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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Instrumentos e dinâmicas de ação pública no território rural Campos de Cima da Serra

 

Instruments and dynamics of public action in the rural territory Campos de Cima da Serra

 

Instrumentos y dinámicas de la acción pública en el territorio rural Campos de Cima da Serra

 

 

Aline Reis Calvo HernandezI; Patrícia BinkowskiII; Damiane Maria BozikiIII

IProfessora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Permanente no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil. alinehernandez@hotmail.com
IIProfessora Adjunta na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, Unidade Hortênsias em São Francisco de Paula/RS, Brasil. Professora Permanente no Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. patinski77@yahoo.com.br
IIIMestre em Ambiente e Sustentabilidade pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, São Francisco de Paula/RS, Brasil. dammyy@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo objetiva analisar as Câmaras Temáticas (CTs) enquanto instrumentos de ação pública no Colegiado de Desenvolvimento Territorial do Território Rural Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, Brasil. O estudo teve três etapas: análise de dados secundários, análise documental e diário de campo. Como resultados, se verificou que a CTs de Pecuária Familiar e de Agrofloresta se tornaram instrumentos de ação pública por serem espaços de construção coletiva direcionada à resolução de problemas socioambientais, por meio de trocas entre os atores locais, processos participativos, decisórios e de inclusão social. A pesquisa concluiu que as mudanças na cultura política no território rural e os novos arranjos institucionais entre atores policêntricos, não foram suficientes para gerar uma ação pública efetiva. Ao coexistirem práticas do modelo anterior, política de governo top-down, os novos mecanismos institucionais não se consolidam tão fortemente, apesar dos atores seguirem praticando os saberes/fazeres elaborados.

Palavras-chave: Câmaras temáticas; Desenvolvimento rural; Politícas de desenvolvimento territorial; Políticas públicas; Participação.


ABSTRACT

The article aims to analyze the Thematic Chambers (TCs) as instruments of public action in the Collegiate of Territorial Development of the Rural Territory Campos de Cima da Serra, in Rio Grande do Sul, Brazil. The study had three stages: analysis of secondary data, document analysis and field diary. As a result, it was found that the Family Livestock and Agroforestry CTs have become instruments of public action as they are spaces for collective construction aimed at solving socio-environmental problems, through exchanges between local actors, participatory, decision-making and social inclusion processes. The research concluded that changes in political culture in rural areas and new institutional arrangements between polycentric actors were not enough to generate effective public action. When practices based on the previous model, top-down government policy coexist, the new institutional mechanisms are not so strongly consolidated, despite the continuity of practice of knowledge/doings elaborated by the actors.

Keywords: Thematic Chambers; Rural development; Territorial development policies; Public policy; Participation.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo analizar las Cámaras Temáticas (CTs) como instrumentos de acción pública en el Colegio de Desarrollo Territorial del Territorio Rural Campos de Cima da Serra, en Rio Grande do Sul, Brasil. El estudio tuvo tres etapas: análisis de datos secundarios, análisis de documentos y diario de campo. Como resultado, se constató que las CT de Ganadería Familiar y Agroforestería se han convertido en instrumentos de acción pública por ser espacios de construcción colectiva encaminados a la solución de problemáticas socioambientales, a través de intercambios entre actores locales, procesos participativos, de toma de decisiones e inclusión social. La investigación concluyó que los cambios en la cultura política en las zonas rurales y los nuevos arreglos institucionales entre actores policéntricos no fueron suficientes para generar una acción pública efectiva. Cuando coexisten prácticas del modelo anterior, política de gobierno de arriba hacia abajo, los nuevos mecanismos institucionales no se consolidan con tanta fuerza, a pesar de que los actores continúan practicando los saberes/haceres elaborados.

Palabras clave: Cámaras Temáticas; Desarrollo rural; Politícas de desarrollo territorial; Políticas públicas; Participación.


 

 

INTRODUÇÃO

A agricultura familiar no Brasil constitui uma forma de produção e trabalho que foi historicamente marginalizada. Tal circunstância é fruto do legado colonial do país e do processo de modernização assimétrico da agricultura nacional implantada com força a partir da segunda metade dos anos 1960 (Aquino & Schneider, 2015). A modernização da agricultura intensificou essas desigualdades, marginalizando alguns segmentos de produtores pela falta de acesso ao crédito, à assistência técnica dentre outros benefícios.

