Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGO
Covid-19 e ciência pós-normal: reflexões epistemológicas e políticas
Covid-19 and post-normal science: epistemological and political reflections
Covid-19 y la ciencia posnormal: reflexiones epistemológicas y políticas
Carlos Roberto DrawinI; Jacqueline de Oliveira MoreiraII; Bianca Ferreira RodriguesIII
IPsicólogo, Doutor e Mestre em Filosofia pela UFMG, Professor Titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Professor Aposentado de Filosofia da UFMG / carlosdrawin@yahoo.com.br
IIProfessora da Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Mestre em Filosofia pela UFMG. Psicanalista. Bolsista Produtividade CNPq PQ2. Membro do GT da ANPEPP "Psicanálise, Clínica e Política". Membro da Comissão de Propostas Socioeducativas do Fórum Permanente do Sistema Socioeducativo de Belo Horizonte. Projeto Aprovado APQ-02862-17 - Edital Universal FAPEMIG / jackdrawin@yahoo.com.br
IIIGraduada e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas). Bolsista CAPES / biancaferreira025@gmail.com
RESUMO
Diante do inusitado da pandemia de Covid-19 nos deparamos com um intenso entrecruzamento entre aspectos estritamente científicos e aspectos sociais e políticos. Nesse sentido, este ensaio teórico pretende refletir sobre os limites do conceito de ciência normal, apresentar a ideia de ciência pós-normal e, assim, defender a articulação intrínseca entre ciência, política e comunidade como possibilidade de posicionamento diante dos desafios da Covid-19. Na primeira parte do texto focamos o ideal controverso de ciência e de sua continuidade com a técnica e na segunda parte fazemos algumas referências a suas implicações políticas a partir da suposição de que as ideias de ciência pós-normal e de transdisciplinaridade contribuem para a superação da separação entre decisão e participação política e argumentação racional e científica.
Palavras-chave: Covid-19; Ciência pós-normal; Ciência; Transdisciplinaridade; Política.
ABSTRACT
With the unusual Covid-19 pandemic, we are facing an intense intersection between strictly scientific, social and political aspects. In this sense, this theoretical essay aims to reflect on the limits of the concept of normal science, to present the idea of post-normal science and, thus, to defend the intrinsic articulation between science, politics and the community as a possibility of positioning in the face of the challenges of Covid-19. In the first part of the text we focus on the controversial ideal of science and its continuity with technique and in the second part we make some references to its political implications based on the assumption that the ideas of post-normal science and transdisciplinary knowledge contribute to overcome the separation between political decision and participation and rational and scientific argumentation.
Keywords: Covid-19; Post-normal science; Science; Transdisciplinary; Politics.
RESUMEN
Frente a lo inusual de la pandemia de Covid-19, nos enfrentamos a una intensa intersección entre aspectos estrictamente científicos, sociales y políticos. En este sentido, este ensayo teórico tiene como objetivo reflexionar sobre los límites del concepto de ciencia normal, presentar la idea de la ciencia posnormal y, por lo tanto, defender la articulación intrínseca entre la ciencia, la política y la comunidad como una posibilidad de posicionamiento frente a los desafíos de Covid-19. En la primera parte del texto nos enfocamos en el controvertido ideal de la ciencia y su continuidad con la técnica y en la segunda parte hacemos algunas referencias a sus implicaciones políticas basadas en el supuesto de que las ideas de la ciencia y la transdisciplinariedad posnormal contribuyen a superar el separación entre decisión política y participación y argumentación racional y científica.
Palabras clave: Covid-19; Ciencia postnormal; Ciencia; Transdisciplinariedad; Política.
Introdução
A pandemia de Covid-19, inicialmente minimizada, tornou-se um problema sanitário gravíssimo, um risco de sofrimento e morte para os indivíduos e famílias, um difícil desafio para as políticas públicas e um impacto traumático de alcance planetário para todas as sociedades. Os efeitos econômicos e sociais imediatos da pandemia já se fazem sentir: brusca diminuição das atividades econômicas, vertiginosa queda do PIB na maioria dos países e significativa recessão, mesmo nas nações mais desenvolvidas. O que fazer diante de situações tão dramáticas e urgentes? Os conflitos políticos logo se instalaram se opondo basicamente aqueles que priorizam a crise sanitária, na expectativa de enfrentar os problemas econômicos apenas após o declínio da curva de contágio, e aqueles que priorizam a crise econômica, na expectativa de que a própria disseminação do vírus leve à produção dos anticorpos necessários à sua contenção. A segunda alternativa suscita não só objeções consistentes dos cientistas e das instituições de saúde pública, mas também, por seu altíssimo custo humano, implica dramáticas consequências éticas. Afinal, quem deve morrer? Os grupos de risco - velhos e doentes - assim como os pobres e desvalidos, entregues à precariedade de suas condições de vida?
A primeira alternativa obtém o consenso dos estudiosos e das instituições e autoridades responsáveis na expectativa de que o investimento intensivo em pesquisas biomédicas possa propiciar a descoberta de remédios eficientes para o tratamento dos pacientes já contaminados e de vacinas capazes de evitar o contágio. Enquanto isso não ocorre a medida a ser adotada é o isolamento social mais ou menos rígido, de acordo com os dados estatísticos na diversidade de suas constatações e projeções em função das condições específicas de cada população e região.
