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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022
RESENHA
A dimensão política do pesquisar no cotidiano
The political dimension of research in everyday life
La dimensión política de la investigación en la vida cotidiana
Doutor em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC. E-mail: esmael_oliveira@live.com
Moscheta, M. S., Souza L. V., & Rasera, E. F. (Orgs.). (2020). A dimensão política do pesquisar no cotidiano. Letra e Voz.
Organizado pelos/as pesquisadores/as Murilo Moscheta (UEM), Laura Souza (USP/RP) e Emerson Rasera (UFU), vinculados ao Grupo de Trabalho (GT) Cotidiano e Práticas Sociais, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), o livro A dimensão política do pesquisar no cotidiano representa uma importante contribuição, tanto para a psicologia social quanto para outros campos disciplinares preocupados com a dimensão política da produção do conhecimento. Esse é o mote que atravessa toda a obra a partir dos diferentes temas, problemas e perspectivas teórico-metodológicas levados a cabo por seus/suas autores/as ao longo de 16 capítulos que, inspirados nas artes cênicas, estão subdivididos em "cenas" e "atos".
No prefácio, de autoria de Lupicinio Íñiguez-Rueda (UAB/Barcelona), uma indagação ética e política: "O que é político? Pesquisar é político? Escrever é político?". Em cena, a constatação de que a psicologia "mainstream" segue operando, em sua sede de neutralidade, distanciamento e "tecnologicidade", tanto a subvalorização da dimensão política do conhecimento quanto a separação entre a pesquisa da psicologia social e o político. Apesar das oposições daqueles/as que não se percebem "afetado[as] pela ideologia e pelas condições sociais e políticas da estrutura social na qual se encontra[m]" (p. 8), nos diz o autor: "A psicologia social é intrinsecamente política" (p. 9).
Na apresentação, de autoria dos/as organizadores/as, há a afirmação de um compromisso com a "dimensão política do pesquisar no cotidiano e as possíveis narrativas de resistência" (p. 12). Se é possível observar no interior da sociedade brasileira uma série de retrocessos sociais, políticos e econômicos (agravados pelo cenário político-pandêmico da Covid-19), importa um olhar e uma prática que estejam atentos e comprometidos com a diferença, com os pontos de fuga, com as resistências cotidianas e com a dimensão política do conhecimento.
Em "Além da resignação" (Cena 1), tomando como disparador o documentário A vida em mim [Life overtakes me, de Kristine Samuelson e John Haptas, 2019], Carla Guanaes-Lorenzi (USP/RP) reflete sobre a dimensão político-social (e, por que não dizer, ética?) que atravessa a "Síndrome da Resignação" (p. 16). A partir de um diálogo transdisciplinar (que passa por teóricos da psicologia, da antropologia e até da literatura), a autora problematiza o que chama de "deterioração da vida pública" (p. 18).
Em "Falha, fratura, queda e perdição: pesquisar com métodos vulneráveis" (Ato 1), Murilo Moscheta (UEM) e Rodrigo Ramires Ferreira (UEM), a partir do trabalho dos/as artistas Rebecca Horn, Bas Jan Ader, Francis Alÿs, Virgínia de Medeiros e Cláudia Andujar, assim como da cosmologia indígena, elaboram uma desconcertante ode à "falha", ao "fracasso", à "queda", à "deriva", à "fabulação", à "fratura" e a toda potência que elas possibilitam, a contrapelo de uma sociedade baseada no eterno sucesso, na força e no controle. Em face da constatação de que nossos estilos de vida e mesmo nossos métodos são produtos de uma racionalidade colonial, o desafio é o de se produzir "afetos emergentes e caminhos desprogramáticos" (p. 33).
"Sem abdicar, transgredir e assim reinventar", de Mary Jane Paris Spink (PUC/SP), versa sobre as ressonâncias subjetivas despertadas pela leitura do capítulo de Moscheta e Ferreira. Em tom de discordância da leitura decolonial dos autores, afirma que a racionalidade colonial, enquanto repertório inscrito ao longo do tempo, pode ser aceita ou rejeitada, mas não destruída. Para a autora, inspirada na trajetória de Picasso, o "processo de copiar e em cima das cópias" (p. 42) tem a possibilidade de nos conduzir a novos patamares. Assim, acidamente ela pergunta: "Reinventar o quê?" (p. 42).
