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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

Atitudes que fazem a diferença: coronavírus e os coletivos nas favelas

 

Attitudes that make a difference: coronavirus and the collectives in the favelas

 

Actitudes que hacen la diferencia: coronavirus y los colectivos en las favelas

 

 

Caique Azael Ferreira da SilvaI; Cristiana de Siqueira GonçalvesII; Cristiane DamedaIII; Rosa Maria Leite Ribeiro PedroIV

IBacharel em Psicologia e discente do curso de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CAPES). Pesquisador no Dicionário de Favelas Marielle Franco (Fiocruz) / caiqueazael12@gmail.com
IIPsicóloga e doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ) / cristianasiqueira@yahoo.com.br
IIIPsicóloga, especialista em Proteção de Direitos e Trabalho em Rede, mestra em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e discente do curso de Doutorado em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CNPq) / crisdameda@gmail.com
IVPsicóloga, doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ), Professora Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ / rosapedro@globo.com

 

 


RESUMO

A chegada da pandemia do coronavírus no Brasil muda profundamente a dinâmica de vida da população. No que diz respeito às favelas e periferias, uma série de desafios para a efetivação das prescrições sanitárias contra o vírus escancaram a forte desigualdade que é estruturante da sociedade brasileira e que o vírus pretensamente democrático na verdade ganha outras características no contato com a desigualdade social e o racismo. A indiferença do poder público com determinados territórios, motivadas por uma racionalidade de governo orientada pela necropolítica outorga à população a responsabilidade de se organizar para garantir alimentação, cuidados em saúde e informação aos moradores. O papel do coletivo no enfrentamento às violações de direitos e construção de mundos possíveis é reafirmado pelas ações de solidariedade e pela tentativa de construir outros futuros para os que sofrem com violências todos os dias.

Palavras-chave: Covid-19; Solidariedade; Favelas; Desigualdades; Coletivos.


ABSTRACT

The arrival of the coronavirus pandemic in Brazil profoundly changes the life dynamics of the population. With regard to favelas and suburbs, a series of challenges for the implementation of sanitary prescriptions against the virus expose the strong inequality that structures Brazilian society and also shows that the allegedly democratic virus actually assumes other characteristics in contact with social inequality and the racism. The indifference of public authorities to certain territories, motivated by a government rationality guided by necropolitics, gives the population the responsibility to organize themselves to guarantee food, health care and information to residents. The role of the collective in confronting violations of rights and building possible worlds is reaffirmed by actions of solidarity and by the attempt to build other futures for those who suffer from violence every day.

Keywords: Covid-19; Solidarity; Favelas; Inequalities; Collectives.


RESUMEN

La llegada de la pandemia de coronavirus a Brasil cambia profundamente la dinámica de vida de la población. Con respecto a las favelas y las periferias, una serie de desafíos para la realización de prescripciones sanitarias contra el virus abren de par en par la fuerte desigualdad que está estructurando la sociedad brasileña y que el virus supuestamente democrático en realidad adquiere otras características en el contacto con la desigualdad social y el racismo. La indiferencia de las autoridades públicas hacia ciertos territorios, motivadas por una racionalidad del gobierno guiada por la necropolítica, otorga a la población la responsabilidad de organizarse para garantizar alimentos, atención médica y información para los residentes. El papel del colectivo contra las violaciones de los derechos y la construcción de mundos posibles se reafirma mediante acciones de solidaridad y el intento de construir otros futuros para los que sufren con la violencia todos los días.

Palabras clave: Covid-19; Solidaridad; Favelas; Desigualdades; Colectivos.


 

 

Corona tá na pista e eu vou ficar em casa
Se liga aí os irmão e as mina da quebrada
Quarentena tá na pista
Eu vou ficar de casa

Debaixo do edredom
Junto com a minha namorada
Esse papo é pá favela
Pras irmã e pros irmão
Se tu tá tudo bem
Vê se tu pega a visão:

Devemos lavar as mãos
Álcool em gel é a parada
Se espirrar tampa com o braço
E não põe a mão na cara
São pequenas atitudes que fazem a diferença
Age com sabedoria
Pra evitar as consequências
Não vou dá aglomeração pro
Pagode e pro bailão
Daqui a pouco tá tranquilo
Pra voltar pra curtição (...)

(Corona Funk, Mc Tchelinho)

 

Introdução

Em dezembro de 2019 foi identificado o primeiro caso de Covid-19 - doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) - na cidade chinesa de Wuhan. Ainda que a origem deste vírus não esteja definida, seus efeitos já são conhecidos por todo o mundo. Atualmente, pouco mais de cinco meses após o primeiro caso, o coronavírus, esse ser microscópico, cuja ação não se restringe aos corpos biológicos, já fez-fazer1 em todos os continentes, fechando aeroportos, comércios, reconfigurando os fluxos nas cidades, diminuindo a poluição do ar e das águas2, mobilizando governos, médicos e outros profissionais da saúde, cientistas, economistas, jornalistas, analistas e todos os cidadãos que viram suas vidas modificadas pela ação desse vírus. Desde dezembro, mais da metade da população mundial passou por períodos em quarentena. Em março, no início da pandemia no Brasil, músicas como a de Mc Tchelinho dão recados para os seus: "Corona tá na pista e eu vou ficar em casa, se liga aí os irmão e as mina da quebrada ...", sinalizando uma das medidas sanitárias que são recomendadas pelos órgãos de saúde para evitar a contaminação e que têm produzido mudanças concretas na vida e no cotidiano das pessoas.

