Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGOS
Cuidado em liberdade e cidadania: o acesso à renda e a desinstitucionalização de mulheres
Care in freedom and citizenship: access to income and the deinstitutionalization of women
Cuidado en libertad y ciudadanía: acceso a la renta y desinstitucionalización de las mujeres
Bárbara Sabrina Pereira dos Santos MendonçaI; Jorge Luiz da SilvaII; Jorge LyraIII; Mirella de Lucena MotaIV; Soraya Araújo Uchoa CavalcantiV
IAssistente Social; Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco / barbarasabrina.ss@gmail.com
IIPsicólogo; Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE; Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco/UPE; Pesquisador do Núcleo Feminista de Pesquisa em Gênero e Masculinidades - GEMA/ UFPE / jorgew.lds@gmail.com
IIIPsicólogo; Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco; Coordenador do Núcleo Feminista de Pesquisa em Gênero e Masculinidades / jorglyra@gmail.com
IVAssistente Social; Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco / mirelladelucena@gmail.com
VAssistente Social da Divisão de Serviço Social do Hospital Universitário Oswaldo Cruz/HUOC; Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco / soraya.cavalcanti@upe.br
RESUMO
O presente estudo teve por objetivo analisar a contribuição do acesso à renda através do Programa de Volta para Casa no processo de desinstitucionalização de mulheres com transtorno mental. A análise de dados se realizou através do método hermenêutico dialético de cinco narrativas das beneficiárias do programa. Os resultados mostram que tais mulheres passaram a maior parte das suas vidas segregadas do convívio social, mas que a renda do programa, a construção da rede de serviços institucionais e dos vínculos sociais estão colaborando para inserção social, garantia dos direitos de cidadania e fortalecimento da autonomia das beneficiárias. O estudo aponta também para a necessidade de revisão da interdição de beneficiárias com vínculos familiares fragilizados, revela a importância dos profissionais que fazem parte do cotidiano das beneficiárias como potencializadores para o fortalecimento da autonomia e indica a necessidade de produção acadêmica que relacione questões referentes a envelhecimento, gênero e saúde mental.
Palavras-chave: Desinstitucionalização; Mulheres; Renda; Liberdade; Cidadania.
ABSTRACT
The present study aimed to analyze the contribution of access to income through the Programa de Volta para Casa (Brazilian 'Back Home' Program) in the process of deinstitutionalization of women with mental disorders. Data analysis was carried out through the dialectical hermeneutic method of five narratives of the program's beneficiaries. The results show that these women have spent most of their lives segregated from social life, but that the income from the program, the construction of the network of institutional services and of social bonds are collaborating for social insertion, for guaranteeing citizenship rights and for strengthening the beneficiaries' autonomy. The study also points to the need to review the interdiction of beneficiaries with weakened family bonds; reveals the importance of the professionals who are part of the beneficiaries' daily lives for the strengthening of autonomy; and indicates the need for academic production that relates issues regarding aging, gender and mental health.
Keywords: Deinstitutionalization; Women; Income; Freedom; Citizenship.
RESUMEN
El presente estudio tuvo como objetivo analizar la contribución del acceso a ingresos através del Programa De Vuelta a Casa en el proceso de desinstitucionalización de mujeres con trastornos mentales. El análisis de datos se realizó mediante el método hermenéutico dialéctico de cinco narrativas de las beneficiarias. Los resultados muestran que estas mujeres han pasado la mayor parte de su vida segregadas de la vida social, pero que el ingreso, la construcción de la red de servicios institucionales y los lazos sociales están colaborando para la inserción social, garantizando los derechos de ciudadanía y fortaleciendo la autonomía de ellos El estudio también señala la necesidad de revisar la interdicción de beneficiarios con vínculos familiares debilitados, revela la importancia de los profesionales que forman parte de la vida cotidiana de las beneficiarias como potenciadores para el fortalecimiento de la autonomía e indica la necesidad de una producción académica que relacione temas con envejecimiento, género y salud mental.
Palabras-clave: Desinstitucionalización; Mujeres; Ingreso; Libertad; Ciudadanía.
Introdução
O Programa de Volta para Casa (PVC) é um benefício de transferência de renda destinado a pessoas com transtornos mentais que estiveram internadas por dois anos ou mais, em hospitais psiquiátricos ou de custódia. Este programa tem sua previsão legal na Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei nº 10.216/2001), a qual estabelece que a pessoa com longo tempo de internação será objeto de uma política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida.
A criação do Programa através da Lei Federal nº 10.708/2003 e sua regulamentação pela Portaria nº 2.077/2003 representam o reconhecimento da dívida do Estado Brasileiro às pessoas com transtornos mentais que foram submetidas a tratamentos desumanos e destituídas de um dos direitos humanos fundamentais: a liberdade. Além desse, o internamento de longa permanência nos hospitais psiquiátricos repercutiu na perda da identidade, dos direitos, na fragilidade ou rompimento dos laços familiares e comunitários.
Por este motivo, o objetivo do programa é contribuir para a inserção social das pessoas com longo tempo de internação, incentivando a organização de uma rede ampla, que facilite o convívio social e possibilite o exercício da cidadania (Ministério da Saúde, 2003).
