Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGO ORIGINAL
Estratégias de discursos sobre redução da maioridade penal em um debate parlamentar
Discourse strategies on lowering the age of criminal majority in a parliamentary debate
Estrategias discursivas sobre la reducción de la edad criminal en un debate parlamentario
Thiago Sandrini MansurI; Edinete Maria RosaII
IPsicólogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória/ES, Brasil. tsmansur@hotmail.com
IIProfessora Titular do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória/ES, Brasil. edineter@gmail.com
RESUMO
Neste artigo investigamos como foram organizadas as estratégias dos discursos políticos sobre redução da maioridade penal durante as votações da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 171/1993. Para tanto, realizamos buscas nas edições do Diário da Câmara dos Deputados e coletamos os discursos dos parlamentares que mais se manifestaram ao longo das sessões legislativas deliberativas, sendo cinco deputados favoráveis e cinco contrários à PEC, totalizando 51 pronunciamentos. Estes foram analisados com base no método da Análise de Discurso (AD), identificando os argumentos utilizados pelos parlamentares para persuadir o auditório. As análises mostram que os debates e as votações da PEC foram marcados por alta intensidade emocional e que ambos os grupos (favoráveis e contrários) apresentaram argumentos fracos ou inconsistentes, com uso recorrente de ataques pessoais recíprocos, constantes altercações e até mesmo palavras de baixo calão, bem como de diversos argumentos que não abordavam as razões do tema em debate.
Palavras-chave: Discurso político; Maioridade penal; Imputabilidade penal; Responsabilidade penal; Adolescentes e violência.
RESUMEN
En este artículo investigamos cómo se organizaron las estrategias de los discursos políticos sobre la reducción de la edad de responsabilidad penal durante las votaciones de la Propuesta de Reforma a la Constitución (PEC) nº 171/1993. Para eso, buscamos las ediciones del Diario de la Cámara de Diputados y recolectamos los discursos de los parlamentarios que más se expresaron durante las sesiones legislativas deliberativas, con cinco diputados favorables y cinco opuestos de la PEC, totalizando 51 pronunciamientos. Estos fueron analizados con base en el método de Análisis del Discurso (AD), identificando los argumentos utilizados por los parlamentarios para persuadir a la audiencia. El análisis muestra que los debates y votaciones de la PEC estuvieron marcados por una alta intensidad emocional y que ambos grupos (favorables y contrarios) presentaron argumentos débiles o inconsistentes, con uso recurrente de ataques personales recíprocos, altercados constantes e incluso insultos, así como argumentos varios que no abordaron las razones del tema en debate.
Palabras clave: Discurso político; Imputabilidad criminal; Responsabilidad criminal; Adolescentes y violência.
ABSTRACT
In this article we investigate how the strategies of political discourses on reducing the age of criminal responsibility were organized during the votes on the Proposed Amendment to the Constitution (PEC) nº 171/1993. To do so, we searched the editions of the Chamber of Representatives Diary and collected the speeches of the parliamentarians who most expressed themselves during the deliberative legislative sessions, with five representatives in favor and five against the PEC, totaling 51 pronouncements. These were analyzed based on the Discourse Analysis (DA) method, identifying the arguments used by parliamentarians to persuade the audience. The analyzes show that the PEC debates and votes were marked by high emotional intensity and that both groups (for and against) presented weak or inconsistent arguments, with recurrent use of reciprocal personal attacks, constant altercations and even insults, as well as several arguments that did not address the reasons for the topic under debate.
Keywords: Political discourse; Age of criminal majority; Criminal liability; Criminal responsibility; Adolescents and violence.
INTRODUÇÃO
De acordo com a Constituição Federal de 1988 (art. 228), o Código Penal (art. 27) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104), a maioridade penal no Brasil atualmente é alcançada quando uma pessoa completa 18 anos de idade. Em termos práticos, isto significa dizer que a idade de maioridade penal (IMP) estabelece o momento no qual a pessoa é julgada inteiramente capaz de discernir a ilicitude de seus atos e agir conforme este entendimento. A partir de então, ela é considerada adulta em relação às leis criminais, tornando-se imputável, e deixa de receber tratamento penal diferenciado na justiça (Saraiva, 2016). A definição da IMP aos 18 anos é baseada em critérios de política criminal (Exposição de motivos da Lei nº 7.209/1984), que segue dois princípios: (a) o de que adolescentes são pessoas em desenvolvimento e, portanto, possuem responsabilidade penal diminuída em relação aos adultos, mesmo nos casos em que a gravidade da infração exija privação de liberdade; e (b) o da centralidade da socioeducação na reinserção social do adolescente infrator.
Esta definição está em conformidade com as leis penais da maior parte dos países no mundo (Child Rights International Network, 2018) e com as normativas internacionais mais modernas, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (Organização das Nações Unidas [ONU], 1989). Apesar disso, com o crescimento acelerado dos índices de criminalidade violenta no Brasil, especialmente a partir das últimas décadas do século XX (Waiselfisz, 2015), existem diversos projetos legislativos em tramitação no Congresso Nacional no intuito de endurecer as leis penais, dentre eles os que visam modificar a Constituição Federal para diminuir a IMP para 16 anos ou menos (Alves, Pedroza, Pinho, Presotti, & Silva, 2009; Dias, 2017; Pereira, Cruz, & Coutinho, 2016).
Um dos mais conhecidos destes projetos é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 171/1993, elaborada pelo então deputado federal Benedito Domingues, cujo objetivo é justamente reduzir a maioridade penal. No início de 2015, a PEC 171 foi desarquivada pelo presidente da Câmara dos Deputados e passou a ser discutida em diversas comissões nesta casa, até ser colocada em votação entre os meses de junho e agosto daquele ano. Durante as sessões deliberativas da PEC no Plenário da Câmara, as quais consistiram na sua última fase de debates, os deputados favoráveis e contrários à redução da maioridade penal discursaram e expuseram seus argumentos, buscando convencer e persuadir os demais congressistas para votarem pela aprovação ou rejeição da matéria.
A compreensão do caráter persuasivo dos discursos políticos deliberativos nos remete à longa tradição da retórica aristotélica (Fiorin, 2016), renovada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2000), e que se entrecruza com as perspectivas mais atuais dos referenciais teóricos e metodológicos de uma das vertentes da Análise do Discurso [AD] (Charaudeau, 2006; Fiorin, 2013). A retórica aristotélica classifica em três os fatores de persuasão do discurso: ethos, pathos e logos (Leach, 2015). Ethos é a imagem que o orador constrói de si enquanto pronuncia o discurso. Segundo Charaudeau (2006), o ethos dá credibilidade ao orador. Pathos é a imagem que o orador faz daqueles a quem se dirige. Ao construir o discurso, o orador sempre leva em conta o auditório para o qual destina sua fala (Fiorin, 2016; Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000). Por fim, o logos refere-se ao discurso propriamente dito, ou mais precisamente, à forma como os argumentos estão organizados no discurso (Leach, 2015). Na perspectiva da retórica aristotélica, portanto, o típico discurso político articula ethos, pathos e logos no sentido de persuadir a assembleia ou o parlamento para que decida se aprova ou rejeita uma lei (ou um projeto de lei).
É justamente essa perspectiva do caráter persuasivo que aproxima a retórica da abordagem da Análise de Discurso que adotamos neste artigo, uma vez que concebemos discurso político como "uma forma de organização da linguagem em seu uso e em seus efeitos psicológicos e sociais, no interior de determinado campo de práticas" (Charaudeau, 2006, p. 32). Em outras palavras, consideramos o discurso político um ato de comunicação que visa influenciar as opiniões e as ações dos outros por meio do uso de procedimentos retóricos como mecanismos de persuasão (Fiorin, 2016). Ele busca conduzir o interlocutor a concluir algo, decidir sobre alguma coisa ou agir de determinada maneira, como, por exemplo, aprovar ou rejeitar a redução da maioridade penal.
