em uma concepção de território não diminuída aos limites topográficos:

o território revela as ações passadas, já congeladas nos objetos e normas, assim como, as ações presentes, ou seja, as que estão a caminho de se realizar, capazes de conferir sentido ao que preexiste. As bases materiais e imateriais, historicamente, estabelecidas são apenas condições. Seu verdadeiro significado advém das ações sobre elas realizadas. O território usado é, por isso, movimento permanente. (Nascimento & Mellazzo, 2013, p. 84)

Portanto, nesta perspectiva geografia e história misturam-se, bem como as relações entre o coletivo e o particular no processo de produção da memória. Voltando ao contexto do percurso de formação, os fragmentos de histórias pessoais que contaram no grupo, indicam sobre os modos como significam o próprio pertencimento à cidade.

A palavra pertencimento entra aqui também denotando um sentido de propriedade, pois neste encontro, por conta daquilo que se foi disparando com a discussão/expectação, elas falaram de problemáticas que são sentidas não somente nos seus espaços de trabalho, mas atravessam também suas histórias pessoais. Estamos nos referindo a um conflito perpassado pelo processo migratório que habita o território-cidade Joinville, sobretudo das últimas quatro décadas. Trata-se da construção de uma rivalidade com traços étnicos e culturais denominada por alguns historiadores como germânicos versus migrantes (Coelho, 2011).

No encontro da pesquisa, em alguns momentos aparecem relatos que contemplam os dois lados da história, tanto de quem nasceu em Joinville, como também de quem migrou para esta cidade. Vejamos a primeira narrativa: "Porque quem é de Joinville se sente menos de Joinville. Porque assim, isso é real. O professor pergunta na sala: quem nasceu em Joinville? Uma pessoa levanta a mão [risos]. Aí tu ficas assim: pô, na minha cidade não tem joinvilense. ...porque quando eu era pequena a gente tinha isso: 'ah, eu vou ser amigo dela, porque ela nasceu em Joinville' [risos], e os outros, todo mundo não nasceu, todo mundo veio de fora".

Conforme apontado anteriormente, o crescimento da indústria é um dos principais fatores que justificam a constante chegada de novos moradores à cidade. Desde os anos oitenta "a questão migratória passa a ganhar importância para as explicações sobre as mudanças urbanas de Joinville" (Coelho, 2011, p. 120). Neste cenário de crescimento industrial, a cidade pluraliza suas relações culturais e novas tensões começam a marcar o debate sobre o pertencimento e outras questões culturais em Joinville.

Voltando a falar sobre Do Cais ao Mercado, o filme tem uma intenção de apresentar o mercado como um lugar significativo dos últimos cem anos da história cidade. E entre outros elementos interessantes, como a existência de um porto (cais) nas imediações do mercado, traz também a informação de que o mercado foi reconstruído em três ocasiões.

Cada construção foi marcada por estilos arquitetônicos diferentes entre si. Na primeira versão, o mercado tem marcas do estilo açoriano, depois, traços modernos e, atualmente, características de uma arquitetura tipicamente germânica. Apesar de o documentário não problematizar que somente na passagem dos anos 70 para os anos 80 que o mercado ganhou um estilo germânico, as participantes trazem à tona no grupo durante a discussão: "É bem nítido: vamos fazer estilo alemão para dizer que o povo de Joinville é alemão, que tudo aqui é alemão, Joinville é uma cidade alemã. Quando na verdade, não é. E a gente toma isso para nós, ... a gente quer criar uma mentalidade alemã em Joinville".

A informação de que o mercado que conhecem atualmente é uma edificação relativamente recente, e ainda, que seu estilo arquitetônico foi alterado em tempos de intensa migração, disparou nelas possiblidades de pensar reflexivamente sobre os modos pelos quais a memória, estrategicamente, pode ser produzida por meio de canais e mecanismos socioculturais (Lemos, Gomes, Medeiros, & Silva, 2010). Entre estes canais, o patrimônio em suas diversas formas de expressão, parece ser um campo de embate. A citação do depoimento da trabalhadora expõe um pouco do que é possível flagrar em termos das manobras e táticas de poder.

