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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

TRADUÇÃO

 

Os desafios da psicologia social e política na busca pela paz: Um relato pessoal

 

The challenges of social and political psychology in pursuit of peace: Personal account

 

Los desafíos de la psicología social y política en la búsqueda de la paz: Un informe personal

 

 

Daniel Bar-TalI; Tradução por: Rafaela BarkayII

IProfessor emérito da Escola de Educação da Universidade de Tel Aviv. Seu interesse de pesquisa está na Psicologia Política e Social, onde tem estudado fundamentos sociopsicológicos de conflitos intratáveis e a construção da paz, bem como o desenvolvimento do entendimento político entre crianças, e educação para a paz. Ele publicou mais de vinte e cinco livros e mais de duzentos e cinquenta artigos e capítulos em grandes periódicos de Psicologia Social e Política, livros e enciclopédias. Serviu como presidente da Sociedade Internacional de Psicologia Política e recebeu vários prêmios por suas realizações acadêmicas. A correspondência relativa a este artigo deve ser dirigida a Daniel Bar-Tal, Escola de Educação da Universidade de Tel Aviv, Tel Aviv 69978, Israel. daniel@tauex.tau.ac.il
IIDoutora pelo Programa de Estudos Judaicos e Árabes - FFLCH - USP. rafabarkay@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo descreve a trajetória autobiográfica de meu desenvolvimento profissional e intelectual. Ele trata das fontes de meus valores, e se inicia com o relato de meu doutorado na Universidade de Pittsburgh, que influenciou minha abordagem no fazer científico. A seguir, relata o início de minha carreira acadêmica na Escola de Educação da Universidade de Tel Aviv. Também este começo foi significativamente influenciado pelo trabalho de Arie Kruglanski, que desenvolvia, então, sua Teoria Epistemológica Leiga. O despertar do interesse pela Psicologia Política no início dos anos 80 abriu novos caminhos para o desenvolvimento de teorias e pesquisas empíricas. O clímax desta linha de trabalho foi o desenvolvimento da Teoria Geral das Crenças Sociais Compartilhadas e mais especificamente a Teoria dos Fundamentos Sociopsicológicos e a dinâmica dos conflitos intratáveis. Desde o final do segundo milênio, meus esforços têm se concentrado na formação de estudantes de pós-graduação segundo princípios de "comunidade de aprendizagem".

Palavras-chave: Carreira; Conflito; Desenvolvimento profissional; Psicologia social; Teoria.


ABSTRACT

This article describes the autobiographical story of my professional and intellectual development. It describes sources of my values and begins the story of my doctoral study at the University of Pittsburgh that influenced my approach to making science. Next, the article describes the beginning of my academic career at School of Education of Tel Aviv University. Also the beginning was significantly influenced by the work of Arie Kruglanski who was developing his Lay epistemic theory. The shift of interest in the early 1980s to political psychology opened new avenues for developing theories and empirical research. The climax of this line of work was the development of the general theory of shared societal beliefs and more specific theory of the sociopsychological foundations and dynamics of intractable conflicts. Since the end of the second millennium my efforts have been focused on training graduate students according to developed principles of the "learning community."

Keywords: Career; Conflict; Professional development; Social psychology; Theory.


RESUMEN

Este artículo describe la trayectoria autobiográfica de mi desarrollo profesional e intelectual. Trata de las fuentes de mis valores, y comienza con el relato de mi doctorado en la Universidad de Pittsburgh, que influyó en mi enfoque del hacer científico. A continuación, informa sobre el comienzo de mi carrera académica en la Escuela de Educación de la Universidad de Tel Aviv. Este comienzo también fue influenciado significativamente por el trabajo de Arie Kruglanski, quien luego desarrolló su Teoría Epistemológica Laica. El despertar del interés en la Psicología Política a principios de la década de 1980 abrió nuevas vías para el desarrollo de teorías empíricas e investigaciones. El clímax de esta línea de trabajo fue el desarrollo de la Teoría General de las Creencias Sociales Compartidas y más específicamente la Teoría de los Fundamentos Sociopsicológicos y la dinámica de los conflictos intratables. Desde el final del segundo milenio, mis esfuerzos se han centrado en la formación de estudiantes de posgrado de acuerdo con los principios de la "comunidad de aprendizaje".

Palabras clave: Carrera; Conflicto; Desarrollo profesional; Psicología social; Teoría.


 

 

Original publicado: Bar-Tal, D. (2019). The challenges of social and political psychology in pursuit of peace: Personal account. Peace and Conflict: Journal of Peace Psychology, 25(3),182-197. DOI:10.1037/pac0000373

 

A Psicologia Política extrai muito de seu conhecimento da Psicologia Social, e muitos psicólogos políticos receberam educação em departamentos sociopsicológicos. Minha carreira seguiu esse caminho e, portanto, em minhas reflexões me refiro a essa conexão.

Quando me pediram para escrever um relato autobiográfico do desenvolvimento de minha carreira acadêmica, senti-me lisonjeado e também desconfortável. Me é claro por que fiquei lisonjeado - o inconveniente desafio de organizar os 48 anos de minhas experiências em Psicologia Social e Política, evitando um tom de autoelogio. Espero ter superado com sucesso o desafio.

 

CONTEXTO

A PROCURA PELA MÃE

Qualquer tipo de história biográfica deve começar com a descrição das fontes que imprimiram as crenças e valores nos primeiros anos de vida. No meu caso, é relativamente fácil identificar minha mãe (nós a chamamos de Zósia) como responsável por minha educação intelectual de pensamento complexo e crítico, e a mente aberta. Foi ela quem me incentivou a ler numerosas obras da literatura clássica em minha infância, adolescência e início da idade adulta. Foi ela quem discutiu comigo os livros que li e os filmes que assisti. Foi ela quem implantou em mim os valores liberais da aceitação incondicional do outro, da liberdade de expressão e da justiça. Estes valores serviram de farol para minha vida pessoal e minha carreira acadêmica.

MEMÓRIA PESSOAL DO HOLOCAUSTO

Ela era uma dentre nove irmãos de uma família ultraortodoxa que vivia em Varsóvia, mas seus pais eram liberais o suficiente para permitir que as filhas se matriculassem e frequentassem escolas secundárias seculares (os filhos não estavam interessados em seguir com a educação formal). Com exceção da irmã e da filha, que sobreviveram ao inferno do Holocausto em Varsóvia, toda a família morreu em Treblinka. Somente ela, como que por milagre, conseguiu escapar para a URSS nos primeiros dias da invasão alemã da Polônia, e sobreviveu à guerra. A história do Holocausto e as atrocidades da guerra foram, então, minha segunda impressão experimental por passar meus primeiros 11 anos na Polônia pós-traumática depois da guerra, lendo muito sobre a guerra, e depois em Israel (para onde a família emigrou), residindo no mesmo apartamento que minha tia, que costumava contar com riqueza de detalhes suas experiências durante a guerra. Assim, desde os primeiros anos, adquiri o lema de "nunca mais", que caracteriza a sociedade israelense. Mas aqui as semelhanças, em certa medida, terminam. Enquanto o Estado de Israel adotou principalmente a lição particularista de que os judeus devam ser militarmente poderosos e exercer seu direito de defesa, mesmo sem considerar as opiniões da comunidade internacional, meu entendimento de "nunca mais" toca principalmente nas condições que levaram o regime nazista ao poder e, em seguida, permitiram que promovesse o Holocausto. Assim, a meu ver, é vital lutar incondicionalmente contra o racismo, a xenofobia, o chauvinismo, o fascismo e o militarismo. Esta luta é essencial se a civilização, incluindo os judeus, quiser impedir outros genocídios, limpezas étnicas ou violações dos direitos humanos. Com esses valores e meu interesse pelo comportamento social, me foi bastante natural estudar e me especializar em uma das disciplinas das Ciências Sociais. Escolhi a Psicologia Social, me graduando em Psicologia e Sociologia pela Universidade de Tel Aviv.

 

FASE 1: DOUTORADO E INFLUÊNCIAS INICIAIS

Minha carreira acadêmica começou na Universidade de Pittsburgh, onde iniciei meus estudos de doutorado em 1970. Com o apoio socioemocional de Martin Greenberg, fui introduzido ao conhecimento da Psicologia Social e à arte de planejar e realizar experimentos como seu principal método de pesquisa. Minha área de especialização foi o comportamento pró-social, uma área de estudo em desenvolvimento naqueles anos. No mesmo departamento, Irene Frieze me apresentou à Teoria da Atribuição que era, então, o tema em voga na Psicologia Social. A chegada do lendário Paul Lazarsfeld ao Centro de Estudo, Pesquisa e Desenvolvimento (LRDC) da Universidade de Pittsburgh afetou minha vida profissional, me proporcionando novas perspectivas na ciência. Ele criou um programa multidisciplinar onde estudantes de doutorado de disciplinas das Ciências Sociais foram convidados a escrever suas dissertações a respeito de educação. Como um dos sortudos estudantes do Departamento de Psicologia, fui convidado a fazer parte deste programa e aprendei três princípios importantes da ciência que me acompanharam por todo o trabalho na vida acadêmica. O primeiro é a adoção de uma abordagem multidisciplinar para o estudo das questões de pesquisa. Foi lá que eu entendi que um estudo de qualquer questão social não pode ser abrangente se for realizado a partir de uma única perspectiva. Questões como pobreza ou conflitos exigem uma abordagem multidisciplinar para uma compreensão ampla e profunda.

O segundo princípio que aprendi no grupo foi que o estudo de uma questão de pesquisa requer conhecimento de múltiplos métodos. A pesquisa de um problema não pode ser realizada somente com um método. A escolha do método depende das questões de pesquisa selecionadas e não vice-versa. Algumas perguntas de pesquisa exigem o uso de experimentação, mas outras podem exigir o uso de análise de conteúdo, observação, questionários e surveys ou entrevistas. Hoje pode parecer muito óbvio para muitos estudantes, mas no início dos anos 1970, a Psicologia Social era quase que completamente dominada pelo uso de experimentação e relutava muito em aceitar outros métodos de pesquisa. Esta tradição prevalece até o presente, embora o uso de outros métodos seja aceito em alguns círculos.

A terceira perspectiva que adquiri no programa de doutorado do LRDC foi examinar questões com o que chamo de "cabeça grande". Isto significa que, para selecionar uma questão de pesquisa, é necessário compreendê-la em todos os seus componentes e aspectos. Em outras palavras, pesquisadores precisam entender o "quadro geral" para selecionar uma pergunta de pesquisa. Não podemos abordar um problema com uma perspectiva muito estreita que vê apenas uma pequena parte dele.