Aquino e Schneider (2015) comentam que no final de 1980, em meio ao processo de redemocratização, os movimentos sociais do campo iniciaram ações no sentido de motivar a criação de políticas para compensar os efeitos nocivos da política econômica do período da ditadura militar (1964-1985). Foi nesse período em que o Brasil enfrentava um contexto histórico de crise econômica e reformas liberais em que se iniciaram as experiências e os estudos voltados ao desenvolvimento territorial (Dantas & Costa, 2014).

Durante a primeira metade da década de 1990 algumas alterações na forma de gestão do Estado, especialmente com o incremento do papel das recém-criadas agências de regulação e da descentralização de algumas políticas públicas federais, fizeram com que os governos locais ganhassem novas atribuições (Schneider, 2004). Neste sentido, o debate sobre o desenvolvimento territorial rural se baseava, em primeiro lugar, na observação da persistência relacionada à pobreza rural e à desigualdade regional, e na discussão mais ampla sobre o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade (Delgado et al., 2007).

Para Delgado et al. (2007, p. 6), "a questão do desenvolvimento territorial está ligada à forma como o Estado atua no espaço nacional, ou seja, como se articulam as decisões públicas em todas as escalas da organização administrativa". Como atuação do Estado se compreende o conjunto das práticas públicas, a administração política, visando o aparelhamento do espaço nacional, o arranjo espacial dos serviços públicos, assim como as formas de articulação do Estado com os atores sociais (Delgado et al., 2007). Buttenbender, Siedenberg e Allebrandt (2011, p. 2) afirmam que definir políticas públicas de desenvolvimento, das estruturas de governo regional e os processos de planejamento e gestão requer o envolvimento do poder público e da sociedade civil, "atuando em diferentes espaços de organização social através de diversos instrumentos e mecanismos de participação".

No Brasil, com a instituição do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2000, juntamente com a criação da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), se iniciou um espaço importante para elaboração de políticas públicas. Os programas vinculados ao MDA e à política de desenvolvimento territorial da SDT tinham como objetivo promover o desenvolvimento sustentável em regiões com baixo dinamismo econômico, especialmente no meio rural (MDA, 2015). A estrutura e o modelo da política se basearam na formação de uma instância local de mobilização, denominada Colegiado de Desenvolvimento Territorial (CODETER), a partir do qual o Estado e a sociedade civil planejam e gerem as políticas públicas conjuntamente, em torno da construção de ações destinadas, em especial, aos agricultores familiares, assentados, povos indígenas, quilombolas, pescadores e piscicultores familiares.

A política de desenvolvimento territorial do MDA iniciou da necessidade de construção de uma estratégia de desenvolvimento rural contemporânea, a qual deveria apresentar um novo olhar sobre o Brasil rural como espaço de vida, diversidade e desenvolvimento sustentável. A partir deste contexto, o rural é percebido como espaço de potencialidades em todas as dimensões do desenvolvimento e não apenas da econômica.

A Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) foi o órgão responsável pelo eixo estratégico do MDA relacionado às políticas de promoção da qualidade de vida e da cidadania no rural brasileiro que, juntamente com as políticas agrárias e agrícolas integraram os três eixos estratégicos do MDA. No âmbito da organização interna, a SDT estava estruturada em torno a quatro eixos estratégicos para a atuação nos territórios rurais: (a) A gestão social nos territórios por meio do apoio ao fortalecimento dos colegiados territoriais; (b) A articulação de políticas públicas para o desenvolvimento territorial; (c) O investimento em infraestrutura e serviços para inclusão sócio-produtiva, especialmente através do programa de Apoio a Projetos de Infraestrutura e Serviços dos Territórios (PROINF); 4) O desenvolvimento de capacidades e competências nos territórios mediante iniciativas nas áreas da educação, cultura e inclusão digital.

Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário (2016), existem hoje no Brasil 243 Territórios, entre Territórios Rurais (TR) e Territórios da Cidadania (TC), que estão inseridos em 3.653 municípios, correspondendo a 65% dos municípios o Brasil e 76% do território nacional. São aproximadamente 22,7 milhões de habitantes em áreas rurais e 75% da população rural do Brasil correspondendo a 81% de agricultores familiares em relação ao total do Brasil (MDA, 2016).