Neste ponto cabe uma reflexão sobre a dimensão estética da memória, articulando esta discussão na obra de Jacques Rancière, especialmente, a partilha do sensível. Para este autor, a estética é propriedade constitutiva das formas de vida humana. Diz daquilo que se essencializa nos modos de ser de uma comunidade, ou melhor, trata-se do próprio senso comum (sensorium partilhado): estética diz respeito à "distribuição do sensível, em que são determinados os modos de articulação entre formas de ação, produção, percepção e pensamento" (Pallamin, 2010, p. 06). Assim, é possível pensar que qualquer cena cotidiana implica em formas estéticas, pois nelas estão harmonizados os modos de ser, sentir e perceber o próprio espaço, indicando uma configuração do sensível.

No caso de Joinville que nos anos 80, em pleno fluxo migratório, estabeleceu um patrimônio na forma de um discurso étnico, tem como finalidade explicitar àqueles que chegam para a vida na cidade, sobre uma ordenação de lugares. Esta partilha do sensível nos modos de viver a cidade pode ser associada ao pensamento de Canclini (1998, p. 160) quando observa que "o patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligárquicos, quer dizer, o tradicionalismo substancialista".

O significado que a sociedade dá ao patrimônio cultural se expressa na forma de um dom, uma herança inquestionável e "não ocorre a quase ninguém pensar nas contradições sociais que expressam" (Canclini, 1998, p. 160). Então, questionando um pouco sobre estas heranças presentes no corpo da cidade, o que pode significar reconstruir um espaço público com características arquitetônicas próprias de uma etnia, justamente quando a cidade está vivenciando a presença de novos habitantes?

A reconstrução do mercado público em estilo germânico durante a intensificação de migrantes para o trabalho na indústria, expressa certo modo de ordenação do sensível, nas formas de pertencimento ou exclusão, bem como, na produção da memória. Produção essa que se atualiza no documentário em 2010, na forma de um produto audiovisual, apontando o mercado como um espaço tradicional e sugerindo um (re)encantamento com a tradição germânica.

No grupo de discussão, uma das trabalhadoras comenta: "eu ainda senti uma nostalgia, não sei. Eu acho que a gente não preserva, não preservou tanto a história quanto outras cidades ... a gente destrói, constrói outro, destrói outro". Este comentário ainda está ligado às construções e, por efeito, as destruições realizadas no mercado municipal no decorrer de cem anos. Apesar de não estar fazendo uma defesa do germanismo, esta fala expressa um sentido identitário que busca na preservação das coisas do passado, uma vontade de manutenção de certo status e, com isto, uma ordenação das relações urbanas pelo viés do patrimônio.

"Do Cais ao Mercado" e outras memórias

O audiovisual tem uma condição um tanto privilegiada, na medida em que a sua propriedade é radicalmente imagética. Não há novidade na afirmação de que "as narrativas audiovisuais podem bem ser consideradas como um retrato da sociedade que as produz." (Mendonça, 2008, p. 229). A escolha da palavra retrato coincide com o trabalho de combinação de cenas (e sons, luzes, etc.) e sob a perspectiva que revela imagens. Contudo, não pensamos que os produtos audiovisuais somente retratam, mas também refratam questões socioculturais relativas à cidade. Pensamos no refratar como possibilidade de produzir outro efeito e de fazê-lo resistindo e/ou desconhecendo determinadas condições.

A forma nostálgica do documentário Do Cais ao Mercado funciona como uma estratégia de revitalização do passado, operando por meio de enunciados que fomentam ainda mais aqueles sentidos ideologizados do germanismo. Esta possibilidade do audiovisual atrelado a construção de patrimônios imagéticos já foi observada por Gervaiseau (2012, p. 211), para quem, o alcance do audiovisual e das "imagens denominadas 'de arquivo', no processo de construção das lembranças dos sujeitos no curso da história contemporânea é hoje uma questão central no debate sobre a dinâmica da memória.".