Na tentativa de compreender melhor essas mudanças, estudiosos vem tecendo análises sobre como será o mundo pós-coronavírus. Autores como Boaventura de Souza Santos (2020), Giorgio Agamben (2020) Camila Jourdan (2020) e José Gil (2020) apontam para um possível aprofundamento do neoliberalismo e de uma retomada da produtividade em larga escala. Outras análises incidem também sobre a marcha de destruição do planeta, conforme destacam Srecko Horvat (2020); Ailton Krenak (2020); Jérome Baschet (2020) e Bruno Latour (2020) e, até mesmo, de um espraiamento de tecnologias de vigilância e controle (Gil, 2020; Jourdan, 2020) que, na China por exemplo, foram fortalecidas a partir da necessidade de conter a disseminação do coronavírus (BBC News, 2020).

Em um sentido, digamos, mais otimista há quem aponte para a superação do modelo neoliberal que vem se mostrando insustentável diante da atual pandemia, tal como Slavoj Zizek (2020) e David Harvey (2020). Porém, para além de pensarmos nos possíveis futuros, para a lua que o dedo do sábio aponta, deveríamos, como Latour (2012) nos propõe, olhar para o dedo que aponta para a lua3. Reapropriando-nos da música "O que sobrou do céu", do Rappa de 19994, talvez esse seja o momento de escuridão que nos permitirá enxergar aquilo que estava sendo esquecido, apagado, negligenciado na correria dos dias.

Ao lado dos futuros possíveis - que não sabemos se próximos ou distantes - o novo coronavírus, principalmente no Brasil, desloca os olhares e as preocupações de muitos de nós para as questões das periferias e favelas - locais historicamente negligenciados pelo Estado. Hoje, com a pandemia, as recorrentes dificuldades que atravessam a vida dos moradores desses lugares ficam ainda mais evidentes, com a impossibilidade de acesso ao mínimo para proteção individual e coletiva: o abastecimento de água é irregular, a dificuldade de comprar os itens de higiene (como sabonete, cloro, álcool em gel), as moradias, muitas vezes, estão em condições precárias ou superlotadas e, para além disso, as questões de renda também são um problema: o trabalho informal não garante direitos mínimos e os "bicos" são, em sua maioria, o que sustentam muitas famílias (quando existentes, considerando a suspensão de muitos desses com a pandemia). Biroli (2020) aponta que há uma dimensão multifatorial que compõe a tragédia brasileira, que nos ajuda a compreender a ausência de respostas sobre a pandemia: neoliberalismo, autoritarismo, baixa capacidade de liderança política, rechaço pela ciência e um desprezo aberto pela vida. Segundo a autora, as inseguranças sanitárias e econômicas são vividas em um contexto no qual ataques à democracia se manifestam cada vez mais abertamente (Biroli, 2020). Tal como nos aponta o filósofo Achille Mbembe (2020): as zonas do mundo que têm sido sistematicamente devastadas pelas violências estruturais serão as mais afetadas não apenas durante a pandemia, mas depois dela.

O vírus exige uma atenção diferenciada e novos hábitos para que o contágio possa ser minimizado. No entanto, tais prerrogativas e prescrições sanitárias nas favelas e periferias - assim como presídios, asilos, entre outras situações de reclusão - se constituem como um desafio que muitas vezes não consegue ser superado. Além disso, entendemos que é preciso uma análise menos generalista, que consiga considerar as diferenças entre cada território e instituição para combater o vírus e, dessa forma, avançar, na proposição de políticas que sejam mais coladas à realidade local. Numa perspectiva mais histórica, ressaltamos também não só a ausência do Estado, mas sua ação constante de desinvestimento em moradia, de apagamento e extermínio de determinados grupos, de sucateamento do sistema de saúde que os atenderia, retirada de direitos e de adoção da lógica neoliberal, que, colocando muitas pessoas à margem da produção e do consumo, não as considera como cidadãos de direito. A dimensão estrutural (Almeida, 2018) do racismo que compõe as políticas de governo no Brasil precisa ser combatida para assegurar o direito à vida de milhões de pessoas que hoje passam por situações semelhantes em seus territórios.

É verdade que o vírus mudou a ordem do dia em todos os cantos do mundo, mas podemos dizer que não mudou necessariamente a lógica que orienta o cuidado a cada parcela da sociedade. Integralidade, equidade e universalidade são os princípios basilares do Sistema Único de Saúde (SUS), por isso sua defesa e fortalecimento são impreteríveis para enfrentar o avanço do coronavírus e para vivermos, principalmente esse período de distanciamento social, com dignidade. Para tanto, algumas medidas se fazem urgentes como, por exemplo, a revogação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 que limita o investimento em setores importantes como desenvolvimento científico e tecnológico e o próprio SUS, bem como a expansão das suas políticas visando garantir a inclusão plena da população negra (atendendo as diretrizes da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, 2007) e avançar no debate de saúde nas favelas e periferias, que passa tanto pelo fortalecimento das unidades básicas de saúde quanto pelo maior investimento nos diferentes dispositivos do SUS capazes de organizar melhor o trabalho em saúde nas favelas.