No Rio Grande do Sul existem 18 territórios, entre TRs e TCs e dentre eles o Território Rural Campos de Cima da Serra, reconhecido pelo MDA a partir da Resolução nº 94 de 23 de maio de 2013 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF). O Território Rural Campos de Cima da Serra é composto por treze municípios: Antônio Prado, Bom Jesus, Cambará do Sul, Campestre da Serra, Canela, Caxias do Sul, Ipê, Jaquirana, Monte Alegre dos Campos, São Francisco de Paula, São José dos Ausentes, São Marcos e Vacaria. O território compreende uma área total de 15.501,70 Km² com uma população estimada em 627.501 pessoas, onde grande maioria da população (91,37%) é considerada urbana (FEE, 2015). A Resolução nº 52 do CONDRAF (2016) recomenda que o Colegiado de Desenvolvimento Territorial tenha a seguinte organização: (a) Plenárias - nível deliberativo máximo, onde as decisões são tomadas com ampla participação das representações territoriais, cabendo ao plenário deliberar sobre os temas estratégicos ao território, definir sua visão de futuro e organizar suas instâncias e respectivas composições; (b) Núcleo técnico - nível operacional encarregado pelo apoio técnico e administrativo às ações territoriais. É composto por representações de entidades com um conhecimento específico sobre temas relevantes às pautas do território, tais como entidades de assistência técnica e extensão rural e instituições de ensino e pesquisa; (c) Núcleo diretivo - nível decisório gerencial, responsável pela implantação de ações e articulação de parcerias. Trata-se da instância gerencial composta por organizações que fazem parte do plenário do colegiado territorial, com a atribuição de implantar ações e projetos no território, a partir das diretrizes estabelecidas pelo plenário; (d) Câmaras Temáticas ou comitês setoriais: são instâncias que contribuem para mobilizar e articular os atores territoriais para a discussão e condução de temáticas específicas. São criados e aprovados pelo plenário e, assim como o núcleo técnico, podem ser compostos por entidades que não integram o plenário, desde que não exclusivamente. Sua formação favorece o espaço de ação do plenário, contribuindo para a formação de redes de participação que fortalecem a organização de segmentos sociais específicos no colegiado. Geralmente de caráter permanente, as Câmaras Temáticas são formadas a partir da demanda ou necessidade do colegiado para debater e formular ações e projetos sobre um tema específico.

A partir das decisões tomadas na plenária em 15 de outubro de 2015, o CODETER do TRCCS passou a ter oito Câmaras Temáticas (CTs): Câmara Temática de Pecuária Familiar; Câmara Técnica de Cooperativismo e Mercados Institucionais e Câmara Técnica de Agroecologia; Câmara Temática de Agrofloresta; Câmara Temática Socioambiental; Câmara Temática Mercados Não Agrícolas Rurais e Câmara Temática de Mulheres; Câmara Temática Juventude. A criação destas CTs foi resultante do debate fomentado pela assessoria territorial junto ao núcleo diretivo e técnico, proposto à plenária para exame, debate e deliberação.

Em termos de ação pública, essa difere dos pressupostos colocados por muitas teorias da Administração Pública que situavam o conceito do público como o governamental, ou mesmo os supostos do antigo institucionalismo da Ciência Política que enfatizavam a ação governamental associada às estruturas formais de governo, ao institucional, distanciando-a da noção relacionada ao coletivo, ao comunitário (Peters, 2003).

Na formação do Estado moderno, o público foi fortemente vinculado ao poder. Já nas sociedades contemporâneas, baseadas no Estado de Direito, o público se relaciona à difusão das ações do Estado, com acesso dos indivíduos à tomada de decisões sociais que se relacionam aos interesses e demandas coletivas (Garzón, 2003). Esta última interpretação se relaciona com questões de transparência na tomada de decisões, visando promover ações orientadas ao tratamento de assuntos de interesse comum.

No século XX, diversos instrumentos de ação pública passaram a se diversificar, bem como os programas e políticas de intervenção do Estado, políticas sociais e militares. Assim, a instrumentação da ação pública pode ser entendida como um conjunto de problemas a serem priorizados pelo emprego de instrumentos (métodos, meios de operar, dispositivos, ações, projetos) que visam concretizar e operacionalizar a ação governamental, bem como os resultados alcançados mediante tais escolhas e decisões (Lascoumes & Le Galès, 2013).

As instituições são pautadas por esses instrumentos, tendo em vista que determinam o comportamento dos atores sobre os efeitos, as relações de força e as relações de poder, em que se podem privilegiar alguns atores e afastar outros, dependendo do instrumento selecionado. São esses instrumentos que determinam, em grande parte das situações, os recursos que devem ser empregados e por quem, sendo capazes de consolidar ações coletivas e tornar mais visível o comportamento dos atores (Lascoumes & Le Galès, 2013).