Apesar de certa intencionalidade que se observa no documentário Do Cais ao Mercado na transmissão de um conceito de cidade germânica, as trabalhadoras ficaram atentas aos detalhes que indicavam a presença de outros elementos étnicos e iniciaram uma discussão sobre os aspectos multiculturais constituintes da cidade: "Aqui tem história de grupos de carnaval bem antigas, e parece assim, que o mercado é um pouco aquela, aquele conflito assim, aquela contradição: Joinville alemã e Joinville do povo negro, caboclo, mais antigo mesmo".

Em algum momento o documentário aponta o mercado como palco das festas populares, e isso também possibilitou que as participantes trouxessem algumas inquietações: "tem essa imposição que tem que ser uma cidade alemã e que na verdade não é, porque o carnaval tem uma tradição antiga aqui, que depois foi interrompida e hoje se tenta resgatar, mas quem conhece o movimento negro ... o movimento do próprio carnaval aqui, é bem antigo".

Trabalhos como o de Gunlanda (2020) têm apontado para o fato de que o processo de germanização da cidade de Joinville após o período Vargas (1930 à 1945) além de ser desdobramento de uma política patrimonial da cidade, retoma a racionalidade racista constituinte da cidade desde a sua criação, pois o processo de migração germânica na cidade foi organizado a partir do ideal de embranquecimento que tinha como objetivo produzir o apagamento da presença negra e visibilizar os corpos brancos, de preferência de origem germânica e suas tradições.

Nesse sentido, Almeida (2019, p. 50) lembra-nos de que o racismo estrutural enquanto "modo com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares", estrutura as relações sociais e cria as condições para que sejam visibilizadas certas narrativas e, ao mesmo tempo, sejam apagadas e silenciadas tantas outras, especialmente aquelas que dizem respeito aos corpos negros. Esse processo de branqueamento obviamente produziu tensões étnico-raciais na cidade que prevalecem na dinâmica da cidade.

A reconstrução do mercado público em estilo germânico na década de 80, momento de intensificação do processo migratório para atender a mão de obra na indústria, revela que as disputas e os conflitos vividos na trama das relações sociais são extensões de projetos ideologicamente construídos, embrenhados pela estratégia racista.

A racionalidade racista parte de duas principais premissas: a produção de hierarquias culturais e a organização da valoração dos corpos na economia política. Ou seja, é fundamental que exista uma forma de categorizar as culturas entre as mais nobres e as menos nobres e, ao mesmo tempo, constituir práticas sociais que visibilizam essa categorização na vida pública. Nesse sentido, as produções culturais relacionadas à branquitude, prevalecem, sempre, como aquelas que devem ser valorizadas na história oficial da cidade (Gunlanda, 2020).

Analisando a problemática relativa ao território e a migração, pode-se conjecturar que o interesse delas no filme era porque ele dizia de um trecho da cidade: Do Cais ao Mercado. Logo, o documentário foi significado pelas trabalhadoras, não somente pelas informações dispensadas, mas pela possibilidade de expressarem suas experiências com a cidade-território. Uma das trabalhadoras relatou que quando contava aos amigos que "tinha que passar em palafita para você chegar na casa" de alguns dos usuários do SUAS, seus amigos perguntavam admirados: "mas em Joinville tem isso?".

Outra trabalhadora lembrou de uma "propaganda política que passava na TV, uma campanha que dizia assim: Joinville, cidade sem favela. E o povo inteiro acreditou que Joinville não tem favela. Daí não tem favela não tem pobreza". Interessante como a trabalhadora recorda de outra produção audiovisual. Apesar de não concordar com o slogan "Joinville: cidade sem favela" - de alguma maneira, pode-se observar como essas publicidades produzem memórias.

Poder discutir os sentidos das imagens e seus efeitos é uma das possibilidades da mediação audiovisual e, um encontro oportuno, pode mobilizar temáticas e experiências que não estavam roteirizadas. Nestas condições, o espectador se faz alforriado a despeito das tentativas de cerceamento de sua liberdade de significação. Mesmo com o intuito do documentário em explanar a história do mercado municipal, observamos que as participantes não ficaram reféns do filme, notadamente, pela possibilidade de diálogo e mobilização de outros fluxos de significação da obra no grupo de discussão.

