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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGO

 

Viropolítica

 

Viropolitics

 

Viropolitica

 

 

Aline Reis Calvo Hernandez

Psicóloga. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dra. em Psicologia Social e Metodologia pela Universidad Autónoma de Madrid. Pós Doutora em Psicologia Social e Política pela PUCRS / alinehernandez@hotmail.com

 

 


RESUMO

O artigo objetiva apresentar o conceito de Viropolítica, desde a Psicologia Política. Para chegar ao conceito são apresentadas três dimensões analíticas: na primeira, denominada Vírus B-17 se analisa o fenômeno Bolsonaro desde a retirada de Dilma Rousseff da presidência, a corrida eleitoral, a chegada à presidência, os principais grupos de apoio e o conjunto de tendências que configuram sua forma de governo até a conjuntura atual, em que o Brasil enfrenta a pandemia da Covid-19. Na segunda, denominada Viropolítica, se analisam as ressonâncias sociais e subjetivas que o governo exerce junto a diferentes grupos sociais, a partir de posições extremistas. Na terceira dimensão, Anticorpos, se analisam o decréscimo do apoio ao governo durante a pandemia e as respostas empreendidas desde a sociedade ao enfrentamento da mesma. Em seu conjunto o artigo articula a dimensão do político aos desafios colocados pela pandemia da Covid-19 no Brasil atual.

Palavras-chave: Viropolítica; Fenômeno Bolsonaro; Extremismo; Influência.


ABSTRACT

This article aims to present the concept of "Viropolitics" from the perspective of Political Psychology. In order to arrive at the concept, three analytical dimensions are presented: the first, called B-17 Virus, analyzes the Bolsonaro phenomenon from the withdrawal of Dilma Rousseff from the presidency, the electoral race, the arrival to the presidency, the main support groups and the set of trends that shaped its form of government until the current situation, in which Brazil faces the Covid-19 pandemic. The second, called "Viropolitics", analyses the social and subjective resonances that the government exerts with different social groups, based on extremist positions. The third dimension, "Antibodies", analyses the decrease in support for the government during the pandemic and the responses undertaken by society to confront it. As a whole, the article articulates the political dimensions to the challenges posed by Covid-19 pandemic in Brasil today.

Keywords: Viropolitics; Bolsonaro phenomenon; Extremism; Influence.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo presentar el concepto de viropolítica, desde la Psicología Política. Para llegar al concepto, se presentan tres dimensiones analíticas: en la primera, llamada Virus B-17, se analiza el fenómeno de Bolsonaro desde la remoción de Dilma Rousseff de la presidencia, la carrera electoral, la llegada a la presidencia, los principales grupos de apoyo y el conjunto de tendencias que configuran su forma de gobierno hasta la coyuntura actual, en la que Brasil se enfrenta a la pandemia Covid-19. El segundo, llamado Viropolítica, analiza las resonancias sociales y subjetivas que el gobierno ejerce junto a diferentes grupos sociales, a partir de posiciones extremistas. En la tercera dimensión, Anticuerpos, se analiza la disminución del apoyo al gobierno durante la pandemia y las respuestas tomadas por la sociedad para enfrentarlo. Tomado en conjunto, el artículo articula la dimensión política de los desafíos planteados por la pandemia Covid-19 en Brasil hoy.

Palabras clave: Viropolítica. Gobierno Bolsonaro. Extremismo político. Influencia.


 

 

Declarando intenções

Esse texto é sobre memórias políticas do/no presente. Para Pierre Nora (1993) a memória é, sobretudo, política, entendendo a política como um jogo de forças que alteram a realidade periodicamente. Para ele, a memória é um fenômeno, não um conteúdo, mas um significado aberto, uma coleção de estratégias, uma "presença" que vale mais por aquilo que dela se faz do que por aquilo que é.

Um texto sobre memória política implica transversalizar tempos idos, tempos do agora/presente, perspectivando porvires. A memória é um fenômeno em aberto, não uma retomada do que já foi ou está ancorado no passado. A memória é um elemento psicopolítico poderoso, um antídoto à produção de esquecimentos e silenciamentos operados desde a história oficial. Na Psicologia Política os estudos de memória são recentes, iniciados no Brasil na década de 90 em torno às discussões sobre as relações entre memória política, consciência política e lutas sociais no país (Ansara, 2005, 2008; Hernandez, 2013, 2014; Hernandez & Scarparo, 2007, 2009; Hernandez, Binkowski, & Oliveira, 2017). A memória política produz diferentes efeitos no comportamento e ação política das pessoas e grupos que vivenciam contextos e experiências coletivas e históricas distintas.

A memória política se constitui na relação interdependente entre tensão e litígio, situando a disputa entre narrativas, compondo conjuntos de repetições e variações. A memória política está desvinculada das narrativas oficiais é pois uma tentativa de reconstruir novas políticas de memória, a partir de contrapontos desde a posição das vítimas ou dos "vencidos". Assim, a memória política não é uma mera recuperação de memórias passadas, mas a composição de narrativas irruptivas no tempo/agora.

Para Rancière (1995, p. 242), os modelos historiográficos do século XX neutralizaram o "objeto" próprio do saber histórico, negando a racionalidade própria do acontecimento, "aquela do real, que não se preocupa em se fazer preceder, justificar, fundamentar por sua possibilidade". Há, pois, um contraste entre história e memória, na medida em que a história oficial supõe certa representação do passado, uma operação intelectual que rompe os vínculos coletivos da memória. A memória política é aberta, em movimento permanente, tecida na rede de fios que conectam passado vivido e experiência presente.

