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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021
ARTIGO
A pandemia de Covid-19 e a crise na saúde no Rio de Janeiro: discutindo biopolítica e precarização
The Covid-19 pandemic and the health crisis in Rio de Janeiro: discussing biopolitics and precarization
La pandemia de Covid-19 y la crisis de salud en Río de Janeiro: discutiendo la biopolítica y la precarización
Karen Cristina CavagnoliI; Patrícia Trápaga FerreiraII; Amanda Pasti PachecoIII; Anderson GuedesIV; Gabriele MeloV; Cristal Moniz AragãoVI
IMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS; Especialista em Saúde da Família e Comunidade pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição / cavagnolikaren@gmail.com
IIMestranda em Atenção Primária com ênfase em Saúde da Família na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) / trapagapatricia@gmail.com
IIIGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ / amandapasti.pacheco@gmail.com
IVGraduando em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ / guedes.ath@gmail.com
VGraduanda em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ / gabriele.mhc@gmail.com
VIMestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ / cristalaragao@gmail.com
RESUMO
Este artigo aborda a crescente crise na saúde pública vivida pelo município do Rio de Janeiro e o advento da pandemia de Covid-19, que veio a agravá-la, como elementos do debate sobre o trabalho na Atenção Básica à Saúde. Ele é resultado das articulações feitas pelo Programa de Ensino pelo Trabalho (PET) para a Saúde Interprofissional, que visa induzir transformações nos cursos de graduação e nos serviços de saúde, com foco na colaboração e no trabalho interprofissional. A discussão sobre a financeirização e os interesses em torno do trabalho do campo da saúde mostram a face perversa dos modos de governo no capitalismo contemporâneo, revelando a bio e necropolítica como estratégias de capitulação do SUS. Na conclusão, são assinaladas a resistência e a potência do trabalho articulado como estratégia de luta pela saúde como direito social.
Palavras-chave: Atenção Básica à Saúde; Crise da saúde; Covid-19; Biopolítica; Necropolítica.
ABSTRACT
This article addresses the growing public health crisis experienced by the city of Rio de Janeiro and the advent of the Covid-19 pandemic, which aggravated it, as elements of the debate on work in Primary Health Care. It is the result of articulations made by the Teaching Through Work Program (PET) for Interprofessional Health, which aims to induce transformations in undergraduate courses and in health services, focusing on collaboration and interprofessional work. The discussion about financialization and interests surrounding the work in the field of Health shows the perverse face of the modes of government in contemporary capitalism, revealing biopolitics and necropolitics as Unified Health System (SUS) capitulation strategies. In conclusion, the resistance and the power of articulated work as a strategy to fight for health as a social right are highlighted.
Keywords: Primary Health Care; Health crisis; Covid-19; Biopolitics; Necropolitics.
RESUMEN
Este artículo toma la creciente crisis de salud pública vivida por el municipio de Río de Janeiro y el advenimiento de la pandemia de Covid-19, que la empeoró, como elementos del debate sobre el trabajo en la Atención Básica a la Salud. Él es resultado de las articulaciones realizadas por el Programa de Enseñanza por Trabajo (PET) Salud Interprofesionalidad, que tiene por objetivo inducir transformaciones en los cursos de licenciatura y en los servicios de salud, enfocando en la colaboración y el trabajo interprofesión. La discusión sobre la financiarización y los intereses en torno del trabajo del SUS muestran la perversidad de los modos de gobierno en el capitalismo contemporáneo, revelando la biopolítica y la necropolítica como estrategias de capitulación del SUS. En la conclusión se señala la resistencia y el poder del trabajo articulado como estrategia de lucha por la salud como derecho social.
Palabras clave: Atención Primaria de Salud; Crisis de Salud; Covid-19, Biopolítica; Necropolítica.
Introdução
Desde o seu surgimento, o Sistema Único de Saúde (SUS) é resultado de disputas políticas, ideológicas e econômicas. Seus principais constructos - universalidade, equidade e integralidade - denotam como as forças progressistas assumiram importância estruturante para a sua existência, representando um avanço no campo dos direitos sociais. Trinta anos depois dessa fundação, ainda encontra grandes dificuldades para a sua plena efetivação, o que aponta para as disputas permanentes nesse campo.
Neste sentido, este artigo busca discutir os atravessamentos e tensões cotidianas a partir das tecnologias de governo das vidas operadas no contexto do neoliberalismo no trabalho na Atenção Básica à Saúde (AB) no Rio de Janeiro. Não temos a pretensão de abarcar todas as questões envolvidas nesse contexto, dada a sua complexidade, mas consideramos relevante apontar alguns elementos que nos fazem pensar o SUS em sua relação com os jogos de interesse no campo da saúde que o constitui.
