Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGO
Escrita literária, memórias coloniais e subjetividade
Literary writing, colonial memories and subjectivity
Escritura literaria, memorias coloniales y subjetividade
Mestre e doutor em Psicologia pela PUC/RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Pós-doutorado em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo. Professor Associado de Psicologia Social no Instituto de Psicologia da UFF/ Campus Niterói e Professor Permanente do Programa de pós-graduação em Psicologia: Estudos da Subjetividade na Universidade Federal Fluminense. E-mail: celo.sferreira@gmail.com
RESUMO
A partir do livro Caderno de memórias coloniais, da escritora contemporânea Isabela Figueiredo, que trata sobre a colonização e descolonização de Moçambique, procura-se defender, neste artigo, uma concepção política de memória que se amplia do gesto da autoria em direção à composição de comunidades de ouvintes e leitores atentos aos riscos de apagamento do passado. Centrando-se, analiticamente, em partes do livro, o artigo é uma contribuição para o trabalho de elaboração política do passado, especificamente no caso da interpretação de uma sociedade colonial. Considera-se que a análise - estabelecida a partir de um diálogo entre Psicologia e literatura contemporânea - pode contribuir para a reflexão sobre a memória como exercício que ultrapassa as fronteiras de uma vivência pessoal em direção à compreensão política do tempo histórico.
Palavras-chave: Memória; Memória coletiva; Literatura; Psicolo gia; Psicologia social.
ABSTRACT
Based on the book Caderno de memórias coloniais by contemporary writer Isabela Figueiredo, which deals with the colonization and decolonization of Mozambique, this article seeks to defend a political conception of memory that extends from the gesture of authorship towards the composition of communities of listeners and readers aware of the risks of erasing the past. Focusing analytically on parts of the book, the article is a contribution to the work of political elaboration of the past, specifically in the case of the interpretation of a colonial society. It is considered that the analysis - established from a dialogue between Psychology and contemporary literature - can contribute to the reflection on memory as an exercise that goes beyond the borders of a personal experience towards the political understanding of historical time.
Keywords: Memory; Collective memory; Literature; Psychology; Social Psychology.
RESUMEN
A partir del libro Caderno de memórias coloniais, de la escritora contemporánea Isabela Figueiredo, que trata sobre la colonización y descolonización de Mozambique, este artículo busca defender una concepción política de la memoria que se extiende desde el gesto de autoría hacia la composición de comunidad de oyentes y lectores atentos a los riesgos de borrar el pasado. Centrándose analíticamente en partes del libro, el artículo es un aporte al trabajo de elaboración política del pasado, específicamente en el caso de la interpretación de una sociedad colonial. Se considera que el análisis - establecido a partir de un diálogo entre la psicología y la literatura contemporánea - puede contribuir a la reflexión sobre la memoria como un ejercicio que va más allá de las fronteras de una experiencia personal hacia la comprensión política del tiempo histórico.
Palabras clave: Memoria; Memoria colectiva; Literatura; Psicolo gía; Psicología social.
Apresentação
A escritora Isabela Figueiredo (2015) evoca a figura do pai, colono português em Moçambique nos anos que antecederam a independência da antiga colônia portuguesa na África, em um texto literário. O livro Caderno de memórias coloniais pode ser definido como uma escrita autobiográfica, uma vez que se assume um lugar enunciativo composto por recordações em que se confundem o estatuto da narradora e a experiência pregressa de quem escreveu o texto, além de ser um exercício de diálogo entre o passado que se viveu e as tentativas pessoais e coletivas de desdobramento do passado colonial. O livro Caderno de Memórias Coloniais é resultado de um exercício sobre a recordação do passado em Moçambique, tempo em que a narradora viveu sua infância na fronteira com a adolescência entre os anos de 1963 e 1975. Menina branca, retornada à Portugal em 1975, a personagem-narradora forjada pela escritora Isabela Figueiredo viabiliza a construção de um importante documento histórico sobre a submissão dos negros nativos de Moçambique aos brancos vindos de Portugal. A assimetria constitutiva da sociedade colonial também se radicalizava diante das complexas possibilidades de definição do estatuto social dos indivíduos. Muito precocemente, a narradora forjada por Isabela Figueiredo se vê confrontada a um mundo repartido.