Finalmente, durante meu doutorado no LRDC, percebi que a Psicologia Social tem algo a dizer sobre diferentes questões sociais que preocupam os seres humanos, e é sua responsabilidade e dever contribuir com seu conhecimento para compreender a humanidade. A Psicologia Social não pode desconsiderar sua relevância para questões sociais que preocupam seres humanos em diferentes áreas, zonas e espaços.

 

FASE 2: INÍCIO DE MINHA CARREIRA ACADÊMICA

PSICOLOGIA SOCIAL DA EDUCAÇÃO, COMPORTAMENTO PRÓ-SOCIAL E TEORIA DA ATRIBUIÇÃO

Em 1975, retornei a Israel com o conhecimento adquirido na Universidade de Pittsburgh para assumir uma posição na Escola de Educação da Universidade de Tel Aviv. Alinhado ao conhecimento que recebi em Pittsburgh, iniciei minha carreira independente em duas áreas. A primeira, na construção das bases da Psicologia Social da Educação, que naquele momento dava seus primeiros passos e, portanto, necessitava ter seus limites e questões de pesquisa estabelecidos (Bar-Tal & Saxe, 1978). Me concentrei no estudo da motivação para a realização, conforme conceituado por Bernard Weiner (Bar-Tal, 1978, 1979). Ao mesmo tempo, continuei trabalhando na área de comportamento pró-social, publicando meu primeiro livro que tentava organizar este campo (Bar-Tal, 1976). Posteriormente, concentrei-me principalmente no estudo do desenvolvimento do comportamento de ajuda, bem como em sua natureza (por exemplo, Bar-Tal, 1982, 1986; Staub, Bar-Tal, Karylowski, & Reykowski, 1984).

EPISTEMOLOGIA LEIGA

No final dos anos 1970, conheci Arie Kruglanski, que avançava em sua carreira no Departamento de Psicologia da Universidade de Tel Aviv, um andar abaixo de meu escritório. Este foi provavelmente o encontro que mais influenciou minha carreira, além dos anos do doutorado. Naquela época, Arie estava desenvolvendo sua teoria da Psicologia Leiga (Kruglanski, 1989) e eu entrei para o seu grupo de estudantes envolvidos neste processo. Os anos de trabalho com Arie foram muito excitantes, pois todos pensávamos estar mudando o paradigma da Psicologia Social em particular, e da Psicologia em geral (Bar-Tal & Kruglanski, 1988). Sua teoria alterou minhas visões, bem como o paradigma da abordagem do estudo em Psicologia Social. A metateoria da formação do conhecimento em termos de processo e conteúdo, com suas motivações epistêmicas, aparece em muitos dos meus escritos. Pelo menos quatro publicações foram produzidas diretamente com base na teoria de Arie tentando reconceitualizar diferentes áreas da pesquisa sociopsicológica (Bar-Tal & Bar-Tal, 1988, 1991; Bar-Tal, Bar-Tal, Geva, & Yarkin-Levin, 1991; Bar-Tal, Kruglanski, & Klar, 1989). Além disto, o conceito de autoridade epistêmica de Arie, que indica uma fonte na qual um indivíduo pode confiar em suas tentativas de adquirir conhecimento sobre vários tópicos, estimulou uma linha de pesquisa para revelar seu escopo e trajetória de desenvolvimento (veja a revisão em Kruglanski et al., 2005). Durante esse período, percebi que, em primeiro lugar, gosto imensamente de desenvolver conceitos, estruturas conceituais e teorias e, depois, com base nas mesmas, me engajar em pesquisas empíricas para validar as ideias. E, de fato, isto caracterizou minha contribuição para as Ciências Sociais, no espírito da afirmação de Kurt Lewin de que "não há nada mais prático do que uma boa teoria".

 

FASE 3: MUDANÇA DE MEUS INTERESSES PARA A PSICOLOGIA POLÍTICA

ATIVISMO POLÍTICO

Meu ativismo político começou durante os estudos de graduação, imediatamente após a guerra de 1967, quando me ficou absolutamente claro que a ocupação de territórios nesta guerra traria acima de tudo perdas e sofrimentos, sem avançar para a solução deste conflito sangrento. É um princípio universal que uma ocupação indesejada leve à resistência da sociedade ocupada e, por sua vez, a resistência seja sempre enfrentada com opressão pelas forças ocupantes. Esse ciclo aconteceu através dos séculos da história em quase todas as ocupações, e o destino da ocupação israelense não poderia ser diferente. De fato, Israel faz tremendos esforços com imensos recursos para reprimir todos os sinais de resistência, mas ela aparece e reaparece continuamente sob diferentes formas. Meu ativismo continuou com o retorno a Israel em 1975. Em 1978, foi fundado o movimento Paz Agora, e encontrei lá meu lugar quase que desde seu início. Durante esse período, percebi que, como israelense, era de meu grande interesse e também dever o engajamento em pesquisas relevantes para minha vida em Israel e o estudo da questão mais central da sociedade judaica israelense: o conflito israelense/árabe-palestino que a domina.

MIGRAÇÃO PARA A PSICOLOGIA POLÍTICA

A oportunidade para a grande mudança ocorreu em meu ano sabático na Universidade de Vanderbilt, em 1981-1982. Foi lá que comecei a conceitualizar os fenômenos de deslegitimação, mentalidade de cerco e patriotismo, observados em especial na sociedade israelense. Bill Smith, do Departamento de Psicologia, foi um ouvinte crítico de meus conceitos em desenvolvimento. Este foi o começo de minha jornada que segue até hoje - estudar sociedades envolvidas em conflitos duradouros e violentos, que mais tarde caracterizei como intratáveis (Bar-Tal, 1998). As ideias vieram da observação da sociedade judaica israelense e, então, tentei verificar se elas apareciam em outras sociedades também envolvidas em conflitos. A seguir, cada fenômeno social que observei foi analisado em duas estruturas: uma em nível geral, e outra como observado na sociedade judaica israelense.

Deslegitimação

O estudo da deslegitimação me acompanha ao longo dos anos, estando eu convencido de que esta representa uma forma extrema de exclusão moral, que leva ao desengajamento moral e então, à violência. Baseia-se na classificação de sociedades em categorias que negam sua humanidade, proporcionando permissão psicológica para atos cruéis de violência que apenas seres humanos são capazes de imaginar e executar . É provavelmente uma das concepções mais destrutivas que seres humanos elaboram para realizar atos de maldade. A deslegitimação não aparece em todos os conflitos intergrupos, mas tende a emergir, especialmente em conflitos violentos, quando os objetivos contestados são percebidos como de distantes, injustificados e que colocam em risco os objetivos existenciais do grupo. O uso da deslegitimação em conflitos intratáveis não é surpreendente, porque os rivais também são vistos como inimigos. Um grupo definido como "inimigo" é visto como aquele que ameaça causar um dano injusto e, portanto, desperta sentimentos de hostilidade. Além disto, espera-se que inimigos sejam eliminados e destruídos. A palavra "inimigo" é suficiente para condenar um ser humano à morte. A deslegitimação foi usada pelos hutus em Ruanda que decidiram exterminar os tutsis, mas também pelos rivais no conflito árabe-israelense para facilitar assassinatos mútuos. Esta foi minha observação que levou a um extenso trabalho sobre este conceito (Bar-Tal, 1988, 1989, 1990, 1994; Bar-Tal & Hammack, 2012; Oren & Bar-Tal, 2007).

Mentalidade de cerco

A mentalidade de cerco é outra observação que caracteriza a sociedade judaica que age sobre o gerenciamento do conflito (Bar-Tal, 2000b; Bar-Tal & Antebi, 1992). Também foi observado nas sociedades sérvia e iraniana, além de ser hegemônico nas sociedades albanesa e norte-coreana. Denota o domínio de uma crença de que o resto do mundo tem intenções altamente negativas em relação à própria sociedade. Esta crença aparece predominantemente no repertório psicológico judaico e é frequentemente expressa pelas lideranças e pela mídia. Ao longo de sua extensa história, e como registrado em sua memória coletiva, os judeus sofreram perseguição, difamação, taxação social, restrição, conversão forçada, expulsão e pogroms. Mas o clímax destas experiências ocorreu no século 20 com "a solução final para o problema judaico", o genocídio sistemático que hoje chamamos de Holocausto. O fato de seis milhões de judeus terem perecido enquanto "o mundo" permaneceu indiferente, contribuiu grandemente para fortalecer a mentalidade de cerco dos judeus remanescentes, e deixou sua marca nas gerações futuras e em suas experiências. Além disto, a memória coletiva do conflito árabe-israelense, embora muito diferente do Holocausto, contribuiu imensamente para preservar essa mentalidade. Muitos judeus perceberam a animosidade e o ódio árabes como uma continuação do antissemitismo europeu. Além disto, judeus israelenses veem as críticas às políticas e aos comportamentos israelenses em relação ao conflito israelense-palestino, especialmente no contexto da ocupação, como uma indicação do antissemitismo mundial. Uma canção popular em Israel "O mundo inteiro está contra nós", composta no final da década de 1960, é provavelmente a expressão mais vívida e óbvia desta visão: "O mundo inteiro está contra nós, este é um conto antigo, ensinado por nossos antepassados... Nós não damos a mínima... Que o mundo inteiro vá para o inferno". A mentalidade de cerco tem sérias consequências: auto isolamento, suspeita, desconfiança e atitudes negativas em relação às nações do mundo, sensibilidade a qualquer informação e sugestões provenientes de outras sociedades, especialmente as críticas, desconsideração das normas da comunidade internacional e pressão por conformidade e obediência na sociedade.

