21 52 
Home Page  


Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

RESENHA

 

A brincadeira animal, uma política da imaginação

 

An animal play, politics of imagination

 

Un animal de juego, una política de la imaginación

 

 

Pedro Augusto PapiniI; Rodrigo Shames IsoppoII

IPsicólogo, Doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: pedroaugustopapini@gmail.com
IICientista Social, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: minhopa@gmail.com

 

 


RESUMO

Nesta resenha apresentamos o livro do filósofo canadense Brian Massumi, "O que os animais nos ensinam sobre política". O autor centra-se especificamente na brincadeira animal para tecer uma rigorosa reflexão sobre ética e estética. Nos mostrando as lacunas na brincadeira de luta entre lobos e quando ela termina e vira combate real. Para tanto, Massumi tece uma cuidadosa teia de conceitos os quais pretendemos apresentar seus pontos nodais que residem na disjunção entre realizar um ato ou de dramatizá-lo. Disjunção que na brincadeira animal ou humana é fonte de aprendizagem e de ancoragem ao realizar um circuito entre instinto e política. O autor apresenta conceitos que balizam o interlaçamento, com uma diferença lúdica vital, entre instinto e política, diferença onde reside um potencial, uma margem de manobra, chamada criação.

Palavras-chave: Ética; Estética; Criação; Imaginação; Política.


ABSTRACT

In this review we present the book "What animals teach us about politics", written by Canadian philosopher Brian Massumi. The author focuses specifically on animal play to weave a rigorous reflection on ethics and esthetics. Showing us the gaps in wolf fighting play and when it ends and becomes real combat. To this end, Massumi weaves a careful web of concepts which we now intend to present their nodal points that lie in the disjunction between performing an act or dramatizing it. A disjunction that in animal or human play is a source of learning and anchoring when it makes a circuit between instinct and politics. A presentation of concepts that mark the interlacing, with a vital playful difference, between instinct and politics, a difference in which lies a potential, a margin of maneuver we call creation.

Keywords: Ethic; Aesthetics; Creation; Imagination; Politics.


RESUMEN

En esta revisión presentamos el libro del filósofo canadiense Brian Massumi, "Lo que los animales nos enseñan sobre política". El autor se centra específicamente en el juego de animales para tejer una reflexión rigurosa sobre la ética y la estética. Mostrándonos las brechas de lo que hace el juego de lucha de lobos y cuándo termina y se convierte en un verdadero combate. Con este fin, Massumi teje una cuidadosa red de conceptos que ahora tenemos la intención de presentar sus puntos nodales que se encuentran en la disyunción entre realizar un acto o dramatizarlo. Disyunción que en el juego animal o humano es una fuente de aprendizaje y anclaje al hacer un circuito entre el instinto y la política. Presentación de conceptos que marcan el entrelazado, con una diferencia lúdica vital, entre instinto y política, diferencia donde hay un potencial, un margen de maniobra, llamado creación.

Palabras clave: Ética; Estética; Creación; Imaginación; Politica.


 

 

Obra: "O que os animais nos ensinam sobre política" de Brian Massumi

 

"O que os animais nos ensinam sobre política" (Massumi, 2017) - publicado originalmente em 2014 nos Estados Unidos e, em 2017, no Brasil pela Editora N-1 - já é um título que instiga o leitor a se estranhar, pois a tradição filosófica, pelo menos desde Aristóteles, prevê em suas raízes que a política é uma atividade inventada e protagonizada pelo ser humano e que, portanto, não é ele que ocuparia a tarefa de aprendiz. Brian Massumi, filósofo canadense, tradutor de Mil Platôs para o inglês, é um dos expoentes do pensamento ligado a Deleuze no universo anglo-saxão. O livro aqui resenhado deste autor desafia a base da razão moderna, seja ela cartesiana ou kantiana, da relação do homem com seu ambiente, antevendo um esgotamento acerca dos nossos modos usuais e demasiado humanos de lidar com o político. Mas para isso, ele endossa essa estreita relação que temos com a nossa própria animalidade, no que ele chamará de continuum animal, que tende a colocar em suspensão a origem do pensamento iluminista antropocêntrico, fundamentada na dicotomia entre natureza (algo estático e passivo) e cultura (o que dá movimento ao pensamento). O desafio de Massumi, portanto, é romper com uma tradição iluminista que coloca o homem como uma entidade a parte das demais entidades que povoam o planeta e a razão (e, consequentemente, a política) como um fenômeno e uma atividade transcendente que se origina no homem. Essa ruptura permite perceber o quanto podemos aprender características do nosso modo de pensar que vêm antes de nós desprogramando a hierarquia cartesiana.