As pessoas autoras deste artigo têm inserções diversas na AB, seja na atuação profissional no serviço há muitos anos, seja na pesquisa e na formação acadêmica e interprofissional. Falamos de lugares diferentes, mas nos reunimos em uma postura crítica e reflexiva diante do desmonte progressivo da saúde como política pública: a realidade de diminuição de serviços e profissionais, falta de insumos e cortes no orçamento público da saúde. Reunimo-nos como grupo a partir do Programa de Ensino pelo Trabalho (PET Saúde-Interprofissionalidade) viabilizado por meio de um edital Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde (MS). A proposta é produzir reflexões sobre o cuidado e organização dos serviços e das graduações a partir das vivências no campo, utilizado como mote para a colaboração e construção coletiva. O programa contempla com bolsas professores, alunos e trabalhadores, e propõe a integração ensino-serviço-comunidade. A Clínica da Família (CF) onde o trabalho se desenvolve existe há cerca de 10 anos e atende em torno de 50.000 pessoas, contando com 13 equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF) que atendem territórios majoritariamente vulneráveis. Possui um NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família) com apenas duas profissionais, dadas algumas demissões sem reposições. A unidade comporta, ainda, programas de residência médica e de enfermagem, além da presença constante de alunos de graduação de diversas universidades.
Nesse contexto, este artigo tem como objetivo discutir a crescente crise da saúde, seus efeitos e causas, no contexto no município do Rio de Janeiro e o advento da Covid-19 que ampliou ainda mais os problemas vividos no serviço e com os usuários. A discussão trará um retrato da situação vivida pelo NASF da unidade de saúde e buscará trazer elementos para compreender a drenagem constante de recursos contra as quais lutamos, inserindo o panorama do financiamento da saúde numa perspectiva global. A metodologia será baseada em explorações teóricas históricas e atuais sobre a construção do SUS, e nas experiências das pessoas autoras, tendo como operadores teóricos os conceitos de biopolítica em Michel Foucault (1978/2008) e necropolítica em Achille Mbembe (2016).
O PET no cotidiano do serviço de saúde: contextualizando a clínica e a crise
As atividades do PET iniciam-se em fevereiro de 2019, com a ambientação no serviço e planejamentos conjuntos, mas logo uma greve de trabalhadores é deflagrada. O contexto se tornou um desafio para os participantes do projeto e colocava questões sobre como dar continuidade ao trabalho em um cenário conturbado, de equipes fragilizadas pela constante necessidade de reorganização e resistência, efeitos da precarização. A convivência com essas problemáticas se iniciou em 2017, marcada por greves, manifestações de rua e assembleias de trabalhadores, todas mobilizadas por atrasos salariais, falta de materiais e medicamentos, reduções no quadro de profissionais e sobrecarga de trabalho. O governo municipal neste período tinha como slogan de campanha "cuidar das pessoas" e, dessa maneira, promover a expansão da ESF para espaços vulneráveis, além da criação de centros de especialidades. No entanto, essas propostas não foram cumpridas e houve ainda a tentativa de corte do orçamento da saúde (Melo, Mendonça, & Teixeira, 2019).
A criação do movimento "Nenhum Serviço de Saúde a Menos" conseguiu fortalecer atividades grevistas inéditas na cidade no campo da Atenção Básica. As pessoas trabalhadoras articularam greves e paralisações em conjunto com várias categorias da saúde e seus sindicatos (Psicologia, Medicina, Fisioterapia, Agentes Comunitários de Saúde, Enfermagem, Técnicos de Enfermagem etc.), em um cenário com muitas Organizações Sociais da Saúde (OSS) como empregadoras, buscando convergir para um movimento conjunto de terceirizados - pessoas que possuem maior dificuldade de articulação dada a não estabilidade de sua condição trabalhista (Melo, Mendonça, & Teixeira, 2019).
Destacamos que o projeto está centrado no desenvolvimento de suas atividades nos serviços de AB, espaço onde os valores do vínculo, da integralidade e permanência do cuidado são fundamentais. Somente a constância da presença, de forma articulada ao território, é capaz de reafirmar seus atributos: ser a porta de entrada preferencial do sistema, cuidar da coordenação do cuidado dos usuários ao longo dos outros níveis, possuir longitudinalidade e integralidade, utilizando uma abordagem familiar e enfoque comunitário (Giovanella & Mendonça, 2012).
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é o modelo que tentou buscar a construção de uma Atenção Básica Integral (em contraposição à Atenção Seletiva, voltada para programas específicos de cuidado) e conectada às necessidades cotidianas das pessoas, apresentando-se como um serviço descentralizado de equipes multiprofissionais, com agentes comunitários de saúde (ACSs) como articuladores das ações de saúde da comunidade e serviço de base territorial. Nesse sentido, a existência desse modelo de atenção, em contraposição à lógica hospitalocêntrica, já é uma ruptura do discurso sobre o cuidado em saúde no Brasil empreendido ao longo do século XX, como nos ajuda a compreender Foucault (CFP, 2019). Este modelo busca contemplar casos específicos e abordagens dos determinantes sociais que interferem na saúde, promovendo cuidado, prevenção, promoção e reabilitação em saúde a partir das equipes de referência e, também, das equipes multiprofissionais de apoio - os NASFs.