Patriotismo

O patriotismo é condição essencial para a existência do grupo (Bar-Tal, 1993; Bar-Tal & Staub, 1997). Reflete o apego dos membros da sociedade à sua nação e ao país em que residem. Implica em amor, carinho e voluntariado em ações que beneficiam a sociedade. O patriotismo é de especial importância em conflitos prolongados e violentos, que não podem se manter sem ele. Conflitos violentos exigem não apenas a mobilização dos membros da sociedade através de seu apoio e participação, mas também da disposição para matar membros do grupo rival (o inimigo) e sacrificar a própria vida. Este último é o ato patriótico final. Portanto, não é de se surpreender que a sociedade judaica-israelense, como outras sociedades envolvidas em conflitos intratáveis, se esforce especialmente para incutir o patriotismo entre os membros da sociedade desde tenra idade e tente mantê-lo por toda a vida, usando todos os agentes de socialização possíveis, incluindo lideranças, meios de comunicação de massa, sistema educacional, movimentos juvenis e assim por diante (Ben-Amos & Bar-Tal, 2004). A conceituação do patriotismo me levou a perceber, tanto em Israel como em outros Estados, o que chamei de "monopolização do patriotismo" (Bar-Tal, 1997b). A monopolização do patriotismo é um mecanismo de exclusão intragrupal. Ocorre quando um subgrupo assume que existam condições limitantes para incluir apenas uma parte do grupo de patriotas com base na aceitação de uma ideologia, ideias, regime ou líder em particular. Os casos extremos de monopolização do patriotismo são encontrados em sistemas totalitários. Mas a monopolização do patriotismo também pode ocorrer em sistemas democráticos, como nos Estados Unidos durante a era McCarthy. Além disto, um grupo não precisa estar no poder para monopolizar o patriotismo, como em Israel durante o mandato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, que negociou com a Organização de Libertação da Palestina (OLP). A oposição linha-dura apresentou as negociações como um ato de traição antipatriótico, recusando-se a renunciar aos territórios ocupados (Cisjordânia e Faixa de Gaza), mesmo que em troca pela paz, e defendeu o assentamento de judeus nestas áreas (Oren & Bar-Tal 2004). A monopolização do patriotismo leva à exclusão e deslegitimação dos chamados não-patriotas, seja como bodes expiatórios ou mesmo como vítimas de atos de violência. Também indica que uma sociedade que a pratica em larga escala e por um longo período de tempo está a caminho do totalitarismo.

Segurança

Meu tema de estudo seguinte foi o da segurança, por ter observado que sua manutenção se mostrava como um dos principais motivadores da ação coletiva, e importante tópico no discurso internacional e social. Também me ocorreu que a noção de segurança seja mal interpretada neste discurso: ela é apresentada como um conceito objetivo, bem definido e mensurável, que pode ser avaliado pelo número de soldados, quantidade e qualidade de armas que se possua ou territórios conquistados, assim como nas capacidades e intenções do rival. Em contraste, em minha opinião, um senso de segurança ou insegurança é um conceito psicológico social necessariamente relacionado às necessidades humanas e baseado em processos cognitivos através dos quais membros de uma sociedade avaliam sua situação (Bar-Tal, 1991). Segurança ou insegurança devem, portanto, ser compreendidas em termos de crenças e sentimentos e, como resultado, marcadas por diferenças individuais, sociais e culturais. Especificamente, a segurança, ou melhor, a insegurança, é definida como uma avaliação de um perigo percebido em um ambiente no qual o indivíduo percebe uma ameaça (Jacobson, 1991). Em essência, são duas as crenças a respeito da insegurança. Uma refere-se à avaliação de (um) evento(s), condição(s) ou situação(s) como indicador de ameaça ou perigo (avaliação primária) e a outra, refere-se à avaliação das defesas disponíveis, e à capacidade de se lidar com a situação, ameaça ou perigo percebido (avaliação secundária). Consequentemente, indivíduos se veem em segurança quando não percebem ameaças ou perigos, ou mesmo quando os percebem, mas acreditam ser capazes de superá-los. Por outro lado, indivíduos se creem inseguros quando detectam perigos ou ameaças com os quais têm dificuldade em lidar (Smith & Lazarus, 1993). Na realidade, as crenças a respeito de segurança ou insegurança não são dicotômicas, mas variam no intervalo em que um alto nível de insegurança e um alto nível de segurança são os polos extremos. Em nível individual, membros de um mesmo grupo, como por exemplo uma nação, diferem em relação às crenças sobre segurança. Assim, distintos membros desta nação inseridos em uma mesma situação percebem variados níveis de segurança ou insegurança, e ainda estes mesmos membros podem se sentir de maneira diversa em uma situação semelhante, e em distintos momentos do tempo. As diferenças individuais descritas ao experimentar segurança ou insegurança se dão pois, indivíduos diferem em suas experiências, capacidade de percepção, seletividade perceptiva, processamento de informações, sua motivação e conhecimento - que influenciam a inter-relação das informações percebidas e sua capacidade de lidar com elas.

Este conceito implica no fato de um sentimento de segurança ou insegurança ser subjetivo, baseado em uma visão da realidade e das informações recebidas a seu respeito, do conhecimento armazenado e das experiências pessoais. Ele é aprendido e generalizado com base na memória coletiva e na ideologia que o sustenta. As maneiras e condições para se alcançar um estado de segurança, uma necessidade pessoal e coletiva muito importante, geralmente são baseadas em informações errôneas fornecidas por líderes que se esforçam em comunicar e propagar uma ideologia específica e/ou como tentativa de manter seu papel como líder de um Estado, ou de ser eleito para este cargo. A preocupação com questões de segurança em Israel vem de longa data, e é central desde o estabelecimento do Estado em 1948 (Bar-Tal & Jacobson, 1998: Bar-Tal, Magal, & Halperin, 2009). Portanto, não é de se surpreender que as preocupações com a insegurança tenham sido a maior influência em muitas das decisões nas várias esferas da vida coletiva no Estado. O desafio em se alcançar a segurança tornou-se o fator mais crítico que molda a vida pessoal e social em Israel, e tem exercido efeito determinante na possível resolução do conflito árabe-israelense no Oriente Médio. Além disto, as preocupações com insegurança tocam e continuamente afetam a vida pessoal dos cidadãos, e servem como a consideração mais importante em seu comportamento de voto e avaliação do escalão político. Ao longo dos anos, a segurança tem sido usada continuamente como justificativa e explicação para muitas das decisões governamentais, mesmo sem implicação direta; tornou-se uma justificativa para se iniciar ações e responder a reações nos domínios militar, político, social e até educacional e cultural, e uma desculpa para práticas antidemocráticas, imorais ou mesmo ilegais realizadas por israelenses, tendo sido usado para mobilizar recursos humanos e materiais.

Crenças grupais

No final dos anos 1980, também direcionei meus esforços intelectuais para investigar um conceito mais holístico, o das crenças compartilhadas por grupos, que resultou na escrita do livro Group Beliefs (Bar-Tal, 1990). As crenças grupais foram definidas como "convicções de que os membros de um grupo que a. estão cientes de que as compartilham e b. consideram que definem seu pertencimento ao grupo" (p. 36). Estas crenças servem como uma razão de ser para um coletivo de indivíduos que se auto rotulam membros do grupo e se percebem como um conjunto. Postulei que somente quando indivíduos estão cientes de que são membros de um grupo, é que sua existência pode ser determinada. Eles então formam as crenças-chave que definem a essência e singularidade deste coletivo. Mais adiante, o livro descreve o conteúdo deste conceito básico, as características das crenças de grupo, sua formação e manutenção. Além disto, usei o conceito para analisar vários processos, tais como o surgimento de grupos, a fusão de dois ou mais grupos, os subgrupos, as cismas grupais e sua desintegração.

 

FASE 4: TRABALHO CONCEITUAL SOBRE CONFLITOS E CRENÇAS COMPARTILHADAS

Após o desenvolvimento inicial de alguns conceitos críticos, tornou-se óbvio para mim que me concentro em elementos particulares de algo que é maior em termos de gestalt. Foi no meio da noite que acordei e tive a ideia: meu trabalho inicial me direcionou para o conceito de ethos do conflito como uma imagem holística. Levantei-me imediatamente e comecei a escrever até a manhã, aquilo que se tornou o rascunho inicial do conceito de ethos do conflito. Mais tarde, permitiu-me expandir a teoria em várias direções até trazê-la ao status atual.

ETHOS DO CONFLITO

O ethos do conflito é conceituado como um conjunto de crenças sociais compartilhadas, que propiciam uma orientação dominante particular a uma sociedade num dado momento, e em seu futuro no contexto de um conflito intratável (Bar-Tal, 1998, 2000b, 2006, 2013). É composto por oito temas principais sobre questões relacionadas ao conflito, ao grupo e a seu adversário: (a) um tema a respeito do rigor dos próprios objetivos, que descreve os objetivos contestados, indica sua importância e fornece suas explicações e racionalidades; (b) um tema sobre segurança, que enfatiza a importância da segurança pessoal e da sobrevivência nacional, descrevendo as condições para sua realização; (c) um tema sobre a autoimagem coletiva positiva, que diz respeito à tendência etnocêntrica de atribuir traços, valores e comportamentos positivos à própria sociedade; (d) um tema sobre vitimização, que diz respeito à autoapresentação do grupo como vítima do conflito; (e) um tema sobre deslegitimação do oponente, que trata das crenças que negam a humanidade do adversário; (f) um tema sobre patriotismo, que gera apego ao país e à sociedade, propagando lealdade, amor, cuidado e sacrifício; (g) um tema sobre unidade, que se refere à importância de se ignorar conflitos internos e desacordos durante conflitos intratáveis para unir forças da sociedade diante de uma ameaça externa; e finalmente, (h) um tema sobre paz se refere a ela como o desejo definitivo da sociedade. Juntos, os temas fornecem uma narrativa holística de sustentação do conflito, que também aparece em sua memória coletiva (Bar-Tal, 2003; Bar-Tal & Salomon, 2006; Oren, no prelo) . Somente em 2012 foi desenvolvido e publicado um instrumento para medir o ethos do conflito (Bar-Tal, Sharvit, Halperin, & Zafran, 2012), possibilitando a realização de estudos quantitativos.

TEORIA DO CONFLITO INTRATÁVEL

Este foi o início da Teoria do Conflito de Amplo Alcance, desenvolvida a partir desta base, extensão após extensão, até que chegasse ao rascunho final em um livro de 2013 (Bar-Tal, 2013). A teoria final começou com uma descrição das características do contexto de conflito intratável, que necessariamente levam a experiências negativas de perda, estresse, insegurança, dificuldade, incerteza, miséria e sofrimento. Estas experiências colocam desafios para a sociedade envolvida em conflitos intratáveis e seus líderes: lidar com o estresse, satisfazer necessidades individuais e coletivas e se opor à sociedade rival. Uma das maneiras necessárias para enfrentar estes desafios é construir um repertório psicológico funcional de crenças, atitudes, valores e emoções. Este repertório é sistematizado e estruturado na forma de um ethos de conflito e memória coletiva com os oito temas apresentados acima, bem como orientações emocionais coletivas. Com o tempo, comecei a me referir ao ethos do conflito e da memória coletiva como narrativas de sustentação do conflito com os oito temas mencionados acima (veja a Figura 1). No trabalho cooperativo, elaboramos como os conflitos são construídos e mantidos por um regime interessado em sua perpetuação (Bar-Tal, Oren, & Nets-Zehngut, 2014).