O propósito do presente artigo é voltar-se ao paradoxo constitutivo do trabalho literário que se empreende no livro de Figueiredo (2015) de modo a defender uma política de memória no limiar da estética com a subjetividade, ampliando o sentido da experiência subjetiva no nosso específico campo de estudos, a Psicologia. Ao se voltar ao material que provinha da recordação, a escrita de Figueiredo (2015) não individualiza, de uma vez por todas, a figura do pai, o colono português violento. Ao contrário, a narrativa não abandona a atração exercida pelo pai sobre o corpo da filha em formação e, mesmo, o magnetismo da figura paterna em relação aos seus interlocutores. Na apresentação da edição que utilizaremos na presente análise, Figueiredo (2015) enumera os efeitos da escrita sobre si mesma e parte das pessoas que conseguiram "retornar" à Portugal, com o processo de descolonização, se aproximando fortemente da operação estética e teórica que Márcio Seligmann-Silva (2013) reconhece na crítica realizada por Walter Benjamin ao conceito de representação do passado, uma vez que o pensador alemão havia estabelecido uma oposição entre representação do que estava findo e apresentação do modo como o passado é citado, sempre a partir de condições históricas singulares (Seligman-Silva, 2013, p. 70). O retorno também fora um exílio e a escrita é uma experiência não apenas de resgate e restituição, mas de evocação dos seres amados e perdidos. Paradoxalmente, a escrita restitui e recua diante do que foi vivido. Para nós, tal paradoxo precisa ser compreendido de forma cuidadosa, uma vez que se coaduna com o próprio estatuto político das memórias de passados compulsoriamente esquecidos ou submetidos ao apagamento. Quando caracteriza o desligamento do livro de si própria - isto é, quando fala do destino daquilo que foi escrito- Figueiredo (2015) já apresenta importantes elementos para a discussão que se quer empreender:
O Caderno tem uma vida própria, que quem lê reconhece, como se de repente se abrisse uma janela e o vento trouxesse intacto o ambiente do passado, descongelado, inteiro e autêntico, com os seus ruídos, cores e odores; mas o livro também ficciona para dizer a verdade, esse outro grande paradoxo da literatura. Pode esperar-se que os factos relatados correspondam ao que foi testemunhado, vivido e sentido, não que sejam um relato literal isento de trabalho literário. (p. 10)
O "trabalho literário" não invalida os esforços de interpretação do passado, de compreensão política do colonialismo e das violências sofridas e repetidas no presente. A atividade literária pode ser compreendida como uma composição de linha transversal sobre a suposta linearidade do tempo histórico, assim como a própria recordação não é uma recuperação do passado como algo em si mesmo. Ao ver que a figura do pai - personagem da narrativa - estava se encaminhando para a objetivação em um estéril julgamento do indivíduo, Figueiredo (2015) se diz cansada e prefere fazer uma escolha: "existe o meu pai e a personagem. Fico com o primeiro" (p. 11). Existe uma distância entre as palavras impressas e a pessoa evocada. Apenas no reconhecimento desta distância, que é constitutiva da atividade literária, se torna possível recordar e escrever. Esta inconclusividade dos indivíduos e dos limiares temporais nos parece muito promissora em termos da defesa de uma política de memória.
Já que uma retornada também se confronta ao fracasso do procedimento de colonização ultramarina empreendido por Portugal- e Isabela Figueiredo é uma retornada -, lembrar-se da infância se mescla à lembrança das características de uma sociedade estruturada de forma dicotômica. O paradoxo da escrita de Figueiredo também se relaciona à magnitude da figura paterna, o colono amado, o ser perdido. Muito precocemente, a narradora do livro aprende sobre as distintas corporeidades instituídas em Moçambique como colônia portuguesa:
Os brancos iam às pretas. As pretas eram todas iguais e eles não distinguiam a Madalena Xinguile da Emília Cachamba, a não ser pela cor da capulana ou pelo feitio da teta, mas os brancos metiam-se lá para os fundos do caniço, com caminho certo ou não, para ir à cona das pretas. Eram uns aventureiros. Uns fura-vidas.
As pretas tinham a cona larga, diziam as mulheres dos brancos, ao domingo à tarde, todas em conversa íntima debaixo do cajueiro largo, com o bandulho atafulhado de camarão grelhado, enquanto os maridos saíam para ir dar a sua volta de homens, e as deixavam a desenferrujar a língua, que as mulheres precisam de desenferrujar a língua umas com as outras. As pretas tinham a cona larga, mas elas diziam as partes baixas ou as vergonhas ou a badalhoca. As pretas tinham a cona larga e essa era a explicação para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chão, onde quer que fosse, como os animais. A cona era larga. A das brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas cadelas fáceis, porque à cona sagrada das brancas só lá tinha chegado o do marido, e pouco, e com dificuldade; eram muito estreitas, portanto muito sérias, e convinha que umas soubessem isto das outras. (Figueiredo, 2015, p. 34)
A prática de desenferrujar a língua restava às mulheres brancas, aquilo que restaria também à narradora. Mas no exercício literário, não se trata de desenferrujar a língua, e sim de buscar a restituição de imagens vacilantes, de persistir em percepções infantes e inacabadas. Empanturrar-se de camarão enquanto os maridos frequentavam as anônimas mulheres negras, futuras grávidas que nunca reclamariam a paternidade de seus rebentos. Uma mulher negra não tinha crédito que validasse o que dizia. Um branco podia casar com uma negra, o que permitiria ascensão social para a mulher. Já uma branca, ao casar-se com um negro, sofria proscrição social. A narradora evoca a revolta que o pai experimentava ao ver uma branca com um negro. Ao lembrar-se destas situações, a narradora lembra o lamento do pai de que, talvez, a filha tivesse se tornado comunista. A evidência da sociedade colonial não comportaria enquadramentos distintos da bipartição: civilizados e selvagens, ou mesmo, humanos e cães. No mesmo compasso em que recorda a bipartição de espécies, a narradora também lembra a força erótica do pai.