O benefício consiste no pagamento de um valor depositado mensalmente ao beneficiário ou ao seu representante legal, no caso daqueles pacientes interditados e curatelados. No momento que foi instituído o valor do benefício correspondia a R$ 240,00. O valor do benefício, no ano de 2018, equivalia a R$ 412,00. Este valor foi reajustado pela Portaria nº 1.511/2013.
O Programa de Volta para Casa se configura como um instrumento importante para a desinstitucionalização, uma vez que potencializa a melhoria da qualidade de vida das pessoas com transtorno mental, por meio da aquisição de bens materiais e acesso a serviços de lazer e cultura. Todavia, ressalta-se que os valores repassados aos beneficiários seguem os limites postos pela agenda neoliberal (Vieira, 2009).
A ofensiva neoliberal no interior do Estado Brasileiro se afirma desde a década de 1990 contrapondo-se ao modelo de proteção social instituído pela Constituição Federal de 1988, a qual afirma a saúde como um direito universal. Na área da saúde mental, apesar dos avanços na garantia dos direitos às pessoas com transtornos mentais, a partir de 2010 a Política de Saúde Mental vem sofrendo com alterações por meio de ações governamentais, como àquelas direcionadas a guerra às drogas (Decreto n. 7.179/2010) e mais recentemente a Portaria 3.5588/2017 que modifica a composição dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), traduzindo-se como "remanicomialização do cuidado", uma vez que apoia com maior incentivo financeiro para as diárias em hospitais psiquiátricos (Guimarães & Rosa, 2018).
Em face desse desafio de retrocessos na Política de Saúde Mental e ofensiva aos direitos dos usuários desta política, este estudo qualitativo propõe-se a colaborar com a avaliação do Programa de Volta para Casa, a partir de uma análise das possibilidades de inclusão e exercício de cidadania das beneficiárias e assim, contribuir para o debate em defesa da liberdade, reafirmando compromisso ético e político das autoras e dos autores contra os manicômios ou qualquer modelo asilar, excludente e segregador presente na nossa sociedade.
Assim, buscamos evidenciar as mudanças de vida das mulheres com transtorno mental, beneficiárias do Programa, que residem nos Serviços Residenciais Terapêuticos (serviços substitutivos de saúde mental), procurando identificar como o benefício tem contribuído para a inserção social e para o exercício dos direitos de cidadania, além de evidenciar também como as relações de gênero e as diversas violências praticadas contra as mulheres se implicam neste processo.
Para a Organização Mundial de Saúde (WHO/OMS, 2019), a própria condição feminina constitui um risco para a saúde mental das mulheres, na medida em que são cotidianamente submetidas à múltiplas demandas e violências. A partir disso, nosso entendimento sobre gênero se embasa na discussão teórica de Joan Scott (1995), como uma referência que organiza e é organizada pela sociedade através de padrões, normas e comportamentos, estabelecendo assim uma hierarquia entre homens e mulheres, que nos permitem compreender como as relações de gênero refletem negativamente sobre a saúde mental das mulheres.
Assim, o texto se estabelece no referencial teórico sobre a desinstitucionalização, contextualizando com as discussões sobre gênero, violência contra a mulher e autonomia, bem como na legislação vigente da política de saúde mental na realidade brasileira. O artigo problematiza e expõe a análise e a discussão dos resultados que foram divididos em três eixos: trajetória de vida, inserção social e desinstitucionalização e programa de volta pra casa e cidadania.
Materiais e métodos
O presente estudo é parte integrante da pesquisa Nacional "O Programa de Volta para Casa e a Desinstitucionalização: o impacto na vida cotidiana dos beneficiários", coordenada pela Fiocruz Brasília. Essa pesquisa ocorreu nos seguintes estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Paraíba e Pernambuco.
O estado de Pernambuco tem uma história importante na Reforma Psiquiátrica, pois antes da aprovação da Lei Federal nº 10.216/2001, aprovou a Lei Estadual nº 11.064/1994 que dispõe sobre a substituição progressiva dos manicômios por serviços extra-hospitalares de atenção integral à saúde mental do estado. Além disso, o Estado possuía um parque manicomial composto por 21 hospitais psiquiátricos (4 públicos e 17 privados), sendo a maioria destes localizados em Recife e Região Metropolitana (Oliveira, 2008).
A cidade de Camaragibe, localizada na Região Metropolitana do Recife (RMR) possuía um dos maiores hospitais psiquiátricos do país, o hospital psiquiátrico José Alberto Maia (HJAM). No estudo de Lucena (2011), a autora descreve o HJAM como um macro-hospital psiquiátrico, que possuía nove pavilhões, sendo dois femininos e sete masculinos. Na época da sua pesquisa estava com 572 pessoas internadas, mas no passado chegou a comportar mais de 1000 leitos. Tinha como principal característica a internação de longa permanência, ou seja, com mais de dois anos de internação, sem interrupção.
Devido a estas características, a referida pesquisa, no estado de Pernambuco, se realizou nas cidades de Recife e Camaragibe, entre os anos de 2017 e 2018, contou com a colaboração de três instituições, a saber: Núcleo Feminista de Pesquisa em Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (GEMA/ UFPE), Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Estadual de Pernambuco (RMSM/UPE) e Residência Multiprofissional na Rede de Atenção Psicossocial da Secretaria de Saúde da Cidade do Recife (RMRAPS/SESAU).