Pensando no modo como o documentário foi utilizado por elas no percurso, o que se percebe é que mesmo o documentário tendo uma intencionalidade pedagógica e uma vontade de transmitir um passado "germânico", na mediação audiovisual ele foi sendo desmontado, foi sendo lido nos detalhes e elas se apropriaram a partir de suas redes de significação.

É talvez justamente esta condição de alteridade que pode promover o encontro, não somente a reunião (como em grupos de discussão com sujeitos de pesquisa), mas as histórias pessoais e seus sentidos mediados no encontro dos sujeitos com uma obra que potencialmente convoca ao processo de significação. Portanto, a mediação audiovisual não se faz somente entre espectador e obra, mas também entre sujeitos e experiências. A mediação acontece na negociação das lógicas, saberes, fazeres, modos de compreensão do trabalho socioassistencial e concepções de mundo, cidade, território etc.

Em uma perspectiva psicossocial, uma obra audiovisual pode ter infinitas recepções, pois é com o espectador que as imagens são significadas, sentidas e atualizadas. E podemos pensar que também muitas destas relações entre visibilidades e cenas não aparentes, podem não vir à discussão e nem se tornarem públicas, pois um espectador pode, inclusive, ficar somente para si aquilo que está gestando nos pensamentos.

 

Considerações finais

Apesar de este estudo ter dedicado uma crítica ao documentário Do Cais ao Mercado, objeto da audiência das participantes da pesquisa, ainda assim, é preciso considerar que o filme foi disparador de infinitas possibilidades de leitura. Nisto, podemos reconhecer que os audiovisuais possuem uma ilimitada potência e que o documentário, gênero preterido às questões da memória, vai além de um simples depositário de informações.

Todavia, atribuímos à mediação audiovisual uma participação efetivamente relevante para a produção dos resultados apresentados neste texto. A mediação audiovisual mostrou-se uma estratégia potente para mobilizar memórias, sentidos e outras relações das trabalhadoras com certo espaço/tempo da cidade. Este achado de pesquisa pode indicar, o modo como a compreensão do território em múltipla dimensão (histórica, política e psicossocial) vem se constituindo uma necessidade do trabalho no SUAS.

Em uma linguagem audiovisual, poderíamos dizer que a dimensão territorial participou no segundo plano do texto. Esta temática foi um resultado conjecturado e compreendido na sua reversibilidade, ou seja, deflagrado no sentido inverso de sua intencionalidade, como "desinformação". Nesta aproximação entre espectadoras e documentário, trabalhadoras e mercado municipal, foi possível compreender que Do Cais ao Mercado não foi lido nos seus excessivos subsídios, mas como um produto catalisador de diálogos, sentidos e experiências migrantes.

Na análise foi possível compreender demandas de apropriação e problematização relativas ao corpo-território citadino e, também, algumas pistas que apontam para a dimensão territorial que constitui a proteção social básica do SUAS. Portanto, tratamos como desinformação estes fluxos de sentidos plasmados entre obra/espectadores/discussões e que indicam a existência de ambiguidades e alteridades, processos de objetivação e subjetivação como constitutivos dos modos de viver e habitar os territórios.

Finalmente, se por um lado foi pretendido vivenciar com as trabalhadoras um recurso inventivo e inacabado de intervenção (mediação audiovisual) que pudesse ter efeito em seus modos de trabalho com grupos, por outro, pode-se considerar que esta pesquisa-intervenção desenhou um modo de fazer pesquisa. Lembrando Vigotski (1984, p. 74), "o método é, ao mesmo tempo, pré-requisito e produto, o instrumento e o resultado do estudo". No caso desta investigação, a mediação audiovisual se mostrou um processo interessante com grupos na pesquisa. A mediação audiovisual, neste sentido, deve ser experimentada em outros setores e realidades, não fugindo de sua condição de alternativa a outros possíveis.

 

Referências

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Recebido em: 28/05/2019
Aprovado em: 07/08/2020

 

 

1 A análise deste primeiro encontro pode ser lida integralmente no seguinte texto: Gomes, Andrade e Maheirie (2017).
2 Consiste en elegir una singularidad, cuyas condiciones de posibilidad se intentan reconstruir a partir de una exploración de todas las redes de significaciones que se tejen alrededor de ella.

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