Diante do inusitado da pandemia nos deparamos com um intenso entrecruzamento entre aspectos estritamente científicos e aspectos sociais e políticos. Não é difícil pensar que isto se dá em decorrência do caráter emergencial da situação atual que, uma vez superada, levaria novamente à saudável separação entre os diversos domínios do conhecimento e da ação. Assim, as discussões e conflitos políticos seguiriam o seu curso enquanto a ciência voltaria ao seu leito normal. Mas o que seria a ciência normal ou o "estritamente científico" no caso da pandemia? A resposta parece óbvia. Seria o estabelecimento de uma cadeia causal com sólida base experimental: uma vez determinado o vírus como agente causal da infecção, caberia investigar a sua estrutura, as suas interações com o meio ambiente e a dinâmica de sua difusão. Conhecida a causa, isto é, a interrelação entre as diversas variáveis envolvidas, torna-se possível desenvolver os meios adequados de intervenção, os remédios para mitigar as complicações da infecção e as vacinas para barrar o contágio. Há, portanto, uma causa natural, o agente viral, a ser explicada e enfrentada pelas intervenções técnicas orientadas pelas ciências naturais e todo o resto vem por acréscimo em decorrência do contexto emergencial em que estamos vivendo. Afinal, pode-se dizer sensatamente, as pessoas não podem permanecer eternamente em isolamento e a economia tem de voltar a funcionar. O apelo dramático a favor da mobilização social, inteiramente justificável para o enfrentamento do problema em seu caráter imediato e urgente, poderia ser considerado basicamente como de caráter provisório e complementar, como medida externa ao próprio fazer da ciência.
Em princípio nada a objetar. Certamente, precisamos de tudo isso: da investigação científica, da intervenção técnica e da mobilização social orientada por ambas. São ações interligadas cuja rejeição política testemunha obscurantismo nas ideias e lastimável insensibilidade moral com relação ao inestimável valor das vidas humanas.
Acreditamos, no entanto, que a abordagem exclusivamente naturalista da pandemia, ao colocar num lugar secundário, complementar e extrínseco suas dimensões sociais e políticas acaba por ocultar aspectos essenciais presentes em sua origem, em seu enfrentamento e consequências. Acreditamos, por contraste, que a crise ultrapassa em muito o campo das ciências da natureza e os recursos das disciplinas especializadas.
A pandemia, por sua intensidade e extensão global, deve produzir efeitos históricos profundos e de longa duração que ainda não são claramente discerníveis. Alguns valores caros à chamada pós-modernidade, como o individualismo exacerbado e a busca de satisfação a qualquer custo, a maximização do desempenho e do sucesso profissional e tantos outros referenciais simbólicos tidos como evidentes, deverão ser repensados criticamente. Talvez seja ainda cedo para tal avaliação, mas a crise que estamos padecendo é propícia para trazermos novamente à baila a questão do lugar político, social e cultural da ciência. Neste sentido, este ensaio teórico pretende refletir sobre os limites do conceito de ciência normal, apresentar a ideia de ciência pós-normal e, assim, defender a articulação intrínseca entre ciência, política e comunidade como possibilidade de posicionamento diante dos desafios da Covid-19.
Da ciência normal à "pós-normal": considerações epistemológicas
O que é a ciência? No senso comum o termo parece corresponder a uma realidade autônoma, separada do restante das atividades humanas e facilmente discernível. A designação substantiva pode nos levar a crer que se trata de algo, de uma entidade capaz de ser claramente definida e determinada como uma coisa qualquer, como, por exemplo, a tela do computador à minha frente. Em nossa época, após os grandes êxitos científicos dos últimos duzentos anos, a ciência idealizada herda a autoridade anteriormente assegurada às cosmovisões religiosas. Apesar disso, a ciência (episteme) é o tema da epistemologia ou da filosofia da ciência, um discurso filosófico de grande complexidade e bastante controverso, que a toma como objeto de reflexão e em geral pretende definir as suas características essenciais e, então, diferenciá-la de outros tipos de atividades humanas. A palavra grega episteme surge no contexto de sua contraposição com as opiniões e crenças e delas se distingue porque estas últimas são particulares e prováveis, enquanto a primeira pretende ser universal e necessária. Aristóteles, fundador da lógica e grande sistematizador grego do conhecimento, inseriu a ciência num amplo espectro de saberes racionais, distinguindo no campo epistêmico as "ciências teóricas" (episteme theoretike), "práticas" (episteme praktike), dentre as quais se incluem a ética e a política, e "produtivas" (episteme poietiké), referidas ao fazer técnico (Peters, 1977, pp. 78-79). Somente as primeiras podendo ser consideradas como científicas em sentido estrito. E como defini-las? Em sua obra Segundos Analíticos ele as caracteriza como um saber universal e necessário, o qual não visa o que é algo, por exemplo, descrever algum fenômeno natural, tipo hoje está chovendo, mas pergunta por sua causa ou razão de ser, ou seja, por que hoje está chovendo? A explicação científica, além de sua pretensão de conhecimento universal e necessário, é a investigação das causas dos fenômenos (Aristóteles, 1987; Wedin, 2006).
Duas observações nos parecem ser aqui relevantes. Em primeiro lugar, cumpre destacar que a ética e a política não são consideradas como meras opiniões ou crenças subjetivas arbitrárias, mas como ciências práticas e são incluídas no campo mais amplo da racionalidade. Em segundo lugar, as técnicas ou artes produtivas não estão integradas às ciências em sentido estrito, porque estas são puramente contemplativas, têm o objetivo de contemplação (theoría) ou apreensão da verdade inscrita na realidade em si mesma.