A escolha dos participantes da pesquisa ocorreu em uma reunião do Comitê de Acompanhamento da Pesquisa, que contava com a participação dos pesquisadores, trabalhadores da saúde e beneficiários do Programa de Volta para Casa, sendo selecionados aqueles com maior tempo de inserção no Programa. Foram selecionados 10 beneficiários, sendo cinco mulheres e cinco homens, moradores dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).
A equipe de pesquisadores se dividiu em duplas no acompanhamento da rotina das beneficiárias e dos beneficiários do Programa. Participamos do acompanhamento de cinco mulheres beneficiárias do PVC, quatro dessas mulheres residiam na mesma casa e uma morava num Serviço Residencial Misto composto por homens e mulheres.
Foram realizados seis encontros com as moradoras das Residências Terapêuticas Femininas e seis encontros com a moradora da Residência Mista. As narrativas resultam da utilização do método observação no cotidiano e do instrumento "diário de bordo" dos encontros com as beneficiárias, à luz das discussões propostas nos estudos de Medrado, Spink e Melo (2014).
Este estudo, bem como o nacional já citado, caracterizam-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, uma vez que pretende conhecer o sujeito e suas experiências sociais, ou seja, busca compreender os fatos a partir dos significados atribuídos pelas vivências dos próprios sujeitos, conforme Martinelli (1999).
Segundo Spink (2007) a observação "no" cotidiano refere que o pesquisador faz parte da ação observada, o uso da preposição "no" procura marcar a postura metodológica do pesquisador como partícipe das ações que ocorrem no cenário da pesquisa. Dito isto, é importante situar para o leitor que as conversas com Tide, Magali, Lí e Linda (moradoras da residência feminina) ocorreram no horário da manhã, no terraço da casa, pois como são mais velhas, não tinham a rotina de sair ou circular pela cidade. Já os encontros com Ninha se deram tanto na Residência Mista como no Projeto Geração de Rende, do qual participa. Os nomes das narrativas são fictícios, foram atribuídos pelas pesquisadoras a partir das relações estabelecidas e das características de cada beneficiária.
Baseados nas ideias de Medrado, Spink e Melo (2014), os diários de bordo aproximam-se de uma etnografia hermenêutica que busca romper a dicotomia pesquisador-pesquisado ou sujeito-objeto. Este instrumento é utilizado de diversas maneiras em uma pesquisa. Nesse estudo, os diários de bordo, como fruto de produção coletiva das pesquisadoras-pesquisadas foram utilizados como texto que compõe nosso corpus de análise, uma vez que a partir deles, foram gerados um novo tipo de escrita: as narrativas.
A narrativa é diferente da tradicional forma de entrevista baseada em perguntas e respostas, é um método que traduz a experiência do pesquisado e do seu contexto e que exige do pesquisador um olhar atento para contextualizar pessoalmente, socialmente e culturalmente o pesquisado e posteriormente se construa uma estrutura para inserir a história em uma estrutura cronológica. (Muylaert, Sarubbi, Gallo, Rolim, & Reis, 2014).
Assim, as narrativas utilizadas nesta pesquisa não foram frutos de entrevistas do tipo narrativa, mas co-construções entre pesquisadoras e interlocutores/as, a partir de diversas conversas, observações no cotidiano e diários de campo. Inspiradas em Goikoitxéa e Fernández (2014), foi produzido com e para cada um/a dos/as interlocutores/as um texto que reconstruiu as ideias discutidas nas conversas, usando seus próprios recursos linguísticos, não se tratando de uma transcrição literal.
Castellanos (2014) e Onocko-Campos e colaboradores (2013) mostram que as narrativas têm sido utilizadas nas pesquisas qualitativas nos campos das ciências sociais e da saúde, pois permitem compreender a experiência vivida dos sujeitos em um dado contexto.
Para análise das narrativas, utilizou-se o método hermenêutico dialético, proposto por Minayo. Nesse método, "a fala dos atores sociais é situada em seu contexto para melhor ser compreendida. Os instrumentos e as técnicas de pesquisa são variados. Essa compreensão tem como ponto de partida, o interior da fala. E, como ponto de chegada, o campo da especificidade histórica e totalizante que produz a fala". (Minayo, 1992 citada por Gomes, 2002, p. 77).
Baseada nesse método, a análise se orientou pelos seguintes passos: (a) ordenação dos dados; (b) estabelecimento das categorias de análise; e (c) análise final, que se realiza pelo estabelecimento das articulações entre os dados e os referenciais teóricos da pesquisa, respondendo às perguntas da pesquisa com base em seus objetivos.
A partir da leitura exaustiva do material produzido (diários de campo e narrativas) e para atender aos objetivos deste artigo foram estabelecidas as seguintes categorias: "trajetória de vida", "inserção social e desinstitucionalização", "programa de volta pra casa e cidadania".