Ao fazê-lo, a narradora se demora na caracterização excedente das filhas dos colonos, crianças que testemunhavam as conversas trocadas entre as mulheres brancas, resignadas com a necessidade instintual dos seus maridos, absortas em sustentar a imagem sagrada do matrimônio e da família colonizadora. Falava-se sobre a sequência dos filhos nascidos das pretas, dos órgãos sexuais masculinos dos negros e das aventuras do pai colono, flagrado pela própria narradora em uma tentativa de se apoderar de mais uma negra. O pai é a expressão do que os colonos fazem em Moçambique, atingido, ao mesmo tempo, pelo olhar curioso da filha que lhe enxerga forte e vivaz. "Ele sentia prazer em viver e gostava de comer, beber e foder, isso já expliquei. O meu pai expirava essa festa dos sentidos." (Figueiredo,2015, p. 42). O pai, responsável pela eletrificação da cidade de Lourenço Marques - atual Maputo - preferia os funcionários negros aos brancos, a quem teria que pagar o triplo. A um branco, além disso, não se podia dar porrada. A extrema violência da compulsória cordialidade entre brancos e negros não é negada na composição da narrativa.
O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Se sorrisse, falasse baixo, com a coluna vertebral ligeiramente inclinada para a frente e as mãos fechadas uma na outra, como se rezasse.
Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos! (Figueiredo, 2015, p. 43)
O livro toma sua feição mais sombria e direta, ao se alongar nas recordações das violências reiteradas, do silêncio compulsório, da dor adiada de seu reconhecimento e de seu desdobramento político. A lembrança de si mesma como criança que não compreendia o que via assume um lugar na escrita literária, já que, na composição da narrativa, trata-se de reconhecer que não havia olhos inocentes. A saída da narradora foi encontrada nos livros de Charles Dickens e a foto que se segue à pungente lembrança da violência colonial mostra uma menina branca a divertir-se num brinquedo na água, enquanto um menino negro se cola às grades que organizam as separações do espaço de diversão. Distraída pelos livros, a narradora, agora - no texto, sim, porque só no procedimento literário é que se olha para o passado na valorização da virtualidade de uma reminiscência - pode diagnosticar do que se tratava, no passado, incomodamente presente:
Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez,malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência. Nada nos meus livros, que recorde, estava escrito desta exata forma, mas foi o que li! (Figueiredo, 2015, pp. 45-46)
A distração dos livros acolhe um sentido do mundo que parecia um paraíso aos brancos colonizadores. O olhar concentrado nos livros atinge, no tempo da viagem à terra dos pais, de forma transversal, a dor silenciada pelo processo de desumanização dos corpos negros. Uma transição do mergulho infantil nos livros para o exercício literário empreendido no presente permite que o tempo histórico seja confrontado como matéria espessa, disputável. Mas não se trata de um julgamento do pai, entre as camadas de fruição, inocência e esquecimento, o eu narrado se depara com sua despossessão. Figueiredo (2015) estabelece um exercício narrativo sobre aspectos em jogo no processo de constituição de si, interrogando a estabilidade da inocência da própria narradora, apresentando as condições esparsas em que se formulava a sensibilidade infantil, visitada, no presente, como índice de uma despossessão do eu, tal como é também defendida na reflexão de Judith Butler (2015) sobre as possibilidades de se empreender um relato sobre si mesma : " É somente na despossessão que posso fazer e faço qualquer relato de mim mesma." (p. 52). Isso que não se entendia antes, se exprime agora em sua força de denúncia, restituição e perda. Falar de si em primeira pessoa viabiliza que o paraíso da infância seja relativizado, uma vez que foi cenário, também, da anulação de múltiplas vidas. As palavras usadas na narrativa não se distanciam dessa tensão: olhar para os olhos dos negros sem filtros é garantir o não esquecimento, para a narradora, do ódio, miséria, submissão, sobrevivência e conspurcação. A própria autora do livro, no prefácio da edição em uso na presente discussão, viabiliza que entendamos o quanto de ruptura com sua própria família precisou estar em jogo para que uma recordação fosse partilhada publicamente. É porque não se pode falar de si sem carregar, de certo modo, uma imagem do mundo que se queria negar. A escritura pode não apenas redimir, mas multiplicar os vetores de subjetivação e dessubjetivação em curso no processo de constituição de si.
