Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
ARTIGO ORIGINAL
As políticas públicas na perspectiva de remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé
Public policies from the perspective of people remaining from quilombos of Guaporé Valley
Políticas públicas desde la perspectiva de los remanentes de quilombos del Valle del Guaporé
Eraldo Carlos BatistaI; Guilherme Severo FerreiraII; Rodrigo Falcão ChaiseIII; Kátia Bones RochaIV
IDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil. eraldo.cb@hotmail.com
IIMestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil. guilherme.ferreiraa@gmail.com
IIIMestrando em Psicologia Social pelo Pontifícia Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil. rodrigofchaise@gmail.com
IVProfessora Doutora no Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/ RS, Brasil. katiabonesrocha@gmail.com
RESUMO
Objetivou-se, com este estudo, identificar e compreender os sentidos produzidos por remanescentes de quilombos de comunidades do Vale do Guaporé sobre o contexto sociopolítico e psicossocial no qual vivem. Como estratégia metodológica, utilizou-se a abordagem qualitativa, sob a perspectiva da Psicologia Discursiva. Entrevistaram- se 10 remanescentes de quilombos membros de duas comunidades do Vale do Guaporé, no Estado de Rondônia. As informações foram analisadas conforme a técnica de Análise do Discurso, a partir da identificação de três repertórios interpretativos: (a) políticas agrárias e territórios em disputa: "Aqui a gente vive sob pressão"; (b) políticas educacionais: descontinuidades, precariedade e distanciamento; e (c) políticas de saúde e falta de investimento. Há uma percepção coletiva entre os participantes de desânimo frente aos conflitos territoriais e à falta de investimento em políticas públicas de saúde e educação. Ademais, o distanciamento entre profissionais que atendem as comunidades e a cultura local é compreendido como um impedimento à qualidade dos serviços.
Palavras-chave: Remanescentes de Quilombos; Vale do Guaporé; Produção de Sentidos; Psicologia Discursiva; Políticas Públicas.
ABSTRACT
The aim of this study was to identify and understand the meanings produced by remnants of quilombos from communities in the Guaporé Valley about the sociopolitical and psychosocial context in which they live. As a methodological strategy, a qualitative approach was used from the perspective of Discursive Psychology. Ten quilombo remnants from two communities in the Guaporé Valley, in the state of Rondônia, were interviewed. The information was analyzed according to the Discourse Analysis technique, based on the identification of three interpretative repertoires: (a) agrarian policies and disputed territories: "Here we live under pressure"; (b) educational policies: discontinuities, precariousness and distance; and (c) health policies and lack of investment. There is a collective perception among the participants of discouragement in face of territorial conflicts and lack of investments in public health and education. Furthermore, the distance between professionals who serve the communities and the local culture is understood as an impediment to the quality of services.
Keywords: Quilombo Remnants; Guaporé Valley; Production of Meanings; Discursive Psychology; Public policy.
RESUMEN
El objetivo de este estudio fue identificar y comprender los significados producidos por remanentes de quilombos de comunidades del Valle del Guaporé sobre el contexto sociopolítico y psicosocial en el que viven. Como estrategia metodológica se utilizó un enfoque cualitativo desde la perspectiva de la Psicología Discursiva. Fueron entrevistados diez remanentes de quilombos de dos comunidades del Valle del Guaporé, en el estado de Rondônia. Las informaciones fueron analizadas según la técnica de Análisis del Discurso, basada en la identificación de tres repertorios interpretativos: (a) políticas agrarias y territorios en disputa: "Aquí vivimos bajo presión"; (b) políticas educativas: discontinuidades, precariedad y distancia; y (c) políticas de salud y falta de inversión. Existe una percepción colectiva entre los participantes de desánimo ante los conflictos territoriales y la ausencia de inversión en políticas públicas de salud y educación. Además, la distancia entre los profesionales que atienden a las comunidades y la cultura local se entiende como un impedimento para la calidad de los servicios.
Palabras clave: Remanentes de Quilombos; Valle del Guaporé; Producción de significados; Psicología Discursiva; Políticas Públicas.
INTRODUÇÃO
Há uma pluralidade de comunidades quilombolas no Brasil. Tanto as comunidades do meio urbano quanto as do meio rural sofrem diversos embates para manterem seus territórios. Na área rural, comunidades quilombolas frequentemente estão envolvidas em conflitos fundiários devido aos interesses de grandes fazendeiros ou posseiros sobre seus territórios. Identificadas com a luta pela liberdade e por terras, as comunidades buscam a preservação de sua cultura, o seu reconhecimento e estratégias de resistência frente a dominações, remetendo a um passado de escravização e enfrentamento ao sistema colonial (Furtado, Pedroza, & Alves, 2014).
Segundo o Decreto n. 4.887/2003, que tem por finalidade regulamentar diferentes aspectos identitários e de direitos dos remanescentes das comunidades dos quilombos, estes se definem como grupos étnico-raciais autodeclarados com percursos históricos próprios. Possuem como presunção especificidades territoriais e ancestralidade negra, que estão associadas à resistência diante dos processos de opressão racial a que foram sujeitados historicamente.
Antes da abolição da escravatura, comunidades quilombolas ou quilombos eram formações comunais estratégicas de resistência por negros escravizados, das quais Palmares se tornou um símbolo da luta dos africanos contra a condição de escravos a que foram submetidos. Vale destacar que a reformulação do termo quilombolas para remanescentes das comunidades de quilombos é resultado de esforços que buscam romper com a ideia de que as comunidades desapareceram após a escravidão ser abolida. A mudança não ocorreu apenas nos termos, mas também na forma como a realidade desses coletivos é compreendida e contextualizada historicamente (Miranda, 2012). Rasera (2013), ao apresentar os pressupostos da psicologia discursiva, descreve a linguagem como ação, e não como representação. O discurso é construído por uma variedade de recursos linguísticos que são construtores de diferentes versões de mundo. Nessa direção, a mudança de termos visa conectar esses coletivos a ancestralidades de suas lutas.