Diante da pandemia, desigualdades sociais, preconceitos e outras situações anteriormente emergenciais - tidas como uma normalidade, conforme descrevem Santos (2020) e Jourdan (2020) - bem como limitações políticas e legislativas, por exemplo, ficam ainda mais gritantes e demandam tentativas de pensar ações para que o futuro seja diferente do presente e do passado. Não podemos demandar um retorno à normalidade se o "antigo normal" exterminava milhares de jovens negros todos os anos e ignorava a desigualdade que nos constitui enquanto sociedade brasileira. Mbembe (2020) sustenta que, se a Covid-19 visibiliza grandes problemas que constituem a humanidade hoje - violências étnicas, desigualdade, destruição do planeta em vários âmbitos -, nossa tarefa passa por construir uma Terra habitável, retomando o contato com o mundo para forjar um outro futuro possível. Latour (2020) sutilmente propõe que pensemos nas atividades agora suspensas pela pandemia que gostaríamos que não fossem retomadas e naquelas que gostaríamos que fossem ampliadas ou criadas do zero - a essas podemos acrescentar as atividades que estão sendo criadas e gostaríamos que se mantivessem ou fossem amplificadas. De modo mais diretivo e ampliado, se faz necessário pensar, em um plano coletivo, que práticas sociais e governamentais precisam ser postas em execução, ou ainda que outras precisam ser extinguidas para que se desenvolvam modos de vida mais saudáveis e igualitários pós-pandemia.

Pensando no nosso país, no contexto das favelas e periferias que vivem com grande densidade populacional e tantas vulnerabilidades, que condições existem para que essa população possa enfrentar mais essa crise (agora pandêmica), perante as cotidianas que já vivem? É possível fazer isolamento com escassez de recursos? A falta de dinheiro, de acesso a materiais de higiene pessoal e remédios, a dificuldade de mobilidade e a aglomeração de pessoas são elementos presentes em uma rede que performa5 modos de vida e torna alguns sujeitos mais vulneráveis ao adoecimento e à morte do que outros. Nesse sentido, há uma demonstração prática do que Mbembe (2011) descreve como necropolítica, fornecendo ferramentas para elaborar o gradiente cruel que está presente no momento em que um vírus pode vitimar um número muito maior de pessoas nas favelas, simplesmente pelo fato dessas pessoas não possuírem o mesmo acesso aos meios de se proteger, inclusive ao direito a uma quarentena digna como os moradores de outras regiões da cidade ou ainda como os que tem direitos trabalhistas assegurados.

Visto isso, este escrito tem como objetivo discutir os efeitos da pandemia nos territórios de favelas e periferias, considerando as redes estabelecidas por atores humanos e não humanos diante da emergência sanitária pois, para além das instituições governamentais, a sociedade civil têm mais uma vez, mostrado sua força de articulação e solidariedade para salvar vidas.

 

Disputar o direito à quarentena para todos

Se é bem verdade que não sairemos da pandemia como entramos, o depois ainda está em disputa e precisa ser construído, como apontam Santos (2020), Gil (2020) e Krenak (2020). Enquanto muitos defendem que o golpe que o coronavírus deu no neoliberalismo é muito forte, nossa preocupação é que, ainda que tenha mostrado seu fracasso global - nem as principais potências mundiais conseguiram lidar com tranquilidade com os efeitos da pandemia -, as estratégias neoliberais têm uma capacidade de se reinventar que é muito rápida (G1, 2020a; Poder 360, 2020). O que pode ser um futuro pós-coronavírus passa pela iminência de uma das maiores recessões econômicas da história recente, com processos de retirada de direitos inéditos na social democracia. Se vivemos um momento crítico, como aponta Latour (2020), isso tudo pode ser apenas o ensaio geral do verdadeiro problema que nos espera na próxima esquina.

Nessa mesma perspectiva problematizadora, Baschet (2020) descreve que tal pandemia pode ser uma amostra de outras catástrofes que virão devido ao desequilíbrio climático, a descredibilidade na gestão governamental, a fragilidade financeira, a expansão das linhas de crédito e o consequente endividamento, que são fatores que demarcam uma crise permanente sob uma máscara de instabilidade crescente. Para ele, a verdadeira guerra se estabelecerá entre o produtivismo compulsivo, somado a lucros e devastações, e a invenção de novas formas de existir que rompam com modelos até então postos e que sejam capazes de um cuidado com a natureza e com outros seres, bem como de uma auto-organização coletiva. Modalidades de existência que freiem a destruição da vida que, como sabemos, atinge diferentemente as camadas da nossa sociedade.