No texto literário, acompanhamos a elaboração de imagens daquilo que fora perdido no passado, ao mesmo tempo em que encontramos fragmentos do vínculo poderoso entre filha e pai. Incidindo sobre material autobiográfico, a narrativa literária ficcionaliza. A discussão sobre a sociedade colonial e a descolonização não está apartada do percurso de elaboração de si, em torno, principalmente, de um exercício sobre o que advém, por intermédio da recordação. Em determinado momento da escrita, a narradora se detém diante das mãos, evocando o tempo perdido e o tempo que se vive, agora:
A forma como olhamos para as nossas mãos na infância, e a forma como olhamos para elas, agora; estou a olhar para as minhas mãos agora, não muda. As mesmas mãos. Como pudemos envelhecer e ser ainda as mesmas? As unhas iguais. Os nós dos dedos. Os mesmos olhos. O mesmo pensamento, quando olhamos, com os mesmos olhos, as mesmas mãos.
A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre. (p. 127)
A infância não se configura como paraíso perdido ou experiência inamovível, convertendo-se em abertura de possibilidade de relação com o passado político e subjetivo que se encontrava confinado à composição de uma sensibilidade que se distinguia dos adultos que cercavam a narradora. As mesmas mãos e a mesma forma de olhá-las, a passagem do tempo que se arranja no estabelecimento de uma relação entre o que muda e o que permanece. As mãos que escrevem - coadunando a atividade de narrar com a gestualidade das mãos, garantindo, ao mesmo tempo, a interpretação da prática de narrar em sua destinação possível à literatura como trabalho em torno do passado que se dirige ao presente - são as mesmas que se protegiam nas mãos do pai, o colonizador, a figura amada e perdida.
Memória, literatura e processo de subjetivação
A elaboração política do passado não é feita sem um exercício sobre si mesmo. A condição submissa dos negros não é apagada pela passagem do tempo, no livro de Figueiredo não cessa de haver trabalho narrativo sobre a desumanização dos colonizados. A extensão das memórias sobre a colonização e a descolonização talvez se conecte com o que Achile Mbembe (2019) considera como o estatuto do trabalho da memória em torno das lutas de contingentes humanos que foram subjugados - e ainda o são - pelos primados da lógica colonialista:
não há memórias puras, límpidas. Não há memória própria. A memória é sempre suja, sempre impura - é sempre uma colagem. Na memória dos povos colonizados achamos inúmeros fragmentos de algo que, num determinado tempo, se quebrou e não mais pode ser reconstituído em sua unidade originária. Assim, a chave de toda memória a serviço da emancipação é saber como viver o perdido, com que grau de perda podemos viver. (p. 17)
A condição impura da memória viabiliza, no exercício literário-político de Figueiredo (2015), o manejo que cura o vínculo entre filha e pai do jugo do moralismo ou da culpa, ao mesmo tempo em que convida a um refazimento de possibilidades de imaginação sobre o passado. Há recordações que ainda não couberam no texto, que reclamam por uma caracterização inacabada da discussão sobre o passado colonial de Moçambique, cenário da infância da narradora. Não se exilar da infância implicou, para a escritora, em uma abertura comunicativa com seus eventuais leitores, com o próprio presente em que necessitamos de novas políticas de memória.
A elaboração política do passado, um dos temas mais importantes da perspectiva teórica do pensador Walter Benjamin, também se nutre das experimentações estéticas em curso na contemporaneidade. Mesmo que na interpretação do exercício estético de Marcel Proust em relação ao passado, Walter Benjamin (2008) tivesse considerado a necessidade de um desdobramento político das nossas dificuldades ocidentais de reconhecer uma correspondência entre o passado e o presente, em seu ensaio sobre a imagem de Marcel Proust, o pensador considera a necessidade de elaboração de uma perspectiva metodológica - no campo da historiografia materialista, que ele reivindica e ajuda a dar espessura conceitual - sobre o que se perde no tempo. Quando articula sua concepção de história materialista, Benjamin (2008) sugere um exercício próximo ao que identificara na obra de Proust, uma vez que "nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história" (p. 223). Convergindo o estético e o político, Benjamin já apontara a força do maelstrom - turbilhão - com que se arrasta o mundo na solidão construtiva do escritor. O pensador alemão apontava, também em relação ao trabalho em curso na literatura, que a recordação do narrador na tradição oral e na composição da obra dos narradores terminais como Nikolai Leskov se conectava com uma espécie de esquecimento retroativo do próprio narrador, que viabilizava, desse modo, que algumas imagens do passado sobrevivessem e se dirigissem, oportunamente, ao presente. O esquecimento retroativo se estabelece como resultado da despossessão do próprio eu posicionado na retórica de um texto literário, condição que dialoga fortemente com a conexão entre o trabalho manual e a prática de ouvir histórias na tradição oral, no caso da caracterização da literatura e da arte de narrar no pensamento benjaminiano.