CULTURA DO CONFLITO

As narrativas de sustentação do conflito são transmitidas aos membros de uma sociedade por meio de várias mídias, canais, produtos culturais, instituições sociais e agentes de socialização - e, afinal, institucionalizados. O resultado destes processos sociais, políticos, culturais e educacionais é a evolução e a cristalização de uma cultura de conflito e de identidade coletiva que se entrelaça no tecido da vida social em todos os níveis e em todos os domínios (Bar-Tal, 2010, 2013; Oren & Bar-Tal, 2014). A cultura do conflito é um sistema compartilhado de crenças, valores, emoções, símbolos, normas, produtos culturais, instituições e padrões de comportamentos desenvolvidos durante o conflito em níveis social e individual que refletem as condições do conflito e fornecem explicações, justificativas, e objetivos para sua manutenção. O repertório sociopsicológico da cultura do conflito serve como lente individual e coletiva para absorver, interpretar, processar e avaliar informações que funcionam como base para a tomada de decisão, formulação de políticas e execução de linhas de ação. Mas deve-se notar que esse repertório é por natureza seletivo, tendencioso, distorcido, simplista, unilateral e moralista. Assim, a teoria apresenta um tipo de ciclo vicioso de violência, pois o repertório sociopsicológico formado leva a ações violentas contra o rival e, por sua vez, estas reações servem como validação e até mesmo reforço do repertório psicológico mantido (ver Figura 2).

A teoria proposta oferece uma narrativa holística e abrangente, cujas partes são interconectadas em um relacionamento causal, e pode explicar e prever o desenvolvimento e a escalada de conflitos intratáveis em diferentes lugares do mundo. Ele se concentra nos aspectos sociopsicológicos do conflito, mas adota uma abordagem multidisciplinar que se baseia nas Ciências Políticas, Sociologia, Educação, Comunicação e Estudos Culturais. Esta foi uma jornada de pensamento indutivo, de colocar as peças do quebra-cabeça no lugar certo, passo a passo, até que ele fosse finalmente montado. Olhando para trás, foi um trabalho tremendamente agradável e desafiador, embora eu perceba que outras disciplinas possam contribuir com perspectivas adicionais para a compreensão de conflitos violentos e prolongados.

Durante o mesmo período, escrevi meu livro Shared Beliefs in a Society (Bar-Tal, 2000b), na tentativa de ampliar a imagem da Psicologia Social, aprofundando a compreensão do significado de compartilhamento de crenças pelos membros da sociedade. Estas crenças compartilhadas permitem a existência de uma visão compartilhada e de preocupações comuns à sociedade, facilitam a comunicação entre seus membros e orientam comportamentos sociais. Seu conteúdo, que aparece em diversos produtos culturais, debates públicos, discursos de líderes, informações da mídia e material educacional, reflete as preocupações dos membros do grupo com relação à estrutura social, representando o aspecto social de sua realidade. São as lentes através das quais os membros olham para sua própria sociedade. Estas crenças contribuem para o senso de singularidade dos membros de uma sociedade como distintos dos membros de outras sociedades, enquanto permitem uma conexão psicológica entre o indivíduo e sua própria sociedade. Elas trazem uma importante contribuição para a formação da identidade social dos membros da sociedade, fornecendo conhecimento com o qual estes compartilham e se relacionam.

As crenças sociais, no entanto, não são apenas manifestações individuais; elas também devem consideradas características sociais. Essa perspectiva tem sido relativamente negligenciada pela Psicologia Social, mas amplamente abordada por sociólogos, cientistas políticos e antropólogos. A visão de que as sociedades, por meio de uma interação complexa entre a experiência humana e o pensamento, formam sistemas de crenças comuns a seus membros foi expressa por muitos pensadores sociais, incluindo Karl Marx, Emile Durkheim, Karl Mannheim, Talcot Parsons e Robert Merton, para citar apenas alguns dos cientistas sociais mais importantes. Na Psicologia Social moderna, Muzaref Sheriff, Kurt Lewin, Solomon Asch e, mais recentemente, Serge Moscovici, Henri Tajfel e John Turner falaram sobre crenças, normas ou atitudes compartilhadas, mas de maneira mais limitada.

A concepção que propus analisou as crenças sociais sob uma perspectiva psicológica social, a fim de fornecer uma contribuição ímpar, complementando o trabalho de outras Ciências Sociais que estudaram sistemas de crenças em uma sociedade. A Psicologia Social tem dedicado consideráveis esforços a fim de examinar a natureza e a estrutura das crenças e de seus processos de aquisição e mudança, mas isso ocorre principalmente em nível individual. É relevante aplicar esse conhecimento à análise de crenças compartilhadas por um grupo ou membros da sociedade. Mais especificamente, a pesquisa em Psicologia Social referente às crenças e atitudes formadas por indivíduos em uma estrutura de grupo pode lançar uma luz especial sobre os sistemas sociais de crenças: suas características, funções e principalmente orientações para a ação coletiva.

UMA LUTA PELA PSICOLOGIA SOCIAL

Esta contribuição veio de minha luta para conduzir a principal corrente da Psicologia Social para um maior foco em questões sociais e nos vários métodos de pesquisa. Ainda tenho a sensação de que a Psicologia Social em geral não cumpre sua promessa conforme moldada por seus fundadores. Eles consideraram o estudo do contexto macrossocietal como parte do esforço da Psicologia Social durante a década de 1930 até o início da década de 1950. Mas, durante a década de 1960, a principal corrente da Psicologia Social, especialmente a escola americana, gravitava em direção à orientação psicológico-individualista, com grande dependência da experimentação. Com algumas variações, esta ainda é a tendência dominante. Considerando a influência de psicólogos sociais europeus como Henri Tajfel, Serge Moscovici, Hilde Himmelweit, Willem Doise e Rob Farr e seus discípulos, penso que a Psicologia Social precise se concentrar muito mais no contexto social do qual os indivíduos fazem parte. Sem este foco, ela falha como estudo do comportamento social humano, a fim de compreender suas principais facetas (Bar-Tal, 2003, 2006). Os membros de uma sociedade se preocupam com o desemprego, seguem a política do governo, se manifestam contra várias decisões do governo, ficam felizes em ser a maioria, apoiam queixas de minorias ou as disseminam, lutam contra regimes autoritários, mas também seguem líderes populistas e assim por diante. Para a maioria dos indivíduos, os limites entre a vida como indivíduo e a vida como membro da sociedade são obscurecidos. Assim, para que a Psicologia Social seja relevante e influente, ela deve adicionar e desenvolver uma direção chamada Psicologia Societal, mais interdisciplinar e orientada por macro e multimétodos (Bar-Tal, 2000b). Esta luta foi realizada dentro da Associação Europeia de Psicologia Social durante as décadas de 1990 e 2000, com a participação ativa de Janusz Reykowski, Stephen Reicher, Janos Laszlo, Dario Paez, Willem Doise, Wolfgang Wagner, Colin Fraser, James Liu, Dario Spini, Stephen Worchel e muitos outros. Espero que ela tenha deixado sua marca no desenvolvimento da Psicologia Social e Política.

Nos anos 1990 iniciei duas novas linhas de pesquisa que se mantiveram ao longo da minha carreira. A primeira baseou-se em meu entendimento de que o repertório psicológico dos conflitos com a estereotipagem do rival e as narrativas que o sustentam (ethos do conflito e da memória coletiva) são aprendidos desde muito cedo, e posteriormente mantidos pelo sistema educacional, pelas lideranças e meios de comunicação de massa (ver, Bar-Tal, 1996, 1997a, sobre estereótipos dos árabes). Neste sentido, numerosos estudos foram conduzidos, todos publicados subsequentemente em um livro em coautoria com Yona Teichman. O livro analisou extensivamente pesquisas a respeito de representações de árabes na sociedade judaica israelense: como eles são vistos por crianças, adolescentes e adultos e sua apresentação em livros escolares, meios de comunicação de massa e produtos culturais (Bar-Tal & Teichman, 2005).

Com base em nossa pesquisa, Yona e eu (Teichman & Bar-Tal, 2008) desenvolvemos a Teoria Integracional de Desenvolvimento Contextual (TIDC)1. Esta introduziu o conceito de um repertório psicológico intergrupo compartilhado (RPIC)2, que diz respeito a crenças, atitudes e padrões de comportamento em relação a outro grupo a que os membros pertençam. A TIDC propõe que os RPICs sejam mediados pela influência simultânea de múltiplos fatores em um determinado contexto social. A TIDC reconhece o papel do desenvolvimento cognitivo e da motivação para o autoaprimoramento por desempenhar importante papel no desenvolvimento de RPICs. No entanto, em vez de focar em um fator específico, a TIDC inclui ambos, e rastreia sua influência dentro de uma perspectiva de desenvolvimento. Como a motivação para o autoaprimoramento não foi incorporada a uma estrutura de desenvolvimento, propusemos observá-la na teoria relativa ao desenvolvimento da identidade.

Assim, sugerimos que todos os fatores envolvidos no desenvolvimento de RPICs sejam ativos durante todo o período de desenvolvimento. Em estágios diferentes, cada fator tem potencial para adquirir relevância e influência, mas condições contextuais ou experiências anteriores ditarão a importância de cada fator. Assim, na infância, o principal fator é o afeto, em idade escolar, o desenvolvimento cognitivo, e anteriormente e no início da adolescência, o desenvolvimento da identidade. A proposição de que, a qualquer momento, os RPICs sejam mediados por múltiplos fatores expande a perspectiva teórica para um amplo período de desenvolvimento. Finalmente, postulamos que o desenvolvimento de um RPIC é afetado pelo contexto em que uma sociedade vive. Conflitos e guerras intratáveis são exemplos óbvios de contextos que determinam o conteúdo, a valência e a intensidade do RPIC. Institucionaliza as normas que orientam as intenções comportamentais e os comportamentos reais em relação ao inimigo, o status dos grupos envolvidos, o tipo de limites entre eles e, como resultado, o nível e o tipo de contato entre ambos (ver também Bar-Tal & Avrahamzon, 2017).