Essa tradição epistêmica iniciada na Grécia clássica será profundamente transformada com o advento e rápido desenvolvimento da ciência moderna. Esta conserva, contudo, a autoridade proveniente de sua pretensão de universalidade e rigor no estabelecimento de nexos causais entre os fenômenos, mas a sua referência paradigmática passa a ser as ciências da natureza. Além disso, obtém um grande reforço em sua autoridade ao reivindicar como justificativa última e irredutível das proposições teóricas os dados dos sentidos, elementos diretamente acessíveis à percepção, embora a ideia de elementos sensoriais ou empíricos pré-linguísticos tenham suscitado acirrada discussão filosófica (Marques, 2006; Papineau, 2002). Para o senso comum as disputas epistemológicas são irrelevantes, pois a contraprova da validade da ciência consiste em sua integração com a técnica, agora não mais concebida em sentido artesanal e sim como tecnologia. Este contínuo ciência e técnica não tem mais como objetivo contemplar ou alcançar a verdade em si mesma, mas dominar a natureza e colocá-la a serviço das necessidades e expectativas da humanidade. Por outro lado, para alguns filósofos, como Moritz Schlick, Rudolf Carnap e Alfred Ayer, e de modo geral para a opinião amplamente difundida, a ética e a política, enquanto se baseiam em juízos de valor, se situam na esfera das crenças pessoais, são expressões de sentimentos e apesar de sua importância devem ser colocadas fora do campo da racionalidade (Kraft, 1997). A tal visão associa-se facilmente a tese da neutralidade axiológica segundo a qual a tecnociência é inteiramente objetiva, podendo ser usada tanto para o bem, quanto para o mal, ou seja, nela "entende-se por objetividade ... o que é independente de condições particulares históricas, culturais ou circunstanciais, e também independente das perspectivas de pessoas específicas" (Smith, 2002, p. 31).
Pode-se dizer, num sentido bastante genérico, que haveria coincidência entre a ciência e o domínio da objetividade, em contraposição com o restante das atividades humanas, as quais seriam abarcadas de diferentes modos pelo domínio da subjetividade individual ou coletiva. A concepção ingênua de ciência, como foi antes assinalado, identifica o objetivo com a comprovação empírica, com aquilo que pode ser acessível a qualquer observador por meio de seu aparato sensorial. Como passar, no entanto, das proposições observacionais particulares às proposições teóricas universais? Por simples raciocínio indutivo? O indutivismo não arruinaria justamente a aspiração científica de universalidade e necessidade? Não há resposta simples para esta interrogação, o tema permanece sub iúdice tornando o esforço de justificar as teorias científicas e de demarcar taxativamente o domínio objetivo da ciência e o domínio subjetivo uma espécie de vexata quaestio da filosofia da ciência (Chalmers, 1993). Não há, portanto, algo como a ciência, como uma entidade dotada de autoridade inquestionável e herdeira racionalmente superior às cosmovisões religiosas: "não há 'visão científica do mundo', assim como não há uma 'ciência' uniforme - exceto nas mentes dos metafísicos, professores e cientistas cegos pelas realizações do seu campo especial" (Feyerabend, 2006, p. 214). As concepções de cientificidade são diversas e conflitantes. Alguns filósofos da ciência, como Karl Popper (1982), a concebem segundo um modelo crítico e universalista e como sendo tendencialmente verdadeira e realista, enquanto outros, como Thomas Kuhn (1975) a concebem segundo um modelo paradigmático e histórico, o qual, quando muda um modelo normal de ciência, também muda o próprio mundo por ele explicado (Popper, 1982; Kuhn, 1975). Um autor como Paul Feyerabend afirma de modo ainda mais contundente a dependência das teorias científicas do solo histórico e cultural no qual estão enraizadas (Feyerabend, 2006). As convergências e divergências dos diferentes modelos de cientificidade não podem ser decididas objetivamente, isto é, por meio de critérios formais e empíricos internos às teorias científicas, e nem pela observação direta daquilo que os cientistas fazem, porque eles fazem coisas muito diferentes. As controvérsias epistemológicas transbordam as suas próprias fronteiras e envolvem diferentes crenças acerca da realidade e da relação entre natureza e cultura," assim como diferentes interpretações acerca do que é e do que deve ser a sociedade, quais valores morais e opções políticas nos devem guiar, como se deve compreender o curso dos acontecimentos e para onde eles parecem apontam' (Bloor, 2009, p. 89).
Isso não significa endossar qualquer tipo de reacionarismo anti-científico, nem que os debates e o intercâmbio de argumentos são inúteis, porque, afinal de contas, poder-se-ia concluir apressadamente, tudo é relativo. Pois isso significaria, diante da dificuldade de uma rígida demarcação entre ciência e não ciência, eliminar todos os parâmetros de discussão racional. Ao contrário, o que estamos propondo é justamente a ampliação desses parâmetros de racionalidade em contraste com uma concepção reducionista da ciência. A diversidade das teorias e práticas científicas não configura um bloco monolítico a ser designado como a ciência, substantivada numa entidade única e definitivamente circunscrita. As ciências podem e devem contribuir com os seus dados e argumentos específicos, mas devem fazê-lo no contexto de discussões muito mais amplas, as quais incluem saberes muito heterogêneos - mesmo aqueles considerados como populares e não racionais e provenientes, por exemplo, de diversas tradições culturais e religiosas - e envolvem o espectro mais amplo possível de sujeitos sociais.