Figueiredo (2015) confronta-se com imagens dessa natureza ao debruçar-se sobre o passado em Moçambique, exigindo um trabalho em que ternura e coragem não se separam. O "si mesmo" do texto literário de Figueiredo não recua diante da perda da integridade do passado. A literatura pode nos ajudar a elaborar uma política de memória, cumprindo a função de produção de imagens sobre o que foi perdido, de modo a que não se abandone a tarefa de articulação de um espaço de comunicação, onde antes parecia haver apenas negação e esquecimento compulsórios. Diversas memórias podem conviver no mesmo presente. Elaborar politicamente essas memórias pode ser um antídoto à dicotomização e à moralização da nossa relação com as dificuldades constitutivas de lidar com o passado. O passado pode ser considerado uma oportunidade, por intermédio da recordação, de interrupção da continuidade abstrata do tempo e, não simplesmente, aquilo que retorna em sua integridade e que deveria ser submetido ao julgamento, ou mesmo, o que poderia ser negado por quem não o recorda. A elaboração estética de Figueiredo toca a inconclusividade do passado, permitindo a criação de um espaço de imaginação política. Neste sentido, se reconhece uma proximidade entre a crítica de Walter Benjamin ao exercício literário de Marcel Proust e a própria articulação do texto de Figueiredo, por serem encaminhamentos éticos e políticos a ambiguidade e inconclusividade do passado.
Muitas vezes, a narradora em Figueiredo (2015) se confronta com os resíduos do tempo depositados em suas mãos e em suas lembranças. Um resto de mundo, uma réstia do mundo perdido, um rastro das imagens com que o presente pode se sentir visado pelo passado, de modo a não admitirmos a continuidade da violência, ao mesmo tempo em que recuperamos uma parte de nós mesmos. Figueiredo propõe em seu exercício de escrita diferentes imagens a respeito do seu pai, na relação diária com os negros na sociedade colonial. No agora do texto, a narradora chega a imaginar que o pai se parecia com os pretos, quando o relembra a conversar com os vizinhos pretos, com uma autenticidade que não imaginava que o pai possuísse. As mesmas imagens se confrontam com o microcosmos das crianças que não sabiam o que fazer entre si, uma vez que se encontravam tão definitivamente diferenciadas e partidas entre brancas e pretas. De acordo com o texto literário,
As crianças não brincavam comigo, porque eu era branca e eu não brincava com elas, por serem pretas. O que mais nos impediria? Olhávamo-nos. Trocávamos risadas. Os nossos pais conversavam. Que conversa poderia ser essa entre um branco e um preto? Que tinham eles a falar? (Figueiredo,2015, p. 108)
A violência da sociedade colonial se confronta a confusão das crianças misturadas, posicionadas de modo esparso entre os adultos. A violência da incomunicabilidade em uma sociedade colonial - exacerbada pela porrada dos brancos sobre os corpos pretos e brevemente interrompida pelo erotismo dos primeiros contatos com outros corpos e pela insurreição dos colonizados - se choca aos gestos frágeis por intermédio dos quais as crianças dirigem-se umas às outras. Lembrar-se disso, no agora do texto, viabiliza que também nos perguntemos sobre a possibilidade de narrar e de partilhar um mundo em que o passado não seja negado, mas ao mesmo tempo não seja a única força motriz dos encontros e das possibilidades de aliança política. Como podemos lidar com a nossa condição de seres inconclusos, com o fato de que, ao evocarmos o passado, nos encontramos com aquilo que desconhecíamos a respeito de nós mesmos? Talvez o pai da narradora tivesse se tornado um preto, quando o trabalho sobre o passado se tornou, ao mesmo tempo, uma elegia ao pai, o reconhecimento de que as mãos que escrevem sejam as mesmas que tocaram o corpo ácido, suado, envolto numa camisa encharcada de lágrimas do pai (Figueiredo, 2015, p.129) de quem se despedia. As mesmas mãos que nos auxiliam a reivindicar a legitimidade do passado lembrado na experiência pública, como esforço de invenção de novos modos de convivência. O livro não é um instrumento terapêutico apenas para a pessoa Isabela Figueiredo, que percebe que há numerosos aspectos que não foram levados em consideração na narrativa. Tornando-se médica de si e do mundo, como sugerido na perspectiva de Gilles Deleuze (1997) sobre a relação entre a literatura e a vida, Figueiredo viabiliza que interpretemos o mundo colonial e pós-colonial como "...conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem." (Deleuze, 1997, p.13). Documento histórico e fonte literária, o livro pode nos ajudar a compreender a necessidade de um desprendimento de si para que o passado da narradora possa ser um dos vetores de desestabilização do presente, como atitude crítica fundamental para um desdobramento da memória. O material escrito - uma correspondência entre passado e presente - se torna inconcluso diante das lembranças de outros retornados e de leitores, incialmente imprevisíveis. As lembranças de Figueiredo (2015) não se encaminham ao solipsismo, extravasando a vida individual, dirigindo-se a novas audiências, imiscuindo-se a outras memórias.