Na esteira do exposto, o presente artigo tem como objetivo apresentar o conceito de Viropolítica, relacionando-o às políticas de memória no presente. O núcleo da análise se dá sobre o "fenômeno Bolsonaro" e a psicologia dos extremismos políticos e cotidianos na atual conjuntura política, em que o Brasil enfrenta a pandemia da Covid-19. Ao tratarmos de um fenômeno político em efervescência cabe registrar que não contamos com o tempo histórico em perspectiva, tempo necessário à melhor compreensão dos fenômenos políticos. Sabe-se que a possibilidade compreensiva e explicativa sobre tais fenômenos não se dá de imediato, mas depende do conjunto de acontecimentos subsequentes que vão reconfigurando-o. Não obstante, vivemos um momento de urgências, que não pode esperar. No Brasil, fomos de um governo que começava a assentar bases importantes ao Estado de bem-estar social a um Estado neoliberal, fascista e moralista. Analisar e teorizar em tempo presente se faz condição para não deixar passar em branco o que está acontecendo diante de nossos olhos. Na perspectiva da Psicologia Política, é imprescindível desenvolver políticas de memória do presente no presente, principalmente quando disputamos narrativas com governos fascistas e hábeis na produção de apagamentos e na legitimação de atrocidades.

Trata-se de um artigo teórico-analítico que utilizou a metodologia triangulada entre três fluxos: (a) Base teórica-conceitual, em que enfocamos quatro operadores conceituais: memória política, extremismo político, influência social e ativismo; (b) Dados secundários de bases públicas, censos, sites, reportagens e imagens veiculadas em mídias sociais; (c) Narrativas de governo, excertos de pronunciamentos proferidos por Bolsonaro e seus ministros, da campanha presidencial à reunião ministerial ocorrida em 22/05/2020. A análise triangulada coloca os fluxos em confluência e, a partir de uma análise integrativa dos dados foram organizadas três dimensões de análise: (a) Denominada Vírus B-17 em que se apresenta o fenômeno Bolsonaro, desde o "impeachment" de Dilma Rousseff, a corrida eleitoral, a chegada à presidência, seus principais grupos de apoio e um conjunto de tendências que configuram sua forma de "governo". (b) Denominada Viropolítica, em que se discutem as ressonâncias sociais e subjetivas das posições do governo junto a diferentes segmentos sociais. Usando a perspectiva do "contágio", enfocamos a característica viral do governo e sua capacidade de exercer influência social, a partir de posições extremistas. Na (c) dimensão, denominada Anticorpos, se evidenciam os efeitos de rejeição ao governo e algumas respostas políticas que vêm sendo empreendidas desde o ativismo político da sociedade. As três dimensões, em seu conjunto, entregam a formulação do conceito proposto: Viropolítica.

A fim de declarar intenções, esse artigo foi tecido a partir de uma customização de memórias de ontem, de agora e na perspectiva de um provir de tempos possíveis. O texto constitui-se um território com suas fronteiras, limites e marcas próprias. Nesse sentido, serei crítica ao governo Bolsonaro e suas tendências políticas extremistas e marcadamente conservadoras, principalmente, ao analisar a condução do governo diante da pandemia da Covid-19 no Brasil.

No Brasil a lógica capital-neoliberal sobrepôs-se às medidas de cuidado da vida, pois o governo optou por desdenhar e desagravar o problema. No Brasil atual, vê-se acirrar o cenário político antidemocrático neoliberal e, com ele, o acirramento também das tensões/cisões entre ciência/política/governo/religião. É urgente analisar como Bolsonaro chega à presidência, as tendências extremistas de seu governo e como a gestão política da crise vem destruindo algumas camadas de populações brasileiras, uma vez que diferentes matrizes sociais e interseccionais determinam vulnerabilidades distintas.

 

Etimologia do vírus

Na etimologia, a palavra vírus vem do latim, significando veneno. A palavra vírion ou víron se refere a uma única partícula viral. Vírus serve para descrever vírus biológicos, agentes microscópicos, invisíveis a olho nu, que causam doenças, mas que, com o tempo, também provocam a produção de anticorpos. O substantivo também é metáfora a ilustrar "qualquer coisa" que se reproduz de forma parasitária, como os discursos, as ideias, a propagação de crenças e atitudes. Na língua portuguesa, o plural de vírus é o mesmo que no singular. Em latim as palavras não possuem flexão no plural, então virii poderia ser o plural de vírus, mas em latim viri é também o plural da palavra vir, que significa homem. (Fonte: Dicionário Aurélio on-line https://www.dicio.com.br/aurelio-2/). Nesse artigo abordarei o vírus em suas múltiplas formas: vírus veneno e vírus homem; poder viral de contágio e propagação; capacidade do vírus conter e produzir seus próprios antídotos.

Vírus B-17: O fenômeno Bolsonaro

Foram muitas noites de insônia e dias de luta desde que se iniciou a última corrida eleitoral no Brasil, em 2018. Antes mesmo essa angústia já iniciara, quando assistimos estarrecidas/os o golpe midiático-jurídico-parlamentar ocorrido em 2016 que impediu a presidenta Dilma Rousseff de seguir governando. O golpe consolidou a saída de Dilma do governo e, segundo palavras proferidas pela própria Dilma, foi a materialização de um golpe misógino e jurídico-parlamentar, pois vimos o Superior Tribunal Federal, o Parlamento, o Judiciário Federal, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal alinhadas à grande mídia brasileira e a setores do empresariado antidemocrático e neoliberal. A ação foi coordenada, estratégica e meticulosa e, desde lá, começa a se espalhar um período viral e corrosivo no âmbito político-institucional no país.