As comunidades quilombolas enfrentam diversas problemáticas sociais, tais como a não demarcação de terras e a falta de acesso a cuidados com a saúde e a outros direitos fundamentais. A reivindicação por políticas públicas específicas se configura como um meio de pressionar o Estado para garantir esses direitos. Com relação à demarcação de terras, há um conjunto de representações simbólicas presente nas comunidades que remete aos conflitos de seus antepassados na luta por terras próprias, o que reforça a imprescindibilidade da valorização do quesito territorialidade nos seus processos identitários. O histórico de luta e outras características culturais - como a produção coletiva na terra e a relação comunal com o território - são representativos da identidade quilombola e permeiam o imaginário social dos remanescentes, possibilitando a identificação intragrupo (Furtado, Pedroza, & Alves, 2014).
No que concerne aos direitos adquiridos voltados a essa população, cabe ressaltar que estão instituídas garantias constitucionais que visam ao reconhecimento de suas propriedades definitivas pelo Estado e ao exercício dos seus direitos culturais (Constituição de 1988). Logo, se compreendemos a garantia da propriedade das terras como proteção dos seus modos de vida (Sousa & Santos, 2019), trata-se de um direito cultural também, não só dos remanescentes de quilombos, mas de toda a diversidade cultural brasileira. Foi a partir da democratização que se tornou viável uma atenção direcionada às comunidades quilombolas, que eram invisibilizadas e excluídas do campo sociopolítico até então. Nesse mesmo período, foi criada a Fundação Cultural Palmares (FCP), que tem por objetivo promover e sustentar valores sócio-históricos e econômicos da cultura negra. A Fundação é responsável, entre outras atribuições, pela certificação das comunidades quilombolas (Decreto n. 4887/2003, Portaria nº 98/2007).
Para a realidade estar em consonância com o que foi estipulado pela Lei Maior e pelos direitos já firmados na legislação vigente, são de suma importância a implementação e a manutenção de políticas públicas em setores fundamentais, como educação, saúde e moradia. Essas políticas devem fazer jus à realidade multicultural e às singularidades dos remanescentes, que necessitam ser atendidos em suas necessidades dignamente (Takahashi & Alves, 2015).
Uma das respostas às desigualdades enfrentadas por essas comunidades foi o desenvolvimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que tem por finalidade promover o acesso à saúde de forma equânime para a população negra e para as populações quilombolas especificamente (Ministério da Saúde, 2013). No que se refere ao cenário educacional, foram instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ) em 2012. O propósito das diretrizes é manter a memória coletiva e cultural, considerando seus saberes e suas práticas particulares no ensino escolar (Ministério da Educação, 2012).
A respeito da questão agrária, o órgão responsável pela demarcação, pela titulação e pelo registro de terras ocupadas é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) nos termos da Normativa INCRA 57/2009. O Ministério Público Federal tem cobrado agilidade na análise dos processos que chegam ao INCRA, pois a lentidão causa insegurança legal aos remanescentes de quilombos, em razão da iminência de serem expulsos de suas terras por pessoas com interesses econômicos (Rossi, 2012).
As comunidades quilombolas situadas no campo estão presentes em todas as regiões do território brasileiro, com níveis variados de isolamento geográfico. O distanciamento físico dessas comunidades dos centros urbanos também aprofundou desigualdades sociais (Oliveira, Pereira, Guimarães, & Caldeira, 2015). No contexto amazônico, o isolamento é mais extremo em decorrência da baixa acessibilidade à infraestrutura e a serviços públicos (Melo & Silva, 2015). Esse é o caso dos remanescentes de quilombos do Estado de Rondônia (RO), que vivem nas comunidades da região do Vale Guaporé e enfrentam problemáticas profundas, envolvendo falta de moradia digna e dificuldade de acesso à educação e à saúde (Teixeira & Xavier, 2018). Diante de tais condições de precarização, pode haver impactos na esfera psicossocial que afetam os indivíduos das comunidades quilombolas. Oda (2013) faz menção ao banzo - termo utilizado para definir a melancolia experienciada pelos escravos após desembarcarem no Brasil - como uma manifestação ainda presente no contexto das comunidades.
Apesar dos estudos anteriormente citados, a literatura sobre a temática ainda é escassa, e o número de pesquisas que levam em conta as experiências e as vivências cotidianas dos próprios remanescentes é ainda mais restrito. Um exemplo é a pesquisa realizada por Batista e Rocha (2019), na Comunidade Santo Antônio de Guaporé e na Comunidade Jesus, duas das cinco comunidades quilombolas do Vale do Guaporé, na qual os moradores mencionam a presença de problemas de saúde mental, como depressão e consumo excessivo de álcool. Ainda, os participantes relataram que o uso de práticas religiosas e o tratamento com ervas são as principais formas de enfrentamento ao adoecimento (Batista & Rocha, 2019).
Considerando a singularidade histórico-política dos remanescentes de quilombos, a sua resistência diante das desigualdades sociais e raciais e o desenvolvimento de políticas que consideram suas especificidades, torna-se relevante analisar o contexto atual dessa população a partir dos sentidos que são construídos socialmente no decorrer das vivências e das experiências de seus representantes. Neste estudo, produção de sentido é essencialmente entendido como uma prática social, intrinsecamente dialógica e, portanto, discursiva, na qual os sentidos sobre si, sobre o mundo e sobre as coisas são construídos nos processos de interação e nas conversas entre as pessoas. A conversação configura-se enquanto prática e não só como discurso ou representação (Spink & Medrado, 2004). O objetivo do presente trabalho é identificar e compreender os sentidos produzidos por remanescentes de quilombos de comunidades do Vale do Guaporé/RO sobre o contexto sociopolítico e psicossocial no qual vivem.