Essa ampliação do campo da discussão racional não é apenas algo desejável, mas se constitui como uma imposição incontornável para o enfrentamento dos grandes problemas que afligem a humanidade. Eles não se encaixam no interior desta ou daquela disciplina científica, porque são objetos híbridos e o são não apenas por transgredirem as fronteiras das ciências particulares, mas também por romperem com a consagrada separação entre natureza e cultura, tomadas como duas regiões ontológicas independentes. Vê-se, assim, o que está em jogo na crítica aos modelos excessivamente rígidos e reducionistas de cientificidade: a tendência a integrar toda a racionalidade legítima no campo das Ciências da Natureza e de definir, ao mesmo tempo, a "natureza" como objeto dessas mesmas ciências. Por conseguinte, a cisão entre natureza e cultura, considerada como evidente, funcionaria como uma espécie de sobredeterminação da distinção entre ciência e não-ciência. Essa pressuposição, a separação e contraposição entre natureza e cultura, não é óbvia e acarreta diversos paradoxos. Como assinala Bruno Latour (1994), por um lado, "afirma-se a natureza como realidade objetiva que transcende o humano e a sociedade como uma construção humana contingente, por outro lado, afirma-se que a natureza pode ser convertida em objeto imanente do sujeito humano e submetida ao seu controle, enquanto a sociedade é fetichizada e vista como não podendo ser fundamentalmente modificada, porque transcende as nossas intenções, resiste aos nossos esforços de objetivação e escapa aos nossos planos de transformação" (Latour, 1994, p. 7; Milner, 2002).
A partir da década de noventa do século passado, autores como Funtowicz e Ravetz, colocaram em evidência os limites da ciência normal, com sua busca de formular e resolver enigmas no interior de um conjunto de referências e regras paradigmáticas e cunharam a expressão ciência pós-normal de modo a enfatizar a profunda imbricação entre questões epistemológicas e metodológicas e práticas morais e políticas. (Funtowicz & Ravetz, 1997). Desse modo "isolar e reduzir seu objeto ou foco de estudo, omite que o conhecimento do objeto, seja ele físico, biológico ou sociológico, não pode estar dissociado de um sujeito que conhece, com raízes em uma cultura e uma história" (Palma & Mattos, 2001, p. 569).
O caso da crise ambiental global, por exemplo, com suas incertezas e riscos, não pode ficar a cargo de especialistas, por mais competentes que sejam, porque as suas implicações são planetárias, imprevisíveis e irreversíveis e afetam não só a humanidade presente como também a humanidade futura e, por conseguinte, se os efeitos da tecnociência ultrapassam os conhecimentos e intervenções proporcionados pela própria tecnociência, então trazem consigo uma exigência inusitada de responsabilidade a ser partilhada o mais amplamente possível. A superioridade do especialista com relação ao leigo, justificável em domínios específicos, não pode ser generalizada e tomada como referência de autoridade para respaldar decisões políticas de mais longo alcance, pois condiciona o exercício democrático, isto é, as "ações coletivas dependentes de escolhas morais e opções políticas cruciais, à uma forma específica de racionalidade antes mesmo de uma discussão substantiva acerca dos seus pressupostos" (Feyerabend, 2011, p. 95). Ou, como adverte Hans Jonas, talvez o nosso medo do progresso, em seus possíveis efeitos de devastação do meio ambiente, deva prevalecer sobre o nosso desejo de progresso, em seus possíveis benefícios de curto prazo (Jonas, 2006). Por isso, como sugerem Jacob, Toledo e Giatti (2019), "fatos incertos, valores controvertidos, apostas elevadas e a necessidade de decisões urgentes são atributos chave no contemporâneo questionamento quanto às limitações da ciência tradicional perante os desafios e a complexidade socioambiental" (p. 9).
A ciência, ou antes, a práticas científicas em sua diversidade e as teorias por elas produzidas não podem ser vistas como empreendimentos solitários ou circunscritos ao grupo dos pares. Certamente, tudo pode ser, em princípio, cientificamente pesquisado, porém a escolha do que deve ser pesquisado e os recursos necessários à implementação de projetos cada vez mais dispendiosos pressupõe o debate público acerca daquilo que as sociedades querem priorizar, assim como o controle democrático de todo processo envolvido: o quê, como e para quê algo deve ser investigado. Do mesmo modo que nos comitês de ética o especialista deve submeter as suas pretensões às opiniões de outros especialistas de ramos mais ou menos distantes de sua competência e dos representantes da comunidade, devendo esclarecê-los do modo mais acessível - assim como a todos os envolvidos na pesquisa devem a ela aderir livremente - também o conjunto das ciências deve ser atravessado pelo espírito da laicidade, isto é, por uma argumentação racional na qual todos os cidadãos, enquanto sujeitos de direito, possam participar. A autoridade da ciência não pode ser uma emanação dela mesma, como algo supostamente intangível, porque ela se origina da transformação da heterogeneidade de seus objetos e métodos, de seus objetivos e pressupostos num tipo ideal fundamente enraizado num jogo de interesses alheio à argumentação racional e que frequentemente se furta ao bem comum e escamoteia a dinâmica de uma sociedade democrática.
Por que se pode fazer crítica literária ou às artes em geral e não crítica científica? Como sublinha o físico francês François Lurçat, "não se pode evitar perguntas tão essenciais como: por que a difusão e prestígio da pesquisa científica não foram acompanhados pela compreensão pública de sua verdadeira natureza? Por que o seu êxito se associou tantas vezes com a publicidade e a mídia? Por que as críticas morais e políticas a determinadas orientações das práticas e teorias científicas permanecem ignoradas e desacreditadas? Por que as tentativas de questionar o significado ético e antropológico do progresso científico são descartadas ou recebidas com tantas desconfianças?" (Lurçat, 1995, p. 9).