Esta pesquisa foi submetida e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade de Pernambuco, com o registro CAAE nº: 93847318.9.0000.5207, Parecer: 2.808.852, conforme a Resolução nº 466/2012.
Narrativas de beneficiárias do Programa de Volta pra Casa em Camaragibe-PE
As cinco narrativas analisadas apresentam as histórias de vida de mulheres, egressas de um dos maiores hospitais psiquiátricos do país e que hoje vivem em liberdade, moram nos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), em Camaragibe-PE.
Os SRTs ou Residências Terapêuticas é um serviço de saúde, componente da estratégia da desinstitucionalização, que se configuram como moradias inseridas em espaço urbano, destinadas a receber pessoas com transtorno mental, egressas de hospitais psiquiátricos ou de custódia, cujos laços familiares e com o território de origem foram rompidos (Ministério da Saúde, 2004).
Massa e Moreira (2019) destacam a importância dos SRTs, pois garantem moradia e acesso ao acompanhamento em saúde mental no território, todavia, apresentam-se como desafios: insegurança e falta de preparo dos profissionais em trabalhar com este público e a resistência da vizinhança em que a moradia é instalada. Acrescentamos como o principal desafio: a superação da instituição, pois ainda que os SRTs se diferenciem do hospital psiquiátrico, é uma instituição que se caracteriza como moradia e serviço de saúde ao mesmo tempo.
As discussões trazidas situam o processo de institucionalização/desinstitucionalização considerando aspectos históricos, sociais e políticos, situando as histórias de vida como parte de uma situação coletiva, de parcela da população diagnosticada com transtorno mental e as respostas do Estado na assistência aos loucos e loucas.
Da institucionalização ao cuidado em liberdade: análise da trajetória de vida
O percurso de vida das cinco mulheres mostra que suas vivências foram marcadas por violações de direitos e de violências, desde o adoecimento a internação, foram segregadas do convívio social, tiveram a cidadania negada, com perdas e prejuízos na formação escolar, profissional, nas suas relações familiares e sociais.
A mudança na vida delas se iniciou com o processo de desinstitucionalização, o qual possibilitou o acesso aos documentos e benefícios sociais (Benefício de Prestação Continuada - BPC e o PVC) e a garantia de uma moradia localizada próxima a outras residências, igrejas, parques.
Das narrativas analisadas, nota-se que o traço comum na história de vida é que a institucionalização ocorreu porque essas mulheres não se adequaram aos padrões de normalidade impostos pela sociedade da época, sendo uma delas internada ainda na infância. Conforme Correia e Ventura (2014), nesse embate entre "normal" e "anormal", ao louco só restava um ambiente como os hospícios e manicômios para torná-lo inofensivo ou curá-lo de sua patologia.
Lí, 60 anos, analfabeta, foi internada aos doze anos de idade, passou 36 anos no hospital. Em todos os encontros sempre dizia: "Perdi toda a minha mocidade naquele lugar!" e "comi o pão que o diabo amassou naquele Alberto Maia". Nos anos que esteve internada recebia a visita do pai, mas com o seu falecimento, passou a receber ajuda de pessoas que faziam caridade, doavam-lhe roupas, peças íntimas e material de higiene pessoal. Não possui vínculos familiares, pois era filha adotiva e sua irmã diz que não tem aproximação. Há dez anos mora na Residência Terapêutica, tem uma boa relação com uma cuidadora que a leva para passar festas de fim de ano em sua casa. Lí recebe R$ 412,00 do PVC e um salário-mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ela gosta muito de conversar e de mostrar seu álbum de fotos dos momentos de festa e confraternização da residência.
A internação durante a infância ocorria em instituições específicas para este público ou em alas de hospitais para adultos. Marcelo Queiroz e Irene Rizzini (2012), em pesquisa feita no estado do Rio de Janeiro, mostram que a condição de anormal fez com que a institucionalização infanto-juvenil com deficiência tivesse traços específicos, diferenciando-se dos internatos para menores. Estas especificidades localizam-se no campo das interseções entre a assistência à infância pobre e a história da psiquiatria. Dentre os elementos de interseção destaca-se o abrigo, lócus onde se opera a institucionalização que tem como características: a internação de longa permanência e o afastamento dos referenciais familiares, como pode ser visto na narrativa de Lí.
Outro ponto que se destaca nas narrativas, é o modelo de tratamento destinado às pessoas com transtorno mental, que não eram esclarecidas sobre o diagnóstico da sua doença e o motivo da internação. Em algumas das nossas conversas, os motivos para internamento eram atribuídos como: "catimbó", "resguardo quebrado", ou por "nascer doente".
Tal fato se destaca na narrativa de outra beneficiária, Ninha, sempre afirmava que foi internada porque estava descompensada. Em nossos encontros não gostava muito de falar sobre o período que passou no hospital, mas em alguns momentos revelou as violências que sofreu, apresentando a dualidade da instituição total, como um espaço destinado para o cuidado e proteção que a violentou.