Como afirmam Luana Fernandes, Caíque Silva, Cristiane Dameda e Pedro Bicalho (2020) e Rosa Rodriguez-Bailón (2020), a pandemia não atua de modo igualitário; o risco, a resposta ao risco e ao contágio são muito diferentes. Rodriguez-Bailón cita as disparidades no enfrentamento (que não são novas, mas precisam ser evidenciadas diante das desigualdades) como as condições ruins de saúde e de acesso à saúde, bem como menor renda e mais trabalhos braçais que impedem um trabalho à distância, e menos recursos materiais, digitais e humanos para suprir necessidades educacionais, por exemplo. Mc Tchelinho aponta discretamente no seu funk tais discrepâncias: "Se ficar na favela, não podemos vacilar. Se tiver que trabalhar, ouça o que vou te dizer: lava a mão o tempo todo e nem pensa em se envolver ...". São disparidades que se acentuam e incrementam com o novo vírus e que têm como consequência mais vulnerabilidades, exclusões e menos bem estar e qualidade de vida para alguns. Características de competência e meritocracia se extenuam e desumanizam pessoas com nível socioeconômico mais baixo e são tidas como fontes de contágio pela falta de cuidados sanitários. Conforme descreve Giorgio Agamben (2020), tais sujeitos são vistos como terroristas em potencial (mais uma vez).

Assim, diante das rachaduras que são visibilizadas com a pandemia no modelo de desenvolvimento, podemos explorar algumas contradições do sistema. Por exemplo: se há a orientação dos órgãos de saúde (como OMS e Ministério da Saúde) para que a população faça distanciamento social e tome medidas restritivas para o trânsito de pessoas, objetivando diminuir a transmissão do coronavírus, por que nem todas as pessoas estão em suas casas? É fato que nem todas as pessoas que estão "furando a quarentena" o fazem por falta de condições - temos os muitos profissionais da saúde que seguem bravamente nos hospitais e laboratórios, os cientistas em busca de uma vacina, os trabalhadores dos serviços essenciais e outras categorias. Agora, não podemos ignorar que é grande a parcela dos que seguem saindo porque o sustento das suas famílias depende do dinheiro que é ganho todos os dias. Como dito, as desigualdades impedem a efetivação da orientação por muitas pessoas (Fernandes et al., 2020; Jourdan, 2020).

Visto isso, podemos dizer que a principal engrenagem que a pandemia tem a potencialidade de desvelar, dada a gestão estatal desses territórios e sobre essas populações, é justamente aquela que sustenta o neoliberalismo. A competição, os processos de individualização, a busca pelo desempenho infinito, as falsas crenças de que a liberdade vem com o acúmulo individual... tudo isso perde sentido quando o que está em jogo são os rumos da humanidade. Apesar de os dados se tornarem rapidamente obsoletos, até a presente escrita mais de 4,5 bilhões de pessoas no mundo passaram por períodos de quarentena, isto é, seis a cada 10 pessoas (Veja, 2020; O Globo, 2020). Pelo mesmo motivo, as duas maiores economias do mundo foram talvez os países mais afetados (EUA e China). Precisamos apostar na ampliação dessa percepção e disputa de cada vez mais pessoas para a defesa de uma outra construção, um outro pacto societário. A pandemia demanda um Estado forte apontam os estudiosos Sonia Fleury e Paulo Buss (2020), o que significa que o poder público precisa coordenar ações emergenciais respeitando a organização local e convocando essa para construir conjuntamente estratégias de enfrentamento, de modo que assegure estrutura necessária para superar os problemas e garanta os direitos da população.

A condição sócio-histórica que a pandemia instala no Brasil e no mundo não poderia ser pior: a expansão da miséria, o agravamento da degradação socioambiental, a iminência de guerras mundiais são alguns sintomas do tempo que vivemos. Zizek (2020) descreve que o vírus pode vencer o capitalismo, a partir da análise de que a pandemia deu um duro golpe no neoliberalismo: até os países capitalistas que estão no centro do mundo adotaram medidas de proteção social, com investimentos recordes na economia, na saúde pública, em políticas públicas universais. Ao contrário disso, o que vemos aqui no Brasil são líderes políticos e grandes empresários defendendo o relaxamento precoce das medidas de isolamento social (G1, 2020b), quando representantes da ciência são enfáticos ao tratar do perigo dessa medida (Agência Brasil, 2020). Talvez a defesa seja pela certeza de que, caso um deles seja contaminado com o vírus, a história de desigualdades e distribuição desigual dos poderes da sociedade permitirá que tenham acesso muito mais facilitado aos leitos, aos respiradores e ao tratamento do que seus empregados e governados. Questionamo-nos, então, se de fato o efeito da pandemia passa pelo golpe no neoliberalismo ou pelo seu fortalecimento.

Cabe aqui ressaltar que, na contramão da demora do poder executivo em liberar o auxílio emergencial de R$ 600,00 que foi aprovado após muita pressão popular, entidades comunitárias, religiosas e da sociedade civil se organizam, recolhem e levam cestas básicas para que aqueles que não estão indo trabalhar - seja porque o estabelecimento fechou e não está pagando o salário, porque o trabalho é informal ou porque foram demitidos - possam se alimentar. Destaca-se que grupos vêm se reunindo virtualmente em fóruns de discussão para produzir trocas e articulações, assim como definir prioridades e operacionalizações sóbrias e corretas.

 

O lugar das juventudes na organização das resistências

Com tantos problemas se apresentando a essa parcela da população - mais pobre, negra, moradora de favelas e periferias - surgem, em diferentes cantos do país, iniciativas bastante interessantes de solidariedade ativa. Embora haja a ausência do contato físico constante e de espaços presenciais para organização de resistências, observamos o papel das articulações comunitárias para assegurar que não falte comida para a população mais pobre e para levar informações sobre a pandemia para mais pessoas, como destaca Laércio Portela (2020).