Thomas Hobbes, importante teórico sobre as formas modernas do Estado, propõe o conhecido mitologema "o homem é o lobo do homem" para falar de uma espécie de estado de natureza que subjaz sobre no contrato social. Neste caso, a animalidade não poderia prescindir do Leviatã para contê-la, e o pensador credita na conta dos lobos a capacidade humana de destruição de seus semelhantes. Com o livro de Massumi, a proposição de Hobbes fica enfraquecida, o que é resultado dos estudos do filósofo canadense que são enfocados na fera que é capaz de brincar.

Massumi nos mostra que no mais singelo gesto de brincadeira é possível observar uma lacuna entre executar um ato e dramatizá-lo. Na cena lúdica isso ocorre na forma de uma "mútua inclusão": a execução de um ato e a dramatização do mesmo. Em "O que os animais nos ensinam sobre política", o único momento que parece ser possível identificar uma diferença substancial entre o humano e o animal é o fato de os humanos experimentarem paradoxos de mútua inclusão como um colapso de sua capacidade de pensar, e ficarem perturbados com isso; no entanto, o animal é menos perturbado do que ativado por eles.

Essa afirmação, ou ativação, a partir do paradoxo faz com que Massumi nos ensine sobre uma lógica do "terceiro incluído". O autor nos faz ler nos pequenos gestos de brincadeira animal uma problematização política e filosófica que contrapõe a lógica clássica da lei do terceiro excluído, que corresponde à lei da não-contradição; a lei do terceiro excluído afirma que para qualquer proposição ou ela é verdadeira ou a sua negação é verdadeira - de modo que a opção de que a terceira hipótese, a de que seja verdadeira e ao mesmo tempo não verdadeira, é excluída. No entanto, para entender a brincadeira é preciso pensar em mútua inclusão de polos contrastantes, ou seja, em uma lógica do terceiro incluído.

Toda a argumentação se dá sobre o campo da ética e o campo da criação. Sua abordagem propõe a leitura de uma situação cotidiana de dois filhotes de lobo brincando de luta. O autor defende que o espaço da brincadeira não se resume a um conjunto automático de respostas instintivas esperadas sem uma intencionalidade. Isso não explicaria a compreensão dos envolvidos de que aqueles gestos de ataque e defesa não denotam a guerra predatória pela sobrevivência, mas sim uma simulação lúdica daquilo que ainda não experienciaram, mesmo que tais gestos sejam semelhantes à situação análoga (a luta real). Ou seja, na brincadeira o gesto lúdico não denota aquilo que iria denotar na arena de combate.

A "mesmeidade" do passado e a criação do futuro são categorias mutuamente inclusivas na brincadeira, diante da "tendência supernormal". A tendência supernormal é um importante conceito esmiuçado pelo autor, que diz respeito à superação daquilo que está dado. Massumi apresenta esse conceito a partir de um experimento clássico do biólogo Niko Tinbergen, em que o mesmo se propunha a isolar características que faziam filhotes de gaivota prateada solicitar comida, expondo os mesmos a engodos de bicos maternos. O que frustra o experimento é justamente a capacidade animal de inventar diante do inesperado; frustra o experimento pois as respostas mais entusiasmadas dos filhotes de gaivota prateada se deram precisamente diante do estímulo que menos se parecia com o bico original. Massumi nos lembra também das famosas minhocas de Charles Darwin, em que o célebre naturalista já anotava que as minhocas nunca tapam os buracos da mesma maneira.