Delgado (2012) em seu texto discute sobre a violência em espaços de cuidado e proteção, destaca que hospitais psiquiátricos, abrigos e as recentes comunidades terapêuticas são instituições de tratamento que submetem os pacientes a regimes de segregação com o mundo externo e disciplinamento que apresentam efeitos danosos para o bem-estar físico e psíquico, produzem uma espécie de "mortificação do eu", processo de padronização imposto pelas instituições totais, que se iniciam com a separação do mundo externo e se prolongam com as violências físicas, psicológicas e sociais (Goffman, 1987).
Ninha, 52 anos, alfabetizada, curatelada, passou 27 anos internada no hospital psiquiátrico, estava muito descompensada. Rememora que fugiu do hospital algumas vezes, pois não recebia visitas da família. Sofreu algumas violências durante o seu internamento, referindo uso indevido de medicação e eletroconvulsoterapia. Atualmente, Ninha aparenta ser uma pessoa ativa, que conhece os seus direitos, tem posicionamento questionador e é bem participativa, compôs o Comitê de Acompanhamento da Pesquisa (CAP), representando o Projeto Geração de Renda, sempre participativa, contribuiu com sugestões para a condução da pesquisa.
Outro fator importante na história de Ninha que nos chamou a atenção foi o respeito da equipe as questões relativas à sexualidade. Ao sair do hospital, ela e seu companheiro dividiram o mesmo quarto na Residência Terapêutica, vivendo como cônjuges até o falecimento dele. Atualmente, Ninha possui um namorado que mora na comunidade, passeia com ele, sai sozinha pela cidade para fazer as suas compras de forma livre e sem tutela.
Esse fato demonstra também uma mudança de paradigma relacionado ao cuidado em liberdade, uma vez que a prática psiquiátrica percebia as vivências sexuais a partir de uma visão estigmatizante e para o controle dos corpos. De acordo com Detomini, Rasera e Peres (2016, p. 88) em seu estudo sobre sexualidade e saúde mental, mostram que "as vivências sexuais dessas pessoas são historicamente construídas sob estigma, preconceito e negligências de direitos. Além disso, apesar de alguns estudos afirmarem maior frequência de comportamentos de risco dessa população, outros indicam não haver essa relação, relatando que os usuários podem viver sua vida sexual plenamente".
Apesar de estar em liberdade, apresentar-se autônoma, com bom trânsito nos espaços que frequenta, Ninha é uma das beneficiárias curateladas. De acordo com Delgado (2012), as interdições civis são outro tipo de violência. Para ele, a curatela tornou-se um procedimento repetido de forma fria e frequente pelas varas de família, apoiadas em pareceres provenientes do campo da saúde mental, os quais retiram das pessoas os seus direitos e seu reconhecimento como cidadãs, pois ao serem interditadas, as pessoas não respondem pelos seus atos, sendo determinado pelo juiz um tutor responsável.
Em nosso estudo, além de Ninha, são interditadas Magali e Tide. No caso de Ninha, o seu curador repassava o valor integral do BPC. Nas narrativas de Magali e Tide, é possível perceber que as curadoras não têm exercido a função de responsável legal e que a responsabilidade se restringe a gerência do BPC.
Magali, 58 anos, analfabeta, foi internada aos 29 anos de idade, após ter o período de pós-parto interrompido, com histórico de internação em outros hospitais psiquiátricos. Passou 19 anos no Alberto Maia até a sua saída para a Residência. Perdeu os filhos, a menina morreu ainda na maternidade e o menino morreu, em decorrência do uso do álcool. É curatelada, sua irmã é curadora, a visita quinzenalmente no SRT e as vezes a leva para passar as festas de final de ano em família. Reserva-se a falar sobre sua história. Tem seu próprio quarto, onde dorme sozinha. Apresenta compulsão por comida, come muito rápido, mesmo com as intervenções e orientações da cuidadora.
As discussões sobre a interdição civil e curatela se estabelecem pela dualidade conflitante entre o limite a liberdade e cidadania da pessoa considerada incapaz e ao mesmo tempo, se estabelece como proteção, sendo o curador responsável pela provisão e tomada de decisão sobre as pessoas e seus bens. Todavia, faz-se necessário a revisão incapacidade para que possam exercer direitos.
Além disso, consideramos como importante o apoio do Estado para efetivação das políticas para este público, no apoio aos familiares e curadores para facilitar o processo de retorno a família e a comunidade. Dessa forma as Residências Terapêuticas poderão cumprir a sua missão como um dispositivo facilitador da reinserção social, não se configurando como uma instituição de longa permanência. Com isso, queremos dizer que os curadores devem assumir sua responsabilidade legal e contribuir para a melhoria da qualidade de vida com o apoio dos serviços e benefícios existentes.
Essa discussão parte da nossa análise de fragilidade dos vínculos familiares do curador com o interditado, os quais mantêm relações de visitantes, sendo a renda algo que os vincula. O estudo de Vanessa França, Marília Alves, Ana Luzia da Silva, Tatiane Guedes e Iracema Frazão (2017) mostra que em muitos casos o curador transfere a sua responsabilidade para o SRT, assumindo apenas a responsabilidade com as decisões financeiras. Neste sentido, é necessário que se aprofundem discussões em relação as condições de vida e o papel do benefício para o grupo familiar do interditado. A análise de mostra que o BPC tem se mostrado como um mecanismo de enfrentamento da pobreza da maioria dos familiares de pessoas com transtorno mental.