O NASF é uma equipe composta por diversos profissionais cujas especialidades são escolhidas de acordo com as necessidades de saúde da população de cada território atendido. Esta equipe funciona como articuladora do trabalho interprofissional nas unidades, podendo ser composta por: médico acupunturista, assistente social, educador físico, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo(a), médico(a) ginecologista/obstetra, médico(a) homeopata, nutricionista, médico pediatra, psicólogo(a), médico(a) psiquiatra, terapeuta ocupacional, médico(a) geriatra, médico(a) internista (clínica médica), médico(a) do trabalho, médico(a) veterinário, profissional com formação em arte e educação (arte educador(a)) e profissional de saúde sanitarista. Esse conjunto de profissionais atua com a lógica do apoio matricial, que visa oferecer apoio assistencial e técnico-pedagógico às equipes de saúde da família (eSF). Possui funções de auxiliar as equipes na construção do cuidado como retaguarda especializada, com discussões de casos, em ações de educação permanente, e também promover trabalhos técnicos assistenciais. Esses profissionais costumam estar em contato com casos difíceis que ultrapassam as resolutividades das equipes mínimas e compor com articulação em rede (Ministério da Saúde, 2017).
No entanto, a Portaria nº 2979 de 12 de novembro de 2019 que institui o Previne Brasil e um novo modelo de financiamento na AB muda o nome, a composição e o modo de financiamento do agora NASF-AB, ao revogar as portarias anteriores referentes a ele. A nota técnica nº 3/2020-DESF/SAPS/MS determina a revogação de todas as normativas de custeio do NASF-AB. Sem estímulo federal, os gestores municipais agora são autônomos para decidir sobre a existência dessas equipes, seu funcionamento e composição.
O NASF de nossa unidade de saúde sofreu, gradualmente, um desmonte caracterizado pela redução da equipe de sete profissionais (duas psicólogas, uma terapeuta ocupacional, uma nutricionista, um fisioterapeuta, um educador físico e uma assistente social) - modalidade NASF 1 (200 horas semanais) - para duas profissionais, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional. Algumas pessoas foram demitidas e outras se demitiram, e não houve reposição desses profissionais. Além disso, entre 2018 e 2019, houve cortes de três eSF inteiras e de uma equipe de saúde bucal. Muitas ações interprofissionais de cuidado, promoção de saúde, reabilitação e atendimentos foram descontinuadas.
As dificuldades do trabalho também colocam desafios à inventividade. Na tentativa de manter o apoio matricial e o exercício da integralidade, as profissionais reorganizaram o fluxo de acesso à equipe do NASF, estabelecendo critérios para espaços de matriciamento e atividades coletivas. Os grupos de recepção de novos usuários são um exemplo de estratégia criada nesse contexto de redução de profissionais, os quais, para além dos grupos terapêuticos já existentes, visavam atender às questões de saúde mental, já que esta era a principal demanda apresentada pelas eSF. As reuniões de matriciamento, que aconteciam semanalmente nas 13 reuniões de equipes, passaram a ser gerais e em revezamento para oferecer educação permanente e assistência para as equipes mínimas.
Esse desmonte aponta a centralização das ações nos atendimentos de resolução mais imediata e simples, uma vez que as equipes mínimas já operam acima de suas capacidades. Também nos convoca a pensar nas formas de gestão imbricadas à precarização e a quem esse cenário de desmonte interessa. Esse exemplo real nos serve para refletir sobre a problemática do investimento no SUS, trazendo uma nova camada para a compreensão da questão que se apresenta no cotidiano.
Dentre todas as dificuldades encontradas para a efetivação do SUS, o subfinanciamento é a problemática mais evidente. Pode-se dizer que o descaso com a saúde é uma escolha política alinhada aos interesses de expansão do mercado no campo da saúde, os quais pressionam para a redução de direitos e transformação desses direitos em mercadorias. Além disso, a crescente apropriação privada dos fundos públicos configura uma escalada da interferência na saúde pública como forma de drenar recursos. O Estado passa, então, a ser instrumento da iniciativa privada na medida em que sustenta relações de poder e exploração no interior do sistema capitalista. Sendo assim, interesses particulares se sobrepõem à concretização do direito à saúde pública (Mendes, 2015).
A tendência crescente da acumulação capitalista é o crescimento da financeirização, por meio do capital portador de juros, na forma de juros de empréstimos, de dividendos e outros pagamentos a título de posse de ações, pautado por especulação. Nesse sentido, a saúde é um campo que tem sido cada vez mais considerado como área potencial para investimento do mercado, e os recursos públicos cada vez mais capturados pelo capital como forma de geração de lucro (Mendes, 2015).
Além da exploração do setor saúde pelo mercado financeiro, existem outras formas dos interesses econômicos privados se apropriarem dos recursos públicos. Mendes (2015) discute que o avanço do setor privado na saúde pública também pode ser constatado pelos incentivos financeiros públicos à saúde privada por meio da abertura ao capital estrangeiro para explorar serviços de saúde no país; pelo incentivo à saúde privada por meio de redução do imposto de renda à pessoa física ou jurídica sobre suas despesas com planos de saúde; pela permanência do mecanismo de renúncia fiscal às entidades filantrópicas; e na adoção de ajuste fiscal quando se reduz recursos da saúde.
Outro importante elemento a ser destacado é como a política econômica brasileira se baseia na restrição de gastos para priorizar o pagamento de juros da dívida pública (Mendes, 2015). A Auditoria Cidadã da Dívida vem denunciando como quantidades enormes do nosso PIB vão para o pagamento de juros abusivos da dívida pública, mantidos inclusive pelas políticas econômicas adotadas pelo Banco Central. À vista disso, existe um mecanismo institucionalizado que permite drenar recursos públicos para os bancos e justificar as dificuldades em investir em políticas públicas, embasando todas as contrarreformas (Fatorelli, 2013), das quais a Emenda Constitucional 95 de 2016 - que congela e estabelece um teto para os gastos sociais por 20 anos - é importante expressão.