Ante a complexidade dos problemas atuais se faz necessário pensar o público em termos de ações. O caráter público da ação governamental aproximou a noção de ação coletiva, ações orientadas aos interesses de um conjunto social. A vertente sociológica francesa da ação coletiva desenvolve o conceito de ação pública, entendendo-a como "a capacidade de definir metas coletivas, de mobilizar os recursos necessários para alcançá-las, de tomar as decisões à sua consecução e de assumir as consequências que delas resultem" (Duran, 1999, p. 27 - tradução nossa). Trata-se de organizações e ordenamentos sociais locais que permitem regular condutas sociopolíticas, a fim de compatibilizar estratégias de múltiplos atores em conjunto. Visando enfatizar as vantagens do enfoque da ação pública, Cabrero (2005) afirma:

Não se trata da visão parcial do público visto desde o governamental, e tampouco fica na parcialidade de uma visão do coletivo desde a sociedade. Trata-se de um enfoque que tenta superar uma interpretação exclusivamente desde a pertença/filiação institucional dos atores e busca uma interpretação desde os pontos de encontro e desencontro dos mesmos. (Cabrero, 2005, p.11 - tradução nossa)

Nesse sentido, o enfoque da ação pública se aproxima à noção de governança (Massardieu, 2003), cujo uso político do termo se refere a um sistema de gestão democrática, fenômeno social em que estruturas coletivas se organizam dentro de um sistema horizontal envolvendo diferentes atores (policêntrico), a fim de negociar um problema comum, estabelecer metas, compartilhar ações entre as instituições, podendo ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas, mas admitindo também novas formas de ação e regulação das ações.

As dinâmicas de desenvolvimento econômico do Estado nos últimos anos foram seguidas pelo aumento e diversificação de instrumentos de ação pública, pelo acúmulo de programas e políticas nos diferentes setores de intervenção do Estado. A análise da ação pública observa os dispositivos concretos de política pública como construções sociais consequentes de um jogo complexo, entre uma multiplicidade de atores sociais, políticos e econômicos (Massardieu, 2003).

É nessa esteira de discussão que o presente artigo objetiva descrever e analisar as Câmaras Temáticas (CTs) enquanto instrumentos de ação pública do Colegiado de Desenvolvimento Territorial do Território Rural dos Campos de Cima da Serra (TRCCS), Rio Grande do Sul.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Realizou-se uma pesquisa triangulada de tipo exploratória, descritiva e analítica. O fluxo de dados foi composto por quatro etapas, a saber: 1ª Etapa - Análise de Dados Secundários: Foram consultadas bases de dados públicas e institucionais, repositórios digitais e sítios governamentais. 2ª Etapa - Análise Documental: Foram analisadas as atas, pautas e áudios das reuniões do CODETER que registravam as memórias dos principais eventos oficiais do TRCCS. 3ª Etapa - Diário de Campo: Descrições, relatos e percepções sobre a política de desenvolvimento territorial dos TRCCS registrados no Diário de Campo da autora Damiane Maria Boziki na época em que esteve como Assessora de Inclusão Produtiva, realizando a pesquisa de campo. 4ª Etapa - Análise e Triangulação dos Resultados: Nesta etapa, o conjunto de dados obtidos foi sistematizado, interpretado e analisado, tanto de forma parcial quanto de forma integrada e correlata.

O desenvolvimento da pesquisa de campo com amplo fluxo de dados contribuiu muito à compreensão do tema em profundidade, pois cada fluxo de dados aportou um conjunto de elementos e dimensões que ampliaram as compreensões, reflexões e interpretações sobre a dinâmica dos atores sociais em relação ao poder público, as percepções das (in)certezas, a consolidação de ações territoriais e implementação de instrumentos de ação pública e, ainda, sobre o desmonte da política pública em estudo.

 

AS CÂMARAS TEMÁTICAS COMO INSTRUMENTO DE AÇÃO PÚBLICA

Em torno da ação, interação e reação entre os atores da sociedade civil e do poder público "em alusão a um bem comum" (Ávila, 2011) é que se deflagra a ação pública. Segundo Niederle e Grisa (2013, p. 98) "a política de desenvolvimento dos territórios, mesmo tendo uma dinâmica top-down, ainda representa uma das principais experiências brasileiras de ação pública amparada por uma abordagem territorial de desenvolvimento". Tal política tem como premissa básica a elaboração de projetos coletivos, a partir da mobilização de diferentes atores locais situados em diferentes fóruns.