Tide, 77 anos, alfabetizada, foi internada ainda jovem, mãe de 4 filhos, era casada, conta que brigava muito com o marido, ele bebia e a agredia. Após traição do seu marido, quebrou as coisas de casa, foi abandonada pelo marido e foi para casa da sua mãe, que a internou. Não falou muito sobre seu internamento, relembrou as causas do seu internamento, sem demonstrar tristeza ou raiva, tinha uma serenidade no olhar. Passou 25 anos internada no HJAM. Ela tem seu próprio quarto, onde dorme na companhia da cuidadora, pois é a mais velha da casa e que precisa de maiores cuidados. Tide é interditada, sua filha é sua curadora, mas a visita é esporádica, ocorrendo após contato da Técnica de Referência (TR).
Destaca-se também nas narrativas de todas as interlocutoras, as violências contra as mulheres, como fator desencadeador do adoecimento e motivador das internações. Garcia (1995) argumenta que diversas situações que fazem parte do cotidiano das mulheres são interpretados como componentes da "loucura feminina" e que tal interpretação traduz um universo de compreensão fechado e contraditório aos sentimentos e afetos, que são tidos como características da realidade feminina.
A perda de um filho querido, uma traição, engravidar, não ter companheiro, divórcios, abandonos, não querer casar ou não querer se submeter às autoridades masculinas são algumas dessas situações que geralmente são patologizadas (Garcia, 1995). Na narrativa de Linda, evidencia-se que o internamento ocorreu para o controle do seu corpo em exercer a sua sexualidade.
Linda, 68 anos, foi internada ainda jovem, sofreu com agressões do marido, chegou a se prostituir, estava na rua quando foi levada e internada no hospital, passou sete anos no HJAM, mas tem histórico de internamento em outros hospitais. Tem dois filhos, passa as festas de fim de ano com eles na casa da sua irmã. Linda sabia assinar o nome, com muita dificuldade. Linda é muito amiga de Lí, sempre próximas, saíram do hospital juntas, demonstrava cuidado e afeto com sua amiga que conheceu durante o internamento.
Ao falar desse fenômeno, as violências contra as mulheres, é importante que se compreenda a diversidade de maneiras em que se apresenta, mais ou menos sutis, mais ou menos visíveis (ou audíveis), acreditamos que todas tenham potencial de serem prejudiciais à saúde das mulheres e compreendemos que todas as formas de violência funcionam como meios de controle social, físico, sexual, político e econômico sobre as mulheres, apoiado pelas formulações de Safiotti (2015).
No entanto, algumas das formas de violências contra as mulheres têm sido tão pouco visibilizadas que, como consequência, têm sido ignoradas, descuidadas e continuam alimentando a máquina da opressão feminina. Independente do tipo de violência que seja praticada contra as mulheres é importante evidenciar que todas têm como base comum as desigualdades presentes em nossa sociedade e representam uma violação aos direitos humanos e cidadania das mulheres, como apontado em estudos realizados com mulheres em sofrimento psíquico acompanhadas na Atenção Básica de Recife, conforme os estudos de Mota (2017) e Silva (2017).
Além das (o)pressões sociais, Araújo (2015) comenta ainda que o fato de uma mulher recusar-se a apresentar comportamentos considerados próprios a seu sexo, como no caso de Linda, e, decorrente disso, ser considerada fora do padrão e julgada socialmente, pode gerar um sentimento de culpa esmagador e as próprias aflições passam a ser motivos de mais sofrimento, uma vez que as mulheres tenham internalizado um padrão ideal de saúde mental estabelecido pela cultura machista, o qual é reforçado pela sociedade a todo momento, frequentemente reagindo às situações de opressão com um mergulho na depressão.
As discussões sobre violência, gênero e saúde mental ainda são bem deficientes, do ponto de vista quantitativo, o que requer a produção de reflexões que considerem as questões epidemiológicas, as desigualdades sociais e sexuais no processo de adoecimento, assim como é relevante perceber as diferenças aos cuidados prestados a mulheres e homens.
É possível afirmar ainda, no âmbito da saúde mental, a hipótese de que existem mesmo diferenças para o critério do diagnóstico sobre doenças mentais entre homens e mulheres, pois a ética da saúde mental na nossa sociedade é ainda masculina e abarca o ser humano em geral e não as especificidades das mulheres. Esta afirmação tem como fundamento a base cultural em que se assentam os diagnósticos, centrados nos estereótipos de gênero, que distanciam e diferenciam a esfera de ação entre homens e mulheres, reforçando as atribuições dos papéis sexuais determinados ao sexo masculino e feminino (Andrade & Maluf, 2015).
Sobre essa questão, Andrade (2010) reforça a ideia de que o gênero como um regime de subjetivação, tem exercido implicitamente uma grande influência nas formas de pensar e intervir no campo da saúde, seja na assistência, na militância bem como nas políticas públicas e que o pouco reconhecimento de sua complexidade pesa sobre as mulheres que buscam, nos serviços de saúde mental, alívio para seus sofrimentos.