Tendo em vista estas considerações, o objetivo deste artigo é investigar as estratégias dos discursos de deputados federais favoráveis e contrários à redução da maioridade penal nos pronunciamentos feitos durante as sessões legislativas de votação da PEC 171/1993. Por estratégias de discurso compreendemos as formas pelas quais os atos de comunicação são utilizados para atingir um determinado objetivo, considerando "uma situação de incerteza, um projeto de resolução do problema colocado pela incerteza e um cálculo" (Charaudeau & Maingueneau, 2016, p. 219, itálico no original). No contexto deste artigo, as análises das estratégias discursivas envolveram a identificação dos tipos de argumentos utilizados pelos deputados para persuadir o auditório.
MÉTODO
Para alcançar o objetivo proposto, realizamos uma pesquisa documental, qualitativa e descritiva, com a utilização de dados de fonte primária (Flick, 2009; Souza & Menandro, 2007). O objeto de estudo compreendeu os discursos dos deputados federais sobre a redução da maioridade penal no Brasil pronunciados durante as sessões deliberativas da PEC 171/1993, que aconteceram em 30 de junho, 1º de julho e 19 de agosto de 2015. A escolha destes discursos e dos dias em que foram pronunciados deveu-se ao fato de terem coincidido com o momento de votação da PEC. Isto lhes conferiu um caráter crucial para influenciar a tomada de decisão dos deputados que ainda não tinham definido seu posicionamento (favorável ou contrário) em relação ao tema, ou até mesmo dos que poderiam mudar de opinião. Neste sentido, não nos interessou estudar falas realizadas em outras datas, nem em outros momentos e espaços (entrevistas para televisão, rádio, imprensa escrita, relatórios, pareceres de comissão, etc.), nem aquelas cujos assuntos fossem alheios ao tema em deliberação, como, por exemplo, as falas meramente protocolares, questões de ordem, leituras de requerimentos, etc.
PROCEDIMENTO DE COLETA DOS MATERIAIS
Coletamos os discursos nas edições do Diário da Câmara dos Deputados (DCD) publicadas nos dias "1º de julho", "2 de julho" e "20 de agosto de 2015", haja vista que cada edição se reporta aos eventos acontecidos no dia anterior à sua publicação. Os Diários foram acessados por meio da página virtual da Câmara dos Deputados disponível na internet https://imagem.camara.leg.br/diarios.asp?selCodColecaoCsv=D. Optamos por utilizar a versão transcrita e publicada no DCD por se tratar de documento público oficial de acesso gratuito e irrestrito. Cabe ressaltar que consta no DCD que os discursos publicados não foram revisados pelos oradores, isto é, os deputados que os proferiram. De todo modo, como forma de verificar a validade do conteúdo das falas, procedemos à escuta dos áudios das sessões - disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/?wicket:interface=:3:2::: - e constatamos que as transcrições no DCD eram fiéis aos arquivos sonoros.
INSTRUMENTO
Os discursos selecionados foram tabulados seguindo um roteiro com os seguintes dados: (I) características do autor do pronunciamento e das circunstâncias do discurso: (a) nome do parlamentar; (b) partido político que pertence; (c) orientação ideológica do partido; d) quantidade de discursos proferidos; e (II) aspectos relacionados à estrutura dos argumentos e às ideologias que sustentam os discursos: (a) posicionamento do discurso: favorável ou contrário à redução da maioridade penal; e (b) tipos de argumentos utilizados para persuadir o auditório.
ANÁLISE DOS DADOS
Os dados foram analisados com base na Análise do Discurso - AD, que é, ao mesmo tempo, teoria e técnica de análise que considera o discurso como uma fala socialmente situada (Fiorin, 2013). Segundo Rosalind Gill (2015), atualmente existem pelo menos 57 tipos de AD, as quais muitas vezes utilizam diferentes abordagens teórico-metodológicas. Dessa maneira, consideramos nossa abordagem uma dentre as diversas possibilidades na ampla gama de correntes de Análise do Discurso. Neste estudo, utilizamos especificamente a tipologia de argumentos sistematizada por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000) e atualizada por Fiorin (2016). A descrição dos tipos de argumentos será detalhada ao longo da exposição dos resultados e das discussões, juntamente com exemplos extraídos das falas dos próprios deputados.
ASPECTOS ÉTICOS
Considerando que os discursos foram publicados em um diário oficial, de acesso público, gratuito e irrestrito, não houve necessidade de submeter esta pesquisa aos protocolos do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos. Contudo, ainda assim, como toda pesquisa, buscamos seguir os princípios éticos de respeito à dignidade humana, não maleficência e beneficência, dentre outros (Flick, 2009).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Encontramos 255 pronunciamentos publicados nas edições do DCD nos dias das sessões de votação da PEC 171/1993. Destes, excluímos 64 falas meramente protocolares ou que não apresentavam argumentos. Dos 191 discursos enquadrados nos critérios de inclusão previamente definidos, selecionamos as falas dos 10 deputados que mais se manifestaram durante os dias de votação, dos quais cinco favoráveis e cinco contrários à matéria, totalizando, respectivamente, 26 e 25 (total de 51) discursos analisados.
O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DOS DISCURSOS
Os discursos analisados foram produzidos em um contexto de deliberação legislativa, que é caracterizado pela formalidade e ritualização dos procedimentos. Neste tipo de contexto, há uma série de protocolos a serem respeitados, tais como a contagem dos deputados presentes na sessão, o respeito à ordem de inscrição e ao tempo de fala, a alternância de falas contrárias e favoráveis à matéria em pauta, etc. No que concerne às características dos autores dos discursos, apresentamos a seguir algumas informações relevantes, incluindo o partido a que eles pertenciam, sua orientação ideológico-partidária e o posicionamento de sua fala em relação à proposta de redução da maioridade penal.
Todos os cinco deputados favoráveis à PEC 171 eram filiados a partidos que podem ser considerados de centro e de direita (Maciel, Alarcon, & Gimenes, 2017; Rodrigues, 2009; Tarouco & Madeira, 2013, 2015), a saber: dois deputados do Democratas (DEM), um do Partido Republicano Brasileiro (PRB), um do Partido Trabalhista Nacional (PTN) e um do Partido Social Cristão (PSC). Estes dados apontam para a hipótese de que exista alinhamento ideológico dos partidos de centro e, sobretudo, de direita com a proposta de redução da maioridade penal no Brasil. Por outro lado, todos os cinco parlamentares contrários à PEC eram filiados a partidos políticos classificados à esquerda do espectro ideológico (Maciel, Alarcon, & Gimenes, 2017; Rodrigues, 2009; Tarouco & Madeira, 2013, 2015), sendo dois do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), um do Partido Democrático Trabalhista (PDT), um do Partido dos Trabalhadores (PT) e um do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Com relação ao auditório ao qual se direcionavam os discursos, este era formado pelos deputados indecisos e a opinião pública em geral, esta última representada pelas pessoas que estavam nas galerias da Câmara assistindo aos debates. Em um sentido mais amplo, também podem ser considerados auditório os leitores do DCD e os espectadores dos programas de rádio e televisão que transmitiram as sessões deliberativas. Dessa forma, os discursos estavam voltados a persuadir os deputados que ainda não haviam decidido como votar e os que pudessem mudar seu posicionamento, mas também a justificar-se perante a opinião pública.