Lembro-me de estar escutando pela rádio a votação pelo "impeachment" de Dilma naquele 17 de abril. Ao declarar seu voto, Bolsonaro rendeu homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra1. Mas, ao invés de receber voz de prisão e sair algemado do Congresso Nacional foi aclamado por boa parte da plateia ali presente. Impossível não lembrar daquela imagem de Dilma, mulher jovem de 22 anos quando julgada pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no Rio de Janeiro, registrada por Ricardo Batista Amaral (2011).

Ao observar a imagem2, os militares da tribuna escondem o rosto. Sabe-se que é típico dos algozes se esconderem, atrás de fardas, títulos, corporações ou codinomes. Mas, na mesma imagem, Dilma mantém os olhos abertos e a cabeça erguida. Ao relembrar essa imagem fiquei pensando em nossa Anistia branda, que perdoou os torturadores e nos efeitos pós-Anistia, na permissividade concedida aos algozes.

Ao analisar um fenômeno psicopolítico é preciso compreender seu amplo espectro. Cabe analisar as disputas em torno às significações que objetivam e ancoram diferentes significações na vida social e nos imaginários coletivos em torno à formulação/produção do fenômeno em análise. Cabe analisar as ações simbólicas e materiais que forjam uma série de tendências e posições que, inclusive, dividem a sociedade em torno à disputas de sentido, de narrativas, levando ao contexto dos extremismos políticos.

Em relação ao fenômeno Bolsonaro, aqui denominado Vírus B-17, se pretende evidenciar a capacidade viral do fenômeno político. O hífen 17 faz alusão ao Partido Social Liberal, partido com o qual B. chega à presidência. Hoje o presidente se declara sem partido.

O cenário das últimas eleições no Brasil colocou em evidência dois projetos bem distintos, deflagrando um sólido conflito na arena política em disputa. De um lado, a cor verde e amarela, símbolo da bandeira nacional usado por grupos de direita e de extrema direita, recuperando o sentido patriótico do uso das duas cores. Retumbante era também o grito de retomada da ordem e do progresso, frase que estampa a bandeira do Brasil. Um elemento emocional nessas mobilizações era o ódio disferido por centenas e milhares de pessoas que gritavam em defesa de armar a população, de privatizar as empresas estatais, de retomar a família tradicional, de tirar o PT - e os comunistas do poder, de garantir segurança ao "cidadão de bem".

Estava declarada uma guerra contra a esquerda, contra a justiça social, contra a diversidade, contra os tantos direitos conquistados a duras penas por diferentes movimentos sociais e históricos do Brasil. Sabe-se que o ódio impregna os afetos, a cognição e inflama os olhos de quem odeia. As palavras de ordem "arma, família, estado mínimo, Deus" eram proferidas em tom feroz e agressivo, isolando possibilidades de diálogo entre ideias divergentes.

De outro lado, as mobilizações dos grupos de esquerda, de centro-esquerda, movimentos sociais, grupos progressistas, feministas, LGBTQIA+, grupos de direitos humanos, sindicatos, trabalhadores em geral. A cor vermelha, vinculada aos comunistas, se misturava a uma palheta de cores de muitos movimentos sociais que lutam, há longa data, por um Brasil mais equitativo num país que assenta suas bases na colonização, escravização e opressão. Nessas mobilizações se viram muitas pessoas. Pessoas de cores, idades, bandeiras diversas. Essas mobilizações foram entoadas pela arte, música, poesia, pela possibilidade se fazer política sensível e proximal. Lembro-me do sábado 29 de setembro de 2018 quando quatro milhões de pessoas participamos das marchas "Mulheres contra Bolsonaro: Ele não!", espalhadas nas capitais de todo o Brasil.

Apesar da mensagem clara: Ele não! a luta soou dissonante. Nas variadas redes sociais verde-amarelas a mobilização foi enquadrada como dispersa, sem pauta específica, de mulheres feministas histéricas que atacavam Bolsonaro sem razões aparentes. Enquanto protestávamos nas ruas, grupos se reuniam em templos, igrejas e rezavam por nós, pedindo misericórdia aos cordeiros errantes do rebanho, dissidentes descompensados, mulheres desequilibradas. No hermetismo dos templos também era orquestrada uma massa de manobra que saia dali com o voto decidido (pelo pastor).

Foram momentos de muita angústia, tal como a obra esquecida de Graciliano Ramos (1936), escrita desde o cárcere, quando o autor foi preso pela polícia política de Vargas mesmo sem acusação formal. Escrito em 1936 o livro, se lido hoje, parece escrito para um Brasil recente ou que se ressente. São tempos sombrios naquele e nesse Brasil. O protagonista Luís da Silva é um homem solitário, perdido, angustiado em meio à modernização acelerada de um país chamado Brasil, país conservador, patriarcal e escravista. Os sentimentos de Luís da Silva são tão vívidos que fazem a boca ficar amarga, gosto metalizado na língua.

Muitos acontecimentos e dimensões compõem esse espectro explicativo-interpretativo. Após 20 anos de sucessivos governos militares, de 1964 a 1985, as eleições foram basicamente disputadas, de um lado, pelos autoproclamados democratas e socialdemocratas, principalmente vinculados ao PSDB e, de outro lado, pelos partidos assumidamente de esquerda, dentre os quais sempre se destacou o PT sob a liderança de Lula. Passados os 13 anos de governos do PT, de 2003 a 2016, nem os democratas, os socialdemocratas, nem os setores de esquerda acreditavam que a direita pudesse chegar novamente ao governo.

Conforme o Mapa da Fome apresentado pela ONU para Agricultura e Alimentação (FAO) em 2013, o Brasil reduziu, entre 2001 e 2012, em 75% a pobreza extrema, índice que classifica as pessoas que vivem com menos de U$ 1 ao dia. O relatório evidencia que foram investidos aproximadamente U$ 35 bilhões em ações de redução da pobreza, sendo o Brasil um dos países com maior progresso no combate à fome, com destaque ao programa Fome Zero, criado durante o governo Lula3.