Assim sendo, Santos (2009) e Andrade (2010), pensam que um grande desafio a ser enfrentado pelos novos modelos de atenção à saúde consiste em incorporar, sem sujeitar, silenciar e invisibilizar, ainda mais a categoria gênero nas políticas públicas a serem desenvolvidas na área da saúde mental, estabelecendo um exercício de desconstrução das certezas de nossa suposta ordem racional patriarcal naturalizada.
Inserção social e Desinstitucionalização: problematizando possibilidades e desafios
As mulheres ao saírem do hospital psiquiátrico foram inseridas nos Serviços Residenciais Terapêuticos, serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. As casas são localizadas próximas a unidades de saúde, escolas, parques, ou seja, no cotidiano das cidades.
Linda, Tide, Magali e Lí residem na mesma casa. A casa é localizada num bairro popular, próxima à unidade de saúde, restaurante, igreja católica e evangélica. Elas possuem autonomia no exercício de atividades diárias, mas devido às condições físicas, por conta da idade, agora não saem mais sozinhas.
A Portaria nº 106/2000 define as modalidades de SRT. O SRT tipo I é destinado a pessoas sem vínculos familiares e sociais, tem por objetivo o fortalecimento e construção de autonomia para retomada da vida cotidiana e reinserção social. O SRT tipo II é uma moradia destinada àquelas pessoas com maior grau de dependência, que necessitam de cuidados intensivos específicos, do ponto de vista da saúde em geral.
No tocante a previsão legal, percebe-se uma lacuna por não prever a transformação do SRT tipo I em tipo II, considerando as questões relativas ao envelhecimento e adoecimento dos moradores. Esta questão também foi apontada no estudo realizado por Paula Barioni (2013) na cidade de Campinas/SP. A autora mostra que os primeiros moradores de serviços extra-hospitalares, que viveram anos consecutivos em manicômios, aumentaram suas necessidades de cuidados clínicos específicos em decorrência dos processos de envelhecimento e senilidade.
Para a autora, há um ponto de tensão entre os objetivos e finalidades do SRT, tanto daquilo que consegue cumprir conforme a previsão legal, como de novas funções que surgem a partir de demandas e necessidades dos serviços e da população.
Ninha também reside numa SRT, próxima ao projeto geração de renda, do qual faz parte. Na casa de Ninha moram homens e mulheres, também egressos de hospitais psiquiátricos. Ela tem seu próprio quarto, dorme sozinha, as paredes são enfeitadas com as artes que produz, equipado com televisão, cama e guarda-roupa. Colabora com as atividades da casa e sai sozinha, vai para o centro da cidade fazer suas compras e também participa de exposições dos produtos do projeto municipal de geração de renda nas cidades circunvizinhas. Todas as noites recebe aulas de alfabetização, uma professora vai a sua casa para ensinar. Matemática é a matéria que mais gosta.
Compreendemos que a desinstitucionalização é um processo que não se restringe a retirada dos/as usuários/as dos manicômios e colocação em serviços substitutivos, mas um percurso de reconhecimento da pessoa com transtorno mental, que tem direito à liberdade e de estar em sociedade.
Venturini (2010) diz que são três as necessidades de uma comunidade na área da saúde: as necessidades de tratamento, as necessidades de assistência (moradia e trabalho) e as necessidades existenciais (relacionada a sexualidade, a autoestima, a afetividade). Embora as moradoras mais idosas tenham comprometida a sua autonomia em passear pela cidade, fazer alguma atividade laborativa, elas têm a sua individualidade preservada na dinâmica da casa.
O autor diz ainda que a desinstitucionalização consiste no crescimento da pessoa, denomina "retomada subjetiva" da pessoa, a qual o usuário é responsável por si mesmo, considerando o seu próprio bem-estar no exercício da sua liberdade no seu próprio cuidado, sem tutela, seja da família, seja do médico ou profissional de saúde. Segundo o autor, mais do que um processo de cura, a "retomada subjetiva" é um percurso de atribuição de sentido para a existência do sujeito, sem interferência do médico, mas, sobretudo no exercício do poder social que este sujeito tem sobre sua vida e experimentado concretamente no seu cotidiano. Essa retomada subjetiva é percebida na narrativa de Ninha, na sua relação com o território e na gestão da sua vida.
É importante destacar o Projeto Geração de Renda no cotidiano de Ninha, a inclusão social pelo trabalho na saúde mental foi regulamentado pela Portaria Interministerial nº 353/2005. Em estudo no estado de São Paulo, Giovana Morato e Isabella Lussi (2015), mostraram que os Projetos de Economia Solidária são importantes para afirmação dos usuários como cidadãos e potenciais trabalhadores, entretanto, evidenciou desafios, dentre os quais destacam-se, principalmente, a urgência em gerar renda.
Programa de Volta pra Casa e Cidadania: as possibilidades do benefício no cotidiano das beneficiárias
As narrativas mostram que o benefício é muito importante no cotidiano das beneficiárias, especificamente, para Tide e Magali, o PVC é a principal renda. As duas são curateladas, suas curadoras recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC) repassando um valor ínfimo e esporadicamente. Magali, inclusive questionou porque não recebe seu dinheiro e pediu para a Técnica de Referência (TR) contratar um advogado. No caso de Ninha, o seu curador repassava o valor integral BPC para TR e esta a auxiliava na gestão do dinheiro.