OS TIPOS DE ARGUMENTOS UTILIZADOS PELOS PARLAMENTARES
Visando a uma exposição didática, optamos por dividir em três partes a apresentação dos tipos de argumentos utilizados pelos deputados, a saber: (a) argumentos utilizados por ambos os grupos; (b) argumentos utilizados somente pelos deputados favoráveis à redução da maioridade penal; e (c) argumentos utilizados somente pelos deputados contrários à redução da maioridade penal. Na maioria dos pronunciamentos analisados, encontramos mais de um tipo de argumento por discurso (argumentos compostos ou complexos), o que justifica a somatória de argumentos ter sido maior que o número total de falas analisadas.
Argumentos utilizados por ambos os grupos
Apelo ao povo
Dentre os discursos analisados, este foi o argumento que encontramos com mais frequência, tendo sido identificado em 24 pronunciamentos favoráveis e 11 contrários à redução da maioridade penal. O argumento de apelo ao povo (do latim, "argumentum ad populum") fundamenta-se no clamor popular, afirmando que um raciocínio é verdadeiro ou preferível por estar de acordo com a maioria (Fiorin, 2016). Sua estrutura é representada pela fórmula: "Todos (ou a maioria) querem A; logo, A é verdadeiro (melhor)" ou "Se todos querem A, então devemos fazer A". Assim, neste tipo de argumento prevalece a ideia do lugar de quantidade, isto é, de que uma coisa é preferível à outra por razões de ordem quantitativa (Fiorin, 2016; Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000), tal como manifestado em um trecho do discurso do deputado F1 reproduzido a seguir.
Gostaria de citar também a importante pesquisa feita pelo Jornal da Câmara, em que foram abordadas mais de 30 mil pessoas em todos os Estados do nosso País, e ficou evidenciado que 83,9% das pessoas são a favor da redução da maioridade penal. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, agosto 20, p. 134)
Outra forma bastante comum do apelo ao povo utiliza como estratégia discursiva a sensibilização do auditório, tornando-o emocionalmente suscetível a apoiar uma tese, o que se faz por meio do emprego de palavras, expressões e frases com forte conteúdo afetivo, combinadas com outras que remetem ao lugar de quantidade (Fiorin, 2016). Nesta forma costuma-se encontrar referências às tradições e costumes profundamente arraigados na sociedade como expressão da vontade do povo ou da opinião pública (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000; Rosa, 2004). Trata-se, portanto, de um argumento voltado ao pathos (Fiorin, 2016). Em um dos pronunciamentos do deputado F3, encontramos uma argumentação nesta variante:
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sras. Deputadas, nesse final de semana, eu fui a dois velórios. Em um deles, o Vice-Prefeito estava enterrando seu pai, de 94 anos; no outro, os pais estavam enterrando um menor que levou três tiros na cara de outro adolescente, em Uberaba. Estive lá e a família me questionou: "O que vocês, Deputados, estãofazendo lá na Câmara que não tomam uma atitude contra essa criminalidade, queestá assolando as famílias brasileiras?" Eu respondi que o Presidente colocaria em votação, nesta terça-feira, a PEC da Redução da Maioridade Penal. Então, a decisão está em nossas mãos, nas mãos dos Deputados, representantes do povo. Se o povo está pedindo, tem que ser feito o que o povo quer e não o que nós pensamos que temos que fazer. Não é essa a atitude que o eleitor espera de nós quando deposita a confiança do seu voto nas propostas que colocamos. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, p. 192, grifo no original)
Neste discurso, o deputado inicia sua fala sensibilizando o auditório por meio de um relato marcado por tristeza e luto: ele diz que foi a dois velórios. O tom emocional é intensificado de duas maneiras complementares. Primeiro o orador deixa implícita uma comparação entre os dois velórios: em um, o filho enterrou o pai de 94 anos; no outro, o pai enterrou o filho "menor". Embora ambas sejam situações carregadas de emotividade, nota-se que a ênfase está no segundo velório, pois contraria a ordem "natural" da vida, em que os mais novos enterram os mais velhos. Em segundo lugar, a carga emotiva é amplificada pelos sentimentos de insegurança e medo, dado que a circunstância da morte do adolescente foi um assassinato brutal ("três tiros na cara") cometido por outro adolescente.
O diálogo estabelecido durante o velório funciona como um procedimento discursivo por meio do qual o orador realiza a passagem dos sentimentos vivenciados individualmente pelos parentes do adolescente assassinado ("a família me questionou") para o clamor social ("o povo está pedindo", "o povo quer"). Além disso, a inserção do orador nos enunciados ("eu fui", "estive lá", "eu respondi"), que corresponde ao procedimento discursivo conhecido como "debreagem enunciativa" (Fiorin, 2013), produz efeitos de sentido de "subjetividade" no discurso, intensificando ainda mais a carga emotiva. Este aspecto é reforçado pelo uso do discurso direto, que deu voz aos familiares do adolescente assassinado, pois tem como efeito de sentido produzir veracidade aos acontecimentos narrados, isto é, mostrar que aquilo realmente aconteceu (Bakhtin, 1929/2014; Fiorin, 2013). Além disso, o discurso direto também é um recurso linguístico utilizado para produzir efeitos de polifonia (Bakhtin, 2014; Koch, 1993), no qual a voz de outra(s) pessoa(s) é inserida na voz do enunciador, de modo que não se trata mais da voz deste, e sim a voz do povo.
Do ponto de vista do raciocínio lógico o apelo ao povo geralmente é considerado um argumento impertinente, ou até mesmo uma falácia, haja vista que a vontade da maioria não torna uma coisa verdadeira, nem nos leva necessariamente a uma determinada conclusão (Rosa, 2004; Walton, 2006). Nos debates sobre a PEC 171, não é possível rejeitar ou aprovar a redução da maioridade penal somente com base na opinião da maioria, pois ela não produz provas em favor de uma ou outra conclusão. Ainda assim, este argumento constitui-se como uma estratégia consideravelmente persuasiva quando o orador é hábil em manipular as emoções e sentimentos do auditório (Fiorin, 2016). Dessa forma, mesmo que um adversário tente refutar o argumento de apelo ao povo, não se costuma ir de encontro ao que comove o auditório, sob o risco de entrar em conflito com suas crenças e sentimentos.
Uma forma de confrontar este tipo de argumento é questionar sua pertinência, mostrando que não há razão concreta para concluir pela tomada de decisão com base nele ou que existem outros interesses por parte de quem o utiliza. Este parece ter sido o caminho seguido pelo deputado C1 no trecho a seguir:
Nós poderíamos aqui fazer uma lembrança rápida de que a opinião pública quer que se reduza a maioridade penal. . . Mas é bom lembrar que esta Casa já atendeu a apelos anteriores porque a opinião pública queria. Basta lembrar aqui aos mais experientes, Deputado Miro Teixeira, a famosa Lei dos Crimes Hediondos. "Vamos votar os crimes hediondos porque temos que acabar com o crime no Brasil." O que foi que aconteceu? Aumentou em 600% a população carcerária, há 400 mil mandados de prisão a serem cumpridos e um déficit de 200 mil vagas no sistema prisional - os presos estão amontoados, um por cima do outro. É preciso lembrar que a opinião pública disse a esta Casa para não aumentar os nossos salários e nós aumentamos. A opinião pública disse para não votarmos os 5 anos de mandato e nós votamos. A opinião pública disse para não votarmos a MP 664 e a MP 665. O que foi que esta Casa fez? Votou. A opinião pública já deu tantos recados para nós! E o que nós fazemos? Quando interesse a esta Casa, os seus membros votam sem ouvir a opinião pública. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, p. 216)
Neste enunciado, o orador mostra que nem sempre seguir a vontade da maioria da opinião pública produz os melhores resultados. Para tanto, ele argumenta que a Câmara aprovou a Lei dos Crimes Hediondos, atendendo ao apelo da opinião pública, mas, ao contrário do que se esperava, a violência não diminuiu. Além disso, ele também refuta o apelo à maioria apresentando exemplos de que, quando há interesse político dos deputados, a voz da opinião pública não é levada em consideração. Dessa forma, ele constrói uma refutação ao argumento de apelo ao povo.