Embora a política de desenvolvimento territorial siga um "molde" único, ela se adapta à cada território rural, levando em consideração os fatores e idiossincrasias identitárias, sociais, econômicas, políticas, físicas e ambientais (Boziki, 2018). Geralmente, estes são os fatores que irão diferenciar as dinâmicas que se estabelecem em um território rural. Desta forma, a política de desenvolvimento territorial se metamorfoseia e se delineia a partir das características de cada território (Boziki, 2018). Para Nierdele e Grisa (2013), a gestão de problemas públicos envolve três aspectos fundamentais:

A formação e estabilização de redes heterogêneas de atores sociais (gestores, agricultores, técnicos, pesquisadores, prefeitos, vereadores, pequenos empresários etc.); a constituição de espaços públicos onde esses atores confrontam ideias e valores com vistas a formar novos compromissos (sobretudo nos Colegiados Territoriais); uma nova institucionalidade que regula as formas emergentes de relações políticas (normas para transparência de recursos públicos aos territórios; recomendação de paridade entre o governo e sociedade civil nos colegiados territoriais). (Nierdele & Grisa, 2013, p. 96)

A partir deste contexto, as Câmaras Temáticas se destacam como instrumentos de ação pública, uma vez que são utilizadas pelo CODETER para dinamizar o debate e priorizar as ações no TRCCS, estimulando a participação da sociedade civil e poder público (Boziki, 2018 - Fluxo dados: Atas do CODETER, Diário de Campo). As CTs são um exemplo de construção coletiva, direcionada à resolução de problemas socioambientais diários, por meio da troca de experiência, de conhecimento, de inclusão social, autonomia, desenvolvimento sustentável e de transformação social por meio de iniciativas dos próprios atores envolvidos. É através das CTs que temas específicos, selecionados como prioritários são discutidos e encaminhados por diferentes atores sociais. Identificaram-se duas Câmaras Temáticas que desenvolveram ações mais concretas no âmbito do Territórios Rurais dos Campos de Cima da Serra: a Câmara Temática de Pecuária Familiar (CTPF) e a Câmara Temática de Agroflorestas (CTA).

CÂMARA TEMÁTICA DE PECUÁRIA FAMILIAR

Essa CT foi efetivada a partir da reunião realizada no município de Bom Jesus em 26 de novembro de 2015, em que se discutiram as demandas que precisavam ser trabalhadas dentro do TRCCS, dentre elas: (a) definição do enquadramento do pecuarista familiar do TRCCS; (b) Definição e caracterização do Queijo Artesanal Serrano (QAS), juntamente com a EMATER/ASCAR; (c) Definição e abrangência do Campo Nativo; (d) Inspeção Sanitária e Regulamentação dos Serviços de Inspeção Municipais existentes, unificação dos sistemas de inspeção, Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (SUASA), Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SISBI); e) Trabalhos com o campo nativo como ecossistema provedor de água; f) Boas práticas de fabricação do Queijo Artesanal Serrano; g) Melhoria e auxílio às Patrulhas Agrícolas dos Municípios e sua implementação (Fluxo dados: Atas do CODETER, Diário de Campo).

Posteriormente, em 16 de dezembro de 2015, conforme Ata, foi realizada uma nova reunião da CTPF no município de Jaquirana, a fim de aprofundar os assuntos anteriormente elencados. Em 25 de abril 2016 ocorreu nova reunião em Bom Jesus, para esclarecer o Projeto de Lei n. 63/2016 que "dispõe sobre a produção e a comercialização do queijo artesanal serrano, no estado do Rio Grande do Sul". Em 20 de maio de 2016, a reunião ocorreu em São Francisco de Paula, onde se efetivou uma rede de produção e melhoria da produção do Queijo Artesanal Serrano, culminando com um possível Programa Territorial do QAS.

No dia 03 de junho de 2016, no município de Jaquirana, foi realizada reunião para priorizar as demandas propostas na reunião anterior e organização as entidades para participação na audiência pública do QAS no município de Bom Jesus, audiência proposta pelo deputado federal Alceu Moreira, autor do PL 2404/2015 que "dispõe sobre a elaboração e comercialização de queijos artesanais" (Fluxo de dados: Transcrição de reuniões, Atas do CODETER).