O que podemos aprender então da brincadeira animal? Os lobos mordiscam, as minhocas tapam este buraco, os filhotes de gaivota prateada encontram um entusiasmo supernormal. Em todos esses casos estamos falando de uma capacidade instintiva de criação diante do estabelecido. E o que o livro nos evidencia é que a brincadeira está em todos os cantos do instinto. O autor recorre aos cientistas naturais, mais precisamente aos clássicos do campo da biologia, para dar suporte às suas análises filosóficas e isso é uma escolha política. Essa opção é para desnaturalizar que os fenômenos do pensamento humano sejam exclusivos das ciências humanas ou da cultura humana, afirmando, ao contrário, que são continuum de sua própria animalidade.

"O instinto envolve um modo de memória que Ruyer chama de 'traço mnêmico'. É a diferença entre o traço mnêmico e a singularidade da situação presentemente vivida o que inaugura uma diferença mínima que coloca uma margem de brincadeira até na mais básica ação instintiva" (Massumi, 2017, p. 32 - nota de rodapé). Daí vemos as gaivotas prateadas frustrarem o experimento que busca isolar alguma "função pura" do passado, pois não considerava o apetite (entusiasmo) supernormal.

No caso dos filhotes de lobos brincando de luta, há um rendimento estético que corresponde não ao combate, mas ao combatesco, ou seja, o que o autor chama de "-esquidade" dos gestos (mordiscar, não morder). Esse rendimento estético é chamado também de "mais valia de vida". Para Raymond Ruyer, filósofo que se debruça sobre a filosofia da biologia, referência bastante citada por Massumi, todo ato instintivo produz um rendimento estético - isso situa a brincadeira num continuum de instinto e, inversamente, o instinto no espectro artístico. A brincadeira, portanto, pertence instintivamente à dimensão estética. Diz ele que "O rendimento estético da brincadeira é a medida qualitativa de sua inutilidade" (Massumi, 2017, p. 26). Pois a ludicidade é exercida pelo gesto na medida em que não cumpre sua função analógica, colocando-a em suspenso em prol da própria representância que dela faz.

Massumi então nos apresenta conceitos que nos ajudam a adentrar no espaço da brincadeira como um espaço instintivamente ético e estético. Ou melhor, nos coloca o que o ato instintivo corresponde ao campo da ética e da estética. Elegemos alguns conceitos erigidos pelo texto que contornam essas proposições dialogando entre si: "tendência supernormal", "terceiro incluído", "afeto de vitalidade" e "afeto categórico".

Afeto de vitalidade e afeto categórico são tendências contrastantes que se incluem mutuamente pela questão do terceiro incluído. O instinto é uma cooperação, uma simpatia, entre esses polos contrastantes; tendências contrastantes que se incluem mantendo suas diferenças. Massumi dirá que uma política animal não tem medo do instinto, no momento em que o instinto coloca-se como perpétuo paradoxo entre o que é e o que poderia ser. Ou seja, é a atuação desse paradoxo.

O afeto de vitalidade corresponde justamente à maneira que um gesto é executado, e é este que diz respeito à dimensão estética do acontecimento; é o floreio da brincadeira: "abstração vivida", segundo Massumi. Já o afeto categórico ancora a situação numa memória do que seria a situação análoga; por isso o afeto categórico se dá enquanto um traço mnêmico. Embora um gesto lúdico apavorante não denote aquilo que iria denotar, ainda é provocado pelo "mesmo terror". "O assustadoresco inspira o pavor" (2017, p. 52). A brincadeira se torna combatesca enquanto o combate se torna lúdico.

As dimensões do instinto e da brincadeira que têm a ver com a abstração vivida ou afeto de vitalidade, seriam, portanto, o como; já o afeto categórico tem a ver com o que - ou seja: o afeto de vitalidade diz (na forma de um metacomentário, isto é, "comenta" enquanto faz): "isto não denota o que iria denotar, isto é um jogo", enquanto o afeto categórico complementa "esta, no entanto, é uma situação de medo".