Lula e Dilma fizeram uma gestão pública voltada às minorias sociais, que no Brasil são as maiorias populares. Num país de elites sociais, culturais e educacionais, Fernando Haddad, quando ministro da Educação implantou uma política de abertura e democratização das universidades públicas e privadas (FIES, PRONUNI, Política de Cotas), além de investir em educação básica e laica em diferentes níveis.

Mas, afinal o que aconteceu como nossa jovem democracia? A democracia brasileira sempre esteve numa esticada e cambaleante corda bamba. As elites brasileiras, de longa data, sempre foram racistas e patrimonialistas. Os direitos humanos, sociais e políticos pairavam efêmeros numa falsa normalidade constitucional conquistada, mas premente. Facilmente esses frágeis direitos foram sacralizados, tal espinha atravessada na garganta dos setores conservadores que não se privaram de vociferar e agir no contra.

É verdade que nossos governos de esquerda talvez tenham descuidado em manter ativos os canais de formação e fortalecimento das bases sociais, tenham se distanciando dos movimentos sociais cooptando bases sindicais, tenham mesmo leiloado o Pré-Sal e rifado a Petrobrás abrindo espaço às especulações e interesses do capital internacional. Nem Lula nem Dilma levaram adiante a reforma agrária e assistimos a financeirização do ambiente e da educação à iniciativa privada em governos de conciliação. Mas, talvez, essas análises ainda sejam precoces ou indevidas. Os limites da democracia brasileira devem ser compreendidos no contexto do neoliberalismo, da crise estrutural do capitalismo e dos limites dos governos petistas.

Talvez, a esquerda tenha, tanto no cenário nacional quanto internacional, se rendido à incapacidade de alcançar uma força de convergência capaz de enfrentar seu adversário legítimo e comum: a direita conservadora e os axiomas do capital neoliberal. Essa forma axiomática, espalhada e penetrante que o capitalismo ocupa nas vidas, nas geografias, nas dimensões micro e macropolíticas. Talvez o esgotamento da esquerda tenha aberto as portas ao crescimento vertiginoso da direita, do conservadorismo e do extremismo.

O papel desempenhado por Bolsonaro na conjuntura eleitoral deu visibilidade às disputas simbólicas já espalhadas por todo o território nacional desde o fim do regime militar: forte polarização de posições explicitadas, de um lado, pelo apoio às ideias defendidas pelo governo em prol de uma nova política e, de outro, o apoio à esquerda ainda que muito fragilizado após a retirada de Dilma.

Nesse terreno de disputas acirradas pela narrativa mais legítima sobre o momento nacional, cabe uma análise psicossociológica detalhada do fenômeno Bolsonaro, considerando dimensões cognitivas, afetivas, socioculturais e subjetivas de produção. A onda de atrocidades e retrocessos começou a ser forjada no âmbito institucional por Bolsonaro e seus grupos apoiadores: uma parte muito expressiva do Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, a elite empresarial brasileira, a Rede Globo de televisão que, por sua vez, soube agenciar magistralmente a demonização petista, além dos grupos já antes nomeados.

Já afirma a Psicologia Social que o simbólico é psíquico e que as ideias, quando repetidas muitas vezes, acabam se tornando crenças. Dia após dia a onda de atrocidades e conservadorismos engrossava, se espraiando nas mentes e corações de muitas e muitos eleitores. O terreno simbólico é poderoso e as imagens e formas se desdobram em conteúdos. As entrelinhas das significações se convertem em práticas concretas, engordando um imaginário social conservador que odeia a esquerda, odeia as minorias sociais e seus movimentos, odeia o Estado democrático.

Nesse âmbito, podemos pensar no rastro deixado pela perspectiva liberal ampliada, na aliança entre liberais, ultraliberais, ultraconservadores. Mas, pensar também, no amplo espectro do perfil eleitoral de Bolsonaro: a classe média brasileira, empresários, mulheres, pretos, gays e pobres. Ainda, muitos apoiadores do Partido dos Trabalhadores (PT) não se identificam com a esquerda intelectual representada por Fernando Haddad e Manuela D´Ávila. Estamos situando aqui um amplo espectro de identificações, pois boa parte do eleitorado de Bolsonaro representa a classe média emergente da sociedade brasileira que, durante os governos petistas se beneficiou das políticas sociais, assistenciais, adquiriu casa própria, viu o filho entrar ou se formar na universidade pública, mas ao olhar-se no espelho odeia ver refletir e se identificar com o que um dia foi. Tem ainda a classe média que não quer pagar a conta das políticas públicas sociais. Quanto ao extrato eleitoral cabe mais um registro: Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos contra 45% de Haddad, as abstenções somaram a cifra histórica dos 21% e os votos brancos e nulos somaram 9,5%. Os dados indicam que Bolsonaro teve menos da metade dos votos, considerando aqueles que foram votar, os 39% do eleitorado total. Bolsonaro obteve a terceira menor vitória no segundo turno desde a redemocratização. E, em relação ao primeiro turno, Fernando Haddad (PT) cresceu mais que Bolsonaro, passando de 29% para 45%. Bolsonaro saiu de 46% para 55% (Máximo, 2018). O conjunto de dados evidencia que foram muitas as pessoas que não escolheram Bolsonaro como presidente e muitas outras decidiram não votar ou anular o voto.