Os trabalhos de articulação da CTPF no TRCCS resultaram em uma ação multiterritorial, em rede, em conjunto com a Câmara Temática de Segurança Alimentar e Nutricional do Território Litoral Norte. Em 01 de junho de 2016 foi realizado o Seminário Desenvolvimento Territorial: Produção de Alimentos de Origem Animal, que tinha como objetivo principal abordar as legislações existentes para o setor nos diferentes níveis de governança, municípios, estado e união, procurando identificar, fluxos, gargalos, e possíveis soluções para os diferentes municípios, bem como trocar experiências entre territórios rurais próximos, como o dos Campos de Cima da Serra e do Extremo Sul de Santa Catarina. O seminário contou com mais de cem participantes de diversos municípios, os quais identificaram alguns gargalos, como: indefinição ou falta de priorização política pelas administrações municipais; estruturas deficientes e falta de normatização nos sistemas de inspeção municipais; inadequada descrição dos procedimentos de controle; contratações sem concurso; pouca autonomia dos técnicos e acúmulo de funções; ausência de apoio laboratorial e de um sistema de informação integrado pelas administrações (Fluxo de dados: Relatório do Seminário - evento).

Além dessas ações, foram realizadas diversas reuniões da coordenação da CT com a assessoria territorial, com a EMATER/ASCAR, além de participações em plenárias do CODETER TRCCS. Verificou-se que a mobilização desta CT avançou em questões de reconhecimento enquanto grupo, visto que hoje, o pecuarista familiar é reconhecido pela Lei Federal nº 11.326/2006 de 24 de julho de 2006. Esta lei o considera um empreendedor familiar rural, entre outros requisitos, aquele que "não detenha, a qualquer título, área maior do que quatro módulos fiscais".

Não obstante, a referida lei acaba não contemplando um número expressivo de pecuaristas que detém mais de quatro módulos fiscais, mas apresentam o modo de produção familiar. Estes agricultores ficam impedidos de acessar políticas públicas, tais como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), programas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Os "pecuaristas familiares" apresentam características semelhantes aos agricultores familiares quanto à forma de gerenciamento familiar da propriedade, nível de remuneração e mercados acessados, mas não contemplam as mesmas necessidades quanto à dimensão da área ocupada para promover uma produção que gere, concomitantemente, sustentabilidade econômica, ambiental e cultural.

No Rio Grande do Sul (2011), de acordo com o Decreto nº 48.316 de 31 de agosto de 2011, que regulamenta a Lei nº 13.515 de 13 de setembro de 2010, são considerados pecuaristas familiares os produtores que atendem cumulativamente os seguintes critérios: tenham como atividade predominante a cria ou a recria de bovinos e/ou caprinos e/ou bubalinos e/ou ovinos com a finalidade de corte; utilizem na produção trabalho predominantemente familiar, podendo utilizar mão de obra contratada em até 120 dias ao ano; detenham a posse, a qualquer título, de estabelecimento rural com área total, contínua ou não, inferior a 300 hectares, tenham residência no próprio estabelecimento ou em local próximo; obtenham no mínimo 70% da sua renda da atividade pecuária e não-agropecuária do estabelecimento, excluídos os benefícios sociais e os proventos previdenciários decorrentes de atividades rurais (Fluxo de dados: Análise Documental).

Diante de alguns impasses enfrentados por este "pecuarista familiar", os membros da CTPF elaboraram durante a 1ª Conferência Territorial de Assistência Técnica e Extensão Rural dos Campos de Cima da Serra, realizada em 18 de novembro de 2015, uma moção de solicitação e revisão da categoria do "pecuarista familiar" perante o extinto Ministério de Desenvolvimento Agrário, requerendo ao governo federal equiparação do enquadramento do pecuarista familiar conforme Lei nº 13.515/2010, RS (Fluxo de dados: Relatório da 1ª Conferência - evento) .

Outro reforço dado pela CTPF às ações do CODETER no TRCCS foi a parceria estabelecida com a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), unidade universitária localizada em Caxias do Sul. Por meio dessa parceria foram realizados cursos de boas práticas junto às agroindústrias familiares em Caxias do Sul, sem custos aos agricultores (Fluxo de dados: Relatório da Ação de Extensão - UERGS).