Massumi (2017, p. 56) diz que "o afeto categórico é a determinação imediatamente sentida do que a vida é de fato na complexidade acontecimental do momento". Começamos então a perceber que o afeto de vitalidade (que tem a ver com o estilo) flerta com uma dimensão estética do acontecimento, enquanto o afeto categórico flerta com uma dimensão ética. Funcionando na lógica do terceiro incluído, o acontecimento é sempre ético e estético.

"Estando sempre em jogo, a denotação (o floreio, o estilo, o afeto de vitalidade), bastante artificiosa e em termos constitutivos atingidas pelo paradoxo, é eminentemente suspeita" (Massumi, 2017, p. 52). "O afeto categórico é do que verdadeiramente trata o acontecimento" (Massumi, 2017, p. 53). Ele qualifica verdadeiramente a interação em curso envolvendo um tipo conhecido de experiência (traço mnêmico do medo) e atesta a correspondência entre as duas arenas em jogo, confirmando e cimentando a analogia: o mesmo terror (ainda que com uma diferença lúdica vital).

A questão é que a verdade da brincadeira é de ordem afetiva. E o afeto categórico é a verdade da brincadeira; por isso "categórico". O afeto categórico é relacionado ao acréscimo de uma dimensão de "mesmeidade". E aqui está o papel do afeto categórico: contribuir com a verdade que será golpeada pelo paradoxo do poder do falso do afeto de vitalidade. O afeto de vitalidade e o afeto categórico são aspectos concomitantes ao ato de brincadeira, funcionando em uma desterritorialização recíproca. O afeto categórico é um signo de poder, o de vitalidade um signo de potencial. A brincadeira se torna combatesca e o combate se torna lúdico com a lei do terceiro incluído. "O golpe do paradoxo sob o afeto categórico torna o gesto inventivamente indecidível - além de ser verdadeiro" (2017, p. 53).

A verdade afetiva é a garantia do entusiasmo do corpo do parceiro da brincadeira, sem isso o jogo careceria de intensidade. O afeto categórico na brincadeira é o fermento que permite que o afeto de vitalidade venha à tona.

Mas e quando então "há guerra", quando a brincadeira resvala para seu análogo? A resposta do autor é: quando se torna verdadeira demais. Na medida que o gesto lúdico implica imediatamente ao menos dois, o ato de intuição inclui dramática e mutuamente ao menos duas perspectivas não-coincidentes, pela lógica do terceiro incluído. Em Massumi, a intuição é transindividual no sentido em que habita as lacunas entre as perspectivas individuais.

E aqui entra outro conceito importante que tem a ver com o afeto categórico, que é o de "importância vivida". Seria aquele traço mnêmico que se coloca como obrigatório, imperativo, importante. Podemos dizer que há guerra quando a imaginação (ou a autonomia da expressão) é esgotada pela "importância vivida". Fica sério demais, pois a importância vivida tem a ver com o já expresso ("essa mordida é uma mordida"); segundo Massumi (2017, p. 71), a importância vivida "é uma assunção obrigatória dos imperativos da situação enquanto dada".

No entanto, no que concerne à brincadeira, há uma pressuposição recíproca entre autonomia da expressão, de um lado, e dependência quanto ao já expresso. O terceiro incluído entre abstração vivida e importância vivida. De certo modo é com a importância vivida que a brincadeira brinca.

Podemos pensar a importância vivida como uma dimensão ética da brincadeira na medida em que é ela quem dita os graus de liberdade que podem ser '-esquizados'. Já a abstração vivida (aquela do afeto de vitalidade) relaciona-se à dimensão estética; e os animais nos ensinam a pensá-las pela lógica do terceiro incluído. Os animais assim nos ajudam a construir um paradigma ético e estético para pensar a política. Instaurar margens de manobra. Mobilizar os possíveis pelo ato de criação diante da tendência supernormal. Em outras palavras, os animais dão concretude a uma política da imaginação.

 

Referências

Massumi, Brian. (2017). O que os animais nos ensinam sobre política (Francisco Trento & Fernanda Mello, trads.). N-1 edições.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 13/08/2019
Aprovado em: 06/10/2019

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License