Cumpre enfatizar que tais interrogações não se restringem à aplicação da ciência, podendo ser boa ou má, porque no contínuo tecnocientífico o ponto final da aplicação técnica e de sua incidência econômica retroage ao ponto inicial das opções e orientações acerca do próprio objeto da pesquisa e também na adoção dos pressupostos que condicionam metodologias, argumentações e resultados.
A designação ciência pós-normal, certamente indica uma ruptura, porém mais do que uma ruptura, reivindica a necessidade de introduzir novas ideias - como incerteza, complexidade, qualidade - e novas formas de validação da ciência - como, por exemplo, a ampliação dos centros decisórios a respeito das ideias propostas pelas diversas disciplinas científicas. Sabemos que o cenário a partir do qual a ciência pós-normal trabalha é caracterizado por dois elementos básicos: o risco do manuseio da natureza e a desigualdade social, que são dois referenciais de natureza ética e política que devem servir como parâmetros necessários para os nossos projetos civilizacionais.
A noção de ciência pós-normal está intimamente associada à de transdisciplinaridade, que implica na legitimidade da transgressão dos limites entre as ciências já estabelecidas e entre estas e os saberes não reconhecidos por sua cientificidade. Por seu impulso transgressivo e alcance inclusivo, ela difere da multidisciplinaridade, mera justaposição de disciplinas científicas, e mesmo da interdisciplinaridade, que já possui uma maior integração dos diversos enfoques científicos. Desde suas primeiras formulações nos anos setenta do século passado, acabou tornando-se um programa de pesquisa largamente aceito, embora difícil de ser implementado, a partir do lançamento em 1999, por Basarab Nicolescu, do "Manifesto da transdisciplinaridade" (Japiassu, 1976; Nicolescu, 1999, 2007; Domingues, 2012; Klein, 1990). Assim, para Funtowicz e Ravetz (1997), um problema complexo não é apenas aquele que deve ser abordado por diferentes disciplinas científicas pertinentes, como se dá na perspectiva interdisciplinar, mas o que comporta uma "pluralidade de perspectivas legítimas sobre a questão global (transdisciplinaridade)" (p. 226). A perspectiva transdisciplinar visa sanar as patologias da fragmentação dos saberes, possibilitando a sua "religação" e a construção, para além das abordagens analíticas, da "percepção global de uma abordagem sistêmica" (Rosnay, 2001, p. 494). Nesse sentido, na ciência pós-normal, a distinção entre leigos e profissionais perde relevância, embora se reconheça as contribuições da expertise confirmada e do treinamento profissional. Entretanto, a frequente falta de soluções conclusivas por parte dos especialistas para os problemas complexos permite a entrada no debate de visões heterogêneas e até mesmo divergentes. Não se trata de da aceitação contingente da pluralidade de olhares, mas de "uma necessidade epistemológica e histórica para a compreensão do mundo contemporâneo" (Drawin, 2019, p. 311). Como sugerem Palma e Mattos (2001), "essa pluralidade de perspectivas, longe de ser um problema, torna-se essencial ao conhecimento. É com essa nova 'ferramenta conceitual' que se pode produzir um entendimento filosófico denominado 'ciência pós-normal'" (p. 571).
As tarefas tradicionais da filosofia da ciência, em suas diferentes versões, não são mais um guia suficiente para a ciência pós-normal e seus objetivos não se esgotam na justificação epistêmica do conhecimento ou na obtenção de uma teoria verdadeira. Os interesses das comunidades e de sua qualidade de vida pressupõe a sua participação, assim como a colaboração, de diferentes formas de pensar na construção do conhecimento, na tomada das decisões e na implementação das práticas.
A viabilização da ciência pós-normal: considerações políticas e psicológicas
O projeto de ampliação da razão para além da rígida demarcação entre ciência e não ciência certamente não é fácil e traz consigo muitos e complexos desafios filosóficos, mas não deve ser visto como mera utopia. Ao contrário, parece se impor como uma decorrência da dinâmica interna da hiper-especialização que implodiu o programa neopositivista de uma ciência unitária com base em critérios epistemológicos universalmente aceitáveis. Por outro lado, a expectativa otimista de meados do século XIX segundo a qual a abordagem do ser humano como objeto de ciência levaria à realização de suas potencialidades sucumbiu às sucessivas catástrofes do século seguinte. As próprias Ciências Humanas, inicialmente seduzidas pelo ideal do monismo epistemológico e instadas a se espelhar nos êxitos das Ciências da natureza acabaram por revelar a imensa diversidade e complexidade do humano, como ocorreu, por exemplo, com a Antropologia Cultural após o abandono do evolucionismo etnocêntrico e com a Psicologia ao reconhecer o abismo existente entre os modelos teóricos e as sutilezas da clínica.
A convocação de outros saberes e de outros sujeitos sociais no empreendimento de construção da ciência pós-normal e na viabilização do projeto transdisciplinar - conforme foi proposto por Basarab e Morin quando da realização em 1994 do "Iº Congresso Mundial da Transdisciplinaridade" - só pode ser bem sucedida por meio de intensa aprendizagem social e do empenho em novas perspectivas pedagógicas (Nicolescu, 2007; Drawin, 2019).