Em "Por que dialogar?" (Cena 2), Laura Vilela e Souza (USP/RP) nos provoca a refletir se "a voz do preconceito não deve, de forma alguma e com objetivo nenhum, ter fórum público" (p. 47). Assim, a partir de seu trabalho de pesquisa junto a escolas, a autora chama a atenção para as múltiplas possibilidades de enriquecimento mútuo que brotam quando se possibilita que "pessoas que pensam diferente" (p. 50) dialoguem. Trata-se de "assumir o risco do diálogo" (p. 50) como potência transformadora.
Luciana Kind (PUC/MG), Rosineide Cordeiro (UFPE) e Isabel Maria Casimiro (UEM/MZB) buscam compreender, desde uma perspectiva comparativa, as trajetórias de uma nova geração de mulheres no movimento feminista no Brasil e em Moçambique no texto "O que aprender umas com as outras? Narrativas intergeracionais das lutas feministas no Brasil e em Moçambique" (Ato 2). Em cena, questões como classe, raça, geração, tempo, redes de apoio e modos de aprendizagem que complexificam a adjetivação "jovens feministas", apontando, dessa forma, para as nuances e especificidades que cercam esses "novos sujeitos do feminismo" (p. 65).
Em "Feminismos jovens nas redes que nos conectam", Domitila Shizue Kawakami Gonzaga (USP/RP), mobilizada pelas reflexões presentes no capítulo de Kind, Cordeiro e Casimiro, para além de ressaltar a importância de um trabalho sustentado por uma perspectiva feminista e realizado por mulheres, destaca a importância do trabalho, à medida que conecta a história dessas mulheres com nossas histórias. Isso nos faz questionar as razões para que determinados embates e pautas ainda tenham razão de ser em pleno século XXI, e nos estimula a "pensar os [novos] espaços de atuação de resistência" (p. 71), abrindo nossos olhos para a importância dos ativismos via mundo virtual. Como interpelação fundamental, Gonzaga faz um convite para o não esquecimento das assimetrias e da importância da interdisciplinaridade e interseccionalidade.
Em "Logo ali" (Cena 3), Emerson F. Rasera (UFU), a partir de uma cena ficcional - resultado de um programa de extensão universitária voltado à comunidade travesti e transexual de Uberlândia -, narra uma partida de futebol entre estudantes de psicologia e travestis. O título otimista nos provoca a sonhar com um outro futuro possível, mais afeito às diferenças. Se esse presente "inclusivo" ainda não existe, não há impedimento para que desejemos que chegue logo.
Em "A escrita subversiva de Pedro Lemebel e a freireana pedagogia do subterrâneo" (Ato 3), Eder Rodrigues Proença (SEDU/Sorocaba) e Marcos Antonio dos Santos Reigota (Uniso), entre a obra Manifesto, do escritor e artivista chileno Pedro Lemebel (1985), e a proposição de uma "pedagogia do subterrâneo", enunciam a potência dos corpos e experiências dissidentes. A vida e trajetória de Lemebel, por meio de uma estética "bicha"/maricona, mestiça, proletária, oprimida, nos oportuniza pensar na possibilidade de questionamento dos saberes e poderes estabelecidos e que são produtores de assimetrias, desigualdades e exclusão - produções estas que também se revelam no espaço e no currículo escolar. Não por acaso afirmam os autores: "Se Lemebel escreve para sobreviver, a pedagogia subterrânea é concebida para pensar a sobrevivência e a vida dos corpos na margem" (p. 102).
Em "Por uma vida não fascista: Lemebel e o devir-mulher", Juliana Vieira Sampaio (UECE), voltando-se para o texto de Proença e Reigota, reafirma Lemebel como uma "figura que resiste às normas" (p. 109), seja pela via de sua escrita, seja pela via do próprio corpo. Compreendido como potência viva de um devir-minoritário, em Sampaio, Lemebel aparece como antídoto ético-político contra as artimanhas dos fascismos contemporâneos. Afinal, "são essas estratégias contrárias a todas as formas de fascismo que precisamos agenciar em nossas práticas diárias" (p. 112).
"Mulheres e redes" (Cena 4), de Luciana Kind (PUC/MG), percorre os "labirintos" da memória e, por meio deles, resgata lembranças e afetos produtores de "redes". É por entre esses labirintos e redes que, em perspectiva, justapõe passado e presente para (re)afirmar "a potência política das mulheres quando juntas" (p. 117).