SOCIALIZAÇÃO POLÍTICA NO CONTEXTO DE CONFLITOS INTRATÁVEIS

Anos mais tarde, com a colaboração de meus ex-alunos, ampliei a pesquisa sobre o RPIC para o estudo do desenvolvimento de narrativas de sustentação de conflitos. Sugerimos quatro premissas: primeiro, em pesquisas de campo com base nos estudos acumulados, postulamos que, em condições de conflito intratável, a socialização política começa em uma idade muito tenra devido a experiências intensas e exposição contínua à informação sobre o conflito. A segunda premissa diz respeito aos conteúdos (isto é, as crenças e narrativas da sociedade) propagados por agentes da socialização política que participam da sociabilização de crianças pequenas. Argumentamos que, em casos de conflitos intratáveis, estes agentes geralmente propagam narrativas do conflito de apoio ao ethos do conflito e da memória coletiva. Terceiro, sugerimos que as crianças pequenas, com base em suas experiências e a exposição à violência e ao aprendizado usualmente constroem conjuntos de crenças sistemáticos e coerentes, atitudes e emoções de sustentação do conflito. Em nossa premissa final, propusemos que o conteúdo absorvido por crianças teria efeitos duradouros na solidificação de seu repertório sociopsicológico posterior. As quatro premissas constituem uma estrutura holística que aponta para as graves consequências do processo de socialização política em tenra idade nas sociedades que têm uma cultura dominante de conflito (Bar-Tal, Diamond, & Nasie, 2017).

CONSTRUÇÃO DA PAZ E RECONCILIAÇÃO

A segunda linha de trabalho complementou o núcleo de minha pesquisa a respeito do surgimento e da escalada de conflitos intratáveis, ao se concentrar na construção da paz. Em minha opinião, era necessário ir além do desenvolvimento de conflitos para conceituar o processo de construção da paz e, principalmente, o processo de reconciliação (Bar-Tal, 2000a, 2009). A construção de relações pacíficas estáveis e duradouras entre duas partes envolvidas em um conflito prolongado violento é provavelmente um dos maiores desafios da raça humana, devido à dificuldade em ser alcançada. Ela é definida por esforços contínuos de membros da sociedade, suas instituições, agentes, canais de comunicação e da comunidade internacional a fim de estabelecer relações pacíficas duradouras com o antigo rival no âmbito de uma cultura de paz. Consiste em grandes mudanças societais que frequentemente também se referem a uma reestruturação da sociedade, mas antes de tudo, dizem respeito a grandes mudanças sociopsicológicas e culturais. A paz estável e duradoura baseia-se em relações políticas, econômicas e culturais totalmente não-violentas, normalizadas e cooperativas, onde as sociedades em conflito invistam interesse e metas de desenvolvimento de novas relações pacíficas e coexistência segura. Isto somente pode ser bem-sucedido quando construído por ambas as sociedades dentro da estrutura de cultura de paz. A reconciliação é um processo psicológico social, condição necessária para a construção de uma paz estável e duradoura. Envolve mudanças de motivações, objetivos, crenças, atitudes e emoções pela maioria dos membros da sociedade (Bar-Tal, 2009, 2010, 2013; Bar-Tal & Bennink, 2004).

EDUCAÇÃO PARA A PAZ

Outra direção de estudo que avancei na construção da paz foi a educação para a paz, tão necessária em sociedades envolvidas em conflitos intratáveis (Bar-Tal, 2002). A educação para a paz visa construir a visão de mundo de estudantes (ou seja, seus valores, crenças, atitudes, emoções, motivações, habilidades e padrões de comportamento) de uma maneira que facilite o processo de construção da paz e os prepare para viver em uma era de reconciliação e paz. Em um artigo conceitual (Bar-Tal, Rosen, & Nets, 2010), propusemos diferenciar entre educação para a paz indireta e direta como formas de mudar os pontos de vista da geração jovem com base nas condições do conflito.

 

FASE 5: FUNDANDO A COMUNIDADE DE APRENDIZADO

No final do segundo milênio, percebi que faltava um elemento importante em minha carreira acadêmica: a formação de estudantes de doutorado. Esta percepção me levou a uma ação imediata.

FORMANDO UMA COMUNIDADE DE APRENDIZADO

No final dos anos 1990, junto a meu amigo e colega Amiram Raviv, decidi formar um grupo de estudantes de doutorado que estivessem interessados em focar em conflitos interétnicos para seu estudo de doutorado. Todo o processo se desenvolveu muito rápido e, em pouco tempo, tínhamos um grupo de quatro estudantes; alguns anos mais tarde, nossos números haviam crescido para cerca de 10 a 15 alunos. Estes números permaneceram estáveis até o término do projeto com minha aposentadoria. Os estudantes vinham de diferentes universidades e departamentos de Israel e do exterior. Havia também alguns alunos de mestrado, pós-doutorado e convidados por um ano ou mais. Todos estavam unidos pelo interesse em estudar conflitos violentos e duradouros e a construção da paz.

Esta parte de minha carreira exigia a conceituação de como treinar os alunos: chamamos o grupo de "comunidade de aprendizado" e definimos como objetivo socializar estudantes de doutorado tanto no planejamento de sua carreira acadêmica como profissional. Tínhamos uma reunião de grupo de três horas de duração a cada duas semanas e depois íamos jantar juntos. As reuniões consistiam na apresentação das pesquisas dos alunos em diferentes fases de realização, palestras sobre diferentes disciplinas com especialistas convidados, e discussões gerais sobre diversas questões conceituais relacionadas a conflitos interétnicos. Além disto, os alunos recebiam várias tarefas de pesquisa a respeito de conflitos intratáveis no mundo e, posteriormente apresentavam seus materiais ao grupo.

Os estudantes também eram altamente incentivados a cooperar em diferentes pesquisas e estudos empíricos, além de participar de grupos que desenvolvessem ideias diferentes, e realizaram estudos empíricos liderados por Amiram e eu. Finalmente, como parte do processo de socialização, discutíamos frequentemente as normas e requisitos do papel acadêmico. Como exemplo, incentivávamos os alunos a enviar trabalhos para apresentações e organizar simpósios em diferentes conferências profissionais (principalmente EASP e ISPP). Preparávamos e ensaíavamos as apresentações e depois viajávamos com eles para as conferências.

No plano social, tínhamos uma política de portas abertas e formamos laços, organizando de tempos em tempos eventos sociais com os alunos e suas famílias. O grupo acabou sendo não apenas instrumental, mas também de natureza socioemocional e formou relações de apoio íntimas. Eu defini meu papel como mentor e uma espécie de pai espiritual e ainda mantenho um relacionamento próximo com muitos dos membros do grupo, que também se tornaram meus amigos. Vinte estudantes completaram sua pesquisa de doutorado e escreveram suas dissertações durante sua participação no grupo, que durava em média cerca de 4 a 5 anos (e alguns continuaram a participar após concluir seus estudos de doutorado) com mais 10 dissertações de mestrado3. Este foi outro aspecto mais satisfatório de minha carreira acadêmica: o prazer de socializar, orientar, treinar e supervisionar o trabalho de pesquisa dos alunos. Mas o que mais me agrada foi o fato de ter tido a oportunidade de desenvolver várias ideias e conduzir pesquisas empíricas sobre elas. Este foi um dos períodos mais frutíferos de minha carreira. Percebo que absolutamente não teria sido capaz de alcançar tanto quanto consegui sem o envolvimento, as capacidades, a motivação, o entusiasmo e a dedicação dos membros da comunidade de aprendizagem. Em grupos de dois a sete alunos, trabalhávamos no desenvolvimento de um conceito ou teoria e, em seguida, planejávamos e realizávamos estudos empíricos. Descreverei exemplos de várias ideias que desenvolvemos4.

BARREIRAS CONTRA A RESOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS E MANEIRAS DE SUPERÁ-LAS

Este tema me intrigou durante os anos de pesquisa, por reconhecer sua extrema importância, mas ao mesmo tempo perceber a fragmentação das concepções existentes, que não compreendiam o fenômeno completamente. Assim, era natural que, após terminar de construir a Teoria do Conflito, eu começasse a cogitar várias ideias a respeito de suas barreiras. A conceituação final foi publicada com Eran Halperin, meu aluno de doutorado (Bar-Tal & Halperin, 2011). Posteriormente, recebemos uma bolsa de estudos da Fundação para a Ciência de Israel que nos permitiu realizar pesquisas empíricas sobre este tema com os estudantes de doutorado.

O conceito de barreiras, baseado na Teoria dos Conflitos Intratáveis, sugere que o repertório sociopsicológico evolua durante o conflito (ethos do conflito, memória coletiva e orientação emocional coletiva), e que seus elementos sirvam como poderosas barreiras para sua solução pacífica. Estas barreiras estão fundamentadas na cultura do conflito, impedindo o processamento de informações em um nível individual que possa se abrir para novas perspectivas. Elas podem ser definidas como "uma operação integrada de processos cognitivos, emocionais e motivacionais, combinada com um repertório preexistente de crenças rígidas que sustentam conflitos, visões de mundo e emoções, resultando em um processamento de informações seletivo, tendencioso e distorcido" (Bar-Tal & Halperin, 2011, p. 220).

Além disto, em um nível coletivo, as sociedades envolvidas em conflitos intratáveis muitas vezes se esforçam ativamente para manter as narrativas que os sustentam e impedir a penetração de crenças alternativas que possam minar este domínio. Elas usam vários mecanismos sociais para bloquear a aparência e a disseminação de informações que forneçam uma visão alternativa ao conflito, seja sobre o rival, o próprio grupo e/ou seus objetivos: informações alternativas que humanizem o rival e lancem uma nova luz sobre o conflito, que sugiram a possibilidade do comprometimento com metas, que exista um parceiro do outro lado com o qual seja possível alcançar uma solução pacífica, que a paz seja recompensadora, enquanto o conflito é caro, que a perpetuação do conflito seja prejudicial para o meio ambiente, à sociedade, e que possa até fornecer evidências de que o grupo também seja responsável pela perpetuação do conflito e que realize atos imorais (Bar-Tal et al., 2014). Dentro desta linha de pesquisa também propusemos uma concepção de como superar as barreiras e realizamos estudos empíricos para validar várias hipóteses (Bar-Tal & Halperin, 2009).