Nesse sentido, as contribuições provenientes da Psicologia são cruciais. O contexto atual da pandemia pode ser ilustrativo. Como já foi anteriormente destacado, lidamos com dois aspectos aparentemente extrínsecos: a expectativa em relação aos resultados científicos, única maneira de derrotar definitivamente o vírus, e a dificuldade na manutenção do isolamento social. Os dois aspectos estão interligados de modo ambivalente, porque a expectativa, quando reforçada por seu caráter mágico e onipotente enfraquece a mobilização social e política a qual exige de cada um e de todos nós o assumir ativo de sua condição de sujeitos históricos responsáveis. Ora, como Freud mostrou o desamparo constitutivo de todo sujeito humano, em contextos de crise pessoal ou coletiva, pode reemergir e se exacerbar desencadeando mecanismos de negação, desorientação de padrões comportamentais e compensações narcísicas. (Freud, 1914/1974).
Assim, o conceito de inconsciente não é incompatível com as injunções morais e políticas de responsabilidade individual e coletiva. Ao contrário, a percepção dos limites contribui para a configuração de ações necessárias e possíveis e para a avaliação realista de sua viabilidade, da mesma forma que o reconhecimento dos conflitos sociais e dos choques de interesse é essencial para a intervenção racionalmente orientada no mundo.
Ora, antes mesmo da pandemia, sobretudo a partir da última década do século passado, se difundiu a ideia do término da história, isto é, teríamos entrado numa época na qual as democracias liberais, as economias de mercado e o suposto respeito aos direitos humanos já teriam alcançado um patamar irreversível. Daí tudo viria por acréscimo, nada precisaria ser feito em termos de ação histórica, bastaria deixar seguir o funcionamento normal da economia e da tecnociência. Na verdade, esse deixar fazer (laissez-faire) do neoliberalismo triunfante é simplesmente a versão otimista da relegação dos atores sociais à total impotência. Por outro lado, a sua astúcia consiste em instar os indivíduos e grupos a se colocarem na posição imaginária da onipotência, a acreditarem que serão bem-sucedidos na medida de sua capacidade e se forem capazes de ser empreendedores de si mesmos. Na perspectiva da constituição subjetiva neoliberal, "se o fracasso e o mal-estar persistem eles devem ser atribuídos às limitações e incapacidades do indivíduo ou do grupo ao qual ele pertence e a responsabilidade coletiva converte-se em culpa subjetiva" (Dardot & Laval, 2016, p. 321). Ao mesmo tempo o papel normativo do Estado é demonizado como uma intromissão indevida no livre jogo das forças do mercado e toda intervenção estatal estigmatizada como ocasião de corrupção e ineficiência.
Temos visto reiteradamente, apesar de toda polarização ideológica a dificultar a lucidez da análise, a impotência das políticas liberais no enfrentamento da pandemia da Covid-19 e a necessidade do Estado como garantia, mesmo precária, para preservação da saúde pública (Farias, Gurgel, Costa, Brito & Buarque, 2011).
A catástrofe norte-americana é instrutiva acerca da insuficiência dos recursos privados na manutenção da saúde pública. No caso brasileiro a regulação da saúde é uma atividade estatal essencial, na qual a Constituição garante que "a saúde é direito de todos e dever do Estado" (1988, p. 118), mas sua execução podendo "ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado" (p. 119). Ou seja, estamos às voltas com um direito universal, garantido por lei, que comporta em si uma grande complexidade, mas que se torna ainda mais intrincado pela influência do mercado e dos demais atores sociais nas decisões a serem tomadas.
As decisões em relação a domínios como a educação e a saúde envolvem desde valores éticos e morais fundamentais que dizem respeito à vida e à morte dos indivíduos, até à qualidade de vida das populações, ou seja, ao acesso aos recursos e serviços necessários à garantia dos direitos fundamentais. Para Funtowicz e Ravetz (1997), existe uma tradição derivada do iluminismo do século XVIII que demanda a presença de uma racionalidade científica nas decisões públicas, uma vez que houve a disseminação universal da suposição de que a expertise científica é essencial nas tomadas de decisões referentes à natureza ou à sociedade. Mas seria a racionalidade científica suficiente para as decisões políticas em saúde, considerando a influência do mercado e os seus valores baseados em interesses particulares? O cenário atual de pandemia parece enfatizar cada vez mais a sua insuficiência e a necessidade, agora urgente, de ampliar a argumentação racional para além das fronteiras da ciência normal.
O processo de regulação e tomada de decisões em saúde é, antes de tudo, político, estando suscetível às pressões advindas de diferentes atores, incluindo "estratégias de coerção e legitimação características do jogo político" (Gamarra & Porto, 2015, p. 408). Ou seja, o conhecimento científico acerca do vírus, SARS-CoV-2, e da enfermidade, Covid-19, são essenciais nesse momento, mas não podemos desconsiderar o poder de influência política que os diversos grupos interessados dispõem, como destacam Palma e Mattos (2001) ao enfatizarem os custos financeiros e os benefícios envolvidos nas decisões em jogo.
Nesse sentido, não podemos dizer que se trata de uma balança equilibrada aquela entre mercado e garantia de direitos às populações empobrecidas e marginalizadas, pois ainda parece prevalecer a adoção da lógica e das ferramentas dos interesses econômicos nas práticas em saúde. Uma evidência desse processo é a própria implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de um descompasso de forças, como apresenta Farias et al. (2011) ao demonstrar como a ação de grupos de interesse possibilitou a destinação de recursos públicos aos segmentos privados e filantrópicos que já ocupavam esse espaço há décadas e acabaram nele se perpetuando e se fortalecendo.