Elaboração do passado e trabalho narrativo: Em direção ao futuro
Embora o exercício de constituição de si só possa ser compartilhado num certo anacronismo em relação ao passado, a infância é evocada como a singela e constitutiva desatenção que se desenrolava em relação aos signos do tempo e da sociedade que se indicavam em determinados contextos. O anacronismo viabiliza que se reivindique a posição daquela que narra, sustentando-se, no entanto, na dispersão e na disjunção. A subjetividade revelada pela narrativa amplia a opacidade do "si mesmo", submetido a práticas narrativas que ainda dependem da leitura, exercício que se alimenta do trabalho sobre restos da escrita. Do mesmo modo, podemos considerar que o texto literário de Figueiredo permite uma relação oblíqua com o tempo histórico, não descrevendo quadros lineares ou cumulativos, mas viabilizando que se alcancem aspectos paradoxais de uma sociedade colonial. O exercício literário elabora imagens de si - da autora, da narradora, dos retornados à Portugal após a independência de Moçambique - que permitem que documentemos o passado, que possamos, do presente, fazer uma crítica ao que permanece do passado. O exercício literário de Figueiredo corresponde a uma tomada de posição em relação ao tempo. Ainda podemos lançar mão da perspectiva de Jacques Derrida (2014) sobre a relação entre o singular e o histórico, quando o pensador fora convidado a discutir a natureza da escrita literária que lida com a tensão entre o intraduzível e os efeitos de conjunto: "num traço autobiográfico mínimo, pode estar reunida a maior potencialidade da cultura histórica, teórica, linguística e filosófica ..." (Derrida, 2014, p. 62).
Na continuidade, o pensador franco-magrebino ainda afirma que "o traço, a data ou a assinatura - em suma, a singularidade insubstituível e intraduzível do único - é iterável como tal, fazendo e não fazendo parte do conjunto marcado" (Derrida, 2014, p. 62). Essa importante inconclusividade da relação entre os tempos na atividade literária - o passado a que se refere e o presente em que se inaugura a escrita - permite que se extravase a presumível relação entre o sujeito que se reconhece e o lugar enunciativo da narradora. O processo de subjetivação da narradora abre-se para um trabalho de Figueiredo sobre si mesma e, mais importante ainda, de um trabalho do presente sobre si mesmo. A leitura mobiliza o que resta naquilo que está escrito, garantindo que a autoevidência do presente se torne crítica. O sentido do texto literário não está definitivamente recolhido ao interior do que já está escrito. A leitura, no presente, pode contribuir para uma ampliação temporal do texto, permitindo que possamos nos dirigir a defesa de uma ontologia política da memória. No exercício literário forjado por Figueiredo, identificamos uma performance da relação do sujeito com o tempo, o que contribui para um manejo não psicologizante e nem dicotômico do colonialismo.
O exercício literário amplia o sentido da memória, viabilizando que possamos recolher algumas transformações que se deram na espessura do processo de subjetivação da narradora, que pôde se debruçar sobre as disjunções entre o eu e o si mesmo, ao transmitir para a comunidade de leitores o refazimento de uma narrativa sobre o passado interrompida no decurso do exercício da escrita. A montagem do texto literário é uma forma de relação com o que foi perdido, fornecendo uma imagem importante para nossas considerações teóricas e éticas sobre o estatuto político da memória.
A performance da relação entre o sujeito e o tempo histórico se estrutura na densidade temporal em curso para a composição do texto literário, podendo nos servir como referência estética e teórica para a ampliação do sentido de subjetividade. Perdendo-se como referência absoluta em que o eu coincidiria consigo mesmo, o exercício literário de Figueiredo (2015) nos inspira a defender a invenção de um espaço de elaboração político-subjetiva do passado, em que se interrompe todo fatalismo, mas em que se demanda uma ontologia política da memória. Esforços pessoais e coletivos de construção do passado incidem, diretamente, na ampliação do conceito de sujeito em profunda relação com a história. Neste sentido, a Psicologia pode se beneficiar dos exercícios críticos sobre documentos de cultura de modo a alcançar uma imagem menos fechada de nosso processo de subjetivação. O sentido meramente pessoal de uma escrita se rasura, uma vez que enxergamos condições históricas e políticas de enunciabilidade, também relacionadas ao que poderemos forjar sobre nós mesmos no encontro com o texto literário, peça importante para a interpretação do próprio presente.
O texto chega até nós, depois de ter sido incluído no conjunto de esforços pessoais e coletivos de práticas de memória em relação à experiência colonial. Extravasando o sentido de uma prática curativa que seja importante apenas para os próprios escritores, o livro pode nos ajudar a narrar sobre as nossas próprias feridas, no contexto brasileiro em que o passado de violências institucionais cometidas por funcionários do Estado durante a ditadura civil-militar tem sido caracterizado como inexistente, reiterando as mortes pretéritas, naturalizando a perda e a impossibilidade do trabalho do luto. Vivemos coletivamente sob a égide publicitária da negação do passado.