Em "Psicologia(s) e o Sistema Único de Saúde no Brasil: pressupostos e trajetórias da psicologia da saúde e da psicologia social da saúde" (Ato 4), José de Arimatéia Rodrigues Reis (UFPA) e Pedro Paulo Freire Piani (UFPA) refletem sobre a participação da psicologia no processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de duas dimensões: como campo de produção de pressupostos (com seus conceitos e categorias) e como área profissional (nas diferentes frentes de atuação). Por meio de uma genealogia, os autores apresentam um importante panorama da emergência da psicologia da saúde, suas transformações, tensionamentos e desdobramentos teórico-práticos. Afinal, quais são as implicações éticas, políticas, teóricas, metodológicas e profissionais de se "pensar as práticas psicológicas como práticas de saúde na esfera das políticas públicas?" (p. 132).
Em "Psicologia(s) e os desafios do trabalho na saúde", Jacqueline I. Machado Brigagão (USP) dialoga com a reflexão apresentada por Reis e Piani à luz de sua experiência como residente em psicologia em fins da década de 1980 no Hospital Juquery, em Franco da Rocha (SP) - local de múltiplas vivências, aprendizados e afetações que lhe permitiram borrar fronteiras disciplinares e ampliar horizontes de atuação. Não por acaso nos diz: "Se eu tivesse de responder qual psicologia eu estava fazendo lá, eu não saberia dizer" (p. 138).
Marcos Reigota (Uniso), em "Leituras canibais na/da/com a Terra Brasilis" (Cena 5), como uma máquina desejante (à la Deleuze), numa proposta surrealista, nos interpela a uma interlocução despretensiosa. É assim que, por meio da indicação de algumas obras literárias nacionais, lança o convite para possíveis interessados/as em compartilhar com ele suas impressões sobre as mesmas via e-mail.
Em "E agora José?" (Cena 6), Jefferson Bernardes (UFAL), a partir de sua experiência junto a acadêmicos/as de um curso de psicologia no semiárido de Alagoas, em que constata, por vezes, a predominância de uma prática psicológica desconectada da vida, lança a interpelação-desafio: "A psicologia encontra-se convocada a debater e a participar dos processos de resistência e produção de pessoas e de conhecimentos mais libertários" (p. 144).
Em "A pesquisa com 'especialistas por experiência' na literatura psi: desafios da democratização na produção de conhecimento" (Ato 5), Emerson F. Rasera, Domitila Shizue Kawakami Gonzaga e Carla Guanaes-Lorenzi, através de uma revisão de literatura, problematizam os limites e as possibilidades da noção de "especialista por experiência" (p. 148) como categoria que emerge na pauta das discussões do campo da saúde mental e cujos pressupostos são autonomia, protagonismo e democratização. Mas, na prática, esses sujeitos teriam efetiva participação nos processos decisórios, de planejamento e desenvolvimento dos projetos/ações? Ou o "especialista por experiência" seria apenas um substituto para o conceito de "participante", mantendo-se as tradicionais relações de pesquisas sustentadas pela divisão pesquisador-pesquisado? (p. 155)
Em "Desdobrar", Rosineide Cordeiro, afetada pelas reflexões de Rasera, Gonzaga e Guanaes-Lorenzi, ressalta o quanto falar em "especialista por experiência" endossa as propostas, iniciativas e ações comprometidas com a participação democrática das pessoas e a transformação político-social que as enreda. Afinal, "romper a posição de refém é desdobramento libertário, afetivo e imaginativo de todo dia" (p. 169).
Murilo S. Moscheta flana rizomaticamente por términos-bosqueios, começos- -plantações, continuação-reflorestamento em "Esta flor esta" (Cena 7). Nesse movimento micropolítico de um devir minoritário desejante, a memória e os sonhos tornam-se antídotos poderosos contra destruições, queimadas... enfim, mortes.
Em "Práticas restaurativas e construcionistas sociais: alternativas relacionais nos cenários de conflitos sociais" (Ato 6), Letícia Trombini Vidotto (USP/RP), Sheila McNamee (UNH/EUA) e Laura Vilela e Souza (USP/RP), a partir do debate sobre a justiça restaurativa (JR) enquanto estratégia para a gestão de conflitos, evidenciam os limites dos modelos e das práticas punitivistas e individualizantes. Não por acaso, indagam as autoras: "O que as pessoas podem fazer juntas para criar melhores interações e entendimentos sobre conflitos?" (p. 187). Nesse enquadre, a JR é apresentada como um novo paradigma ao fomentar a dimensão relacional, contextual, compreensiva e comunicativa na resolução dos conflitos.