A participação da comunidade nas políticas em saúde, garantida pela Constituição (1988) como já assinalado, foi efetivada a partir de dispositivos como os conselhos de saúde em âmbito federal, estadual e municipal, "mecanismos pioneiros de gestão participativa" (Gamarra & Porto, 2015, p. 417). Característica que se aproxima da proposta da ciência pós-normal de construção de uma "comunidade ampliada de pares" correspondendo à extensão do diálogo a todos os afetados por determinada questão, enquanto houver comprometimento com debate genuíno (Funtowicz & Ravetz, 1997, p. 220). Sendo importante destacar a integração das pessoas comuns nesse debate, que podem não possuir o conhecimento técnico-científico, mas são afetadas diretamente pelas questões em jogo. Na visão dos autores:
As pessoas que dependem da solução de problemas que estão ameaçando suas vidas e sustento têm consciência aguçada de como os princípios gerais se materializam em seus 'quintais'. ...Pode-se argumentar que carecem de conhecimentos teóricos e agem parcialmente à luz do interesse próprio; mas também se pode, legitimamente, argumentar que os especialistas carecem de conhecimentos práticos e seguem suas próprias formas inconscientes de tendenciosidade. (Funtowicz & Ravetz, 1997, p. 229)
Assim, em um cenário de pandemia, podemos perguntar como articular o saber científico e técnico com as práticas populares? Atila Iamarino (@oatila), pesquisador em microbiologia e divulgador científico brasileiro, mencionou em seu perfil na rede social Twitter, no dia 21 de abril deste ano (2020): "o comportamento das pessoas pode ser tão ou mais efetivo pra conter Covid-19 do que medidas públicas de saúde1". Ele é um pesquisador da área biológica que vêm alcançando grande destaque nacional na tentativa de transmissão do conhecimento científico acerca da pandemia para a população a partir de plataformas online como Youtube e o próprio Twitter. A sua tentativa de mobilização social em prol da contenção do vírus e da diminuição do número de mortos é meritória, mas insuficiente, porque a advertência em seu caráter voluntarista continua colocando os sujeitos sociais na posição de objetos do saber e não como partícipes na responsabilidade comum de construção do saber e na condução de sua implementação.
Palma e Matos (2001) argumentam que, para além da reiterada importância da inclusão de outros modos de olhar no debate acerca dos problemas que afligem a civilização contemporânea, faz-se necessário a incorporação do atributo da vulnerabilidade de modo a evitar "todo e qualquer processo de exclusão, discriminação ou enfraquecimento de grupos sociais" (p. 575). Para os autores, a vulnerabilidade cresce em situações muito próximas àquelas suscitadas pelo fenômeno do Covid-19:
aumento da falta de informações precisas, relevantes e abrangentes; não preocupação ou desinteresse do indivíduo, de modo suficiente, com relação ao perigo; e inacessibilidade do indivíduo aos serviços necessários, suprimentos ou equipamentos, associada à falta de confiança para sustentar ou implementar mudanças comportamentais. (Palma & Mattos, 2001, p. 577)
As políticas públicas e o controle democrático das prioridades e investimentos dão lugar à gestão empresarial e esta se desdobra na gestão das almas, na modelagem de sujeitos dóceis e adaptados, politicamente impotentes, embora supostamente empoderados. No contexto dramático da pandemia este mecanismo ideológico que em seu funcionamento normal é encoberto pela maximização imaginária da liberdade emerge com seus impasses e contradições. Se na crise econômica de 2008 a intervenção estatal foi saudada como verdadeira tábua de salvação do capital ameaçado, agora a intervenção estatal tornou-se mais controvertida, porque não se vê com clareza o que seria melhor para a renda do capital: deixar a epidemia seguir o seu curso natural, mesmo a um custo altíssimo de vidas humanas ou conter o contágio para que depois tudo volte à normalidade. Não deixa de ser instrutivo que os defensores da primeira alternativa adotem o discurso da preservação dos direitos individuais e da liberdade de expressão, enquanto os defensores da segunda alternativa reivindicam maior controle dos comportamentos individuais e formas mais efetivas da presença do Estado.
Qual a melhor maneira de voltar à normalidade, para retornarmos ao mundo anterior à pandemia? A resposta mais convincente parece ser: aguardemos, a ciência resolverá. Com os remédios e vacinas a vida entrará novamente nos eixos. Retornaremos, todavia, para qual normalidade? A aparente neutralidade do vírus mostra a sua face política ao penalizar duramente os mais pobres, as comunidades carentes, as populações mais desvalidas. Também revela a precariedade dos sistemas públicos de saúde como está ocorrendo nos Estados Unidos da América e alerta para a necessidade de seu fortalecimento como no caso do nosso SUS. Queremos voltar para o normal da desmontagem das políticas pública e da precarização do trabalho?
A distinção enfatizada por Giorgio Agamben entre "a simples vida natural" (zoé) e a "vida qualificada" (bíos) significa que não se pode identificar inteiramente o humano e o biológico e nem confundir a biopolítica, gestão da zoé, com a "política da vida" como reivindicação e reconhecimento da mais ampla participação na "vida política" (bíos politikós) (Agamben, 2007, pp. 9-20). Como mostra Achille Mbembe, na época mais recente, a do triunfo neoliberal, a administração da vida tornou-se necropolítica, gestão da morte, da eliminação maciça dos não integrados e integráveis na racionalidade econômica (Mbembe, 2018). Daí podermos indagar: queremos a continuação rotineira de nossa necropolítica a vitimar milhões de brasileiros, sobretudo, pobres, negros e jovens?