Observa-se também a crescente interferência da iniciativa privada na gestão dos recursos públicos por meio das Organizações Sociais da Saúde (OSSs), que podem contratar profissionais sem concurso público, adquirir bens sem processos licitatórios e, sobretudo, não prestar contas aos órgãos de controle interno e externo. Amparadas no discurso da eficiência e celeridade, as OSSs se estabeleceram como o modelo cada vez mais consolidado de gestão na saúde. Pesquisas documentais que se referem a apurações realizadas por tribunais de contas e Ministérios Públicos pelo país (São Paulo, Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina) evidenciaram que essas formas de gestão se constituem em uma forma de privatização do fundo público, com gastos maiores do que os serviços administrados diretamente pelo setor público, com maiores irregularidades e desvio de recursos públicos (Correia & Santos, 2015). Observamos no caso do Rio de Janeiro que boa parte da gestão da saúde municipal e estadual é realizada por OSSs, o que se torna problemático considerando as questões apontadas. Além disso, algumas dessas organizações já foram alvo de investigações por irregularidades e esquemas de desvio de recursos públicos (Prado, Rianelli, Guimarães, &, 2020) e (Mello, 2020).
Essa discussão visibiliza o campo complexo de disputas que é a saúde, atravessada por diferentes interesses. Guareschi, Lara e Adegas (2010) pontuam que essa questão se aplica às políticas públicas como um todo e que, ao pensá-las a partir da formulação dos direitos, não podemos deixar de considerar a interferência do mercado econômico e seus efeitos nas ações do Estado. A seguir, continuaremos a discussão sobre como as políticas públicas, mais especificamente as de saúde, tornam-se parte de formas de governo a fim de investir na vida, tendo o neoliberalismo como importante atravessador desse campo.
Políticas públicas: campo de tensões e de governo biopolítico
As políticas públicas são pensadas dentro de uma racionalidade de governo. Isso significa dizer que uma política pública foi possível ser arquitetada quando os fenômenos ligados à reprodução da vida começaram a ser fundamentais de serem geridos, num contexto de produção industrial. Os corpos e suas forças adentram no domínio do público, sendo objeto das práticas de governo.
Em obra do final dos anos 1970, Foucault (2008) analisa a forma na qual o poder disciplinar tende a se modificar na transição do século XIX para o XX. O autor observa a mudança de alvo das práticas disciplinares, que têm o seu caráter individual transposto para o coletivo, isto é, a população. A perspectiva da população e a realidade dos seus fenômenos - tais como natalidade e mortalidade, saúde, sexualidade, trabalho etc. - permitem centralizar a noção de economia no âmbito público. A estatística quantifica esses fenômenos e identifica as suas regularidades, a fim de revelar quais atividades próprias da população têm efeitos econômicos específicos. Desse modo, quando esta se torna um objeto dentre os variados constituintes da riqueza, a economia política se estabelece como um interventor da economia e da população.
Assim, a biopolítica é uma prática que tem na população tanto seu alvo quanto seu instrumento. Pois, como assinala Foucault (2008), "qual pode ser o objetivo do governo? Não certamente governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde etc." (p. 170). Segundo o autor, para alcançar esses fins, o governo se instrumentaliza de técnicas que lhe permitem agir indiretamente sobre a população, orientando as suas atividades específicas de acordo com os interesses governamentais, de forma que "a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer, e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça" (p. 170).
Neste sentido, o biopoder é um modo de exercer várias técnicas que a biopolítica põe em prática e permite o controle de populações inteiras. Assim, os biopoderes serão utilizados pela ênfase na proteção da vida, na regulação dos corpos e se ocuparão da gestão da saúde, da sexualidade, dos costumes etc. (Fernandes & Resmini, 2006). É fundamental observar que essa nova forma de poder só opera a partir do firmamento da "governamentalidade", que Foucault (2008) define como um conjunto de instituições, práticas e formas de pensamento próprias desta forma de exercer o poder. Nela temos a população como alvo principal, a economia política como saber mais importante e os dispositivos de segurança como instrumento técnico essencial.
Em O Nascimento da Biopolítica (Foucault, 1979/2008), o mesmo autor observa que as múltiplas técnicas de governo postas em prática pela biopolítica surgem atreladas ao contexto histórico do liberalismo, no século XVIII, e se aprofundam depois com o neoliberalismo. A racionalidade liberal se apresenta como um elemento crítico sobre como governar, argumentando que se governa demais os indivíduos, muito mais do que é saudável para a sociedade; deveria se governar menos, abrindo espaço para que os indivíduos, livres e autônomos, possam se mover segundo suas próprias vontades, sendo conduzidos pelas regras do livre mercado. Em síntese, o liberalismo exige do Estado governar menos para ter a eficiência máxima, procurando tirar a naturalidade econômica de cada fenômeno. Com o aprofundamento de algumas ideias liberais e a modificação de outras, o neoliberalismo apresenta um novo infortúnio para o Estado: atribui a ele a função de estabelecer continuamente as condições de concorrência para o mercado, devendo intervir sempre que necessário para garantir que a economia se movimente com a máxima eficiência. Não se acredita mais que o mercado é capaz de autorregulação. "O problema do neoliberalismo é, ao contrário, saber como se pode regular o exercício global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado" (Foucault, 2008, p. 181).