Guardando as devidas proporções dos contextos citados, podemos nos apropriar do que Isabela Figueiredo (2015) sugere em seu texto como uma narrativa inconclusa sobre aquilo mesmo que nos constitui como sujeitos, levando-se em consideração que não são indivíduos específicos os centros absolutos onde se encaminha a tarefa de cotejar passado e presente. São processos instituídos socialmente, incidindo de forma precoce e intermitente sobre nossas existências que viabilizam que se configurem experiências assujeitadas a assombração do passado. Abrir o passado ao escrutínio público parece ser o passo decisivo de uma prática de leitura dos textos literários que, de forma oblíqua, atingem uma imagem do presente, como citação do passado que não fora reconhecido. A narradora do livro de Figueiredo não encerra suas reminiscências apenas tentando encontrar um ponto final de resolução das inquietações pessoais e coletivas vividas pelos desterrados de Moçambique em Portugal, os mesmos que tiveram que lidar com a culpa em relação ao que fora vivido. A mescla da infância da menina branca com uma espécie de campo de concentração de negros não impediu a instauração de uma lírica em que história e subjetividade dialogam de forma contundente. É a perplexidade da menina que toca a sensibilidade da narradora. Mais uma vez, as crianças brancas e as crianças pretas não sabem o que fazer quando estão próximas, a filha do colonizador branco no portão a escutar os pedidos das crianças pretas e olhar aquelas roupas rotas e os meninos esfomeados. Haveria algo a oferecer? Enquanto os adultos não chegassem, haveria língua comum entre as crianças?
Eu e eles não falávamos a mesma língua. Apenas umas palavras soltas. Olhava-os muito, e eles a mim. Por exemplo, neste momento estou a olhá-los através do tempo, e há uma perplexidade nos seus olhos, um vazio, uma fome, e nos meus uma impotência, uma incompreensão que nenhuma razão poderá explicar. (Figueiredo, 2015, p.167)
Muitas vezes, a raridade da conexão entre as crianças no passado em Moçambique se estrutura como metáfora da incomunicabilidade entre passado e presente. No halo de distância linguística entre os pequenos, parte da tarefa do texto literário se estrutura, uma vez que o silêncio se torna o problema sobre o qual é preciso se debruçar. Não é fácil lidar com a lembrança da violência que viabilizou que aquele mundo existisse. Escrever sobre o passado colonial em Moçambique é uma forma de reivindicar o sentido político de memórias esparsas e divergentes. Escrever e narrar e não silenciar. O gesto que as crianças trocavam entre si é retomado, de modo a garantir que a objetificação dos corpos negros não se repita por intermédio de uma reminiscência que serviria de álibi para o esquecimento reiterado. O silêncio das crianças é recortado pelos risos que friccionam a atmosfera de condescendência com a violência colonial. No mesmo livro, Figueiredo também formula imagens dos adultos negros que tinham dificuldade de se aproximar da narradora branca quando, ainda criança, vendia algumas frutas no portão de casa. Como não sucumbir ao silêncio exasperante? A literatura pode ser um espaço de elaboração do que fora interrompido e silenciado, aparentando-se a experimentação da brincadeira infantil que sobressai diante do cenário de suposta obviedade e necessidade das relações sociais formais. Assim se dá também nas imagens que a narradora do livro em análise desdobra em relação às suas brincadeiras com meninos e meninas negros e negras. A narradora também se lembra da violência cometida no cerne das brincadeiras infantis, quando emerge a imagem da bofetada que desferiu em uma amiga de escola. A culpa não é o único tom da escrita. Lembrar e escrever não persistem na continuidade infernal da negação do passado, mas a interrompem. Os efeitos da guerra pela retomada do poder colonial de Portugal sobre Moçambique e outras antigas colônias são apresentados em diferentes camadas da narrativa. Há a lembrança de um primo que se matou, depois de ter servido ao exército, restando como par de olhos que despertaram na menina, o seu primeiro desejo. O exercício de Figueiredo se afirma como um enorme esforço de memória, diante das disputas que se iniciaram logo nos anos imediatamente posteriores à independência de Moçambique em torno do que houve no passado. De seus parentes vencidos pela descolonização, a narradora sempre tinha ouvido que era preciso contar a sua versão da história.