Feita essa exposição sobre o perfil eleitoral de Bolsonaro, passo a analisar a psicossociologia do fenômeno, percorrendo seis analisadores B: (a) Bannon. (b) Banalização do mal. (c) Bíblia. (d) Boi. (e) Bala. (f) Balbúrdia. Outros analisadores poderiam ser elaborados como, por exemplo, um analisador alusivo ao governo da Barbárie, discutindo as políticas de retirada de direitos sociais, privatização, desmonte de serviços públicos, políticas com potencial "civilizatório" no capitalismo. Seria interessante analisar também outro B, do Baixo Clero, expressão usada para designar parlamentares pouco expressivos politicamente ou mesmo àqueles envolvidos em crimes de corrupção. Mas, nesse artigo vamos nos ater aos seis analisadores antes mencionados, a fim de aprofundá-los através de dados, teorizações e compreensões.

O primeiro B se refere a Bannon (Stephen Kevin Bannon), assessor de campanha de Donald Trump que, segundo declarações do próprio Bolsonaro, se propôs a ajudá-lo na corrida eleitoral. De fato, Bannon demonstrou estratégias aprendidas e funcionais: a campanha de Bolsonaro foi basicamente feita nas redes sociais, operando com base em fake news e a facada disferida contra o Bolsonaro em um ato de campanha permitiu que ele, convalescente, não participasse de um único debate com seus adversários, principalmente Fernando Haddad com quem disputava o páreo. Bannon representa as artimanhas de campanha feitas em composição com os Estados Unidos num contexto de pós-verdade. Bannon representa as tentativas de desglobalização, a constituição de uma internacional "iliberal" da qual fazem parte não só Trump e Bolsonaro, mas figuras como Orban (Hungria), Salvini (Itália) etc.

O segundo B diz respeito à banalização do mal, deflagrada por um sujeito aclamado como "mito", escondido atrás da imagem de um líder forte, que promete conformar a nova política, ainda que sem apresentar um projeto. Afeto à linguagem chula ataca veementemente a Constituição Federal. Nem as pedaladas fiscais, nem o envolvimento com milicianos, nem os esquemas de corrupção com seus assessores são suficientes para destituí-lo. O desmonte do ensaio de walfare state iniciado pelos governos petistas, a promessa de privatização do Estado e abertura do mercado ao empresariado brasileiro parecem, por hora, variáveis a seu favor.

A bíblia representa o terceiro B, a bancada evangélica do Congresso Nacional, os grupos neopentecostais que retomaram com vigor a defesa da família tradicional contra aos direitos à diferença, contra os grupos LGBTQIA+. Uma e outra vez, em seus discursos desbocados, o presidente inicia ou conclui com o bordão "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Passados quase dois anos do governo de extrema-direita liderado por Bolsonaro, se constata o desmonte de políticas de combate às opressões e o recrudescimento de discursos conservadores que fomentam as políticas de ódio e a formulação de imaginários sociais retrógrados contra as diferenças.

A bíblia serve de metáfora para analisar o alinhamento ideológico dos grupos neopentecostais às políticas de governo, influenciando no Congresso Nacional, decidindo nos ministérios e forjando imaginários e práticas sociais junto às camadas populares da sociedade brasileira. Lembro-me de estar percorrendo os caminhos dos rios, no Pará, e ver em meio à floresta os puxadinhos das igrejas evangélicas. Trata-se de ação de base comunitária de ampla penetração. Penetração vertical que vai da base comunitária ao Ministério, colocando Damares Alves, uma pastora evangélica à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Boi é nosso quarto B. Os grupos do boi representam a bancada ruralista do Congresso Nacional, os grandes pecuaristas, fazendeiros, os conhecidos latifundiários, donos das terras e ferozes defensores do agro-pop-negócio. O boi funciona como uma referência identitária à bancada ruralista e essa marcada tendência do governo Bolsonaro em defesa do agronegócio, do latifúndio, pela abertura da Amazônia aos madeireiros, mineradores, pela extinção das comunidades tradicionais, pela negação do direito a terra em defesa de uma agricultura familiar que, no Brasil é responsável por 80% da produção de alimentos.

Trata-se, ainda, de um conjunto de operações que servem para instituir ações em derrocada às políticas socioambientais conquistadas e vigentes nas ultimas décadas, fomentando o monocultivo e o extrativismo disseminado pelas multinacionais. Podemos, ainda, fazer uma analogia do boi ao instinto de rebanho proposto por Nietzsche (2005, 2009), o comportamento de manada, do grupo que segue a lógica, a direção determinada pelo que vai à frente, reagindo da mesma forma sem questionar.

A bala é o quinto analisador. Representa os "cidadãos de bem", pessoas comuns que apregoam que "bandido bom é bandido morto", defendem com unhas e dentes o pacote anticrime do juiz da Lava Jato, ex-ministro Sérgio Moro. São aqueles empresários que desejam regular o comércio armamentista no Brasil. Esses grupos defendem o projeto de militarização social em troca de elevar os níveis de segurança social e redução da criminalidade. Está em jogo a regulação das armas, a liberação e fortalecimento desse mercado, venda casada ao discurso que propaga o medo, reforça preconceitos, garantindo proteção e segurança. O próprio discurso de segurança alberga dissonâncias: se o presidente promete um Brasil mais seguro, porque seria necessário armar os cidadãos? Uma imagem4 se fez popular, em junho de 2018 durante ato de campanha em Goiânia, em que Bolsonaro aparece apontando os dedos simbolizando uma arma. Não bastasse a força semiológica da imagem, ele faz a criança imitar o gesto. O símbolo viralizou nas redes e os eleitores de Bolsonaro postaram também suas fotos nas redes sociais, inclusive exibindo armas, imitando a atitude do candidato.

O sexto analisador é a balbúrdia. O ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub afirmou que o Ministério cortaria recursos de universidades que não apresentassem desempenho acadêmico esperado e estivessem fazendo "balbúrdia". Uma espécie de castigo, sendo que atualmente as universidades já enfrentam o contingenciamento de 30% de seus orçamentos e cortes de bolsas de pesquisa, de Mestrado e Doutorado e corte de fomento às pesquisas em Ciências Humanas.