Neste sentido, a racionalidade neoliberal cria uma governamentalidade que deve se ocupar de gerir a vida dos indivíduos e populações orientada pela lógica do mercado, de forma a garantir o funcionamento do que os liberais acreditavam ser a autorregulação da economia. Desta forma, os problemas em todos os âmbitos da vida de uma população passam a ser geridos pela subordinação aos interesses de crescimento econômico sem fim, através da incitação à concorrência infinita e ilimitada, que, associados a outros valores neoliberais como individualismo extremo, desempenho contínuo e risco sempre assumido, passam a orientar a regulação da vida.
No que se refere à saúde, a partir da década de 70 do século XX, ela torna-se, tal como outros direitos sociais conquistados ainda no contexto de emergência do liberalismo na Europa, campo de investimento dos interesses de expansão do capital, e, ao mesmo tempo, instrumento de gestão das necessidades e modos de vida das populações pelos governos. Dessa forma, o neoliberalismo busca garantir que os governos criem as condições mínimas para a sobrevivência e reprodução da vida que atendam às exigências da sua racionalidade econômica. A esse respeito, Rizzotto (2000) nos aponta um caminho possível para a análise da ação biopolítica sobre a saúde no contexto neoliberal, ao discutir as tensões que atravessam a implementação do SUS no Brasil.
Conforme Rizzotto (2000), a escalada da privatização de saúde atende às recomendações de organismos como o Banco Mundial (BM), que tem demonstrado interesse no setor de saúde brasileiro desde a criação do SUS. A autora aponta que esse interesse pode ser evidenciado pelo volume de publicações e de contratos de empréstimos estabelecidos com diferentes âmbitos da administração pública que interferem na dinâmica desse setor.
A autora parte do pressuposto inicial de que:
O financiamento de programas e projetos pelo Banco Mundial na área da saúde ... não teria como objetivo contribuir para o desenvolvimento econômico e social de países periféricos como o Brasil, conforme postulam os seus discursos, mas sim, a partir destes acordos de empréstimos e das condicionalidades que os acompanham, influenciar as políticas nacionais desse setor, no sentido de reduzir o papel e a participação do Estado na oferta de serviços de saúde, implementando projetos e programas que focalizam e direcionam as ações públicas para as populações mais pobres, ao mesmo tempo em que promovem a ampliação e a participação do setor privado neste promissor mercado para a expansão do capital. (Rizzotto, 2000, pp. 25-26)
Desse modo, discute que o projeto do Banco Mundial no delineamento da Atenção Básica, por exemplo, é pautado pela redução e focalização das ações nas populações mais pobres, indo na contramão do princípio de universalidade da atenção do SUS.
Os acordos de empréstimos aos quais Rizzotto se refere dizem respeito, especialmente, à fase de atuação do Banco Mundial identificada pela autora, a partir da análise de documentos deste organismo internacional, no início dos anos 90, quando "retoma-se com grande ênfase o discurso do combate à pobreza e da necessidade de promover não só o crescimento econômico dos países 'em desenvolvimento', mas também o desenvolvimento social" (Rizzotto, 2000, p. 25). Segundo a autora, a identificação da miséria e da intensa desigualdade social nos países periféricos como um mal que precisava ser combatido direciona-se a responder às constatações de que os empréstimos para os programas de ajuste estrutural fornecidos pelo BM a esses países na década anterior não resultaram na melhoria das condições de vida da maioria das populações, embora tenham resultado em crescimento econômico, e também se destinaria a ampliar o escopo das ações desse organismo por meio do seu envolvimento com as questões sociais, justificando a sua existência enquanto organismo multilateral. A esse respeito, Rizzotto sustenta a tese de que os acordos de empréstimos do BM para o setor brasileiro de saúde na década de 90 do século XX agiriam no sentido de "restringir ou anular os direitos sociais conquistados pelo Movimento da Reforma Sanitária nas décadas de 80 e 90 e consagrados na Constituição Federal de 88" (Rizzotto, 2000, p. 26), operando para concretizar uma contra-reforma no e do SUS.