Em "Potencializar versões e dialogar na ética" (Ato 2), Rodrigo Ramires Ferreira, num movimento de olhar em perspectiva às reflexões de Vidotto, McNamee e Souza, destaca o potencial de transformação das práticas restaurativas. Em diálogo com o arcabouço da teoria ator-rede, Ferreira aponta algumas possibilidades para os desdobramentos de uma prática restaurativa que, de fato, seja dialógica e sensível às diferenças: o rompimento com o âmbito judicial das práticas restaurativas, uma escuta-diálogo desnudada de privilégio e a substituição de uma linguagem de um zero sum game, "onde a vitória de um é a derrota do outro", por uma noção de non-zero sumgame, ou seja, "onde não importa a derrota ou vitória, mas as histórias e efeitos que essa relação entre "jogadores" produz" (p. 201).
Como possibilitar a circulação de informações/conhecimento para além das comunidades acadêmicas? Essa é a questão central do capítulo "A dimensão dialógica da produção de informação: a Estação de Pesquisa Urbana M'Boi como estudo de caso" (Ato 7), de autoria das pesquisadoras Mary Jane Paris Spink, Jacqueline I. Machado Brigagão, Camila Claudiano Quina Pereira (Univás) e Vanda Lúcia Vitoriano do Nascimento (UNIP/SP), que tomam como foco de análise a Estação de Pesquisa Urbana M'Boi (EAESP-FGV/SP). De acordo com as autoras, enquanto uma "plataforma de informações, relações e vínculos organizacionais" (p. 207) voltada para alguns distritos da zona sul do município de São Paulo (Jardim Ângela, Jardim São Luís, Capão Redondo e áreas adjacentes), a Estação, por meio do processo dialógico de cooperação, tem se constituído como um "fórum híbrido" (p. 211) à medida que se apresenta enquanto arena de interação entre atores heterogêneros (leigos e especialistas).
Em "Ressonâncias freireanas e ecologistas", Marcos Reigota retoma os efeitos que o texto de Spink, Brigagão, Pereira e Nascimento lhe repercutiu a partir de dois movimentos. Primeiro, por meio de um exercício de rememoração dos percalços, dificuldades e resistências que encontrou quando desenvolvia sua tese de doutorado em fins da década de 1980 e que revelavam a "dificuldade de diálogo" (p. 218). Segundo, pela recepção dos trabalhos das autoras no contexto institucional em que Reigota atua e que tem estimulado "outros modos de fazer pesquisa e escrever" (p. 221). A partir disso, nos diz o autor: torna-se "urgente [a] 'dimensão dialógica' de e nas nossas atividades sociais, acadêmicas e pedagógicas cotidianas" (p. 223).
"Espaços de diálogo" (Cena 8), Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro (UFAL), em um movimento arqueológico para a composição de seu memorial, depara-se com suas experiências junto a um coletivo de mulheres de um bairro popular de Maceió. Entre memórias e resgates, a constatação de que o que ali foi experimentado "são histórias que ficarão de fora dele [do memorial]" pela ausência de comprovação para além dos diários de campo (p. 226). Nas entrelinhas de seu discurso, um duplo desafio: a importância dos espaços de diálogo e a necessidade de enfrentamento dos dispositivos (inclusive acadêmicos) de silenciamento.
Com relação aos documentos de domínio público, como surgem? A partir de quais condições? O que produzem? Essas e outras questões são abordadas em "Documentos de domínio público na produção de modos de subjetivação" (Ato 8), de autoria de Juliana Vieira Sampaio e Benedito Medrado (UFPE). Ao analisarem vídeos disponibilizados no YouTube por uma indústria farmacêutica, compreendidos pelos/as autores/as como "práticas discursivas" (p. 228), nos oportunizam pensar (dentre outras coisas) sobre os mecanismos midiáticos de produção de "verdades" e seus complexos processos de subjetivação.
"Uma foto não é só uma foto" (p. 248), disse um dos interlocutores de um projeto desenvolvido por Vanda Lúcia Vitoriano do Nascimento. É a partir dessa interpelação que ela afirma que "um documento não é só um documento" (afirmação que dá título ao capítulo). Em cena, um convite despretensioso para sairmos "das zonas de conforto", "perdermos a inocência", "sairmos do lugar comum" (p. 248) em nosso olhar e trato, tanto em relação às imagens quanto aos documentos. Afinal, "Os documentos são dispositivos que performam discursos, que podem cristalizar e engessar práticas e modos de viver" (p. 252).