As resistências a esse cenário nas periferias são diversas e plurais. Muitas vezes, em uma mesma favela, encontramos iniciativas em diferentes campos de atuação - comunicação comunitária, doação de cestas, orientações em saúde, entre outras. É inquestionável que cada ação dessas contribui muito para o fortalecimento da população diante do desafio que está colocado. Apesar disso, sabemos que, ainda que essas estratégias sejam muito importantes, são limitadas. No caso das cestas básicas, por exemplo, cada vez que um coletivo chega no ponto de entrega com 100 cestas básicas, há mais 200 famílias esperando que não podem ser atendidas. Isso não quer dizer que a estratégia seja equivocada, pelo contrário, sua importância é validada todos os dias em cada território. No entanto, mostra que precisamos apostar em saídas que sejam isonômicas, que consigam atender a todos e todas que apresentam necessidades e talvez só o Estado seja capaz, pela sua natureza, de atender a essa demanda.

Jourdan (2020) descreve que é pela luta, pela organização coletiva que a vida tece perspectivas de mudança; em tempos de pandemia, os milhares de voluntários mostram que é possível um mundo onde as relações sejam orientadas por outros valores, onde a distribuição de renda e alimentação seja mais justa e alcance mais pessoas, sendo que o principal desafio é agregar tais valores nas políticas públicas mais amplas.

Em trabalho realizado há mais de uma década, Telma Mariasch (2004) já apontava a força das propagandas e campanhas para a difusão da solidariedade como uma possível saída para as mazelas da sociedade. As palavras da autora, a solidariedade teria entrado "na moda", no sentido de que teria se constituído como uma espécie de imperativo que, ao se impor como norma, deixaria intocados os valores próprios aos individualismos. Assim, essas doações - a despeito de sua importância social, sobretudo em situações de emergência - apaziguam a consciência, mas "não transformam a ordem produtora do 'mal' que se quer acalmar" (p. 48).

Aa autora nos convoca, então, a ampliarmos a ideia de solidariedade, para além daquela assistencialista de cunho moral e quase obrigatória, que ela chama de "solidariedade por decreto", na direção de uma solidariedade que se constitui na expressão de uma possível nova forma de subjetividade coletiva. Trata-se de uma solidariedade que busca responder com criatividade aos problemas cotidianos, baseada na troca, nos encontros e que permite a produção de novas conexões e redes, interconectando coletivos. Como uma capacidade para agir e se afetar no movimento das multiplicidades e heterogeneidades, com potencial de transformação das realidades, isto é uma "solidariedade por convivência". Essa "solidariedade se posiciona como uma nova subjetividade coletiva necessária e capaz de transformar a vida, visando a uma democracia auto gestiva e participativa, apoiada em relações comunitárias, que devolvam ao ser humano sua dimensão afetiva e ética." (Mariasch, 2004, p. 9).

Mariach salienta o caráter espontâneo que a solidariedade por convivência pode assumir, "como manifestações de um poder coletivo capaz de fazer frente às tentativas de submissão e opressão globalizantes (...) como expressão de uma nova ética, estética e política, feitas de viver-com e postas a serviço de todos" (2004, p. 105). E é esse o sentido que flagramos nas ações que os próprios moradores têm organizado e empreendido em seus territórios.

Uma particularidade sobre as ações solidárias nas favelas e periferias em tempo de pandemia é que elas são absolutamente rápidas. Logo que os primeiros casos de coronavírus foram confirmados no Brasil, não foram poucas as ações que começaram a se desenhar. Entre os negacionistas e os desesperados, todo tipo de defesa aconteceu. Na introdução do texto, trazemos parte da letra da música do MC Tchelinho do Heavy Baile, chamada "Corona Funk". Na música, que foi lançada no Youtube em 18 de março, encontramos as orientações dos órgãos internacionais de saúde sobre higiene, quarentena, isolamento social e dicas do que fazer em tempos de isolamento para ficar entretido, tudo ao som do 150bpm, derivação do funk criado nas favelas cariocas. O vídeo já contabiliza milhares de visualizações no Instagram e no Youtube, levando aos jovens e demais moradores o debate sobre as modalidades de combate ao vírus e, sobretudo, a importância das medidas de distanciamento social.

É comum observarmos um papel de destaque que tantos jovens têm cumprido na articulação e condução de redes de solidariedade ativa - que com base em Mariasch (2004) é uma solidariedade por convivência - nos territórios de favela, sempre em diálogo com as demais camadas etárias. Em campanhas, a seu modo, fazem a orientação chegar; e na arrecadação de alimentos e produtos de limpeza, demonstram mais responsabilidade com a população do que muitos governantes. Até porque, diante da iminência do caos social, o Governo Federal propôs políticas que passavam pelo corte de salários, isolamento de pessoas de favelas em navios, afrouxamento do isolamento social e desqualificação do potencial destrutivo do coronavírus.