MÉTODO
Este estudo foi realizado por meio de uma pesquisa de abordagem qualitativa, orientada pela Psicologia Discursiva (Potter & Wheterell, 1987), que se alinha aos pressupostos do construcionismo social (Gergen & Gergen, 2010). Conforme a Psicologia Discursiva, o discurso psicológico do senso comum é considerado uma forma de prática discursiva, sem partir de uma interpretação científica específica. Tal fato ocorre porque se compreende que a maneira como os indivíduos utilizam os conceitos em suas vidas cotidianas são meios reais e relevantes, a partir dos quais eles explicam a si mesmos (Edwards, 2004).
A pesquisa foi realizada entre os meses de julho e dezembro de 2017, com 10 remanescentes de quilombos de duas comunidades do Vale do Guaporé. Ambas as comunidades possuem certidão de autodefinição de comunidade remanescente de quilombo, expedida pela Fundação Cultural Palmares nos anos de 2004 e 2006. Os participantes tinham idades entre 25 e 58 anos, sendo três do sexo feminino e sete do sexo masculino. Foram realizados dois encontros com duração de duas horas em cada comunidade.
No primeiro encontro, realizado com o líder da comunidade, buscou-se solicitar a autorização para a realização da pesquisa, bem como apresentar os objetivos do estudo e conhecer a comunidade em seus aspectos gerais. No segundo encontro, foram realizadas entrevistas abertas, com o objetivo de identificar e compreender os sentidos produzidos pelos participantes acerca dos aspectos psicossociais, educacionais, agrários e de saúde percebidos nas comunidades quilombolas do Vale do Guaporé. Após a leitura e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os participantes organizaram os locais nos quais as entrevistas seriam conduzidas, em espaços como varandas ou debaixo das árvores. As entrevistas tiveram duração média de 35 minutos, sendo gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra.
O caminho teórico-metodológico escolhido para a análise das informações colhidas se baseou na proposta de Análise do Discurso sob a orientação da Psicologia Discursiva (Potter & Wheterell, 1987). A Análise do Discurso nessa perspectiva enfatiza o processo dialógico e performático da linguagem, considerando o conteúdo do discurso como disponível socialmente e utilizando-o conforme os objetivos específicos da conversação (Rasera & Rocha, 2010).
De acordo com essa proposta teórico-metodológica, toda linguagem, mesmo a aparentemente descritiva, é sempre construtiva e constitui uma ação (Potter & Wetherell, 1987). A partir dessa proposta, a análise propriamente dita seguiu os seguintes passos: a transcrição das entrevistas; a leitura flutuante e atenta das transcrições das entrevistas; a seleção do tópico grupal; e a identificação dos repertórios interpretativos.
O projeto foi submetido à avaliação e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), sob o Parecer n. 2.410.908 e CAAE n. 79939417.7.0000.5336. Ressalta-se que, para preservar a identidade dos participantes, os nomes foram substituídos pela palavra Entrevistado seguida do número referente à ordem em que foi realizada a entrevista.
ANÁLISE DISCURSIVA DAS INFORMAÇÕES
A análise dos discursos dos entrevistados permitiu compreender a construção de sentidos sobre as condições sociopolíticas vivenciadas no cotidiano das comunidades. A partir dos conteúdos conversacionais, foi possível identificar três repertórios interpretativos: (a) políticas agrárias e territórios em disputa: "Aqui a gente vive sob pressão"; (b) precariedade das políticas educacionais; e (c) políticas de saúde e falta de investimento.
Políticas agrárias e territórios em disputa: "Aqui a gente vive sob pressão"
Neste repertório, buscou-se analisar a construção de sentidos sobre as formas de organização política como movimento social entre os remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé, tendo como discussão central o debate sobre o reconhecimento dos direitos territoriais e as políticas agrárias na região. O processo de reconhecimento dos territórios quilombolas é sempre marcado por conflitos que surgem por motivos fundiários e/ou econômicos nas regiões em que estão situadas as comunidades, impedindo a demarcação de suas terras garantida pela Constituição brasileira (Souza, 2012), o que exige dessas populações articulação cada vez maior. Dessa maneira, apresentam-se algumas reflexões a partir das conversas dos participantes, considerando-se especialmente o discurso das diferentes vozes dos remanescentes de quilombos das duas comunidades em epígrafe, a partir de seus lugares posicionados hierarquicamente de líderes comunitários, professores, estudantes e jovens.
O trecho a seguir apresenta o diálogo que nos ajuda a compreender os sentidos produzidos acerca da luta cotidiana dos moradores das comunidades. Ao ser indagado sobre como é viver na comunidade, um entrevistado deu a seguinte resposta:
Tem duas comunidades que sofreram fortes pressões psicológicas porque estão dentro de uma unidade de proteção permanente. Está em uma reserva biológica, e por três vezes houve o mandado de despejo dessas comunidades de dentro da reserva. Tem pessoas que nasceu e se criou lá dentro e não tem nenhum interesse de sair de lá, e psicologicamente eles têm o conhecimento de que eles não sabem viver em outro lugar, que eles não sabem sair de lá. Então, foi uma pressão muito grande pra maioria lá quando bateu aquela depressão, foi simplesmente uma tristeza pelo fato de ter que sair. (Entrevistado 4)1
Esse breve apontamento acerca da construção social sobre o lugar do quilombola do Vale do Guaporé permite considerar a dimensão política do discurso sobre a relevância do engajamento político e comunitário para a criação de condições necessárias para a sobrevivência dessas comunidades. Então, se a natureza-terra representa a condição de produção/reprodução das relações entre humanos, a propriedade das terras permitirá a essas comunidades a proteção desse modo de vida e a preservação dos seus modos de criar, fazer e viver em uma relação não cindida entre cultura e natureza (Sousa & Santos, 2019), que é duramente atacada pelos latifúndios e pelo agronegócio na região. Observa-se que essa disputa pelos territórios provoca uma série de desdobramentos psicossociais que acabam prejudicando a saúde mental das pessoas que neles vivem.