Argumento de autoridade
Encontramos este tipo de argumento em 14 pronunciamentos favoráveis à PEC 171 e em oito contrários. Ele também é conhecido pela expressão latina "argumentum ad verecundiam" (argumento de apelo à modéstia ou à reverência), e consiste em recorrer à opinião de um especialista conceituado para dar sustentação ou credibilidade ao que se diz (Fiorin, 2016). Neste sentido, trata-se de uma argumentação em que o orador faz referência ao ethos de uma pessoa considerada competente no assunto em discussão. Segundo Douglas N. Walton (2006), a estrutura desse tipo de argumento possui a seguinte forma: "E é um especialista na área D. E declara que A é reconhecidamente verdadeiro. A está contido em D. Logo, A pode (plausivelmente) ser considerado verdadeiro". (p. 271). Este autor ressalta, contudo, que o argumento ad verecundiam só é legítimo quando a autoridade do enunciado advém do conhecimento sobre determinado assunto. No discurso científico, por exemplo, ele é frequentemente utilizado como forma de sustentar as conclusões de um pesquisador por meio da comparação dos seus resultados com os de outro pesquisador considerado especialista renomado na mesma área do conhecimento.
No trecho a seguir, podemos constatar que o deputado F5 recorre ao argumento de autoridade, construindo seu ethos de especialista no enfrentamento da criminalidade como uma das premissas para sustentar sua conclusão:
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, há 30 anos eu luto contra o crime organizado. Há 30 anos eu vejo essa realidade nas ruas das cidades. Quero dizer que essa não é uma questão de esquerda ou direita, mesmo porque, segundo o levantamento que o Deputado Nelson Marquezelli fez, só 12 países no mundo têm ainda a maioridade aos 18 anos. ... A maioria dos países, a grande maioria dos países desenvolvidos hoje tem a maioridade de 16 anos para baixo. Esquecem de falar que o Japão tinha maioridade de 21 anos e baixou para 16 anos. Pois baixou pela metade os crimes daqueles menores - baixou pela metade o crime daqueles menores! - e isso é um fato. ... Eu ando nas favelas, eu ando na periferia - meu voto principal é o da periferia. Como alguém que estuda o crime organizado e que anda na periferia, sei que os lugares-tenentes do crime organizado hoje têm 16 e 17 anos. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, pp. 208-209)
Neste argumento, o deputado utiliza o seu próprio prestígio ("há 30 anos eu luto contra o crime organizado") para fundamentar a conclusão do seu argumento. Suas premissas são: "tenho ampla experiência no enfrentamento à criminalidade", "meu conhecimento permite afirmar que os adolescentes de 16 e 17 anos de idade exercem as principais funções nas organizações criminosas". O deputado segue apresentando como premissas os resultados de um levantamento realizado por outro parlamentar (ainda como forma de argumento de autoridade), no qual este constata que a maioria dos países teria idade de imputabilidade penal abaixo dos 18 anos de idade, o que reforçaria a conclusão de seu argumento. Entretanto, os dados apresentados não refletem a realidade mundial, pois, conforme estudos nacionais e internacionais (Child Rights International Network, 2018; Hazel, 2008), a média de idade de maioridade penal em todo o mundo é de 18 anos, sendo que os países que possuem os menores índices de criminalidade violenta são justamente os países com as mais elevadas idades de maioridade penal, e não as menores (Lins, Figueiredo, & Silva, 2016). Dessa maneira, o argumento apresentado pelo deputado F5 configura-se como uma falácia material, isto é, que apresenta dados falsos (Alves, 2005).
Logo em seguida a este pronunciamento, o Deputado C1 também utiliza um argumento de autoridade para refutar os dados apresentados pelo parlamentar que o precedeu:
Agora, não dá para ouvir - desculpem-me os colegas Deputados que me antecederam - informações erradas sendo divulgadas desta tribuna para o Brasil e o mundo. ... Não podemos cometer erros grosseiros como o que foi cometido aqui ao se dizer que a minoridade no Japão é de 14 anos de idade. Srs. Deputados, são dois conceitos básicos, pesquisem na Constituição ou com qualquer jurista: responsabilidade juvenil e imputabilidade criminal. Estão dando aqui para V.Exas. números da responsabilidade juvenil. O Brasil é um dos poucos países do mundo que começam a punir a partir de 12 anos de idade. ... Joaquim Barbosa acaba de tuitar: "Maioridade penal: eu apoiointegralmente a posição do Governo Federal, contrária à redução da maioridadepenal. Estão brincando com fogo!" (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, p. 210, grifo no original)
Ao final de sua fala, o deputado insere um comentário do então Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, em que este se diz contrário à redução da maioridade penal, apoiando-se nesta autoridade para reforçar a conclusão de seu argumento ("não reduzir a maioridade penal"). Além disso, as informações apresentadas pelo orador a respeito das diferenças entre responsabilidade juvenil e imputabilidade, e também sobre as idades de maioridade penal, condizem com os dados de pesquisas nacionais e internacionais (Child Rights International Network, 2018; Hazel, 2008; Lins, Figueiredo Filho & Silva, 2016), o que confere plausibilidade à sua conclusão. Entretanto, o deputado não faz referência a quais foram suas fontes para tais afirmações, apenas mencionando vagamente que seus adversários procurem na "Constituição ou com qualquer jurista", o que diminui a força do seu argumento, pois seus adversários poderiam contestá-lo justamente sobre este aspecto de seu pronunciamento.
Ataque pessoal
Na amostra analisada, este argumento apareceu oito vezes nos discursos dos deputados favoráveis à redução da maioridade penal e duas vezes nos dos deputados contrários. No ataque pessoal, o alvo não é a plausibilidade do raciocínio, mas a credibilidade do adversário perante o auditório (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000). Ele também é conhecido como argumentum ad personam (Perelman & Olbrecht-Tyteca, 2000) ou argumentum ad hominem (Charaudeau, 2006; Fiorin, 2016; Rosa, 2004) e consiste em uma crítica à pessoa do oponente, ou o grupo do qual faz parte, visando desqualificá-lo como interlocutor. A estrutura do argumento de ataque pessoal consiste na seguinte fórmula: "Meu adversário não é digno de confiança; logo, ele não tem razão". Assim sendo, este tipo de argumento ataca o ethos do adversário, isto é, sua imagem (Charaudeau, 2006).
Em um dos pronunciamentos do deputado C4, encontramos o seguinte trecho: "Não se ganha este debate nem no grito nem na bala. Deve-se ganhar com a consciência política do que nós fazemos aqui para garantir as atuais e futuras gerações deste País." (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 231). O referido parlamentar utiliza uma metáfora (ganhar o debate no grito e na bala) para designar a tentativa de vencer um debate sem apresentar argumentos nem permitir que alguém os apresente, dizendo que este não seria um meio adequado para o contexto de um debate político. Se considerássemos apenas o sentido "literal" destes enunciados, eles não seriam proposições, logo, não seriam argumentos, tendo em vista que frases no imperativo são ordens, sugestões, recomendações (não se ganha... deve-se ganhar...), que não são passíveis de serem avaliadas em termos de verdade ou falsidade. No entanto, na linguagem ordinária nem sempre é possível reconhecer imediatamente os argumentos em sua estrutura proposicional (Alves, 2005). Assim, inseridos no contexto do debate, os enunciados do deputado C4 poderiam ser lidos do seguinte modo:
Todo debate é realizado por meio da apresentação de argumentos.