Na contramão, observamos, no Rio de Janeiro, mobilizações em Duque de Caxias (protagonizadas pelo Movimenta Caxias); na Cidade de Deus (com a conformação de uma frente de atuação envolvendo vários movimentos e lideranças do território, a Frente CDD); no Complexo do Alemão (com a criação do Gabinete de Crise do Alemão); em Manguinhos (a partir da organização pelo fórum Manguinhos Solidário); nas favelas da Ilha do Governador (pela frente Ilha contra o coronavírus); no Morro do Santa Marta (com medidas de sanitização do território); no Complexo de Favelas da Maré (com a Frente de Mobilização da Maré, que reúne instituições, ativistas e coletivos (Maré de Notícias 2020)); na Rocinha (com o coletivo "A Rocinha Resiste") e em tantos outros locais. As ações são muito fortes na distribuição de cestas básicas, mas tem sido a cada dia mais diversas.

São muitos os desafios que eles encontram no dia a dia. A imprevisibilidade frente à escassez de materiais e de condições exige um rápido adaptar-se às contingências do novo não humano. No Complexo do Alemão, por exemplo, o "Gabinete de Crise" (RedeBrasilAtual, 2020) opera com duas frentes de trabalho: uma delas foi estabelecida para levar informação à população que não tem acesso aos meios televisivos ou internet. Como destaca Raull Santiago, no canal de jornalistas livres (Santiago, 2020), são necessárias estratégias de formato mínimo para dialogar com todas as diferenças existentes dentro das favelas, por isso cartazes e faixas foram expostos em pontos estratégicos, com dicas básicas de cuidados - uma vez que para o lado desigual nem sempre tais informações são "simples" - bem como, dizeres para o compartilhamento de água aos que não possuem e da importância do isolamento social para evitar a proliferação da doença na favela; já a outra frente tem trabalhado externamente com pedido de doações à população em geral como forma de sanar a demanda de famílias que não possuem reservas financeiras e que, sem trabalho, não conseguirão se alimentar, afirma Santiago nas redes sociais. Os voluntários, em especial jovens dos territórios, têm feito, mesmo que a passos lentos, o trabalho informacional e de higienização e entrega das doações (Futura, 2020), prevendo todos os cuidados possíveis (e já pensam em se isolar nesses espaços coletivos de encontro) e o controle dos materiais para que um número maior de famílias seja beneficiado - uma vez que as políticas públicas não têm chegado e, quando chegam, às vezes de maneira enviesada, causam prejuízos do entendimento sobre a situação da pandemia.

Os moradores, por sua vez, encaram as ONGs locais como uma das referências centrais de solidariedade e cuidados/acolhida, buscando nelas apoio e ajuda direta. Tal ajuda é conseguida, segundo Santiago, nos jornais locais do Complexo como a "Voz da comunidade6" e "Coletivo Papo Reto7", ambos com grupos no aplicativo de mensagens instantâneas (Whatsapp) disponível para as pessoas entrarem em contato e, momentaneamente, terem algumas necessidades abrandadas.

Considerados uma potência de resistir, pela força, pelo ímpeto de ação e por serem considerados menos vulneráveis ao vírus, os jovens têm se mostrado os principais atores na disseminação dos produtos tecnológicos, sobretudo pela facilidade com o manejo desses aparatos, o que também é um diferencial nesses tempos em que a presença precisa ser reinventada e o contato virtual (também) é o que mobiliza, orienta, vincula e produz cuidado em tempos pandêmicos.

Ainda, pelo vínculo comunitário, muitas lideranças juvenis, que também se deslocam fisicamente pelas ruas das favelas e periferias, têm ouvido as dificuldades da população, pensando conjuntamente em modos de solucionar o relatado destaca Santiago (2020). É no engendramento de múltiplos atores - vírus, lideranças comunitárias, políticas, ausências materiais, território - que se produz o novo, o cuidado e as ações efetivas na disseminação do coronavírus. A sociedade sempre foi marcada pelo espectro de "cada um faça sua parte", tal como uma costura de individualidades de uma "solidariedade por decreto" (Mariasch, 2004), que resultam em soluções pontuais, quando o mais potente está na relação, no fazer coletivo, uma solidariedade por "convivência" que as juventudes têm conseguido mobilizar.

Nesse momento de escrita, emerge a necessidade de salientar que as juventudes precisam ser entendidas na sua pluralidade: há juventudes e juventudes em um mesmo território. Cecília Coimbra e Maria Lívia do Nascimento (2015) propõem pensar as juventudes como uma noção desagregada de conceitos identitários, transvalorando modelos postos de ser jovem e considerando a processualidade, pois "é ela que nos permite experimentar, criar e inventar, visto que os sujeitos, objetos e saberes estão sempre se fazendo, estão sempre sendo ..." (p. 188). A subjetividade permanentemente modificada a partir de novas conexões com novos componentes possibilita a potência de criação e recriação e, ao passo que possuem a veemência do fazer, os jovens também questionam poderes, regras e controles estabelecidos o que, de certa maneira, os tornam "perigosos" ao modo capital.

Uma questão interessante desponta aqui: seriam os jovens sujeitos perigosos ou sujeitos potentes? Ou seriam sujeitos potencialmente perigosos? Ou ainda, seriam perigosos justamente por serem potentes? Os jovens, que hoje são as maiores vítimas de assassinatos no Brasil - especialmente os jovens negros (Atlas da Violência, 2019) -, se tornam ainda mais vulneráveis se pensarmos a partir da disseminação do coronavírus. Ainda que inicialmente não fossem o grupo de risco, dada a sua atuação na linha de frente das ações de solidariedade e combate ao coronavírus, ficam mais expostos ao contágio pelos deslocamentos. Isso, potencializado pelas ações policiais que não cessaram nas favelas, indicam um padrão de "comorbidade" específico na realidade brasileira, centrada nos fatores raciais e sociais.