No período em que foi realizada a pesquisa de campo, uma das comunidades ainda não era reconhecida pelo INCRA, pois havia sobreposição do território quilombola com a Reserva Biológica do Guaporé. Em 2019, após receber autorização do Congresso Nacional para o desmembramento das terras, o INCRA teve permissão para emitir o título à Associação dos Remanescentes Quilombolas Santo Antônio do Guaporé. Antes da titulação, os moradores da comunidade temiam a perda da apropriação das terras.
aqui a gente vive sob pressão. Vive dentro de uma reserva, né. Então, assim não dá pra gente fazer nada que não pode fazer. Porque eu vivo de lavoura, né, aí a pessoa vai fazer as coisas tem que fazer tudo na régua, né, limitado, né; faz isso, não pode fazer aquilo. E então, eu não acho que isso seja vantagem. (Entrevistado 3)
Ao ser interrogado se pretende deixar a comunidade, este morador foi enfático: "Bom, do jeito que tá é capaz que sim, né. Por causa da pressão desse pessoal do IBAMA, não sei se consigo resistir muito isso aí" (Entrevistado 3). A partir desse depoimento, assegura-se que essa comunidade, assim como outras em todo o Brasil, vive uma situação de desigualdade e de espoliação de direitos fundamentais. Para Sousa e Santos (2019), delimitar o espaço ou mesmo expulsar os remanescentes do local em que construíram suas vidas e exerceram suas atividades é romper o laço constituído entre o processo identitário e o território da comunidade.
Apesar das incertezas e do desânimo dos entrevistados anteriormente mencionados, ainda existem aqueles que estão dispostos a lutar pelos direitos da comunidade, como mostra a fala do jovem que foi escolhido pelos moradores como líder da comunidade após a morte do patriarca. Ao ser indagado sobre sua opinião a respeito dos motivos que levaram à sua escolha como representante dos remanescentes quilombolas daquela comunidade mesmo sendo tão jovem, ele explica que sempre teve interesse por assuntos relacionados às demandas do seu povo, demonstrando forte inclinação para a militância política:
Eu era muito próximo do meu avô. Acho que ele percebia o que eu pensava sobre o nosso povo aqui. Eu estava sempre comentando sobre as nossas necessidades, estava sempre preocupado com a pressão de fazendeiros que estão ao redor das terras da comunidade. Acho que é isso que fez ele pedir, antes de morrer, pra que eu tomasse conta [risos]. Mas aí eu decidi estudar e passei esse cargo para o meu tio mais velho, acho justo. Mas quando me formar quero voltar definitivo pra cá. Quero dar aula e ajudar meu tio cuidar da comunidade. (Entrevistado 10)
Conforme Cavalcante e Beltrão (2016), quando os jovens se identificam, é possível observar uma relação direta entre a militância política e a luta coletiva - em oposição nítida à luta pessoal e individual - e repete-se o posicionamento político que refere o passado como respaldo. O processo identitário se altera transgeracionalmente com a escolha da geração mais nova de estudar na cidade, porém, mantém-se o desejo de contribuir para a comunidade e de se fixar no território no qual se encontram os alicerces da etnia. Na perspectiva construcionista, pode-se compreender esse desejo inserido em uma macronarrativa (Rasera, Guanaes, & Japur, 2004), sustentada pelo contexto relacional com os moradores da comunidade, a partir de discursos socialmente disponíveis que põem o território no cerne da luta e da politização dos remanescentes de quilombos. Descreve-se uma potencial liderança comunitária (aquele que "tomasse conta") como alguém que reconhece as necessidades locais e está atento às pressões dos fazendeiros que estão ao redor das terras da comunidade. Tal descrição advém da macronarrativa territorial que mantém a identidade coletiva dos remanescentes.
Outro aspecto relevante a ser destacado, nesse contexto político e social, apontado por um dos entrevistados, é a preocupação com a preservação da cultura da comunidade. Diante do novo cenário, ele aponta a cultura urbana e o acesso ao sistema capitalista (consumista) como principais fatores interferentes na cultura local. Quando perguntado se ele acreditava que a cultura estava sendo mantida pelos mais novos, ele deu a seguinte resposta:
Não como deveria [silêncio]. Eu vejo que os mais jovens estão muito mais influenciados pela cultura da cidade [silêncio]. Eu que estudo lá sei que não é fácil viver aqui sem muitas coisas que tem lá na cidade. Mas também entendo a importância de manter nossos costumes, nossa cultura. Mas muitos jovens têm saído da comunidade. Uns foram embora pra cidade, e outros, para trabalhar em fazendas. Querem ganhar dinheiro [risos] e também ter uma vida melhor. Mas eu vou estudar durante a semana, trabalho num frigorífico e volto pra comunidade nos fins de semana. Gosto muito daqui, nasci e cresci neste lugar. Pra mim isso aqui é o paraíso, esse rio, a mata, é tudo de bom [risos]. (Entrevistado 10)
A saturação social, promovida pelo desenvolvimento do mundo pós-moderno, implica na emersão de uma identidade composta por múltiplas e contraditórias possibilidades de ser. O intenso fluxo e o contato com outras culturas geram novas formas de negociação de sentidos e reconstrução identitária, dificultando a unicidade em torno de uma cultura (Rasera et al., 2004). O desalojamento da identidade quilombola requer reflexão. A compreensão da identidade como um processo ativo de atribuição de sentidos e significados às experiências destaca o papel ativo dos remanescentes quilombolas nesta construção.