A pandemia trouxe à tona, em imagens terríveis e inesquecíveis o lado necrófilo de nossa normalidade. Afinal, se a maioria dos mortos for de pessoas sem qualificações profissionais, doentes crônicos e velhos isso não seria bom para o equilíbrio fiscal do Estado, não seria uma inesperada e bem-vinda nova reforma da previdência, não incrementaria a eficiência da economia? A causalidade natural da pandemia não torna visível as vítimas invisíveis da causalidade social? As doenças epidêmicas são inteiramente imprevisíveis em sua irrupção ou o cálculo de sua probabilidade não compensa os investimentos necessários e de baixo retorno para evitá-las e neutralizá-las em seu nascedouro?
Há ainda uma questão de fundo cuja formulação genérica poderia ser: a interferência extensiva e intensiva das atividades humanas na natureza - cuja condição de possibilidade é justamente o poder proporcionado pela ciência e pela técnica - não seria um fator determinante para o surgimento desta e de outras pandemias? Quando a tecnociência deixa de ser uma atividade teórica supostamente neutra e em busca da verdade e passa a ocupar o duplo papel de força produtiva e de justificação ideológica do modelo hegemônico de produção e distribuição das riquezas, então a sua autoridade e suas pretensões devem ser submetidas à autorreflexão crítica e os especialistas não podem deter a palavra final do processo de conhecimento. Ora, a autorreflexão pode ser designada como crítica justamente por estar organicamente articulada à práxis, aqui concebida não como um fazer qualquer, mas como ação não alienada e voltada para o interesse da emancipação e, por conseguinte, é nesse horizonte crítico que os diferentes saberes, em sua diversidade, encontram a sua justificação crítica (Bottomore,1988; Honneth; 2008; Habermas, 1973,1987; Moreira, Rena, Bolaños, & Oliveira, 2019).
A concepção de ciência pós-normal resiste à ideia de que após os momentos agudos de crise tudo retorne à normalidade, inclusive, à rotina normal das atividades científicas e técnicas, porque essa mesma normalidade pode ser a causa de muitas patologias que produzem tantos e tão grandes sofrimentos humanos. No entanto, a discussão pública e o controle democrático dos processos de conhecimento não se reduzem a consensos arbitrários e eventuais, mas exigem o esforço contínuo da aprendizagem social e do exercício da argumentação. A Psicologia pode oferecer uma contribuição essencial na construção do projeto de uma ciência pós-normal. Porque, como já aludimos uma das maiores dificuldades para a participação dos sujeitos nesse empreendimento comum, consiste na modelagem neoliberal e pós-moderna da subjetividade que pode ser resumida na surpreendente proposição: quanto mais eu me colocar como objeto da tecnociência mais livre me tornarei em minha realização subjetiva.
Considerações finais
O propósito de nosso texto foi indicar o contexto maior no qual se insere o gravíssimo desafio representado pela pandemia de Covid-19. Essa contextualização pode ser concebida em diversos planos inter-relacionados. O primeiro deles e o mais imediato é aquele de caráter sanitário e biomédico e deve ser enfrentado com objetividade e firmeza sem o encobrimento das atitudes "negacionistas". O segundo, logicamente decorrente do primeiro, consiste na adoção e ampliação de políticas públicas, tendo em vista a brutal desigualdade em nosso país, acossado pelo desemprego crônico e a precarização do trabalho, pelo caos urbano e imenso déficit de saneamento básico, pela escassez de moradias minimamente dignas. Esse segundo plano é mais extenso do que o primeiro porque o antecede e, na desejável expectativa da retração da pandemia, deve ainda persistir. O terceiro, e que atravessa os outros dois, diz respeito ao necessário avanço do processo de democratização, que não pode ser esquecido por meio do álibi das urgências atuais. Ao contrário, a pandemia ainda o torna mais imperativo, porque somente a mobilização das comunidades pode barrar as atitudes "negacionistas" que tendem a se propagar em ondas pelo corpo social. A forma mais tradicional de impedir o processo da democratização, além do recurso das armas, consiste na manutenção da sociedade em sua posição de minoridade, convencida de sua incompetência para fazer o uso público da razão, isto é, para ocupar o lugar de sujeito e não apenas de objeto das decisões, ações e omissões das elites e dos governos.
No nosso texto nos propomos a oferecer um pequeno subsídio reflexivo que se liga a esse terceiro plano que, por sua extensão estrutural e histórica, atravessa os outros dois. Pressupomos que a pandemia não é um intervalo de crise, determinado inteiramente de fora por um agente natural e invasivo, o vírus, a se interpor entre um passado e um futuro de normalidade, como se fosse possível assim definir a sistemática exclusão da sociedade na determinação de seu próprio destino. O apelo para participação da população durante o enfrentamento da pandemia e, portanto, na apropriação das recomendações da ciência, significa o redirecionamento de sua posição de objeto a sujeito de discurso. Acreditamos na legitimidade de tal redirecionamento, não apenas como exigência política, mas também com base em considerações epistemológicas a partir das ideias de transdisciplinaridade e ciência pós-normal. Como os problemas são muito complexos não pretendemos oferecer respostas, apenas pequenas indicações críticas e subsídios para uma reflexão compartilhada.
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Recebido em: 08/06/2020
Aprovado em: 27/11/2020
1 Tal citação pode ser encontrada no link: https://twitter.com/oatila/status/1252601957098967047