Ora, meus adversários não apresentam argumentos.
Logo, meus adversários não estão debatendo.
Da forma como foi estruturada, a argumentação do parlamentar consiste apenas em uma crítica aos seus adversários, pois embora não os mencione diretamente, é a pessoa deles que ele ataca, acusando-os de vociferar de maneira truculenta, sem apresentar razões convincentes. No entanto, ao criticar a conduta dos seus interlocutores, o deputado incorre no mesmo ato que os acusa, ou seja, usa um argumento de ataque pessoal aos adversários, sem apresentar outras razões para provar sua própria tese ou refutar a de seus oponentes. Além disso, a referência à "bala" é uma forma pejorativa de se referir à Frente Parlamentar de Segurança Pública (vulgarmente conhecida como "Bancada da Bala"), reforçando a ideia de uma crítica à pessoa dos parlamentares que fazem parte deste grupo. Entendido desta maneira, este argumento configura-se, no mínimo, como um argumento fraco, pois suas proposições não são pertinentes ao assunto em debate (a redução da maioridade penal).
Do lado dos parlamentares favoráveis à PEC, encontramos uma passagem do deputado F2 na qual este congressista utiliza uma série de variantes do argumento de ataque pessoal:
E ao PT eu queria dizer uma coisa: a maior população carcerária do Brasil tem entre 18 e 24 anos. Eu disse 24 anos! Há 12 anos, vocês assumiram o poder e, para esse jovem de 24 anos que está preso, faltaram políticas públicas, que vocês, de maneiraincompetente, não tiveram a capacidade de fazer. E agora vêm aqui com esse discursomentiroso de dizer que o jovem vai tirar carteira, vai dirigir. O Código de Trânsito é muito claro quando diz que o jovem, para tirar carteira, tem que ter 18 anos de idade. ... Portanto, eu fico a lamentar o que aconteceu neste plenário. O PROS fez pesquisanacional. Deu 89% a favor. E aí, depois de uma ligação do Ministro da Justiça, mudoude opinião. O Deputado do PDT é autor de uma emenda que reduz a idade penal. Ehoje, aqui, ele diz que é contra. O governo entrou nesse negócio. Eu encerro, dizendo que sou, sim, da bancada da bala, mas não sou da bancada da mala. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, p. 193, grifo nosso)
Na primeira parte deste trecho é possível identificar um ataque direto aos adversários (primeira variante), chamando-os de incompetentes e mentirosos. Já na parte seguinte, o deputado coloca em dúvida a imparcialidade de um partido (segunda variante), insinuando que este teria mudado de posição após interferência de um representante do governo. Na sequência, ele julga ser contraditório que um deputado, que no passado foi autor de uma PEC sobre redução da maioridade penal, no momento da votação teria se manifestado contra sua aprovação, também por suposta interferência do representante do governo (terceira variante). Finalmente, a quarta variante do ataque pessoal aparece na última parte deste trecho, no qual o parlamentar rebate seus opositores dizendo que é da "bancada da bala", mas não da "bancada da mala", fazendo subentender que seus adversários receberiam dinheiro, ou algum outro tipo de vantagem do governo, para votar contra a PEC.
Embora a honestidade e o histórico pregresso de um orador sejam importantes para julgarmos a veracidade do que diz - afinal de contas, tendemos a não acreditar em quem não é digno de confiança -, em termos lógicos, o caráter de uma pessoa não invalida seu raciocínio, nem garante que seu adversário esteja certo (Rosa, 2004). Sendo assim, ao partirem para ofensas e provocações estes tipos de argumentos somente expressam hostilidades pessoais que nada acrescentam à discussão, tendendo a rebaixar o nível do debate (Fiorin, 2016; Walton, 2006). Porém, tendo em vista que são argumentos eficazes para silenciar os adversários, ainda que não se sustentem no raciocínio lógico, eles costumam ser utilizados recorrentemente, tal como foram nos discursos analisados.
Apelo à força
Este argumento também é conhecido pela expressão latina "argumentum ad baculum", que significa "apelo ao porrete" (Fiorin, 2016). Nele o orador recorre a uma estratégia de intimidação (ameaça de uso da força) em vistas de obter adesão à sua tese. Neste sentido, é um argumento que não se fundamenta nas razões do tema debatido, e, portanto, não é logicamente sustentado, exceto quando se fundamenta nas leis e outros códigos jurídicos (Fiorin, 2016; Walton, 2006).
Em um dos seus discursos o deputado C3 diz: "O que estamos fazendo aqui não é uma simples votação que acaba esta noite ou amanhã e, depois, vai para o Senado - e pode ir para o Supremo, dependendo do resultado" (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 190). Dessa forma, o orador tenta dissuadir os demais parlamentares, deixando subentendido que a aprovação da PEC correria o risco de ser anulada pelo Supremo Tribunal Federal, por motivo de inconstitucionalidade, e que, portanto, não valeria a pena aprova-la no Congresso Nacional sabendo-se, de antemão, que isto poderia acontecer. Ocorre que os ministros do STF ainda não tinham decidido sobre esta questão, assim como até o momento de elaboração deste artigo ainda não decidiram, o que reduziu o poder persuasivo do argumento.
Por outro lado, uma forma de apelo à força, reiteradamente utilizada pelos parlamentares favoráveis à redução da maioridade penal, foi o recurso à noção de punição. Nele os deputados argumentam que a redução da maioridade penal seria uma maneira de conter os adolescentes em conflito com a lei por meio do poder de dissuasão da lei penal. É o que podemos apreender no exemplo abaixo, retirado de uma fala do deputado F5:
Agora, aqueles menores que querem usar a impunidade para matar, para estuprar e para fazer todo tipo de delito grave, esses vão ter a certeza de que, a partir de hoje, não terão mais a impunidade do seu lado. ... Pois, agora, você que quer fazer delito dessa natureza, saiba que a lei vai pegá-lo, que a lei vai puni-lo ... (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 20 de agosto 20, p. 107)
Como dissemos anteriormente, os argumentos que falam sobre a possibilidade de aplicação das leis são consistentes. Porém, há duas considerações contra este argumento do modo como foram expressos pelos parlamentares favoráveis à redução da maioridade penal. Em primeiro lugar, há uma confusão entre os termos inimputabilidade e impunidade. Enquanto está significa ausência de punição, aquela diz respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento dos adolescentes para fins de procedimentos judiciais criminais (Saraiva, 2016). Neste sentido, os adolescentes autores de atos infracionais são inimputáveis tendo em vista que recebem tratamento penal diferenciado em relação aos adultos; entretanto, eles não ficam impunes, já que são responsabilizados por suas condutas por meio da aplicação das medidas socioeducativas. De fato, a responsabilidade penal dos adolescentes já está prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, 1990), em seu artigo 112, bem como no parágrafo segundo do artigo 2º da Lei do SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Lei nº 12.594, 2012), o qual afirma que um dos principais objetivos das medidas socioeducativas consiste na "responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação".