É interessante notar que a falta de perspectivas dos jovens diante do futuro, a falta de trabalho, a precarização da vida como um todo e o desejo de se inserir no mundo capitalista/consumista têm levado muitos desses jovens a desejar novas oportunidades de interagir com a cultura urbana por meio das novas tecnologias e de hábitos até então desconhecidos por essa população (Batista & Rocha, 2019). No entanto, partindo das transformações econômicas e sociais ocorridas nas últimas décadas no país, que intensificaram a urbanização e a expansão do capitalismo, esse movimento parece apontar um novo contexto não menos emblemático para esses jovens. Se a vida na comunidade implica a convivência com o isolamento geográfico, tecnológico, social, entre outros, morar na cidade significa conviver com novos desafios advindos de outros tipos de fenômenos sociais, contraditórios e complementares, como preconceito, racismo, desemprego etc. Como afirma Souza (2012), a cidade, desde a "abolição" da escravatura negra no Brasil, tornou-se o lugar da visibilidade do encontro das diferenças, das discrepâncias do sistema, do preconceito e da violência física e simbólica contra os negros.
Em outro momento da conversa com esse mesmo entrevistado, a saber, o único da sua comunidade a cursar ensino superior, perguntou-se sobre seu conhecimento com relação às garantias legais dos quilombolas.
Assim, estudar [as leis] eu nunca estudei, mas de vez em quando a gente lê algumas coisas. Mas é bom a gente dar uma focada nesses assuntos, porque às vezes a gente tem um direito e não sabe... (Entrevistado 10)
De modo geral, esses relatos evidenciam o quanto essas pessoas têm sido privadas do acesso à cidadania plena e extensiva a todos os brasileiros, e como tal condição tem obstruído o direito já consagrado pela democracia, garantido na Constituição. Nesse sentido, cabe ao Estado a equiparação social de desigualdades históricas que avassalam essas comunidades. Mais do que acesso ao direito, os remanescentes de quilombos precisam ter o conhecimento do que eles representam para a formação e a identidade do povo brasileiro.
Políticas educacionais: descontinuidades, precariedade e distanciamento
Neste repertório, buscou-se descrever momentos das falas que traduzam os sentidos construídos pelos entrevistados sobre as políticas educacionais oferecidas pelo Estado nas comunidades. Além disso, busca-se compreender o que os próprios moradores, sobretudo os mais jovens, pensam sobre a educação. Na fala a seguir, fica evidente a preocupação de um dos líderes da comunidade sobre a matriz curricular utilizada pelos profissionais de educação na formação dos alunos e a importância da formação dos próprios quilombolas no processo de ensino e aprendizagem das comunidades. Ao perguntar sobre a importância da formação de um professor que seja membro da comunidade para os quilombolas, este participante foi enfático ao demonstrar sua preocupação com a cultura local:
Ninguém melhor pra conhecer as necessidades dos quilombolas do que os membros da comunidade. Porque vem outra pessoa, vamos pensar assim: há uma pessoa lá de Porto Velho, passou num concurso aí vai lá pra comunidade, vai lá dar aula ... aí chega lá não conhece nada da nossa cultura. Chegam com uma cultura portovelhense, [cultura] da capital, e, se permanece, a cultura local vai perdendo tudo. Isso porque ele não trabalha de acordo com a cultura local, ele trabalha com a cultura dele. (Entrevistado 5)
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental afirmam que "as escolas deverão explicitar em suas propostas curriculares processos de ensino voltados para as relações com sua comunidade local, regional e planetária" (Parecer CNE/CNB n. 1/2002, p. 1), estabelecendo, assim, uma relação entre ensino e vida cidadã. Também traz o Art. 28 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (Lei n. 9.394/96) que "Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região".
O processo de implementação dessas Diretrizes é longo e cercado de cuidados teóricos, metodológicos e políticos, na perspectiva de considerar sempre o protagonismo da comunidade no reconhecimento de elementos/eixos que alimentam a educação quilombola - como preveem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ) -, quais sejam: (a) a memória coletiva; (b) as línguas reminiscentes; (c) os marcos civilizatórios; (d) as práticas culturais; (e) as tecnologias e formas de produção do trabalho; (f) os acervos e os repertórios orais; (g) os festejos, os usos, as tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país; (h) a territorialidade (Ministério da Educação, 2012).
Com relação ao protagonismo dos próprios membros da comunidade, um entrevistado fez referência ao modelo de educação indígena utilizado em outro município do Estado de Rondônia. Percebe-se a valorização da formação e da atuação de membros da própria comunidade:
Um exemplo que poderia ser seguido como nas comunidades indígenas. Em Ji-Paraná tem um intercultural lá, e alguns dos indígenas fazem faculdade lá e usam, por exemplo, plantas medicinais da própria aldeia e fazem suas dissertações com isso; aí eles voltam formados pra lá. (Entrevistado 4)
Nós sempre lutamos por isso, sempre quisemos que as pessoas aqui da comunidade estudassem para atender o nosso povo, porque seria muito importante pra todos nós, todos ganhariam. (Entrevistado 6)
Observa-se como o discurso se encaixa em uma sequência narrativa. Embora os trechos sejam de participantes de comunidades diferentes, a última fala dá continuidade à fala anterior. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica preveem, em sua implementação, a participação ativa e permanente da comunidade. Este é um elemento essencial e decisivo no sucesso desse processo, que exige, antes de tudo, um olhar da comunidade para si mesma e a criação de relações entre escola e comunidade que se sustentem independentemente de gestões ou interesses alheios aos da Educação.