Produz-se o achincalhamento da ciência no Brasil e o desprezo às universidades públicas. Na esteira das punições e controles, o Ministério da Educação lança o projeto Future-se - flexão verbal inexistente na língua portuguesa. O projeto promete desmontar com a autonomia universitária e financeira das Instituições de Ensino Superior federais, 'patrolando' os Conselhos Universitários e a tomada de decisões da comunidade universitária. O ponto nevrálgico do projeto é o vínculo dos contratos de trabalho, programas de pesquisa às Organizações Sociais - se entenda as OSs como empresas de direito privado que vendem bens públicos, visando lucro. Tanto é assim, que o ministro anunciou que, no escopo do Future-se os contratos passariam a ser por vínculo celetista, exterminando os concursos públicos federais. Trata-se da universidade pública jogada à livre especulação do mercado, das empresas e à mercê de suas vontades e regulações. Esse projeto exalta a força das Organizações Sociais, que nada mais são que a iniciativa privada como braço executor das políticas públicas que deveriam ser do Estado.

O Future-se vem orquestrado a outros interesses: o fomento à financeirização da educação, um projeto bem atado aos interesses do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico e grupos empresariais brasileiros que vendem pacotes, apostilas e programas de educação aos Estados e prefeituras. Esse grande projeto retoma a elitização das universidades no Brasil. Cabe lembrar que o ensino superior no Brasil foi acontecimento tardio se comparado à Europa e mesmo à América Latina. Somente no início do século XIX tivemos as primeiras instituições de ensino superior, quando a corte portuguesa se transfere à colônia, em 1808. A universidade brasileira nasceu voltada às elites, com o objetivo de fornecer quadros profissionais para desempenhar diferentes funções ocupacionais na corte. Como herança do Brasil colônia, o ensino superior no Brasil mantém diferenças marcantes: as instituições de ensino superior públicas concentram 26% das matrículas, enquanto o setor privado absorve 74% dos estudantes. Um total de 85% das IES são privadas, sendo que a metade delas se declaram com fins lucrativos (Sampaio, 2011).

A democratização do ensino superior, apenas iniciada no país, se desmantela. O atual Ministério da Educação, alicerça um projeto de universidade para as elites, sendo que a porcentagem de pretas/os nas Universidades é de 55% em relação aos 80% de brancos/as (IBGE, 2018). O ministro5 justifica essa disparidade em alto e bom som: a universidade não é para todos!

Toda a "balbúrdia" promulgada pelo ministro e seus assessores, serviu para atacar fortemente as professoras/es, estudantes e comunidades universitárias, etiquetando-os de "comunistas, esquerditas, marxistas" em total desrespeito à constituição, à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ao livre pensar, que deve constituir as bases da universidade pública.

Essa onda de extremismos de direita se expande no Brasil e na América Latina, mas também é um fenômeno marcante nos últimos anos nos EUA e em alguns países da Europa. Conforme Hur e Sabucedo (2020), extremismos desse tipo se concentram na retomada de poder pelas direitas conservadoras, propagação dos discursos nacionalistas, racistas, xenófobos que alimentam as práticas de ódio e demarcam fronteiras de polarização política, cisões no campo das paixões humanas que refletem, consequentemente, no campo das paixões políticas. Regimes extremistas alimentam cognições, atitudes e comportamentos rígidos contra a diferença, o estrangeiro, seguindo a lógica da rejeição e da negação do Outro.

 

Contágio e Influência Social

Não é uma gripe, um joelho ralado. Não é garganta inflamada. Nem piolho. Não é sinusite, otite, cansaço. Não é o que passa com antibiótico, analgésico. Picada de inseto, bicho-de-pé, dor de cabeça não é. É um desacerto, um desconforto, um desatino, uma dispersão. A terra chama alguém pro chão. Mas eu não, eu não. Ainda não sei morrer. Ainda não sei não". (Mosé, 2007, p. 32)

Da noite para o dia a província de Wuhan, lugar recôndito do mapa, se avizinhou ao Brasil. Fronteiras foram reduzidas. O vírus mostrou poder de contágio transnacional, massivo, contaminando ricos e pobres.

O fenômeno da Covid-19 colocou em evidência o total despreparo de Bolsonaro no governo do país. Nem o governo aprendeu nesse tempo histórico em que a epidemia já vinha se alastrando dos confins de Wuhan para o resto do mundo, nem as políticas traçadas no campo da saúde, educação e os crimes já cometidos pelo governo permitiram adotar estratégias de enfrentamento à pandemia.

Ao invés disso, Bolsonaro zombou do vírus atribuindo-lhe um valor menos importante, chamando a pandemia de "gripezinha" e "resfriadinho". O presidente zombou das diretrizes da Organização Mundial da Saúde, da ciência e dos/as cientistas e equipes de saúde. Enquanto líderes do mundo inteiro tratam a Covid-19 como assunto seríssimo, agindo de forma emergencial, Bolsonaro ignora a recomendação sobre o uso de máscara e as medidas de prevenção e combate ao coronavírus e afirma que o Brasil poderia abandonar a OMS. Em imagem6 que se popularizou na internet e jornais de todo o mundo, o presidente literalmente tapa os olhos para não ver a realidade.

Pronunciamento após pronunciamento, o presidente evidencia que a roda da economia não pode parar e que os mais pobres terão de se sacrificar, pois não podem adotar as medidas de isolamento. Sabe-se que, além dos altos índices de desemprego que assolam o Brasil, atingindo 12 milhões de pessoas (IBGE, 2020), o país tem vivido a precarização do trabalho com o fenômeno da uberização laboral: 40% de trabalhadores/as estão na informalidade, sem nenhum direito trabalhista assegurado. A miséria assola o país. Medidas sanitárias são restritas e 35 milhões de brasileiros/as nem sequer tem acesso à água em suas casas e 100 milhões não contam com condições de saneamento (INBEC, 2019).