OCUPAÇÃO

A contínua ocupação israelense da Cisjordânia e Faixa de Gaza tem sido minha preocupação há muito tempo. Ocupações indesejadas são brutais por natureza, discriminatórias e exploradoras, levando necessariamente à resistência da sociedade ocupada. Além disto, acredito profundamente que a sociedade ocupante não possa operar separadamente da sociedade ocupada. Não se pode isolar a ocupação de seus efeitos. Esta conexão se torna especialmente pronunciada quando o ocupante não apenas penetra nos territórios ocupados, mas também se instala nestes espaços, que são percebidos como uma continuação do território de origem, como é o caso de Israel. Estes processos imprimem um efeito duradouro na sociedade ocupante, mesmo que esta não tenha conhecimento a seu respeito, a ignore e/ou tente negá-la e escondê-la. Além disto, a sociedade ocupante paga enormes custos pela ocupação contínua que, é claro, não correspondem àqueles pagos pela sociedade ocupada, mas ainda são significativos ao afetar todos os aspectos da vida.

No grupo de pesquisa que formamos, publicamos várias análises das implicações sociopsicológicas da ocupação na sociedade ocupante (Halperin, Bar-Tal, Sharvit, Rosler, & Raviv, 2010). Estas delinearam o conceito de ocupação sob uma perspectiva sociopsicológica, que complementa o aspecto jurídico-formal; propuseram uma estrutura conceitual de análise da psicologia da sociedade ocupante; descreveram os desafios psicológicos que a ocupação pode representar para os membros da sociedade ocupante; introduziram mecanismos psicológicos que os membros de uma sociedade ocupante podem usar para evitar enfrentar estes desafios; e ofereceram uma série de ideias sobre a relação entre estes mecanismos e o processo para acabar com a ocupação. Além disto, examinamos as implicações morais da ocupação nas percepções e no sistema de crenças da sociedade ocupante, bem como sua estatura moral em um período de mudança social global que afeta as concepções e comportamentos morais individuais e sociais (Rosler, Bar- Tal, Sharvit, Halperin, & Raviv, 2009). Anos depois, voltei à questão da ocupação e, juntamente com Izhak Schnel, editei um volume que analisou o impacto da ocupação em várias áreas da sociedade israelense (Bar-Tal & Schnell, 2013).

EMOÇÕES COMPARTILHADAS

Na análise do repertório sociopsicológico coletivo, emoções desempenham um papel importante. As condições prolongadas de um conflito intratável evocam fortes emoções compartilhadas, entre elas o medo, o ódio e a raiva, muitas vezes acontecem automaticamente. Emoções compartilhadas são o estimulador, intérprete, motivador, energizador, diretor e controlador de vários processos sociopsicológicos relacionados à dinâmica de um conflito intratável. Portanto, não é de se surpreender que muitos estudantes de conflitos intratáveis tenham observado que não raramente, emoções negativas com sua intensa energia motivadora se tornam a locomotiva que os leva para seus espaços escuros. Elas não apenas alimentam a perpetuação do conflito, como servem de barreira potente que impede a construção da paz. Elas também têm interações mútuas com o ethos do conflito e a memória coletiva.

A primeira emoção que analisei foi o medo, por sua grande influência (junto à insegurança) nas reações de judeus israelenses (Bar-Tal, 2001). O medo como emoção aversiva primária surge em situações de ameaça e perigo para o organismo (a pessoa) e/ou seu ambiente (a sociedade) e permite uma resposta adaptativa. É frequentemente ativado de maneira automática e espontânea e, uma vez evocado, limita a ativação de outros mecanismos de regulação, impedindo a consideração de várias alternativas devido a seus padrões egocêntricos e desadaptativos de reações a situações que exijam soluções criativas e inovadoras. Em situações estressantes de conflito intratável de longa duração, os membros da sociedade tendem a processar informações seletivamente, concentrando-se nos atos perversos e mal-intencionados do adversário, ameaçadores e cheios de perigos. Devido à natureza divergente entre o medo e a esperança, o primeiro tende a superá-la e exerce uma grande influência sobre os membros da sociedade envolvidos em conflitos intratáveis (Jarymowicz & Bar-Tal, 2006).

Posteriormente, pensando que emoções também podem se tornar caracterizações sociais e aspectos da cultura, propus um conceito denominado "orientação emocional coletiva" que se reflete em níveis individual e coletivo no repertório psicológico, bem como em símbolos sociais tangíveis e intangíveis, como produtos ou cerimônias. A orientação emocional coletiva evolui como resultado da vida sob condições duradouras particulares (ver também Bar-Tal, 2013; Bar-Tal, Halperin, & Rivera, 2007). Estas condições levam a experiências prolongadas que muitas vezes provocam o domínio de uma emoção ou mesmo algumas emoções, tornando-se parte do repertório psicológico e cultural-social da sociedade.

AUTOCENSURA

O contexto de conflito intratável reforça a obediência, a conformidade e a autocensura. Enquanto os dois primeiros fenômenos sociais têm recebido muita atenção, o último tem sido negligenciado e, portanto, observando-o na sociedade israelense, decidi estudá-lo. A autocensura da informação, definida como um ato de retenção intencional e voluntária de informações de terceiros na ausência de obstáculos formais, serve como uma barreira para o bom funcionamento de uma sociedade democrática, pois impede o livre acesso à informação, liberdade de expressão e ao fluxo de informações. É de fundamental importância nas sociedades, pois bloqueia informações que podem lançar uma nova luz sobre várias questões da sociedade (Bar-Tal, 2017).

Consequentemente, a autocensura em tempos de conflito pode ser vista como uma barreira sociopsicológica à pacificação. Ao bloquear informações alternativas e permitir a manutenção de narrativas que suportam conflitos, contribui diretamente para a perpetuação de conflitos intratáveis. Nestes casos, os membros da sociedade, por um lado, impedem voluntaria, intencional e conscientemente a difusão de novas informações que possam fornecer uma visão alternativa do conflito, do adversário e dos objetivos do grupo, mesmo que acreditem que estas sejam válidas. Por outro lado, apoiam esta prática e sancionam aqueles que violam essa norma e, desta maneira, ajudam a manter a autocensura.

Uma série de estudos demonstrou seu escopo e as condições para seu uso, bem como sua base motivacional, como, por exemplo, Hameiri, Sharvit, Bar-Tal, Shahar e Halperin (2017) e Sharvit et al. (no prelo)5. Um livro ilustrou seu uso em diferentes instituições da sociedade. Este livro foi editado, e quase todos os capítulos (exceto um) foram escritos por membros da comunidade de aprendizagem (Bar-Tal, Nets-Zehngut, & Sharvit, 2017).

ROTINIZAÇÃO

Uma ideia adicional desenvolvida é a da rotinização de conflitos intratáveis (Bar-Tal, Abutbul, & Raviv, 2014). Uma das reflexões mais claras da convivência com um conflito prolongado e intratável é a rotinização de seus símbolos na vida cotidiana. Os membros da sociedade os encontram constantemente, e estes se tornam parte integrante de sua experiência diária. Estes são conceitos mundanos e discretos que, no decorrer do tempo, não são mais reconhecidos como sinais incomuns do conflito por terem se tornado parte integral da vida, que não podem ser separados das rotinas corriqueiras e da experiência diária. Através destas crenças, premissas, hábitos, representações e práticas rotinizadas, a cultura do conflito mantém uma aderência ainda maior aos indivíduos. Isto acontece, pois esta rotina diária dá forma à mentalidade, o estado emocional, tendências de comportamento, prevenção, e até mesmo a identidade dos membros da sociedade.

Existem pelo menos quatro maneiras pelas quais os conflitos se infiltram e se tornam rotineiros na vida cotidiana e, assim, moldam as experiências e identidade dos membros da sociedade: o fluxo de informações a seu respeito, a exposição dos membros da sociedade a imagens e símbolos do conflito em espaços públicos e privados, as práticas cotidianas e o uso público da linguagem militar e da linguagem de conflito no discurso cotidiano. A rotinização de informações da mídia, as imagens, as práticas cotidianas, e a linguagem normalizam os aspectos incomuns e anômalos da vida sob conflitos intratáveis. Ela também prepara os membros da sociedade para lidar com a vida em conflito, caracterizada por ameaças e perigos. Através de rituais repetidos, a rotinização aumenta a resiliência psicológica que torna possível superar o estresse. Ela cria uma mentalidade específica, sintonizada aos sinais relacionados a conflitos e, assim, torna os indivíduos constantemente alertas a perigos e ameaças. Finalmente, a rotinização reforça a solidariedade, a coesão e o senso de um destino compartilhado.

Com base nestas ideias, cheguei recentemente à conclusão de que membros de sociedades envolvidas em conflitos intratáveis se tornam tão rotineiramente acostumados à vida em conflito, ao conflito funcional que sustenta narrativas, que preferem viver neste contexto ao invés de mudar para uma incerta e arriscada situação de promoção da paz. Portanto, manter o conflito e suas narrativas se torna uma necessidade autônoma à qual os membros da sociedade aderem, por terem aprendido como satisfazer suas necessidades primárias (por exemplo, a necessidade de significância, previsibilidade, segurança, autoimagem positiva), estimulada durante o conflito e pela incerteza a respeito de um contexto desconhecido.

PENSAMENTO CRÍTICO E CONFIANÇA

As condições essenciais para o engajamento na construção da paz são o pensamento crítico e a confiança. Tentando abranger uma variedade de conceitos, define-se o pensamento crítico como o exame racional e reflexivo, a análise, a explicação, o raciocínio e a avaliação de qualquer conhecimento, ideia, opinião, argumento, situação ou experiência - como um processo de pensamento subjacente a qualquer postura ou impressão, julgamento, inferência ou decisão. De fato, as habilidades de pensamento crítico tornaram-se uma competência essencial em sociedades democráticas modernas, pois também contribuem para o enriquecimento do discurso público pluralista e aumentam seu escopo. No entanto, em sociedades envolvidas em conflitos intratáveis, a abordagem em preto e branco de narrativas coletivas é extremamente saliente. Além disto, a fim de lidar com a situação de conflito e seus imensos desafios, sociedades em conflito necessitam de uma ampla adesão social a estas narrativas, e uma forte crença em sua validade se torna de suma importância. Assim, quando narrativas coletivas de suporte ao conflito dominam as estruturas de crença da sociedade e a ordem social, o sistema formal de educação muitas vezes inibe o exame crítico do conhecimento e da ordem político-social existentes, obstrui o fluxo livre de informações implementando estratégias educativas conservadoras para garantir que narrativas de sustentação do conflito sejam rigidamente admitidas ao longo do processo educacional (Vered, Bar-Tal, & Fuxman, 2018)6. Enquanto o ambiente e os currículos educacionais forem caracterizados por uma insularidade que impeça questionar a ordem política e social, e as políticas educacionais preferirem fortalecer os valores e a unidade nacionais, ao invés de nutrir o pensamento independente e a mente aberta, os processos de paz e reconciliação entre as partes em conflito provavelmente encontrarão enormes dificuldades.