A segunda consideração sobre este assunto está relacionada à "racionalidade punitiva" (Silva & Hüning, 2015) presente no modo como este argumento é enunciado. Essa racionalidade envolve a ideia de que a punição e o sofrimento seriam os instrumentos mais eficazes para prevenir a criminalidade violenta e, designadamente com relação às propostas de redução da maioridade penal, o envolvimento de adolescentes em situação de delinquência. Dessa forma, a complexidade dos conflitos sociais relacionados à questão da violência é simplificada em um problema meramente de justiça penal e de sistema prisional. Além disso, essa racionalidade exclui a possibilidade de se discutir outras alternativas para a responsabilização dos adolescentes autores de atos infracionais, que não passem necessariamente por práticas punitivas, como no caso da justiça restaurativa, cujo foco são as necessidades de vítimas e agressores, a não judicialização dos casos (quando possível) e a busca pela reparação do dano por parte do adolescente infrator (Brown, 2015). Essa racionalidade também ignora o debate sobre o papel da educação e de outras políticas sociais na prevenção da criminalidade juvenil, que também são alternativas à ideia de punição (Budó & Cappi, 2018). A este respeito, estudos indicam que as experiências educacionais positivas na escola e o apoio familiar caracterizam-se como fatores protetivos e, portanto, colaboram para evitar que adolescentes e jovens ingressem na vida criminal (Gallo & Williams, 2008; Silva & Bazon, 2014, 2015). Por outro lado, os conflitos escolares, a reprovação e a evasão escolar (Mansur, Nascimento, Rosa, & Merçon-Vargas, 2018; Paula, Carvalho, Croque, & Souza, 2017; Piazzarollo, Fernandes, & Rosa, 2018), bem como a falta ou dificuldade de acesso aos equipamentos de cidadania (Silva & Oliveira, 2016), constituem fatores de risco ao envolvimento com atos infracionais.
Dissociação de noções
Encontrado em quatro pronunciamentos favoráveis à PEC e em um contrário, este argumento, consiste em "separar ideias que aparecem em pares hierarquizados: essência e aparência, letra e espírito, figurado e literal etc." (Fiorin, 2016, p. 193). A dissociação de ideias é um argumento que visa mostrar que a aparência é enganosa, não condizente ou incompatível com a realidade (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000). Muitas vezes, a dissociação das noções aparência/realidade desdobra-se em pares antitéticos, como bem-mal, justo-injusto, em que um elemento é considerado positivo e o seu oposto, negativo.
Em um dos pronunciamentos do deputado F3 encontramos a seguinte argumentação:
Sr. Presidente, nós não queremos encarcerar ninguém, mas responsabilizar aquelesque se dizem crianças, mas que na realidade são criminosos impiedosos e nefastosà sociedade. Queremos separar o joio do trigo e poder dar tranquilidade a 90% de brasileiros que pagam os seus impostos e seguem a vida. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 20 de agosto, p. 145, grifo nosso)
Inicialmente a estratégia discursiva utilizada aqui é semelhante a que este mesmo deputado recorreu ao utilizar o argumento de apelo ao povo: ele cria um ambiente de sensibilização do auditório por meio do relato de uma situação que teria vivenciado, para introduzir o mote da argumentação. Em seguida, por meio das frases sublinhadas ("aqueles que se dizem..., mas que na realidade são...") marca a dissociação: para ele, os adolescentes autores de atos infracionais são crianças apenas na aparência, pois, na realidade, seriam criminosos que deveriam ser punidos como adultos. Assim, o argumento se estrutura da seguinte maneira: "se uma criança (ou adolescente) comete uma violência grave, então deve ser punido como adulto". Em outras palavras: quem infringe a lei não é criança, mesmo tendo a idade de uma criança; e, se é criança, não infringe a lei. Além disso, o orador faz referência a uma passagem bíblica, ao dizer que quer "separar o joio do trigo", isto é, os maus dos bons, os "criminosos impiedosos e nefastos" dos "90% de brasileiros que pagam seus impostos". Podemos afirmar que a separação entre "bandidos versus cidadãos de bem" lhe é similar e que, assim, esta cisão fundamentaria - de maneira maniqueísta - a justificativa destes serem protegidos e aqueles serem controlados e punidos.
Do lado dos parlamentares contrários à PEC 171, o Deputado C4 utiliza a seguinte argumentação:
Nós não estamos aqui debatendo para gerar impunidade. Ninguém é a favor de impunidade para crimes graves. Essa não é a posição de quem defende que não haja mudança constitucional. Nós achamos que temos que punir. O problema é o instrumento e como fazê-lo. ... A responsabilidade penal, no Brasil, já é de 12 anos. A partir de 12 anos, as crianças - com 12 anos, é criança - podem ser internadas nas casas de recuperação de menores. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, p. 199)
Do ponto de vista retórico, a estratégia discursiva utilizada pelo deputado C4 nessa fala é a concordância parcial (Koch, 1993), em que o orador reconhece o argumento do adversário, incorporando-o ao seu próprio discurso, para, em seguida, refutá-lo com outros argumentos. Neste sentido, inicialmente ele anexa parte do argumento do adversário por meio do enunciado "nós achamos que temos que punir", que aparentemente leva à conclusão "devemos reduzir a maioridade penal". Mas, logo em seguida, ela apresenta os enunciados "o problema é o instrumento e como fazê-lo", "a responsabilidade penal, no Brasil, já é de 12 anos" e "a partir dos 12 anos . . . já podem ser internadas em casas de recuperação", os quais conduzem a uma conclusão contrária à do primeiro enunciado, isto é, "não devemos reduzir a maioridade penal".
No aspecto semântico, o deputado inicialmente aborda uma questão de diferença de significados entre os termos impunidade e inimputabilidade. Daí o porquê considerarmos que este argumento se estrutura como uma dissociação de noções, pois separa duas ideias consideradas iguais pelos seus adversários, mas que de fato são distintas. Embora o parlamentar não mencione explicitamente as diferenças de significados (as quais já abordamos anteriormente), é com base nelas que constrói a primeira parte de sua argumentação. Em resumo, o argumento está estruturado da seguinte maneira: "se impunidade significa ausência de punição e inimputabilidade significa punir adolescentes e adultos de maneiras diferentes; então, adolescentes não ficam impunes".
Além disso, ao dizer que os parlamentares contrários à PEC não estão de acordo com a impunidade de adolescentes autores de atos infracionais, o deputado chama a atenção para o que ele considera mais importante: o "instrumento" de responsabilização (a lei a ser aplicada) e "como fazê-lo" (tipo de sanção judicial e forma de tratamento do infrator). Isto conduz a uma nova dissociação em que o orador distingue a idade mínima de responsabilidade penal (IMRP) da idade de maioridade penal (IMP). A IMRP estabelece a idade a partir da qual uma pessoa, embora inimputável, pode ser responsabilizada por seus atos perante à justiça juvenil, enquanto a IMP consiste na idade em que uma pessoa se torna penalmente imputável, passando a ser processada pela justiça criminal comum, ou seja, torna-se adulta perante as leis penais (Hazel, 2008; Saraiva, 2016).
Argumentos utilizados somente pelos parlamentares favoráveis à redução da maioridade penal
Argumento por consequência
No segundo turno de votação, o deputado F4 fez um pronunciamento em que defende a aprovação da PEC tendo em vista os efeitos que ela pode gerar no futuro, estabelecendo uma relação de causa e efeito entre a redução da maioridade penal e a queda nos índices de violência no país. Neste sentido ele utiliza o argumento por consequência (ad consequentiam) ou pragmático (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000).