Em contextos tão desprovidos do mais básico, o isolamento e as medidas preventivas ao contágio do Covid-19 ficam relegadas a uma parcela seleta e privilegiada da população. Há então, camadas e camadas de pessoas impedidas de atender ao imperativo do "fique em casa". Nessa circunstância, em que o isolamento é ação coletiva para garantir o direito à vida, é o governo que dever elaborar políticas e estratégias para que todas as pessoas possam cuidar e garantir suas vidas.

A frente do maior país da América Latina, o presidente minimiza a gravidade do problema e os números de casos aumentam vertiginosamente. Na gestão da pandemia o que temos é um desgoverno liderado por um sujeito desequilibrado e virulento. Bolsonaro é o epicentro do vírus, minimiza a gravidade do problema e entra em confronto direto com os governadores. Negligenciando os protocolos da OMS demitiu o ministro da saúde em meio à crise7. Trata-se de um governo em colapso e Bolsonaro é avaliado, por diversas mídias internacionais como o pior líder do mundo.

Só no mês de março de 2020 o presidente cometeu uma série de crimes. Em 11 de março a OMS declara estado de pandemia pelo novo corona vírus e lança um conjunto de recomendações para evitar o contágio e a proliferação do vírus, conscientizando a população sobre a real capacidade do Sistema Único de Saúde e a importância de manter o isolamento. Nesse período, Bolsonaro retorna de uma comitiva dos EUA em que alguns membros participantes testam positivo ao exame. Bolsonaro afirma que o contágio é problema seu e que a mídia está promovendo uma histeria coletiva sem fundamento. Ainda, Bolsonaro convoca uma manifestação para o dia 15 de março contra o Congresso Nacional e o STF, atentando contra o livre exercício dos poderes. Dias seguidos, Bolsonaro desmente ter feito a convocatória. Uma e outra vez o presidente sai a público sem as medidas de proteção e incentivando as aglomerações. Bolsonaro exerce uma real ameaça ao poder executivo, comete sucessivos crimes contra a Constituição Federal, viola o decoro parlamentar, fragiliza as instituições democráticas e suprime qualquer tentativa de estabilidade política no país (Vídeo MST, 2020).

No mês de julho, Bolsonaro anunciou que testou positivo ao novo corona vírus. Alguns vídeos viralizaram, exibindo o presidente fazendo uso da cloroquina e manifestando recuperação. A OMS interrompeu o uso de cloroquina8 no tratamento da Covid-19.

Em meio à crise instalada pela pandemia, Bolsonaro estimula que as pessoas retornem aos seus trabalhos. Nas palavras do presidente "o pobre terá de se arriscar". Em sua visão, há vidas que valem ser mantidas e outras exterminadas, vidas do fora. Paul B. Preciado (2020) explica que a obra de Foucault nos entrega uma análise histórica das diferentes técnicas de poder na gestão da vida e da morte das populações, em que o corpo não é um organismo biológico sobre o que atua um poder. A tarefa da ação política, em si, é fabricar um corpo, colocá-lo a trabalhar, definir seus modos de reprodução. A biopolítica situa essa relação do poder com o corpo social na Modernidade, incluindo os interesses e as decisões políticas sobre quem irá viver ou morrer.

Quando deputado federal Bolsonaro declarou em uma entrevista que o voto não ia mudar os rumos políticos no Brasil. Para ele, a única mudança virá de uma guerra civil que faça o que o regime militar não fez: matar uns 30 mil cidadãos.

O presidente estimula constantemente que estudantes e professores voltem às escolas e universidades e que as pessoas voltem às ruas. No início de julho, o presidente vetou o uso obrigatório de máscaras de proteção em estabelecimentos comerciais, templos e instituições de ensino. Vetou também a obrigação do governo na distribuição de máscaras às populações menos favorecidas e população carcerária e a liberação da verba emergencial para indígenas e quilombolas. Tal posicionamento deixa evidente a intencionalidade criminosa do governo e sua política genocida, de deixar morrer os mais pobres ou aqueles grupos que não forjam as elites nacionais. Não fossem as legislações locais, em que estados e municípios têm feito a própria gestão da crise, cumprindo o papel do Ministério da Saúde, a situação brasileira estaria ainda pior. Ante tanta atrocidade, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia protocolou uma representação contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional em Haia, países baixos.

A relação adversarial entre o executivo federal com o legislativo e o judiciário abala fortemente qualquer garantia democrática e exacerba uma viropolítica contagiante, extremista, alinhada à lógica capitalística neoliberal de estado mínimo. O empresariado brasileiro também dá demonstrações de ter-se contagiado. As carreatas verde-amarelas aclamam a convocatória do presidente de retomar a economia, pois a economia não pode parar e pedem fim do distanciamento social, intervenção militar imediata e novo AI-5. O comando desastroso da presidência ante a pandemia já fez Bolsonaro perder 40% dos 55% de apoiadores que o colocaram na presidência (ZHGaúcha, 2020).

 

Anticorpos: corpos e forças resistentes (?)

O vírus evidenciou não só o despreparo de Bolsonaro, mas do capitalismo. Sua origem, até o momento, está relacionada com inúmeros limites do capital: o fechamento de fronteiras é impossível por conta das necessidades do capital; tanto a extrema-direita de tipo Bolsonaro, Orban, Trump, quanto a direita tradicional que defende a flexibilização de medidas sanitárias para combater a pandemia em prol de medidas econômicas. Já mencionei nesse artigo que o vírus também tem a capacidade de estimular a produção de anticorpos. O enfrentamento a um vírus vai fazendo com que os organismos vivos desenvolvam anticorpos de enfrentamento, proteção e defesa.