Em função das experiências vividas pela CTPF nos últimos dois anos, fica evidente que grande parte das atividades não necessitaram de recursos financeiros, mas sim de vontade política e organização dos atores sociais envolvidos na realização das ações. A política de desenvolvimento territorial demonstra eficácia quando os atores locais tomam para si as ações desenvolvidas no território rural, se apropriando dos espaços de discussão, tomada de decisão, fortalecendo a gestão social territorial. A gestão social adquire diferentes nuances a partir da forma de governança estabelecida para conduzir a concertação e a demarcação das táticas no campo de poder.

CÂMARA TEMÁTICA DE AGROFLORESTA

A coordenação da CT ficou a cargo de um representante do Centro de Tecnologias Alternativas e Populares (CETAP) do município de Vacaria. Esta entidade trabalhou em conjunto com a assessoria técnica do território rural e o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na construção de um plano para a cadeia produtiva do pinhão. O objetivo do plano era de valorização e uso do pinhão e outros produtos não madeiráveis provenientes da Araucária, bem como a valorização dos atores sociais envolvidos nesta cadeia.

A Câmara Temática de Agrofloresta buscou estimular a efetivação do plano, a partir da organização de reuniões e articulação de atores que já vinham se envolvendo com a temática desde o Curso de Valorização e Uso do Pinhão na Região dos Campos de Cima da Serra, realizado em 30 de outubro de 2015. Outra ação efetivada pela CTA foi a promoção de produtos da Cadeia Solidária das Frutas Nativas, junto ao setor turístico do TRCCS (Fluxo de dados: Atas CODETER, Transcrição de Reuniões, Diário de Campo).

Dos instrumentos elaborados pela CTA para a promoção de eventos no TRCCS se destaca a implementação de um "banco de projetos", onde foram priorizadas as demandas que não eram atendidas via Programa de Apoio a Projetos de Infraestrutura e Serviços em Territórios Rurais (PROINFs) ou por políticas de governo. O "banco de projetos" surgiu a partir de demandas e discussões dos representantes da sociedade civil e poder público nas plenárias, onde se identificou diversos temas prioritários: (a) Ações de Assistência Técnica e Extensão Rural; (b) Organização dos agricultores familiares; (c) Planejamento da produção agrícola; (d) Organização para acesso aos mercados institucionais e convencionais; (e) Logística de distribuição da produção agrícola; (f) Estruturação regional do processo produtivo (Fluxo de dados: Atas CODETER, Transcrição de Reuniões, Diário de Campo).

As Câmaras Temáticas proporcionaram formação, capacitação, participação e engajamento de atores locais nas representações de suas entidades/instituições no CODETER, além de proporcionar um debate qualificado, incremento informacional e práticas em torno aos instrumentos de ação pública. Fundamentalmente, impulsionou os múltiplos atores sociais a criarem e organizarem suas próprias demandas para serem discutidas e encaminhadas, em vias de ações e projetos no CODETER do TRCCS (Fluxo de dados: Relatórios das Câmaras Temáticas).

O fato de criarem e organizarem suas próprias demandas faz com que estes atores estejam agindo em prol da formulação de instrumentos de ação pública, onde criam uma agenda política para discutir/tensionar/negociar entre si e junto ao Estado. Através desses instrumentos de ação pública o poder se dilui, pois são vários os atores sociais envolvidos: sociedade civil, instituições, Estado, governo, movimentos sociais, sindicatos etc. formulando, implementando, monitorando e/ou avaliando uma política pública com o intuito de mudança social (Boziki, 2018). Assim, se fortalecem processos participativos, de interação e empoderamento de um conjunto de atores sociais que passam de meros coadjuvantes à protagonistas da formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas nos territórios rurais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo analisamos a ação pública no Colegiado de Desenvolvimento Territorial dos Campos de Cima da Serra, RS, de 2015 a 2018, identificando os avanços na organização e participação social, comparados aos anos anteriores em que não havia assessoramento técnico e, tampouco, o funcionamento das Câmaras Temáticas.

Verificou-se uma sinergia entre os atores envolvidos, principalmente no que tange à efetivação de um território "construído" e reconhecido. Por meio das ações realizadas pelas Câmaras Temáticas, como o "banco de projetos", foram organizadas as principais demandas territoriais e elaboradas as estratégias de ações emergentes no território. Ao analisar as relações, experiências e políticas concretizadas pelo CODETER, e mais especificamente das Câmaras Temáticas, se evidenciou o empoderamento dos atores em relação ao planejamento e a efetivação de ações públicas no território rural.