Da mesma maneira, confiança/desconfiança, definidas como expectativas duradouras sobre comportamentos futuros do outro (uma pessoa ou grupo) que afetam o próprio bem-estar (do indivíduo ou de seu grupo) e permitem uma prontidão para correr riscos em relação ao outro, são fatores extremamente importantes na manutenção do conflito assim como na promoção da paz. A desconfiança é parte integrante de qualquer conflito intratável, pelo menos em sua fase inicial de escalada (Bar-Tal & Alon, 2016). Em um conflito militar violento, presumivelmente devido aos riscos serem altos, a desconfiança entre os lados atinge um nível extremo. Ela pode se desenvolver sem a erupção de violência, como consequência das relações deterioradas no início do conflito. Ela se desenvolve, pois as partes não veem a possibilidade de chegar a um acordo e embarcam no caminho do confronto. Mas o uso da violência aumenta em muito a desconfiança. De fato, a violência valida continuamente a desconfiança em relação ao rival devido ao dano intencional infligido ao grupo. Além disto, é baseado no processamento seletivo de informações, tendencioso e distorcido, que confirma crenças e rejeita alternativas.

Nenhuma negociação séria pode começar sem o mínimo de confiança. Grupos geralmente não iniciam um processo ativo de construção de paz se não acreditarem que o rival é confiável. Assume-se, então, que um acordo assinado não tem nenhum valor, pois pode ser quebrado a qualquer momento. A pacificação envolve necessariamente uma legitimação e confiança mínimas no rival, que permitam estabelecer a ideia de que exista um parceiro do outro lado. Também requer a construção de crenças de que o acordo possa ser implementado, desenvolvendo metas para novas relações pacíficas com o rival e, eventualmente, reconhecendo a necessidade de reconciliação e construção de um novo clima que promova novas ideias sobre a construção da paz.

PENSAMENTO PARADOXAL

O exemplo final de uma ideia avançada é a noção de pensamento paradoxal. Esta abordagem única da mudança de atitude foi descoberta acidentalmente, mas, uma vez revelada, em um esforço conjunto, Boaz Hameiri, Eran Halperin e eu conceituamos esta abordagem, e realizamos uma série de estudos para validá-la com uma bolsa da Fundação para a Ciência de Israel. A abordagem é baseada na técnica clássica de debate, reductio ad absurdum. Ela sugere que, comparada às abordagens persuasivas convencionais que visam induzir inconsistências, mensagens consistentes com a visão do indivíduo, mas formuladas de maneira amplificada, exagerada ou até absurda, provocam níveis mais baixos de desacordo, resistência e/ou defesa psicológica. Além disto, sugerimos que essas mensagens paradoxais ameacem a identidade do destinatário da mensagem, instigando um processo de reavaliação de crenças e atitudes que, por sua vez, podem estimular seu descongelamento, principalmente entre indivíduos extremos em seus pontos de vista. Eventualmente, o descongelamento pode levar à abertura de perspectivas alternativas que podem ser adotadas. Especificamente, a mensagem do pensamento paradoxal tem como objetivo levar indivíduos a perceber suas crenças societais ou a situação corrente como implausíveis e improváveis a então eventualmente mover-se na direção de posições mais moderadas. (Bar-Tal, Hameiri, & Halperin, 20197; Hameiri, Bar-Tal & Halperin, 2019).

 

FASE 6: APOSENTADORIA

SALVE ISRAEL - ACABE COM A OCUPAÇÃO (SISO)8.

Em 2015, me aposentei na Universidade de Tel Aviv, pois é obrigatório fazê-lo aos 68 anos de idade. Dediquei totalmente os dois primeiros anos de aposentadoria ao ativismo político, pois junho de 2017 marcaria o quinquagésimo aniversário da ocupação israelense na Cisjordânia e entendi ser inaceitável que no século XXI um Estado mantivesse uma ocupação indesejada sobre outro povo sem conceder direitos humanos e cidadania total à população ocupada9. Juntamente a outros ativistas, fundei um movimento chamado "Salve Israel - Acabe com a Ocupação", que instou judeus liberais da diáspora a participar de atividades durante o ano de 2017, em um esforço para acabar com a ocupação israelense. Depois de junho de 2017, o ativismo político continuou em um ritmo mais leve em diferentes projetos, e eu também voltei à redação acadêmica.

OS TRÊS LIVROS

Após anos de trabalho, três projetos chegaram à conclusão com a cooperação de Amiram Raviv: o primeiro, um livro em hebraico que relata um estudo implementado em 2002-2003 com entrevistas detalhadas de 5 a 7 horas de duração com 95 judeus israelenses sobre suas opiniões a respeito do conflito israelense-árabe/palestino. Foi realizado em colaboração com Rinat Abramowich, outra ex-aluna de doutorado da comunidade de aprendizagem (Bar-Tal & Raviv, no prelo10; Bar-Tal, Raviv e Abromovich, no prelo11). Este estudo é mais abrangente em seu escopo, revelando com sucesso o repertório sociopsicológico de judeus israelenses em relação a muitos aspectos do conflito (ethos do conflito, memória coletiva, educação, influência de agentes socializadores, mudança de pontos de vista políticos durante a vida, dentre outros).

Então, em coautoria com Amiram Raviv, terminei um livro escrito em hebraico para o público israelense (que, espero, seja traduzido para o inglês), analisando os processos psicológico-sociais na sociedade israelense que levaram ao seu extremismo. Uma versão acadêmica muito mais longa deste livro será publicada no futuro em hebraico. Ambos os livros mostram como desde o ano 2000 a sociedade judaica israelense tem se movido para a direita e até para a extrema direita (ou seja, visões linha-dura, nacionalistas e até racistas), e como a extrema direita nacionalista religiosa conseguiu penetrar no tecido da sociedade israelense, institucionalizando sua posição no Estado (Bar-Tal & Raviv, no prelo).

PROJETOS FUTUROS

Atualmente, três projetos de pesquisa me ocupam a mente: (a) uma linha de estudos empíricos baseados em meu trabalho conceitual que mostra possíveis mudanças de atitude no contexto desafiador do conflito intratável. Essa é uma nova abordagem baseada em esclarecer indivíduos a respeito do processo sociopsicológico da formação funcional de atitudes e, em seguida, normalizar e humanizar esse movimento; (b) escrever um livro sobre as bases psicológicas sociopolíticas da ascensão do autoritarismo. Esse livro se mostra necessário, pois as últimas décadas têm testemunhado um crescimento de regimes autoritários, nacionalistas e populistas em diferentes países, sinalizando uma mudança dramática na era atual. Esta tendência pode ser especificamente observada na Rússia, Turquia, Hungria, República Tcheca, Eslováquia, Índia, Israel e mais recentemente nas Filipinas, Brasil, Áustria e Polônia. A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos claramente criou um novo zeitgeist12 que afeta o resto do mundo. Além disto, juntamente à ascensão destes regimes, estamos testemunhando o crescimento de uma forte onda política de partidos nacionalistas de direita que têm aumentado significativamente seu poder em vários países, por exemplo, na Alemanha, Itália, Áustria e França. Estes desenvolvimentos necessitam de uma explicação, e não há dúvidas de que a Psicologia Político-Social pode oferecer sua perspectiva, além de outras análises de diferentes estruturas e disciplinas conceituais; (c) escrever um livro sobre a falta de correspondência entre a natureza humana e a democracia, e que tipo de mecanismos a democracia exige para poder sobreviver, tendo em vista a falta dessa correspondência. Estes são planos a longo prazo e muito presunçosos. Acredito que sem planos e aspirações, a vida se torna sem sentido ou propósito. Mas, de qualquer forma, estes projetos são extremamente necessários, tendo em vista a tendência mundial que presenciamos atualmente. Nós, psicólogos políticos, devemos essa contribuição à civilização que está se desviando de seu caminho humanístico, liberal-democrático e moral.

REFLEXÕES FINAIS

Atualmente, concluo 49 anos de uma carreira acadêmica iniciada em 1970, com meu doutorado na Universidade de Pittsburgh. Este é um longo período que me permitiu fazer certas observações que gostaria de compartilhar com os leitores. A primeira parte é dedicada às minhas visões em nível macro sobre conflitos violentos e prolongados que foram meu foco principal de quase 40 anos de pesquisa.

NOÇÕES SOBRE CONFLITOS INTRATÁVEIS E A CONSTRUÇÃO DA PAZ

1. Conflitos intratáveis são reais, por se concentrar em discordâncias a respeito de objetivos e interesses centrais contraditórios em diferentes domínios. Estes problemas reais devem ser abordados nos processos de resolução de conflitos. Embora as divergências possam ser potencialmente resolvidas através de diferentes meios, a realidade geralmente demonstra que poderosos fatores psicológico-culturais-sociais servem como barreiras e impedem sua resolução.

2. Alguns conflitos intratáveis servem como importantes rotas para a correção de práticas condenáveis, tais como opressão, ocupação, discriminação ou exploração, que fazem parte do mundo humano - a intolerável imoralidade do mundo. Em muitos destes casos, são necessários conflitos para que se alterem estas condições, pois nações não concedem territórios, poder, riqueza e recursos voluntariamente, mesmo que seja claro que o território que ocupam, a vantagem que têm, o domínio que possuem, todas suas posses, tenham sido adquiridas de maneira a contradizer os padrões morais contemporâneos.

3. Nações e Estados do mundo têm status diferenciado e alguns são consideradas superpotências, refletidas no poderio militar, domínio político, controle de recursos e força econômica. Este poder diferencial também tem um tremendo efeito sobre a erupção de conflitos intergrupos e sua preservação. Nações com poder tendem a ignorar valores morais, leis internacionais e até pressões externas.

4. Sociedades envolvidas em conflitos intratáveis desenvolvem uma cultura de conflito apoiada em narrativas e orientações emocionais coletivas. As narrativas são, por natureza, unilaterais e em preto-branco e, portanto, seletivas, tendenciosas e distorcidas. Estas narrativas são transmitidas aos membros da sociedade por muitos anos por meio de instituições, sistemas educacionais, lideranças, organizações, canais de comunicação e produtos culturais. Uma vez aprendidas e absorvidas, servem como um prisma para os membros da sociedade, incluindo as lideranças, interpretar e avaliar experiências e informações que representam bases de ação. Eventualmente, constituem barreiras poderosas à resolução pacífica de conflitos.