Ainda em 1975, o BM faz um diagnóstico sobre os principais problemas de saúde dos países periféricos, identificando nos fatores demográficos má nutrição, hábitos de vida tradicionais e condições insalubres de moradia as principais questões, cujas raízes estariam na pobreza e nas consequências de uma população em rápido crescimento. Além disso, "esta instituição fazia uma avaliação de que os governos de vários países 'em desenvolvimento' investiam muito dinheiro no ápice do sistema de saúde, financiando a construção de hospitais e pagando por uma assistência sofisticada, muito qualificada e de alto custo" (Rizzotto, 2000, p. 126). Desta forma, fazia-se necessário reorientar o investimento desses governos em seus sistemas públicos de saúde, os quais deveriam concentrar as suas ações na assistência coletiva, simplificada e descentralizada para o nível comunitário. Essa reorientação se faria a partir de estratégias como as práticas de educação em saúde, a fim de provocar mudanças nos hábitos de vida das populações pobres. Em síntese, Rizzotto (2000) avalia que:
O sistema público de saúde que o Banco Mundial idealizou para os países "em desenvolvimento", prega o abandono do tratamento clínico, dos avanços científicos e tecnológicos alcançados na área médica, hospitalar e farmacológica, ao mesmo tempo em que propõe a criação de serviços de saúde pública que se limitam à assistência básica, com utilização de procedimentos simples e baratos, realizados por profissionais pouco qualificados, que, segundo o Banco, dariam conta de resolver os "problemas de saúde mais gerais, de caráter familiar e comunitário." (p. 128)
Neste sentido, é importante observar que nesse novo modelo de sistema público de saúde delineado pelo BM, as famílias devem se tornar alvo e instrumento dos governos dos países periféricos para promover modos de vida que melhor se ajustem às exigências produtivas que sustentam a expansão do capital. Ao agir sobre as famílias por meio de suas questões de saúde, sem intervir significativamente nas condições materiais e na estrutura social nas quais elas vivem - por meio da redistribuição de renda e de condições dignas de trabalho, por exemplo -, mas implementando uma assistência cada vez mais focalizada em linhas de cuidado restritivas e procedimentos simplificados, os governos criam as condições mínimas para a existência e reprodução da vida que atendam à razão econômica neoliberal. Trata-se de garantir que o absenteísmo dos(as) trabalhadores(as) por problemas crônicos de saúde não afetem a produtividade do mercado. Nesta lógica, a promoção integral de saúde, além de muito custosa e impeditiva à expansão do capital financeiro internacional por meio de investimentos privados no setor saúde, não deve ser a orientação do sistema; pois, considerando-se que o custo econômico pela mortalidade prematura de trabalhadores(as) não parece relevante nos países "em desenvolvimento", já que há um alto nível de desemprego e subemprego, e a má saúde resultaria apenas na substituição de trabalhadores(as) falecidos(as) por outros(as) sãos(ãs), é mais necessário para o mercado que os governos invistam em políticas mínimas de cuidado que incidam sobre as morbidades específicas que fazem com que os(as) trabalhadores(as) faltem ao trabalho, interrompendo o processo produtivo. Rizzotto (2000) observa, ainda, que a construção de um modelo de saúde pública descentralizado a nível de comunidade e seletivo, no sentido de destinar-se apenas à população mais pobre - e não à universalidade dos cidadãos - transfere para o indivíduo, a família e a comunidade a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso dos serviços públicos.
A partir destes apontamentos, observamos que a racionalidade neoliberal institui uma contradição permanente nas políticas sociais a partir das quais se opera a regulação da vida, dentre elas a saúde pública. Pois, ao mesmo tempo em que se produz cuidado para a população, os limites desta produção são definidos pela lógica econômica de mercado. Além disso, no contexto brasileiro, instaura-se uma tensão permanente entre aqueles(as) que lutam pela consolidação da saúde enquanto direito social assegurado pela Constituição de 1988 e expresso pelos princípios definidores do SUS, e os setores de governo alinhados com organismos e setores privados internacionais cuja razão de existência hoje é a expansão do capital financeiro.
No contexto da AB, especificamente no município do Rio de Janeiro, testemunhamos a atuação de trabalhadoras do NASF no sentido de buscar garantir, minimamente, aqueles princípios por meio da qualificação do trabalho de equipes de referência. Elas constituem, ao lado de muitos(as) outros(as) profissionais do SUS, um verdadeiro corpo de resistência, que parece ser uma das últimas trincheiras que o desmonte do sistema procura abater, visando a privatização. Pois, assim como a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso do SUS é transferida para o âmbito comunitário, se requer que o trabalho dessas(es) profissionais dê conta de sustentar os princípios de saúde pública pelos quais lutam, em meio a uma estrutura cada vez mais precarizada, cuja orientação já não é mais somente a focalização dos serviços e seletividade da população, mas a ausência de condições necessárias para que este mínimo de cuidado se ofereça.
O (des)governo da pandemia e a crise na saúde: a outra face da biopolítica
Discutimos anteriormente como a população passa a ser alvo de investimento de políticas. Historicamente, a medicina e o campo da saúde têm se estruturado em um modelo onde a manutenção da vida e, por conseguinte, da força de trabalho, é vital para o capital e sua projeção de lucros.
Estamos vivendo hoje um momento delicado com o surgimento da Síndrome Respiratória Grave SARS-Cov2, declarada como Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro 2020, sendo declarada como pandemia pelo decreto da OMS, no dia 11 de março de 2020. Essa doença causa gravidades variadas, considerando também as comorbidades associadas. Uma pandemia como essa convoca à criação urgente de estratégias de proteção à vida, isto é, de políticas de atenção à saúde eficazes e com medidas para além desse campo.
No contexto brasileiro, compreendemos que a pandemia ganhou narrativas que estimulam a polarização da sociedade, com posicionamentos que negam ou atenuam sua gravidade. A falsa escolha entre preservar empregos ou vidas justifica comportamentos que induzem a reprodução desse discurso pela sociedade trabalhadora que teme pela perda do emprego. Isso indica que a biopolítica opera também no controle das vontades, nos modos se ser, que são produzidas nos determinados contextos sociais. A omissão diante das milhares de mortes e do grande contingente populacional infectado projeta-se como uma política de exposição da população a riscos, considerando que determinadas pessoas estão mais expostas que outras se levarmos em conta questões de raça e classe social.