A despeito disso, a potência dessas resistências é flagrante, e reside justamente na criação e expansão das redes de solidariedade, que são diversas, que envolvem territórios diferentes e atores diferentes, mas que têm em comum a orientação de que a tarefa do momento é fortalecer as estratégias para a manutenção da vida. No caso das ações citadas anteriormente, vale lembrar que elas estão em constante transformação e são desenvolvidas concomitantemente em várias frentes (comunicação, alimentos roupas, renda, higiene, promoção de saúde e outros). Além disso, a concepção trabalhada indica que as ações de resistência envolvem movimentações que podem abrir e explorar as aberturas existentes nas relações de poder para organizar lutas de caráter transformador. Nesse sentido, o sucesso das iniciativas de solidariedade são, indiscutivelmente, um avanço contra a racionalidade orientada pela necropolítica que é explicitada na seção anterior. Acreditamos, ainda, que é importante a conexão dessas ações com os debates conjunturais mais amplos, capitalizando a indignação popular diante de uma realidade de intensa e histórica desigualdade e violência (escancarada por uma pandemia, como afirma Jourdan, 2020) para a organização em torno de mudanças estruturais que favoreçam a maioria da população. As fendas que têm sido exploradas - sobretudo pelos moradores de favelas e periferias e trabalhadores em situação de vulnerabilidade - têm visibilizado que há alternativas. E que todas elas são produzidas no encontro com o outro, nos agenciamentos da vida em comunidade (mesmo em tempos onde o encontro não é feito com presença).

 

Considerações finais

Embora a pandemia exija o afastamento social, percebe-se o quanto as redes de solidariedade são fundamentais em um momento como esse, pela sua capacidade de mover o mundo - não apenas pelas doações, mas também pelo efeito transformador dos gestos orientados por ela. Observamos, mais uma vez, como as estratégias para a manutenção da vida em locais que são historicamente subjugados e marginalizados pelos governos têm uma capacidade de reinvenção impressionante. As brigadas de solidariedade, bem como as iniciativas de comunicação comunitária ou produção de peças culturais - como músicas e cartilhas - são fundamentais para a disseminação das informações sobre cuidados em tempo de quarentena.

O encantamento produzido com as ações coletivas organizadas em tais territórios desmonta a ideia de que o coletivo não é potente, impulsionada pelo mundo constituído por valores neoliberais, que apostam que o indivíduo é o centro de tudo e que não há coletivo possível na ordem social. A conformação de configurações coletivas nas ações territoriais indicam possibilidades de transformação da vida das pessoas - inicialmente, pelas ações de solidariedade, que podem vir a se transformar em organizações políticas mais amplas de reivindicações. A solidariedade, nesse sentido, se apresenta como um ponto de partida para o rompimento com o modo indivíduo, indicando outros horizontes possíveis de viver o mundo e transformar a realidade.

O coronavírus teoricamente afeta toda a população, é verdade. Todos somos passíveis de contaminação, ainda que com diferenças a partir do comprometimento do sistema respiratório, faixa etária e afins. Não existe um estudo que diga que o vírus prefere aqueles que têm mais ou menos saldo na conta bancária. O que existe é uma série de atores engendrados que podem complicar a vida de algumas pessoas, não apenas deixando-as mais expostas ao contágio, mas, pior ainda, deixando-as em piores condições de tratamento caso sejam contaminadas. Desse modo, a falta de acesso a moradia e renda são como "comorbidades" que podem definir o destino de populações inteiras. A desigualdade social tão forte em nosso país, que produz diferentes saídas governamentais para os moradores do Morro do Bumba e os moradores do Alto Leblon diante de catástrofes, mostra que, no contexto de completa destruição do mundo, todos somos expostos aos problemas ambientais. Contudo, nem todos temos as mesmas estruturas para lidar com isso. Entender como o vírus opera na favela, o que faz-fazer, é abrir as caixas-pretas8 para entender que outros atores estão envolvidos e faz a situação ser ainda mais difícil, bem como que outras alternativas ou conexões são possíveis, que atores podem provocar desvios, proporcionando caminhos da não-contaminação - tal como o funk que trouxemos em epígrafe.

Retomando a ideia de Latour (2020), gostaríamos de terminar esse texto com algumas perguntas: como a pandemia pode reorganizar as relações que existem na sociedade? e ainda, como podemos pensar o futuro enquanto presentidão? O futuro depende do que fazemos hoje?

No momento que vivemos, "fazer a nossa parte" é além de fazer o que está ao nosso alcance para o bem estar da nossa família e amigos. É conseguir dar corpo às mobilizações coletivas dos territórios para o direito a uma quarentena digna - entendendo que direitos não podem ser privilégio de poucos. De certo modo, passa também pelo fortalecimento das ações que disputam o que será o futuro da humanidade.