As Diretrizes devem ser implementadas como políticas públicas - portanto, como responsabilidade do Estado, como prevê a legislação -, e não como ações isoladas e pontuais, que partam do interesse de um professor sensível a essa questão ou que estude a temática afro-brasileira. Evidentemente, considera-se importante manter ações já existentes na escola que tratam das questões étnico-raciais e quilombolas como iniciativas que poderão fortalecer a proposta de implementação dessas diretrizes (Reis, Soares, & Costa, 2017).
Todos esses fatores - como a falta de cumprimento das diretrizes e da atuação dos membros da própria comunidade - parecem contribuir para a evasão escolar de jovens e adolescentes das comunidades. Durante uma roda de conversa com três jovens, sobre educação, todos afirmaram estar fora da sala de aula: "Não. Nenhum dos três. Todos pararam [risos]" (Entrevistado 8). Quanto ao grau de escolaridade em que pararam, as respostas foram: "Terceiro, quer dizer, nem terminei o terceiro [risos]" (Entrevistado 8); "Só até o segundo" (Entrevistado 9); e "Terminei o quarto" (Entrevistado 7). Ao serem questionados sobre os motivos da desistência, as respostas foram:
Por que parei mesmo? Chegou uma hora que eu não quis mais. Não gosto de estudar [risos]. É muito chato ficar todo aquele tempo ali parado dentro de uma sala. (Entrevistado 8)
Do mesmo jeito. Não quis mais estudar; também não gosto de estudar, não. A coisa é muito difícil [risos]. (Entrevistado 9)
Eu também, a mesma coisa. Mas eu acho que a gente não gosta muito de estudar porque nunca teve aula direto, sabe? Todo ano era a mesma coisa, chegava um professor que vinha da cidade e só ficava uns tempos e ia embora. Daí a gente ficava esperando outro professor e acontecia a mesma coisa. Então, eu acho que se tivesse professor o ano inteiro a gente gostava mais... (Entrevistado 7)
Nas duas primeiras falas, parece haver naturalização da evasão escolar nos discursos dos participantes. No entanto, o último entrevistado procura explicar a matriz contextual do problema, apontando a descontinuidade do ensino nas comunidades como fator principal do desinteresse acadêmico dos alunos. Essa visão remete ao fortalecimento político da comunidade e ao reconhecimento do protagonismo quilombola na participação das decisões referentes à educação dentro do seu próprio território (Reis, Soares, & Costa, 2017).
No que se refere ao ensino superior, as dificuldades são maiores, uma vez que nem todas as famílias têm condições de manter os filhos na cidade para fazer curso superior. Além disso, o deslocamento para as áreas urbanas é difícil, pois não existem meios de transporte para esse fim, e os pais não pretendem mudar da comunidade, como afirma o entrevistado a seguir:
estou em uma situação meio complicada, porque eu não quero sair daqui, mas a educação daqui é muito fraca. Meu filho tá terminando o ensino médio esse ano que vem, e a minha filha tá terminando o ensino fundamental, e aí tem que sair daqui pra eles estudar. Meu filho vai ter que fazer faculdade e não tem como fazer. O ensino médio daqui [da comunidade] é muito fraco, eu vou ter que tirar minha filha daqui, e eu tô tentando ver pra onde que eu vou. Ver o que eu faço pra ver se eu fico num lugar mais próximo daqui. (Entrevistado 4)
Tal como evidenciado na fala supracitada, a localização geográfica torna-se uma problemática a ser considerada na medida em que o acesso à educação de qualidade é limitado. Comunidades quilombolas na região do Vale Guaporé enfrentam um óbice expressivo no que tange à disponibilidade de serviços básicos (Teixeira & Xavier, 2018), visto que o isolamento, condição exacerbada na região amazônica (Melo & Silva, 2015), contribui para o aumento da desigualdade social (Oliveira, Pereira, Guimarães, & Caldeira, 2015).
A construção do contexto conversacional levou um dos jovens entrevistados a observar que a saída da comunidade para a cidade em função dos estudos é fator gerador de muito sofrimento aos quilombolas:
E aí essa saída é muito complicada, porque conheço várias famílias que saíram da comunidade e foram pra cidade estudar, mas são pessoas que viveram neste mundo aqui que é mais isolado. Aí chega na cidade, meu amigo, acaba se perdendo, não sai estudo, não sai trabalho, não sai nada, e o trem desanda. (Entrevistado 4)
Essa fala parece explicar a inexistência de jovens morando na casa de apoio da cidade mais próxima, como explica este entrevistado: "Aqui tem casa de apoio, tem tudo ..], mas não tem nenhum aluno na casa no momento". Ele justifica que "os mais jovens não querem estudar, e aqueles que vêm não estuda, sabe?" (Entrevistado 1). Essas observações foram corroboradas pelos jovens, ao serem questionados sobre o desejo de ir estudar na cidade:
Como eu disse, eu gosto da cidade, mas prefiro ficar aqui mesmo. Já fui pra outro lugar, mas depois voltei pra cá de novo. (Entrevistado 9)
Eu também penso em ficar por aqui mesmo, mas, se melhorasse em questão de saúde, educação, energia 24h também, seria bom, porque aqui a gente fica praticamente abandonado pelo governo, né. Não tem transporte pra gente poder sair. (Entrevistado 7)
Na última fala, a expressão "abandonado pelo governo" não é apenas descritiva. É uma forma de construir sentido sobre o problema existente nessas comunidades. Para Edwards (2004), quando as pessoas fornecem opiniões sobre o mundo, elas geralmente estão respondendo a contrapropostas que podem estar presentes nas conversas circundantes. Por outro lado, cabe aqui uma reflexão sobre a relação com a comunidade demonstrada nessas falas, as quais reproduzem o pensamento dos antecessores desses jovens. Grande parte dos membros mais antigos dificilmente vão à cidade.