Atribui-se ao próprio indivíduo a capacidade de se prevenir contra a infecção ou curar-se, ao passo que não lhe são oferecidas garantias plenas de assistência em caso de adoecimento. Intensifica-se, nesse contexto, a cisão entre os que podem se proteger numa pandemia, fazer isolamento social, ter acesso a cuidados imediatos, e os que devem continuar se expondo, muitas vezes em condições inadequadas, para "salvar a economia" ou para não perderem seus empregos.
O papel desse negacionismo que desqualifica análises científicas e mais cautelosas para lidar com a pandemia escancara uma estratégia necropolítica de compreensão do enfrentamento à pandemia, fazendo ver e falar uma política de morte (Preciado, 2020). Nesse sentido, é importante acionar o trabalho do filósofo Achille Mbembe (2016), em que o conceito de biopolítica em Foucault é expandido e reconstruído quando propõe discutir as políticas de morte, que operam nos países colonizados e ainda permeiam as relações sociorraciais modernas. Segundo o autor de "Necropolítica", a política paradoxalmente é um lugar de desrazão, de forma que instituições que deveriam ter o papel de garantidores do bem comum, quando situadas em um contexto de zona de exceção - tal qual os das colônias - estruturam sua soberania, isto é, a capacidade de decidir quem é descartável ou não, sem estar sob qualquer regra: "Lá, o soberano pode matar a qualquer um ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais" (Mbembe, 2016, p. 36).
A base para a construção das colônias como zonas de exceção é a distinção da Europa, com seus Estados pautados na unidade político-territorial e centralização do poder - subentendidos como ideias universais e intrínsecas à moralidade -, e os territórios passíveis à apropriação. A ideia de que as colônias são como fronteiras habitadas por seres não civilizados, que não são mobilizadas por cidadãos que têm respeito mútuo entre si, onde não há distinção entre "inimigo" e "criminoso", é produto dessa semiótica. Dessa forma, "as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos - a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da "civilização" (Mbembe, 2016, p 133).
Dialogando com Agamben, o autor nos apresenta a ideia de que a vida, enquanto é destituída de humanidade, imposta a ela essa condição de outro animalizado, desqualificado, passa a se posicionar como um inimigo ficcional. Tenta-se justificar assim sua eliminação por meio da violência e morte. Essa circunstância provém, ademais, da negação racial de qualquer vínculo entre o conquistador, "civilizado" europeu e o nativo "selvagem", corroborando para que as colônias sejam governadas sob a total ilegalidade. Assim, quem deve viver e quem deve morrer é uma decisão soberana pautada em grupos biológicos, apresentando o racismo como sua expressão. Esse poder, quando ampliado para os debates de vida e morte na conjuntura colonial estruturada em um Estado de exceção e de terror, materializa-se na forma de necropolítica, isto é, a política de morte compatível a um Estado estruturado na ideia de soberania às margens da lei, em que se define quem será morto e como será essa morte.
Tomando essas discussões para pensar o contexto do Brasil contemporâneo, temos que a sociedade brasileira atualiza e reforça elementos da colonialidade, como o processo escravocrata, na forma de racismo estrutural (Lima, 2018), que operam como formas de governo. Os traços da colonialidade no Brasil estão em elementos do cotidiano, como na concentração de pessoas pretas e mais pobres em regiões periféricas e em favelas - a segregação socioespacial -, locais estes que estão em um Estado de Exceção Permanente que permite, pelo Estado, o uso da violência, o abuso de autoridade e a perda do direito à inviolabilidade da propriedade, configurando a suspensão de direitos e garantia fundamentais para com essa população (Miguel, 2015). A situação mais emblemática disso é o resultado da política de "segurança pública" adotada no Rio de Janeiro em que a violência e a política de morte são institucionalizadas. Isso denuncia como a necropolítica adota tipografias de crueldade e locais como esse são os que se tem licença para matar.
Além desse lado visível da necropolítica brasileira, há também o menos visível caracterizado, por exemplo, pelo pouco investimento público em políticas sociais e o racismo estrutural da sociedade que contribuem para o aprofundamento das desigualdades sociais, vulnerabilizando uma grande parcela da população que encontra mais obstáculos à igualdade de oportunidades. O Estado torna-se, assim, legitimador dessas violências.
Sobre isso, Mbembe (2016) afirma que também se pode fazer morrer através de processos técnicos silenciosos, como a burocracia, sendo uma maneira discreta de matar, 'sendo a tortura uma forma mais explícita de morte e a expressão máxima dessa política, com os campos de morte como metáfora para refletir sobre esses processos. Progressivamente os vulnerabilizados pelo Estado e suas políticas liberais vão sendo cada vez mais comparados aos "selvagens" do mundo colonial, em que a pobreza é cada vez mais criminalizada ou vista como resultado de escolhas individuais.