"Fazer a nossa parte" aponta para o cuidado não como uma obrigação normativa ou direcionada por uma ordem moral, não se trata de fazer caridade, mas de responsabilizar-se, engajar-se em ações práticas diante de problemas que são inerentes às existências interdependentes e heterogêneas (Bellacasa, 2012). O cuidado, nesse sentido, inclui "tudo o que fazemos para manter, continuar e reparar 'nosso mundo' para que possamos nele viver da melhor forma possível." (Tronto, 1993 citado por Bellacasa, 2012, p. 198). Diante disso, o desafio que fica é como podemos mobilizar nossas responsabilidades para melhor cuidar - não apenas em tempos de pandemia.

Se a reprodução social da vida no capitalismo se apresenta enquanto algo que sempre precisa aprimorar sua performance, melhorar seu desempenho e que não há outra alternativa possível senão essa, o que o coronavírus evidencia é que podemos desacelerar. Há espaço para pensar outros paradigmas de vida e de sociedade. Há espaço para orientar a vida pela solidariedade e pelo bem comum.

As favelas dão as maiores lições nesse sentido a todos nós - no ritmo do Corona Funk que nos lembra que "São pequenas atitudes que fazem a diferença" - e podemos destacar que são as atitudes de cada um de nós que, articuladas e potencializadas no coletivo, vão criar possibilidades diferentes de vida. Mas é importante lembrar que não é no futuro, quando sairmos de nossas casas, que poderemos fazer alguma coisa, mas são as ações que já estão sendo tomadas no presente que definirão o futuro. As alternativas que têm se construído nesse momento serão determinantes para a disputa da pós-pandemia. Como destacado por Latour (2020), se os adeptos da globalização vêm esse momento como uma oportunidade para levar a cabo seu projeto, nós também podemos fazer do hoje um momento oportuno para um mundo melhor para todos os habitantes humanos e não-humanos desse planeta, garantindo, como nos lembra Mbembe (2020) o direito fundamental à existência.

 

Referências

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Recebido em: 20/07/2020
Aprovado em: 30/11/2020

 

 

1 Bruno Latour, a partir do desenvolvimento da teoria ator-rede propõe o conceito de redes sociotécnicas enquanto conexão e articulação entre elementos heterogêneos. Considerando não apenas os humanos, mas também os não-humanos como importantes actantes na constituição dessas redes, no sentido que estes também estabelecem associações e participam do curso da ação, Latour nos revela uma agência que é híbrida, ou seja, a ação é partilhada por humanos e não-humanos. Nesse sentido, os não-humanos também resistem, desviam e introduzem uma dimensão de incerteza na construção dos fenômenos. Esse faz-fazer nos traz a incerteza do vetor da ação e a ideia de que quando um atua, outros passam a ação (Latour, 2001; 2013). Não seria exatamente isso que o coronavírus estaria fazendo ao mobilizar todo o mundo e fazendo-nos agir na direção de compreender e superar a pandemia ocasionada por ele?
2 Referimo-nos aqui ao debate ambiental que tem sido apresentado por muitos ativistas, que trabalham a partir da paralisação e redução de atividades provocada pela pandemia para dizer que é possível estabelecer novos paradigmas de relação com o mundo. A diminuição dos deslocamentos pelo céu, estradas, ruas e mares em função da reorganização das atividades humanas está diretamente ligada à diminuição dos índices de poluição do ar e das águas, bem como do "reaparecimento" de algumas espécies em lugares nas quais não eram mais vistas. O céu mudou de cor em São Paulo, os rios estão mais limpos na Europa, na China a poluição do ar caiu consideravelmente; na Tailândia e no Japão, multidões de macacos e veados estão nas ruas agora sem turistas (O Globo, 2020; A Folha, 2020; Jornal De Brasília, 2020) - embora estas e outras notícias nos tenham sido sutilmente apresentadas pelas telinhas, merecem muito a nossa análise atenta, que seja remetida à questão ambiental na sua totalidade. Que desvios para outros modos de vida podem ser construídos a partir da passagem (ou permanência) desse não-humano na sociedade?
3 Contrapondo-se ao provérbio chinês que diz que "Quando o sábio aponta a lua, o imbecil olha para o dedo", Latour (2012) sugere a importância de olharmos para o indicador daquele que aponta, para aquilo que o faz agir. Podemos perguntar a partir disso: O que nos leva a agir em tempos de pandemia?
4 A letra completa da música "O que sobrou do Céu" do Rappa pode ser encontrada no seguinte site: https://www.letras.mus.br/o-rappa/28942/
5 O conceito de performação é utilizado por Annemarie Mol (no prelo) para destacar que a realidade não precede as nossas práticas, sendo antes performada pelas mesmas. Nesse sentido, ela ressalta o caráter local, histórico, cultural e material da realidade, assim como seu caráter múltiplo. Havendo também o destaque ao caráter político das ontologias, visto que, se as realidades são performadas por nossas práticas, há nessa performação, interesses, negociações, associações, política.
6 O jornal "Voz das comunidades" pode ser consultado pelo seguinte link: https://www.vozdascomunidades.com.br/
7 O "Coletivo Papo Reto" pode ser acessado no site: https://100ko.wordpress.com/
8 Para Bruno Latour (2011), as caixas-pretas são fatos consolidados, válidos, considerados pontos de partida para outras questões. Nesse sentido, a tarefa de abrir as caixas-pretas significa tomar às análises aquilo que é considerado natural. Nesse caso, é questionar a história de violação de direitos, pensar no que produz uma realidade de tantas desigualdades e violências, bem como nas alternativas para superação dessa realidade.

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