Identificou-se que as Câmaras Temáticas apresentam um grande diferencial em relação a outros espaços como, por exemplo, a participação em grupos das universidades, bem como a participação efetiva de grupos de assentamentos de Reforma Agrária e agricultores familiares. Em muitas das discussões realizadas nas CTs se verificava que nem todas as demandas dependiam, necessariamente, de recursos financeiros, mas de organização social em fóruns participativos e deliberativos, espaços de discussão e decisão.

Cabe sublinhar que, por meio das dinâmicas e instrumentos elaborados e desenvolvidos na política de desenvolvimento territorial no Território Rural Campos de Cima da Serra, em especial nas Câmaras Temáticas de Pecuária Familiar e de Agrofloresta, se abriram espaços para discussão, análise, formulação e planejamento de políticas públicas condizentes à realidade desse território.

As mudanças experimentadas nos arranjos institucionais, os mecanismos e estratégias formulados entre os atores, os fóruns participativos e deliberativos que serviram à análise e encaminhamento de demandas locais e regionais, demonstram uma potência política efetivada no território rural dos Campos de Cima da Serra. A articulação policêntrica efetivada entre diferentes atores e instituições, tanto da sociedade civil quanto das gestões públicas municipais, permitiram que, mesmo após a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário em 2016 e, consequentemente, da extinção da política no tocante aos territórios rurais, as articulações locais e regionais e um conjunto de projetos em rede se mantenham ativos.

Não obstante, a extinção da política desmontou uma série de ações e iniciativas que estavam em curso, fragilizando a política, o que demonstra que no Brasil o Estado segue conservando as funções de coordenar e dirigir a ação pública.

Recordando as dimensões da ação pública citadas por Cabrero (2005), a intencionalidade da ação e as condições em que se realiza, podemos afirmar que em relação à intencionalidade dos atores, os objetivos por uma nova política territorial expressam a intenção formal de modificar os princípios básicos da política, mudança que se alcançaria mediante instrumentos de descentralização e maior abertura na gestão participativa e de recursos em relação aos territórios rurais. De acordo ao desfecho apresentado no estudo, se pode notar que na prática, a ação pública não acontece em sintonia aos objetivos e metas traçados pelos atores locais, já que depende da chancela do governo federal que atualmente está mais interessado em capitalizar certos temas a dar continuidade às experiências políticas poderosas e eficazes em termos territoriais e rurais.

Pensando em dimensões psicopolíticas, uma hipótese derivada de nossa análise parece evidenciar que o equilíbrio de forças alcançado no CODETER, a ampliação de atribuições entre a rede de atores, ações e projetos elaborados junto ao território rural poderia contribuir a que se tornassem atores fortes no âmbito da gestão de serviços e recursos, ameaçando o ator dominante que era o governo federal.

Finalmente, ao analisar as dimensões qualitativas da ação pública e seu instrumental no CODETER, Campos de Cima da Serra, podemos concluir que as mudanças na cultura política no território rural e os novos arranjos institucionais (articulação em rede entre atores policêntrico) não foram suficientes para gerar uma ação pública efetiva. Ainda, ao coexistirem práticas do modelo anterior, política de governo top-down, os novos mecanismos institucionais não puderam se consolidar tão fortemente, apesar dos atores seguirem contando com esses conjuntos de saberes/fazeres reconhecidos e elaborados no âmbito do CODETER.

Na atualidade política brasileira não vislumbramos incentivos importantes para que estes atores do território rural sigam investindo em redes de maior cooperação, mas ao contrário, enquanto os incentivos governamentais seguirem associando desenvolvimento regional a lucro e expropriação e orientados ao poder unilateral, não será prioritário promover mecanismos efetivos de ação pública.

Em tempos de democracia saturada, a ação pública é uma forma de fortalecer espaços de participação, deliberação e decisão sobre a "coisa pública", sobre seu instrumental e administração. Assim, é de suma importância seguir realizando pesquisas como essa, que evidenciem as estratégias, mecanismos e instrumentos de ação pública, discutindo suas possibilidades e limites em âmbito político local e regional, a fim de descortinar as relações de força e de cooperação entre a sociedade civil, o Estado, os governos e suas instituições, com vistas à efetivação de políticas públicas e sociais voltadas ao desenvolvimento territorial.

 

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Recebido em: 03/09/2019
Aprovado em: 12/11/2019

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