Assim, a crise sanitária que se agrava na pandemia, deve ser entendida como reflexo e produto de um conjunto de medidas tomadas ao longo dos últimos anos com intuito de debilitar e desarticular o SUS e perpetuar a necropolítica colonial. A Atenção Primária à Saúde (APS) tem sido gravemente afetada de forma paradoxal pela sua capacidade em atender a maior parcela dos problemas de saúde da população. Contudo, ao mesmo tempo em que encontra percalços para seu funcionamento, apresenta-se como potente estratégia provedora do cuidado especialmente no momento atual da pandemia, que sabe onde pessoas com comorbidades que podem agravar os casos de SARS estão, sendo, portanto, capaz de procurá-las e assistir suas necessidades de saúde. Dessa forma, consegue-se garantir a manutenção da vida em meio a um cenário desolador, contrariando o que prega a face necropolítica do neoliberalismo.
Para finalizar a discussão
No decorrer desta escrita, discutimos dois pontos importantes capazes de produzir análise sobre o campo saúde: a crise da saúde e a pandemia como problemáticas que intensificam a crise sanitária já em curso e expõem, ainda mais, a face perversa do capitalismo contemporâneo. O desmonte do SUS como escolha política vai na contramão da universalidade do acesso à saúde e evidencia a redução do direito e sua transformação em mercadoria no neoliberalismo, com a redução de serviços e focalização da atenção em ações básicas, cada vez mais voltadas para uma parcela pobre da população. Além disso, a compreensão liberal de responsabilização individual sob o discurso de que cada um cuida de si, nos coloca como sujeitos em busca de soluções individuais, geralmente também revertidas em mercadorias a serem consumidas, como é o caso dos planos de saúde.
O negacionismo do atual governo diante da pandemia, assim como o agravamento das políticas neoliberais de redução de direitos e priorização da lógica de mercado, representam políticas que expõem as populações ao risco de morte e agravam a crise econômica e sanitária, que passa a ser mascarada como se fosse produto da pandemia.
O desmonte das políticas sociais tem consequências diretas no aprofundamento das desigualdades sociais, lançando as pessoas em zonas de instabilidade e insegurança, sendo as condições materiais e sociais de vida determinantes que refletem na saúde da população. As populações historicamente vulnerabilizadas e desde sempre expostas a dificuldades materiais de vida, principalmente os moradores das favelas e periferias, em sua maioria a população preta, são os mais afetados. Diante disso, a expectativa é de uma demanda de saúde cada vez mais crescente e complexa.
A eclosão da pandemia deixa cada vez mais evidente a importância do SUS para o enfrentamento dos problemas de saúde, seja pela potencialidade de oferta de atendimento assistencial seja pela prevenção e cuidados necessários às questões epidemiológicas. A Atenção Básica, tendo como característica o trabalho territorializado, é um importante elemento na construção do cuidado em saúde. Destaca-se também que o trabalho da saúde não pode ser desacompanhado do de outros setores das políticas sociais, já que as condições para estar bem e saudável estão relacionadas ao acesso aos direitos sociais básicos.
No território de disputas de como queremos ser governados (no sentido biopolítico do termo), afirmamos que nenhum direito social pode ser reduzido à mercadoria, assim como a necessidade da luta por um sistema de saúde como um direito - público e de qualidade - pertencente a toda a coletividade. Reafirmamos o direito a um cuidado em saúde integral, capaz de manejar a complexidade dos problemas e que seja capaz de promover saúde.
Nossa vivência em um serviço de Atenção Básica nos ajudou a visualizar a força do trabalho interprofissional, da capacidade das/os trabalhadoras/es em inventar coletivamente estratégias de cuidado e espaços de construção de vínculo que têm efeitos importantes na saúde e nas subjetividades. Também instiga a pensar na importância de condições de trabalho adequadas para que essas(es trabalhadoras(es) sigam construindo modos adequados de responder às demandas de saúde da população.
Entende-se, ainda, a relevância do Programa de Educação pelo Trabalho (PET) para a Saúde-Interprofissional como iniciativa de troca de saberes entre a academia e os serviços de saúde"; modificar conforme proposta abaixo: como iniciativa de troca de saberes entre a academia, os serviços de saúde e o território, promovendo tanto a qualificação do trabalho quanto a reflexão sobre a formação na área da saúde, na contramão da formação fragmentada em especialismos. Paralelamente, este programa tem se mostrado adjuvante no enfrentamento à crise na saúde pública, acentuada de forma substancial pela pandemia de Covid-19, por meio de ações como: produção de conteúdos educativos digitais para a saúde, compartilhados em mídias sociais; telemonitoramento de usuários adscritos às clínicas da família nas quais se insere; pesquisa e estudo, que nos permitem fazer análises do nosso atual contexto; e promoção de cuidado em saúde mental para profissionais e usuários. Ressalta-se, ainda, que, embora o projeto tenha sido afetado pela greve dos trabalhadores da AB no Rio de Janeiro em 2019, decorrente do subfinanciamento progressivo do setor, expresso no corte de eSF inteiras e de profissionais do NASF, foi possível uma readaptação no sentido de mantê-lo existindo e ativo. Parte desse movimento se materializa como forma de auxílio na luta, em conjunto com os(as) profissionais da saúde, contra o desmonte da AB e do SUS como um todo.
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Recebido em: 21/07/2020
Aprovado em: 10/12/2020