Após esse longo percurso de apresentação dos capítulos, considero importante tecer alguns comentários gerais que nos permitam avaliar a importância da obra, tanto para a(s) psicologia(s) quanto para outras áreas disciplinares. Nesse sentido, um primeiro aspecto a ser destacado é a riqueza da perspectiva transdisciplinar que atravessa e sustenta os diferentes capítulos. Embora majoritariamente os/as autores/as sejam do campo da psicologia, é possível perceber o profundo e qualificado diálogo que estabelecem com autores pertencentes a diferentes tradições disciplinares. Assim, não parece ser mero acaso ou formalidade que a categoria diálogo e/ou dialógico seja central ao longo de toda a obra.
Um segundo aspecto diz respeito a uma preocupação tanto dos/as organizadores/as quanto dos/as colaboradores/as em conectar "a escrita com a vida", como nos inspira Gloria Anzaldúa (2000). Seja ao pensar a partir de seu próprio campo de pesquisa, ao estabelecer conexões com o cenário político da sociedade brasileira atual, ou mesmo ao permitir uma volta no tempo para um resgate das memórias, dos afetos, dos encontros, os/as autores/as falam de uma epistemologia encarnada (Nascimento, 2019).
Como terceiro aspecto, que não pode ser ignorado ou minorado, vale destacar a preocupação (e, mais do que isso, compromisso) dos/as autores/as com a perspectiva interseccional. Se toda prática científica (tenderia a dizer, humana) é política (pressuposto fundamental da obra), ela não atravessa a todos/as da mesma maneira. Nesse sentido, o desafio é que nossas práticas de ensino, pesquisa e extensão não permaneçam cegas ou indiferentes nem aos mecanismos perversos de exclusão, que se voltam especificamente para determinados corpos, nem aos marcadores sociais que os sustentam (gênero, classe, raça/etnia, religião, geração, região...). É a busca pela compreensão dos aspectos que compõem uma relação social (no caso, de pesquisa), conjugada com a evidenciação dos dispositivos que criam relações de assimetria, de poder, de dominação, de subalternidade, que possibilita que um certo "fazer" não se constitua também como uma estratégia tão ou mais perversa do que aquilo que se pretende evitar, desconstruir, ou, no caso específico, criticar. Ao abordar de forma encarnada alguns impasses ético-políticos da prática psicológica contemporânea, os/as autores/as fornecem ferramentas teórico-analíticas importantes para que tiremos nossas próprias conclusões e, mais do que isso, para que criemos nossas próprias estratégias para a constituição/produção de uma prática científica despresunçosa e eticamente engajada.
Dito isso, uma sugestão ao coletivo de autores e autoras, cuja inspiração vem após a leitura da própria obra, é que, em futuros trabalhos, a dialogicidade, que esteve tão presente e foi tão endossada ao longo dos diferentes capítulos, e que se constitui como dimensão ética e política fundamental de toda prática científica, seja efetivamente assumida para além da mera menção em "terceira mão". Assumir a produção do conhecimento como um ato político e com implicações ético-políticas implica o questionamento e a implosão do dispositivo do/a pesquisador/a como "tradutor" ou "porta-voz" de mundos, de sujeitos e coletividades. É preciso cada vez mais um engajamento epistêmico que contribua para a proliferação de vozes, de espaços de discussão e construção, de descentralização dos lugares de fala, e que produza um constante "falar 'com os outros' e não 'pelos outros'" (Pelúcio & Duque, 2020). Só assim estaremos, de fato, comprometidos e efetivamente engajados com uma prática científica produtora de bons encontros, bons afetos.
REFERÊNCIAS
Anzaldúa, G. (2020). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, 8(1),229-236. [ Links ]
Lemebel, Pedro (1985). Manifesto. http://revistamododeusar.blogspot.com/2015/01/pedro-lemebel-1952-2015.html [ Links ]
Moscheta, M. S., Souza L. V., & Rasera, E. F. (Orgs.). (2020). A dimensão política do pesquisar no cotidiano. Letra e Voz. [ Links ]
Nascimento, S. (2019). O Corpo da antropóloga e os desafios da experiência próxima. Revista de Antropologia, 62(2),459-484. [ Links ]
Pelúcio, L. & Duque, T. (2020). Cancelando o cuier. Contemporânea, 10(1),125-151. [ Links ]
Samuelson, Kristine & John Haptas, John (2019). Life overtakes me [Documentário, 39 min.]. Netflix. [ Links ]
Submissão: 23/10/2020
Revisão: 20/08/2021
Aceite: 20/02/2022