5. Narrativas de sustentação do conflito, bem construídas e mantidas, satisfazem as principais necessidades individuais e coletivas. Esta satisfação transforma o próprio conflito em uma necessidade, levando a sua continuação. Os membros da sociedade preferem continuar vivendo em conflito ao invés de assumir riscos e adotar a incerteza necessária para estabelecer a paz.

6. Sociedades envolvidas em conflitos têm interesse em continuar lutando pelas narrativas de sustentação do conflito com o rival e esforçam-se em mantê-las em sua própria sociedade.

7. Conflitos intratáveis, e especialmente ocupações indesejadas, necessariamente levam a tendências autoritárias e totalitárias para limitar o fluxo de informações, liberdade de expressão e livre acesso à informação, bem como monopolização do patriotismo e deslegitimação das fontes de informações alternativas a respeito de possibilidades de resolução do conflito de forma pacífica.

8. Não há conflito intratável que não envolva danos cruéis, violentos, sangrentos e graves à população civil e violação de direitos humanos em larga escala.

9. Estudos sobre deslegitimação, desindividuação, desinteresse moral, direito moral, privação de necessidades psicológicas básicas, apelo a ideologias destrutivas, passividade dos espectadores, mecanização, funcionamento de ameaças e medo, rotinização, obediência e conformismo dão um vislumbre da dinâmica de comportamentos violentos. Seres humanos adotam todos os exercícios acrobáticos psicológicos possíveis a fim de poder matar outros indivíduos em conflitos violentos.

10. A legitimidade do uso da violência, bem como a solução pacífica de conflitos intratáveis são frequentemente determinadas pelos interesses de Estados poderosos.

11. Conflitos interétnicos não terminam com a vitória militar de um lado (somente os genocídios podem acabar com eles). Eles terminam quando as soluções atendem às necessidades básicas da maioria dos adversários.

12. Um processo de paz requer a mudança das narrativas de sustentação do conflito, especialmente em relação a seus objetivos e à deslegitimação do rival.

13. Lideranças que desejem a paz podem chegar a um acordo pacífico para encerrar um conflito intratável com o apoio de parte significativa da sociedade, com pressão externa e ajuda das superpotências e da comunidade internacional.

14. Para alcançar a paz duradoura e estável, seres humanos, onde quer que vivam, e principalmente em sociedades dominadas por conflitos intratáveis, precisam lutar para estabelecer instituições e sistemas, padrões de socialização e sistemas educacionais que incentivem a abertura, a tolerância, a liberdade de expressão, o pensamento crítico e reflexivo e a responsabilidade pessoal e coletiva.

Além destas reflexões, os anos da minha carreira acadêmica levaram a algumas ideias sobre o funcionamento do sistema acadêmico e eu gostaria de compartilhá-las com os leitores.

INSIGHTS SOBRE O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA ACADÊMICO

1. Há uma necessidade de ideias holísticas em nível macro, que possam abranger explicações sobre questões políticas e sociais. Assim, além de estudos experimentais micro, esporádicos e fragmentados, precisamos de programas de pesquisa que discutam questões sociais a partir de perspectivas amplas, com uma abordagem interdisciplinar e pesquisas multimétodos. O treinamento interdisciplinar é muito difícil e desafiador devido à excessiva especialização de cada disciplina, que continua a dividir cada subcampo em regiões autônomas, não apenas devido ao conhecimento especializado, mas também por manter seus próprios mecanismos e burocracia para controle de recursos.

2. "Fazer" ciência social não deve ser completamente livre de considerar sua relevância para questões societais que assolem as sociedades e o mundo. Estudar questões societais deve ser uma parte inerente à produção científica. Atingir esse objetivo na Psicologia Social não é fácil, devido ao modo como esta tem se desenvolvido nas últimas décadas - frequentemente e significativamente fragmentado, esporádico, com foco individual e confiando principalmente na experimentação. O mundo está envolvido em problemas, muitos criados pelo homem e, portanto, exigem que a mente humana os resolva ou pelo menos tente desafiá-los. As ciências sociais têm a responsabilidade e o dever de auxiliar na pesquisa para entender as causas e encontrar maneiras de aliviar o sofrimento e a miséria de seres humanos onde quer que estejam.

3. Acredito que um dos maiores desafios para os cientistas sociais seja o treinamento de estudantes: ao invés de treinar técnicos que saibam desenvolver experimentos e analisar dados, precisamos de acadêmicos que, além destas qualidades, saibam como olhar para estas questões com a cabeça aberta para compreender a pergunta da pesquisa em sua complexidade e múltiplas perspectivas. Penso que um mentor não deva render-se apenas aos requisitos de um sistema cujo principal critério seja o número de publicações para cargos. O mainstream é conservador e guarda seus critérios e padrões, assim como todos os outros sistemas no mundo. O núcleo do treinamento deve transmitir o pensamento crítico e a mente aberta com a capacidade de ver a complexidade de questões sociais e sociais holísticas. Somente este entendimento pode levar à formulação de perguntas de pesquisa e, eventualmente, ao avanço do conhecimento científico. Estudantes de doutorado precisam de socialização para poder desempenhar seus papeis na academia e no campo. Nós, como agentes da socialização, devemos servir de modelo para os alunos em seu treinamento, moldando seus papeis futuros e construindo relacionamentos com eles. Portanto, devemos ser justos, morais e éticos, tratando-os sem exploração, mau uso e maus tratos, especialmente no desenvolvimento de sua autonomia, criatividade e originalidade, bem como no processo de publicação. Eles continuarão suas carreiras seguindo seus modelos, e até os aperfeiçoarão.

4. Precisamos ter confiança no que fazemos como cientistas sociais. Milhares de anos de ciência demonstram inequivocamente que nem sempre os pontos de vista da maioria dos colegas são corretos. Acredito que as ciências tenham um dos melhores sistemas de revisão e métodos para controlar a qualidade da pesquisa e de suas publicações posteriores. Mas também devemos lembrar que aqueles que revisam artigos são seres humanos, com todas as suas inevitáveis características. Eles também têm vieses, visões seletivas, mente fechada e muito mais - todas as características que conhecemos e investigamos na psicologia. Também somos sobrecarregados pelo pensamento do grupo, salvaguardando a tradição e também o poder. Estas disposições sempre estiveram no repertório de grupos de cientistas. Assim, fazer ciência é sempre uma luta pelo progresso e a mudança de paradigmas, sistemas e práticas. Rejeições de ideias por revisores ou colegas não necessariamente indicam que um cientista esteja errado. Rejeições exigem um reexame completo das ideias e pesquisas e, às vezes, eventualmente, adesão ao conhecimento produzido. Precisamos lembrar sempre que a aceitação de ideias ou a aceitação de publicações é um processo humano com todas as suas limitações.

5. Cientistas sociais também precisam reconhecer que podem pagar um preço, especialmente em certas sociedades, por suas questões e linhas de pesquisa que promovem o conhecimento, contrariando a narrativa hegemônica do regime. Este também é o caso em Israel. Mais de uma vez tive a honra de aparecer nas listas negras de várias organizações que monitoram a academia e fui repreendido por políticos que não gostaram dos resultados de meus estudos. Eles entendiam que eu prejudicava a posição de Israel na comunidade internacional. O medo de pagar um preço rouba a mente não apenas de seres humanos, mas também de cientistas. Isto pode afetar suas pesquisas de maneiras diferentes. Assim, cientistas precisam ser corajosos e independentes em sua produção científica.

Em suma, acho que é um privilégio social servir como pesquisador em uma instituição acadêmica, desenvolver novos conhecimentos e treinar estudantes de doutorado para os papeis de cientistas sociais e profissionais. Não é uma tarefa fácil, mas muito necessária. A pesquisa social representa um status muito distinto em uma sociedade devido à sua responsabilidade em avançar o conhecimento em benefício da humanidade, e em treinar a futura geração da elite intelectual autônoma, com a mente aberta e crítica.

É extremamente difícil avaliar o efeito de alguém no curso do desenvolvimento da Psicologia Social e Política. Sei que gostei muito da minha carreira e ainda não fechei as páginas do livro. Espero que pelo menos algumas de minhas ideias tenham inspirado outros, assim como eu fui inspirado. A frutífera inspiração mútua é uma das maneiras de promover a ciência.

 

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Recebido em: 08/12/2019
Aprovado em: 09/12/2019

 

 

1 Em inglês "integrative developmental-contextual theory" (IDCT) (N. da T.).
2 Em inglês "shared psychological inter-group repertoire" (SPIR) (N. da T.).
3 Estou contando apenas dissertações de mestrado realizadas no âmbito da comunidade de aprendizagem. Como membro do corpo docente da Escola de Educação, durante minha carreira, também supervisionei mais de 150 dissertações de mestrado e cinco teses de doutorado.
4 Também desenvolvemos as ideias de transformar a memória coletiva, a natureza da auto-vitimização coletiva, a natureza da identidade coletiva, o desenvolvimento de visões de guerra e paz, a memória do Holocausto, o contexto de transição, os principais eventos, as principais informações e o terremoto psicológico de 2000 em a sociedade judaica israelense.
5 Sharvit, K., Bar-Tal, D., Hameiri, B., Shahar, E., Zafran, A., & Raviv, A. (in press). Self-censorship orientation: Scale development, correlates and outcomes. Journal of Social and Political Psychology.
6 Vered, S., Bar-Tal, D., & Fuxman, S. (2018). Between critical thinking and allegiance. Manuscript submitted for publication.
7 Bar-Tal, D., Hameiri, B., & Halperin, E. (2019). Paradoxical thinking as a paradigm of attitude change in the context of intractable conflict. Manuscript submitted for publication.
8 Sigla em inglês para Save Israel - Stop the Occupation (N. da T.).
9 Atualmente, apenas O Marrocos no Saara Ocidental e Israel na Cisjordânia mantêm ocupações indesejadas de longa duração sem conceder direitos humanos e de cidadania à sociedade ocupada.
10 Bar-Tal, D. & Raviv, A. (in press). Conflict in the convenient space. Tel Aviv [In Hebrew]. Sifriyat Aliyat Hagag-Yedioth Aharonot.
11 Bar-Tal, D., Raviv, A., & Abromovich, R. (in press). In the eyes of the beholder: Views of the Israeli-Arab/Palestinian conflict by Israeli Jews [in Hebrew]. Tel Aviv, Israel: Tami Steinmetz Center for Peace Research, Tel Aviv University.
12 O espírito ou humor de um período específico da história, conforme demonstrado pelas ideias e crenças da época (N. da T).

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