Também nasci aqui e nunca mudei. Pra falar a verdade, poucas vezes saí daqui pra ir na cidade. (Entrevistado 2)
Rapaz, a gente acostuma aqui. Eu quase não saio daqui. Gosto muito; tudo que preciso pra viver, esse lugar tem. Mas ultimamente esse lugar mudou muito. (Entrevistado 1)
As pessoas dessas comunidades sofrem, porque, assim, nasceram aqui, e a mentalidade deles é de não sair daqui. (Entrevistado 4)
Percebe-se que, no decorrer das gerações, mantém-se um sentimento de satisfação em permanecer na comunidade. Isso pode estar associado a alguns fatores, como: a identificação com o modo de vida de seus antecessores; as dificuldades econômicas e sociais enfrentadas na cidade; a conservação da cultura local, entre outros. Ainda, é nesse espaço que esses jovens constroem seus conceitos de vida, conceitos que têm sua realidade própria, pois são os meios reais e disponíveis através dos quais essas pessoas explicam a si mesmas (Edwards, 2004).
Por outro lado, os dilemas enfrentados parecem ter contribuído negativamente nos aspectos demográficos das comunidades. Embora muitos ainda continuem resistentes quanto a uma possível mudança para a zona urbana, o número de remanescentes de quilombos tem diminuído radicalmente nas últimas décadas, como apontam estes entrevistados:
Ah, se bem dizer, mudou tudo, né. ... a quantidade de pessoas mudou bastante, né, caiu [diminuiu] muito. Rapaz, aqui morava bastante gente, chegava mais de 100 pessoas, e hoje não chega nem a 50. (Entrevistado 1)
Aí os jovens vão pra cidade passear, aí o pai compra um celular, daí chega aqui cadê? Ele vai querer sair. Aí vem a pressão pra cima dos pais não querem sair. Eu vejo assim, se as coisas não melhorarem por esse lado, infelizmente a comunidade vai se extinguir. (Entrevistado 5)
A diminuição significativa dessa população é um dos demonstrativos da falta de investimento e de valorização da cultura quilombola. A falta de conexão entre as políticas educacionais e a cultura da comunidade, além da descontinuidade e da precariedade do processo educacional, ao mesmo tempo que afastam os jovens da escola, fazem com que alguns saiam da comunidade em busca de melhores oportunidades educacionais. Mesmo que muitos não tenham o interesse de sair da comunidade, apenas o pertencimento a ela não garante o conhecimento e a conservação de seus costumes e suas crenças. Como visto nesta seção, existem políticas que incentivam e asseguram o protagonismo dos próprios integrantes e as tradições culturais. Todavia, na prática, percebem-se dificuldades para efetivar as diretrizes propostas.
POLÍTICAS DE SAÚDE E FALTA DE INVESTIMENTO
Neste repertório, buscou-se abordar como os remanescentes de quilombos das comunidades pesquisadas constroem sentidos sobre as políticas públicas em saúde desenvolvidas por meio dos serviços oferecidos pelo poder público. Foi feita a seguinte pergunta: como você avalia os serviços de saúde oferecidos pelo Estado e pelo Município nas Comunidades?
eu queria que eles fizessem um pouco mais, mas infelizmente eles não fazem nada, pelo menos aqui por essa comunidade, né. (Entrevistado 5)
Se tivesse pelo menos Técnico de Enfermagem no posto de saúde da comunidade seria bom, mas não tem. O postinho tem um ali, mas não funciona. (Entrevistado 1)
De vez em quando, eles [equipe de saúde] aparecem aqui, né, mas o atendimento bom nunca foi. (Entrevistado 10)
Quanto aos serviços de saúde oferecidos às comunidades, estes parecem ser percebidos pelos entrevistados como muito escassos. De acordo com a Política Nacional de Saúde da População Negra (PNSIPN), é atribuição compartilhada entre os governos estadual e municipal a definição e a gestão dos recursos orçamentários e financeiros para a implementação dessa Política, pactuadas na Comissão Intergestores Bipartite (CIB) (Ministério da Saúde, 2013).
Muito fraco. É bem difícil eles aparecerem aqui de vez em quando. Eles [equipe de saúde] vêm de dois em dois meses. (Entrevistado 9).
Atendimento de saúde pra nós é uma piada [risos]. Quer dizer, nos últimos tempos, melhorou um pouco. Mas não é bom. Aqui a gente tem a ambulancha, ainda bem, porque se passar mal aqui, morre. Daí quando alguém está muito ruim [grave] tem que levar de ambulancha até o barranco do rio e ligar na cidade para eles ir buscar na beira do rio. (Entrevistado 8).
Outros moradores relatam a falta de profissionais no posto de saúde para prestarem atendimentos à comunidade. Vale ressaltar que garantir e ampliar o acesso de populações quilombolas às ações e aos serviços de saúde é um dos objetivos da PNSIPN.
aqui não tem enfermeira, não tem medicamento nenhum, né. Então, isso pra mim é muito importante. (Entrevistado 3).
[Atendimento psicológico] não tem. Queria muito que tivesse isso aqui, mas não tem. Eu digo pro senhor, nós não temos uma estrutura, não temos um apoio governamental, a prefeitura dá o necessário, material de escola, merenda, e só, não dá suporte na saúde psicológica do aluno. (Entrevistado 5).