Tide, Magali, Linda e Li não administram diretamente o dinheiro, recebem ajuda da TR e cuidadoras que compram o que elas desejam e precisam. Com o dinheiro do PVC compram materiais de higiene pessoal, roupas, perfumes, assim como utilizam para custear despesas com exames laboratoriais ou de imagem, quando não conseguem acessar pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ninha é mais autônoma, exerce controle sobre suas finanças, contando com a ajuda da cuidadora para guardar o seu dinheiro, solicitando os valores quando precisa. Ela falava que todos usavam o dinheiro da mesma forma, apresentava uma postura de desconfiança e questionadora, perguntando os motivos do atraso do pagamento, pois na época de realização da pesquisa houve um atraso do benefício.
Em sua narrativa, percebemos que o PVC permitiu a Ninha conhecer lugares e pessoas; exercer sua independência e autonomia; saber que tem direito e talentos; aprender e ensinar; comprar produtos (até os que ela mesma produz); pagar por serviços de saúde e também se cuidar. "Por que a gente sem esse dinheiro não tem como comprar sabonete, se a pessoa ficar sem receber esse dinheiro fica tudo sem nada. Tudo liso. Quer comprar um picolé, quer comprar um lanche e não pode, quer se manter e não pode". Ela se orgulhava em dizer que tem celular, câmera digital, ventilador, televisão (comprada à vista) e está juntando dinheiro pra comprar um ar-condicionado split.
Nas narrativas foram percebidas as possibilidades que o benefício em conjunto com os demais projetos e serviços da política de saúde mental produzem na vida das beneficiárias. Embora as beneficiárias mais idosas não tenham a gestão direta do seu benefício, elas têm dimensão do que o dinheiro permite fazer, o que comprar e o que realizar.
Em pesquisa realizada em Salvador, Lima e Brasil (2014) apresentam que o PVC apesar de ser uma política compensatória, é uma estratégia de desinstitucionalização que pode auxiliar no desmonte do manicômio e na transformação do beneficiário do sujeito-asilado em sujeito-autônomo.
Costa, Anjos e Zaher (2007) definem a pessoa autônoma como aquela que é livre para expressar seu pensamento e esta liberdade se sustenta pelo poder de escolher entre as opções que lhe são apresentadas, sem coações internas ou externas. Em um reexame da literatura, realizado por Mota, Silva e Lyra (2017) o conceito da autonomia está relacionado as expressões "agir livremente", "seguir um plano próprio". Devido à diversidade de interpretações, têm-se uma dificuldade de aplicabilidade do conceito na vida cotidiana.
Silva (2017), em sua dissertação compreende o conceito de autonomia a partir das suas visões de mundo e sujeito, "no qual autonomia é pensada como um processo, não como uma substância, como algo a ser articulado e negociado nas relações das mulheres com outras pessoas, mas também com seus desejos, com as instituições e com as opressões cotidianas" (p. 69).
A partir desta reflexão, entendemos que as pessoas que estão no contato direto com as beneficiárias/moradoras, a exemplo das cuidadoras e técnicas de referência ou de outros sujeitos sociais que estão nos espaços em que frequentam, exercem um papel importante no processo de construção e fortalecimento da autonomia que se configura no apoio em administrar o benefício, assim como explorar/ocupar a casa e o território.
Considerações finais
A pesquisa mostrou que houve mudanças na vida dessas mulheres a partir do processo de desinstitucionalização e do acesso ao benefício do Programa de Volta para Casa, uma vez que o acesso à renda possibilita a satisfação de necessidades sociais básicas e garantia de cidadania às beneficiárias do Programa.
A partir da aproximação com a história de vida dessas mulheres, percebemos a importância do PVC no cotidiano das beneficiárias, principalmente no contexto daquelas que são interditadas. Por este motivo, considera-se necessário estudos adicionais sobre usuárias curateladas e as relações familiares, uma vez que muitas famílias recorriam à interdição para acessar os benefícios, sendo necessário uma reavaliação, considerando que o atual Código Civil prevê uma interdição parcial, ou quando não for possível revogar a interdição, seja revisado o curador e considerada as situações de vida das famílias, para que esta ação não se configure como uma desresponsabilização do Estado e responsabilização da família.
Apesar de não ter sido explorado ao longo do texto, entendemos como necessária a elaboração de reflexões sobre o papel dos/as cuidadores ou cuidadoras do SRT, partindo da compreensão que a atuação destes/as deve ser dotada de um caráter potencializador e voltado para emancipação das beneficiárias no incentivo de sua participação política e social. Além disso, deve-se priorizar o fortalecimento do trabalho para a reconstrução dos laços familiares e construção de relações sociais no território, principalmente do público mais idoso.
O estudo aponta a importância de nos determos sobre a temática da desinstitucionalização, para a melhoria da política e da qualidade dos serviços prestados à população usuária, assim como para o fortalecimento da reinserção social e promoção de autonomia, considerando as relações entre envelhecimento e gênero.
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Recebido em: 12/04/2019
Aprovado em: 03/11/2019