Desterrada em Portugal, a narradora se compõe junto ao gesto de elaboração política e estética do passado. Realizando um trabalho que ainda não se findou, a escrita de Figueiredo contribui para a defesa de uma concepção de passado que dirige ao presente distintos apelos de reconhecimento e partilha. Vera Maquéa (2005) em conversa com o escritor moçambicano Mia Couto já havia permitido uma compreensão política da composição do passado, ao interrogar o escritor sobre a relação entre literatura e política. Restaurando um conjunto de imagens sobre a sua geração que se voltam ao exercício literário sobre Moçambique, após o contexto da independência em relação a Portugal, Mia Couto apontara, na entrevista, a constatação de que a identidade de Moçambique só poderia ser minimamente defendida após a independência, se fosse levada em consideração a multiplicidade de vetores que permitiram a diferentes exercícios literários e políticos - que interrogavam a possibilidade de construção de uma identidade nacional - a sua própria instauração. Posicionando-se criticamente em relação à ideia de Moçambique como unidade essencial - no passado - que deveria ser recuperada antes de toda a violência colonial, Couto lembra o quanto foi influenciado pela leitura de Guimarães Rosa, sugerido a ele pelo escritor angolano Luandino Vieira e efetivamente lido a partir dos anos de 1980, para que pudesse se voltar ao seu próprio país. Encontrando fora uma inspiração para pensar a rasurada identidade de Moçambique, Mia Couto parece valorizar a multiplicidade de referências para se pensar o próprio tempo histórico. A memória seria, de acordo com o exercício em curso na entrevista citada, uma tomada de posição em relação ao que é lembrado. Mia Couto se esforça por considerar a escrita literária como parte de um trabalho infindo sobre a identidade de um país que não deve negar a espessura de seu próprio passado e a incitação à pensar-se por intermédio do encontro com o outro, com o que vem de fora, com o que não encontra um espaço neutro de composição. Mia Couto reitera a sua definição de memória como construção:
Aprendi que a memória é realmente uma construção, que essa construção vive e convive com o seu próprio retrospecto e que, por via do recontar e do seu próprio repassajar, a história ganhava mobilidade e se converte numa outra composição. (Maquéa, 2003, pp. 2-3)
A composição de uma identidade que se forja na medida em que o exercício literário ganha densidade e continuidade se aproxima da tarefa política que nos colocamos em relação a elaboração do passado. Reivindicar a multiplicidade de memórias se coaduna ao exercício de Isabela Figueiredo (2015) em relação ao passado colonial, contexto contemporâneo de lembranças de infância. A contribuição de Figueiredo a elaboração do passado se soma a leitura crítica de Mia Couto a respeito de uma história que não se configura sem a devida reflexão sobre sua espessura e inacabamento. A memória pessoal da narradora em Figueiredo (2015) se converte, assim, em parte da memória coletiva e política de uma terra inventada, expressão de uma atitude política que não se compraz com a culpa e nem com o julgamento, uma vez que se sustenta na abertura do tempo histórico e na interpretação das condições políticas de uma reminiscência. Lembrar se coaduna com não esquecer aquilo que é parte de nossa relação incontornável com o que foi perdido e com aquilo que precisa ser visto, para que não mais se repita. Além disso, a fratura identitária do presente não deve ser superada diante de concepções essencialistas a respeito da origem ou da natureza do passado. Após escrever o livro, Isabela Figueiredo (2015) ainda se deparará com a inconclusividade da própria vida lembrada, dirigindo-se a audiências que não previa inicialmente, reportando-se aos desejos de viagem ao Brasil. Como antídoto ao veneno do esquecimento compulsório, o livro de Figueiredo se converte em homenagem ao pai, em afastamento em relação ao pai, em tentativa de se aproximar da amplitude política de um contexto que não poderia ser encerrado em uma vivência individual. Voltar-se ao ser que findou não apaga o calor da terra que se considerava extinta pelo fogo da guerra e do tempo. É preciso lembrar para que o horror de uma sociedade colonial não seja esquecido, uma vez que ele é parte constitutiva da história de nossa própria formação cultural. Mas, também, é preciso lembrar para que a centelha de comunicabilidade possa ainda revelar o impensado de nossa própria forma de pensar. Ocupar-se das imagens do passado pode garantir a desmontagem dos assujeitamentos coletivos e pessoais a que somos submetidos. Lembrar, deste modo, não seria apenas uma constatação do que já nos aconteceu, mas também uma centelha do que se pode esboçar em relação ao futuro. Desta forma, poderemos nos deslocar.
A noite caiu longa, e a noite é o teu dia. Vais adaptar-te. Uma vida tem muitas vidas, tu sabes. É a primeira noite que dormes na rua. Que não tens cama. Estás eufórica. Como vai ser a tua primeira noite? A que casa regressarás? Quanto tempo permanecerás sobre a cova onde o teu passado apodrece? Não devias pisar a tua campa. Pra onde vais? Pra onde vais, agora? (Figueiredo, 2015, p.171)
Referências
Benjamin, Walter (2008). Magia e técnica, arte e política. Brasiliense. [ Links ]
Butler, Judith (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Autêntica. [ Links ]
Deleuze, Gilles (1997). Crítica e clínica. Editora 34. [ Links ]
Derrida, Jacques (2014). Essa estranha instituição chamada literatura. UFMG. [ Links ]
Figueiredo, Isabela (2015). Caderno de memórias coloniais. Todavia. [ Links ]
Maquéa, Vera (2005). Entrevista com Mia Couto. Via Atlântica, 8,205-217. https://doi.org/10.11606/va.v0i8.50021 [ Links ]
Mbembe, Achille (2019). Poder brutal, resistência visceral. n-1. [ Links ]
Seligmann-Silva, Márcio (2013). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Editora Unicamp. [ Links ]
Recebido em: 29/09/2019
Aprovado em: 16/03/2020