O Brasil ultrapassa as 572 mil mortes. O Brasil apresenta uma péssima gestão da pior crise sanitária já vivida no país. Então, ainda é cedo para assumir elevado grau de otimismo. A pandemia poderá não trazer nenhuma consequência política significativa ao exercício dos governos no Brasil. Ainda que Bolsonaro venha perdendo apoio popular, boa parte das elites conservadoras e empresarias esperam ver salvaguardadas as garantias econômicas e concessões asseguradas. Isso concede ao governo revestir-se de certa imunização política. Talvez seja precipitado pensar na virada capitalística ou mesmo numa convergência de forças capaz de mudar o rumo da política neoliberal já aprendida no curso da história colonial e patrimonialista brasileira.

Não obstante, é inegável a capacidade social de produzir anticorpos. Aqui lembro o psicólogo social Sérge Moscovici de sua polêmica Psicologia das Minorias Ativas, quando num cenário dominado pela Psicologia funcionalista dos EUA nos anos 90, ele mostrou que os grupos inconformados não se resignavam, mas eram dissidentes, contestadores, ainda que em minoria. Releio Moscovici (2011, p. 104) "a atitude que deve ser mudada é a do indivíduo ... só poderemos falar de uma autêntica mudança social quando tenhamos invertido os termos, fazendo do grupo em seu conjunto, de suas normas e de seus atributos, o alvo da mudança e dos indivíduos e das minorias a fonte destas mudanças".

Nossos medos, faltas e angústias abrem passo à capacidade de oposição, de re-existência, trabalho e ação, a fim de reerguer uma base social democrática radical. Parecem se fortalecer algumas bases grupais, comunitárias, institucionais, arranjando novas figuras e lugares políticos - configurações, aprofundando debates urgentes sobre as diferentes economias, ecologias e governos.

Sem dúvida, nossas aprendizagens estão sendo reinventadas e nossos afetos experimentam novas modulações. Há inúmeras redes formadas no campo da ciência, desenvolvendo pesquisas e ações estratégias de enfrentamento à pandemia, no campo das Artes, fomentando festivais, debates e campanhas de conscientização e solidariedade; grupos sociais e redes comunitárias articulando pessoas, novas configurações comunitárias e locais. Há, de fato, inúmeras manifestações de resistências antifascistas levantadas por setores extremamente diversos como a esquerda socialista, os trabalhadores de aplicativos, as equipes de profissionais da saúde, servidores públicos etc. Cabe registar, ainda, o extrato eleitoral geral das eleições municipais 2020, em que Bolsonaro teve um peso eleitoral bem menor do que o esperado, pois a rejeição ao presidente afetou negativamente os candidatos apoiados por ele. Essas iniciativas e seus efeitos políticos podem ser considerados anticorpos extremamente importantes à política viral em curso.

Assim, é importante rever tempos, reencontrar afetos ora solapados pela força realista do cotidiano, potencializar nossa capacidade de fazer política desde a produção do conflito, do litígio, sem buscar a conformidade, assumindo a luta como companheira de andança. Como diz Conceição Evaristo (2014) eles combinaram de nos matar, mas decidimos não morrer.

 

Referências

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Recebido em: 20/07/2020
Aprovado em: 24/11/2020

 

 

1 Torturador. Foi coronel do Exército Brasileiro, chefe do DOI-CODI do II Exército de 1970-74, um dos órgãos atuantes na repressão política durante a ditadura civil militar brasileira. Também era conhecido codinome Dr. Tibiriçá. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos Alberto_Brilhante_Ustra
2 https://www.brasildefato.com.br/2020/01/15/dilma-rousseff-tortura-e-dor-e-morte-eles-querem-que-voce-perca-a-dignidade
3 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2014/09/16/brasil-reduz-a-pobreza-extrema-em-75-diz-fao.html
4 https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/07/20/interna_politica,696300/em-goiania-bolsonaro-faz-crianca-simular-uso-de-arma-de-fogo.shtml
5 Frase de Ricardo Vélez Rodríguez que ficou apenas três meses a frente do Ministério da Educação, sendo substituído por Abraham Weintraub, que também deixou o Ministério. O penúltimo indicado a ministro, Carlos Alberto Decotelli não chegou a ser empossado por mentir em seu Currículo Lattes. O atual ministro, Milton Ribeiro mantém o discurso da Universidade para as elites, do negacionismo científico e contra a Ed. Inclusiva de Pessoas com Deficiência (PcD) nas escolas regulares.
6 https://www.plataformamedia.com/2020/06/06/bolsonaro-diz-que-brasil-pode-abandonar-oms/
7 Em plena pandemia o Ministério da Saúde passou por 4 ministros, ficando inclusive com vacância no cargo, sendo ocupado por Bolsonaro. Após um período com Eduardo Pazuello como ministro interino, Marcelo Queiroga assumiu a pasta. As demissões deveram-se, principalmente, por discordâncias de Bolsonaro na condução das medidas adotadas pelos ministros em relação à pandemia.
8 A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a interrupção do uso da cloroquina e hidroxicloroquina contra a Covid-19. O motivo é o estudo publicado pela revista científica Lancet que mostrou que não só não há benefícios no uso desses medicamentos contra o vírus SARS-CoV-20 como há risco de morte. (Fonte: PORTAL PEBMED. https://pebmed.com.br/oms-suspende-o-uso-da-cloroquina-e-hidroxicloroquina-em-testes-contra-a-covid-19/).

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