Fica claro, para esses entrevistados, que o fato de alguns alunos se isolarem ou ficarem deprimidos ocorre por não receberem atenção necessária à saúde. A presença de problemas de saúde mental, incluindo sintomas depressivos, foi verificada em comunidades quilombolas do Vale do Guaporé por Batista e Rocha (2019). A tristeza e o isolamento são comumente associados a uma ressignificação do "banzo", que segue como entidade presente no imaginário dos remanescentes de quilombos até hoje (Oda, 2013).
Outro aspecto a ser destacado é o desconhecimento dos entrevistados sobre as políticas de saúde específicas para a população negra. No entanto, é interessante que muitos reconhecem os prejuízos advindos da falta de informação, como alerta este membro ao ser abordado sobre tal assunto:
Não conheço, mas agora vou pesquisar [risos], porque às vezes a gente vai lá, aí a pessoa [da equipe de saúde] explica algo, e você não sabe dos direitos, acaba aceitando de boa, né. (Entrevistado 10)
Outra questão levantada pelos participantes é a rotatividade de profissionais da saúde nas comunidades. De acordo com o informante a seguir, o exercício da profissão nas comunidades é usado como "trampolim" pelos profissionais. Segundo suas palavras, quando o servidor é designado a trabalhar nesses locais, "a primeira coisa que a pessoa vai falar quase sempre é "vou pra lá porque não tinha outro lugar pra ficar aqui na cidade" ou "vou pra lá até eu pegar transferência"" (Entrevistado 5).
Conforme pode ser visto nesse trecho, há necessidade de avanços estruturais e organizativos, que prezem novos modelos de práticas efetivas, que promovam uma transformação na relação dos profissionais de saúde e no cuidado nas comunidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conhecimentos construídos socialmente pelos participantes da pesquisa foram acessados à luz da análise do discurso. Com base nos repertórios discursivos apresentados, foi possível identificar, nas falas dos remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé, sentidos produzidos sobre a relação entre o cenário sociopolítico atual e os fatores psicossociais associados. Fortes pressões psicológicas são relatadas pelos moradores para saírem de seus territórios, tanto pela insegurança advinda do risco de despejo de suas terras quanto pela falta de suporte do Estado em áreas fundamentais, como saúde e educação.
Tais condições corroboram uma percepção coletiva entre os remanescentes de quilombos de desânimo, vontade de sair da comunidade - entre os mais jovens principalmente -, e, inclusive, depressão perante as dificuldades. A identidade quilombola, cuja construção está atrelada historicamente às dinâmicas territoriais, tem seu laço com a comunidade fragilizado na medida em que os remanescentes são ameaçados de serem despojados de seus territórios ou são privados de necessidades básicas nesses locais. Contudo, há moradores que se posicionam politicamente em prol das comunidades, reivindicando a luta coletiva por melhores condições e adotando práticas discursivas de preservação da cultura local.
As comunidades quilombolas guaporeanas e a população geral do Estado de Rondônia, junto aos meios de comunicação e às instituições vinculadas às lutas coletivas de povos minoritários, poderiam cobrar maior agilidade por parte da administração pública, preponderantemente o INCRA, na regularização fundiária, para garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes de quilombos. A participação ativa da sociedade civil é imprescindível para fins de controle social e exercício da cidadania. Ademais, o engajamento coletivo dos moradores das comunidades demonstra-se potente ao observarmos, em seus discursos, a força do pensamento crítico acerca de suas próprias demandas e as estratégias de resistência frente aos processos de desculturação a que são sujeitados.
Apesar da falta de conhecimento sobre a legislação e garantias fundamentais aos povos de matriz africana, entre os próprios remanescentes de quilombos, existe a percepção de que os sujeitos aos quais as políticas públicas se destinam devem participar ativamente na implementação das políticas. O distanciamento entre a cultura local e as práticas exercidas pelos profissionais que vão até o território é compreendido como impossibilitante de um serviço de qualidade, como é observado na política educacional.
O discurso reivindicando profissionais com atuações mais permanentes, que tenham nascido nas próprias comunidades, retoricamente denota o desejo de que os profissionais valorizem as tradições e as práticas locais - como o uso de práticas religiosas e o tratamento com ervas -, a fim de preservar a cultura. Dessa forma, contribuir-se-ia para o aumento da identificação e do interesse dos alunos pelo ambiente escolar, assim como para a consequente diminuição da evasão escolar. Tais demandas estão preconizadas nas diretrizes curriculares, razão pela qual os motivos que levam a operacionalização a apresentar falhas poderiam ser analisados.
É necessário maior empenho por parte do Estado em socializar as informações sobre direitos adquiridos para as comunidades quilombolas, a fim de fortalecer o controle social e possibilitar articulações populares cada vez mais assertivas. No quesito saúde, isso pode ser feito mediante a elaboração de materiais educativos sobre o tema Saúde da População Negra, respeitando os diversos saberes e valores, inclusive os preservados pelas religiões de matrizes africanas. Tal ação já é preconizada nas Estratégias de Gestão da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).
Como limitação desta pesquisa, aponta-se a falta de aprofundamento em pontos específicos dos eixos temáticos, podendo ser citados como exemplos: a inefetividade da operacionalização das diretrizes curriculares no contexto da educação e da PNSIPN no cenário da saúde. Devido à complexidade da temática e à escassez da literatura, analisou-se de forma mais ampla e exploratória a conjuntura geral do contexto sociopolítico percebido pelos remanescentes de quilombos. Dessa forma, compreende-se como pertinente que futuras pesquisas analisem os aspectos supracitados com maior profundidade.
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Recebido em: 13/03/2020
Revisão: 13/11/2020
2ª. Revisão: 13/01/2021
Aprovado em: 13/04/2021
1 Nas transcrições, as marcas de oralidade e as agramaticalidades foram mantidas conforme proferidas pelos entrevistados.