Sr. Presidente, disseram que reduzir a idade penal no nosso País não vai diminuir a violência. Obviamente, essa não é a informação que eu e nenhum brasileiro de bom senso podemos entender. Sabemos que a redução da idade penal não vai acabar com a violência no Brasil - essa é a verdade -, mas com certeza vai diminuir, porque vai dar limites a esses adolescentes que, aos 16 ou 17 anos, cometerem crimes hediondos contra a vida, estuprarem, sequestrarem, torturarem e matarem. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 20 de agosto, p. 168)
Embora o deputado não possa provar que a redução da maioridade penal realmente diminuirá os índices de criminalidade no país, o argumento por consequência é habitualmente bem aceito pelo senso comum justamente porque seu caráter pragmático transfere o valor das consequências para a causa, fazendo com que esta aparente possuir valor próprio (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000). Dessa maneira, ressaltam ainda Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000), como estratégia persuasiva o uso do argumento ad consequentiam inverte o ônus da prova, exigindo uma argumentação por parte do adversário.
Argumento da superação
O argumento da superação ou da ultrapassagem também está voltado para o futuro (Fiorin, 2016). Ele consiste em defender uma ação considerando que ela é uma etapa de aperfeiçoamento rumo a um estágio superior (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000). Os deputados favoráveis à PEC 171 argumentam que sua aprovação é uma etapa para diminuir a criminalidade e para acabar com a impunidade, bem como para deixar a sociedade mais segura. Assim, o argumento da superação está intimamente relacionado ao argumento por consequência, como podemos verificar na fala do deputado F5.
Está na hora de nós mostrarmos para a sociedade que vamos começar a dar a ela um instrumento para diminuição da violência. Talvez, seja o primeiro instrumento para diminuir a violência. E aí vamos agregar a esse instrumento outros que já votamos aqui, penalizando o maior que usa o menor, punindo com penas mais fortes o receptador, punindo o traficante que usa o menor. Nós estamos aí, nesse conjunto. Parece que muitos não querem ver, mas fizemos lei para penalizar o maior que usa o menor. Agora estamos fazendo lei para penalizar o menor que é assassino, o menor que pratica crime hediondo e crime contra a vida. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 20 de agosto, p. 107)
Neste sentido, o orador estrutura seu argumento de modo a tentar convencer o auditório de que a aprovação de cada lei penal mais rigorosa consiste em uma etapa ou estágio em direção à finalidade de diminuir o índice de criminalidade: etapa 1 ("penalizar o maior que usa o menor"), etapa 2 ("punir com penas mais fortes o receptador"), etapa 3 ("punir o traficante que usa o menor"), etapa 4 ("reduzir a maioridade penal"), e assim por diante, rumo à conclusão que seria a "diminuição da violência". Entretanto, cabe recordar que os dados empíricos não sustentam a ideia de que a redução da idade de imputabilidade penal estaria associada a menores índices de violência (Lins, Figueiredo Filho, & Silva, 2015).
Argumento dos inseparáveis
Este argumento visa fazer uma associação entre dois elementos porque são considerados inextrincáveis (Fiorin, 2016). Geralmente utiliza-se este tipo de argumento para rotular características negativas a um indivíduo ou grupo de indivíduos. Encontramos um exemplo dele no pronunciamento do deputado F4:
Nós temos que ter certeza é de que quem votar contra a redução da maioridade penal estará votando pela impunidade; estará votando a favor daqueles que comentem crimes hediondos contra a vida, que é aquilo que nós iremos aprovar aqui. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, 1º de julho, p. 208)
O argumento apresentado pelo parlamentar pode ser resumido nas seguintes proposições: "se é contra à redução da maioridade penal, então é a favor da impunidade (ou é contra a sociedade)". Da maneira como ele está estruturado, o argumento se configura como uma falácia material, tendo em vista que uma de suas proposições é falsa (Alves, 2005), pois o fato de ser contra a redução da maioridade penal não implica necessariamente em ser a favor de não punir adolescentes que cometem atos infracionais.
Argumentos utilizados somente pelos parlamentares contrários à redução da maioridade penal
Argumento da direção
Dentre todos os argumentos utilizados pelos parlamentares contrários à redução da maioridade penal, sem dúvida este foi o que encontramos com maior frequência em seus pronunciamentos, totalizando 15 vezes. O argumento da direção consiste em rejeitar uma ação por considerar que seus efeitos terão consequências indesejáveis ou até mesmo catastróficas (Fiorin, 2016).
Depois, é importante dizer que não há nenhuma comprovação dos resultados benéficos. Muito ao contrário: em todos os lugares onde a maioridade foi reduzida não houve diminuição da violência. Ao contrário, em alguns países ela aumentou, porque os cárceres e os presídios são escolas de formação de criminosos. (Deputado C4, Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 106)
Neste pronunciamento o orador apresenta proposições que levam à conclusão de que reduzir a maioridade penal teria consequências catastróficas, inclusive com efeitos contrários ao que os seus adversários esperam, ou seja, o aumento nos índices de violência. Neste sentido, este argumento está voltado para o futuro e é diametralmente oposto ao argumento ad consequentiam. Além disso, o orador também utiliza a metáfora da prisão como escola da criminalidade que, enfatiza o sentido negativo atribuído à redução da maioridade penal.
Argumento do desperdício
Este tipo de argumento foi encontrado oito vezes nos discursos dos deputados contrários à redução da maioridade penal. Fiorin (2016) diz que este argumento está voltado para o passado. Nele, argumenta-se que não se deve interromper algo para não se desperdiçar os esforços já realizados, os resultados alcançados até o presente, que poderiam ser perdidos em caso de desistência ou abandono de um empreendimento (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2000). Encontramos um exemplo dele no pronunciamento do deputado C4:
O Senado Federal acaba de definir um rumo na sua votação, no plenário do Senado Federal, com a mudança do Estatuto da Criança e do Adolescente, enrijecendo a pena de privação de liberdade, criando um teto maior. Podemos até discutir essa decisão, mas o Senado não optou pela mudança da Constituição; optou, sim, pela mudança da lei. E por que isso? Porque a Constituição brasileira é fruto de um grande movimento pela democracia no Brasil. E nós aqui, neste plenário, estamos esquartejando a Constituição, tirando a sua lógica, a sua estrutura, invadindo cláusula pétrea, como nós achamos que é este caso. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, pp. 105-106)
Em linhas gerais, o parlamentar argumenta que a aprovação da PEC 171 representaria uma ruptura com o modelo democrático preconizado desde a promulgação da Constituição Federal. Além disso, também aponta um caminho alternativo, proposto pelo Senado Federal, para que ao invés de se alterar a Constituição, fosse realizada uma revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente no que diz respeito ao maior rigor das medidas socioeducativas de privação de liberdade. Em suma, há aqui a ideia de não se desperdiçar todo trabalho empreendido para a conquista de direitos e garantias das crianças e adolescentes desde a reconquista da democracia no Brasil.
Apelo à misericórdia
O argumento de apelo à misericórdia (do latim, argumentum ad misericordiam) mostra uma pessoa ou um grupo como digno de piedade (Fiorin, 2016). Pode-se utilizar também o sentimento de culpa. Trata-se, portanto, de um argumento que visa sensibilizar o auditório, apelando para o pathos. O apelo à misericórdia tem uma estrutura semelhante ao argumento ad populum e costuma ser tipificado como uma falácia, a não ser que o orador apresente premissas racionais que conduzam à conclusão (Walton, 2006). No pronunciamento do deputado C2 encontramos um exemplo de argumento ad misericordiam. Nele o orador inicia sua fala buscando aproximar-se afetivamente do auditório, manifestando sua solidariedade com as vítimas de violência no país. Em seguida, ele apresenta dados estatísticos que conduzem à sua conclusão.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, inicio meu pronunciamento manifestando a minha total solidariedade a todas as vítimas do Brasil. Basta de vítimas! Basta de mortes! Basta de sofrimento! Quero dizer ... que nós estamos aqui em defesa da vida e contra as circunstâncias que temos neste País, onde 56 mil pessoas morrem assassinadas a cada ano. Pensem, Srs. Deputados: a proposta de redução da maioridade penal que alguns entre V.Exas. estão defendendo não trata realmente dessa questão, não oferece esperança às vítimas. Ela oferece, na verdade, uma atitude contrária à juventude brasileira. O que se está criando aqui é um sinal de igualdade, uma identidade perversa entre juventude, adolescência, violência e criminalidade. Não são os adolescentes brasileiros entre 16 e 18 anos os maiores responsáveis por esses crimes, por essas mortes. Ao contrário, ... as maiores vítimas estão nas favelas - são negras e negros; sobres. Os que estão dentro do sistema socioeducativo precisam de esperança, de luz. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 214)
Há neste discurso uma diferença marcante em relação aos seus adversários. Aqui o deputado C2 aborda ambos os "lados" do fenômeno da violência, as vítimas e os agressores, mostrando que estes e aquelas são faces de um mesmo processo, enquanto seus oponentes focalizam apenas o ponto de vista das vítimas. Neste sentido, o orador não nega os direitos e a dor das pessoas que sofrem violências, mas reconhece que aqueles que cometem atos infracionais podem se redimir. Em outras palavras, ele não aborda o problema por meio de uma lógica do tipo "ou os direitos das vítimas ou os dos agressores", mas, ao contrário, a partir de uma perspectiva inclusiva, na qual se considera que é possível cuidar da vítima e ao mesmo tempo tratar de quem comete a violência como um indivíduo que infringiu a lei e que pode ser recuperado. Além disso, ele mostra que a redução da maioridade penal "não oferece esperança às vítimas", ou seja, não repara seus direitos, aproximando sua fala do argumento da direção. Ao final do pronunciamento, o parlamentar joga luz sobre a construção da identidade entre jovens e violência, a qual está na base dos estereótipos negativos sobre os adolescentes em conflito com a lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como objetivo analisar os discursos parlamentares durante a votação da PEC 171/1993 na Câmara dos Deputados, identificando os principais argumentos favoráveis e contrários à redução da maioridade penal. Para tanto, utilizamos os registros das sessões deliberativas publicadas nas edições do Diário da Câmara dos Deputados. Uma das vantagens do uso destes materiais como fontes de pesquisa é o fato de serem documentos oficiais de acesso aberto ao público, o que permite a qualquer pesquisador os consultar sem as restrições burocráticas que geralmente atrasam a obtenção de certos tipos de documentos ou até mesmo impedem o seu acesso. Outra vantagem residiu no fato desses documentos terem sido produzidos de modo "não-intrusivo" (Flick, 2009), evitando-se a indução direta do pesquisador sobre os sujeitos pesquisados (Souza & Menandro, 2007).
No que concerne aos resultados deste artigo, apesar do evidente antagonismo entre os posicionamentos político-ideológicos, em geral, as estratégias de argumentação de ambos os grupos parlamentares foram organizadas de maneira muito semelhantes. A maior parte dos pronunciamentos consistiu em argumentações que apelavam aos sentimentos e emoções do auditório (pathos) e à imagem dos interlocutores (ethos). Os argumentos voltados ao ethos consistiram, principalmente, em ataques pessoais e em argumentos de autoridade. Os ataques pessoais (ou argumentos ad hominem) construíram imagens negativas dos adversários, por meio de críticas a sua pessoa e a de seus respectivos partidos políticos. Já os argumentos de autoridade funcionaram como recurso para formar uma imagem positiva e prestigiosa do orador. Tomados em conjunto, estes dois tipos de argumentos integraram uma estratégia de dupla face na qual, por um lado, buscavam impor seus pontos de vista e, por outro, visavam à reprovação dos seus adversários, desconsiderando-os como interlocutores. Com relação aos argumentos direcionados ao pathos, estes se manifestaram, sobretudo, nos apelos ao povo e nos apelos à força. Os argumentos de apelo ao povo (ad populum) foram, sem dúvida, os mais utilizados e imprimiram tons emocionais ao longo de todas as sessões deliberativas; enquanto os argumentos ad baculum se caracterizaram mais como ameaça de uso da força do que como apelo à legalidade. Considerando essas características dos discursos, os deputados de ambos os grupos pouco apresentaram justificações fundamentadas em dados empíricos ou teóricos que sustentassem a necessidade de reduzir ou manter a idade de imputabilidade penal, indicando argumentação inconsistente e alta intensidade emocional em suas falas. Além disso, na amostra analisada, os parlamentares também praticamente não utilizaram argumentos que propusessem alternativas à perspectiva punitivista. Esta constatação é significativamente importante, tendo em vista que, ao nosso ver, a prevenção da criminalidade juvenil perpassa um debate muito mais amplo do que simplesmente punir ou não punir. Ela envolve, sobretudo, discutir o papel da educação e da cidadania na promoção de ambientes seguros e de relações sociais pautadas em uma cultura de não-violência (Budó & Cappi, 2018; Gallo & Williams, 2008; Mansur et al., 2018; Piazzarollo et al., 2018; Silva & Oliveira, 2016).
No presente artigo, nossas análises ficaram limitadas às estruturas argumentativas dos discursos, uma vez que a fonte dos dados consistiu nas transcrições de falas orais, deixando de lado a compreensão dos fatores persuasivos relacionados à elocução dos oradores, cuja importância também é significativa na análise dos discursos retóricos (Fiorin, 2016). Apesar disso, nós consultamos os arquivos sonoros das sessões deliberativas - que também estão disponíveis na página virtual da Câmara dos Deputados - e eles podem ser objeto de estudos posteriores por meio de abordagens metodológicas mais adequadas a estes tipos de dados. As definições dos critérios de seleção dos discursos podem igualmente terem sido fatores de limitação deste artigo. Entretanto, o intuito era justamente identificar quais argumentos seriam utilizados para persuadir o auditório especificamente naquele momento decisivo, que foi a votação da PEC. Ademais, estes dez parlamentares, cujos discursos foram analisados, juntos foram responsáveis por 51 das 191 falas que efetivamente versavam sobre redução da maioridade penal, o que lhes confere certa representatividade em termos de participação nos debates. De fato, outros critérios de seleção poderiam ter sido definidos, e que talvez pudessem resultar na constatação de argumentos diferentes e mais bem elaborados em relação àqueles que encontramos nesta pesquisa, mas a leitura geral que fizemos das três sessões deliberativas nos indicou que nossa amostragem é pertinente ao conjunto total de discursos.
Pesquisas futuras poderiam verificar a hipótese de que os parlamentares vinculados aos partidos políticos à esquerda do espectro ideológico são contrários à redução da maioridade penal e, de modo oposto, os filiados aos partidos de direita, favoráveis. Outras pesquisas poderiam verificar se existem, e quais seriam, argumentos mais eficazes para persuadir as pessoas a mudarem suas atitudes em relação à maioridade penal e aos adolescentes em conflito com a lei. Outras, ainda, poderiam aprofundar as discussões sobre a redução da maioridade penal e o papel da educação e do acesso às demais políticas sociais como mecanismos de prevenção à violência, em alternativa às estratégias meramente punitivas que geralmente centralizam este debate. O desenvolvimento destas pesquisas seria relevante para colaborar com o processo de tomada de decisão dos parlamentares.
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Recebido em: 13/03/2020
Aprovado em: 12/06/2021
Financiamento: Thiago Sandrini Mansur recebeu financiamento da Capes por meio de Bolsa de Doutorado Sanduíche no Exterior (Edital Capes 47/2017 PDSE 2018; Processo nº 88881.187508/2018-01). Edinete Maria Rosa é bolsista PQ.