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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

        07--2024

 

Artigo Original

RESISTÊNCIAS NO TRABALHO COMO ESTRATÉGIAS DE SAÚDE

La resistencia en el trabajo como estrategia de salud

Resistance at work as health strategy

MURILO DA SILVA ALVES1  , Conceitualização, Curadoria de dados, Análise dos dados, Redação do manuscrito original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-5453-3783

LIVIA DE OLIVEIRA BORGES2  , Conceitualização, Curadoria de dados, Análise dos dados, Redação do manuscrito original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-2251-1373

1Docente do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Santa Cruz (DCS/UESC). Doutor em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Enfermagem e Saúde pela Universidade do Sudoeste da Bahia. Membro do Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Sociabilidade e Saúde (LETSS/UFMG). https://orcid.org/0000-0001-5453-3783 E-mail: murilosevla@gmail.com

2Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília, com estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madri. Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora aposentada atuando como voluntária no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Sociabilidade e Saúde (LETSS/ UFMG). Bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq. https://orcid.org/0000-0003-2251-1373 E-mail: liviadeoliveira@gmail.com


Resumo

Este ensaio tem por objetivo conceituar e caracterizar o fenômeno da resistência no trabalho, identificando suas estratégias ocultas, manifestas pelo trabalhador como parte da saúde. Partimos de uma abordagem psicossociológica e desenvolvemos uma análise reflexiva em três partes: na primeira, tecemos considerações conceituais, propomos um modelo conceitual, elencando atributos necessários às resistências no trabalho; na segunda, discorremos sobre as resistências ocultas e suas manifestações cotidianas nas situações de trabalho, identificando-as e descrevendo-as; na última, anunciamos a resistência como parte e expressão da saúde, voltada a sua manutenção, prevenção e promoção. Consideramos o fenômeno convergente com a práxis social da manutenção da saúde e da vida, pois as potências imanentes dos processos de resistências no cotidiano são alternativas de liberdade e estratégias possíveis, constituindo indicadores positivos de saúde do trabalhador e do trabalho.

Palavras-chave: resistência; psicossociologia; trabalho; processo saúde-doença; estratégia

Resumen

Este ensayo tiene como objetivo conceptualizar y caracterizar el fenómeno de la resistencia en el trabajo, identificando sus estrategias ocultas, manifestadas por los trabajadores como parte de la salud. Partimos de un enfoque psicosociológico y desarrollamos un análisis reflexivo en tres partes: en la primera, tejemos consideraciones conceptuales, proponemos un modelo conceptual del fenómeno, enumerando atributos necesarios para la resistencia en el trabajo; en el segundo, discutimos las resistencias ocultas y sus manifestaciones cotidianas en situaciones laborales, identificándolas y describiéndolas; en el último anunciamos la resistencia como parte y expresión de la salud, encaminada a su mantenimiento, prevención y promoción. Consideramos que el fenómeno es convergente con la praxis social de mantenimiento de la salud y de la vida, ya que las potencias inmanentes de los procesos de resistencia en la vida cotidiana son alternativas de libertad y estrategias posibles, constituyendo indicadores positivos de salud del trabajador y del trabajo.

Palabras clave resistencia; psicosociología; trabajo; proceso salud-enfermedad; estrategia

Abstract

This essay aims to conceptualize and characterize the phenomenon of resistance at work, identifying its hidden strategies, manifested by workers as part of health. We start from a psychosociological approach and develop a reflective analysis in three parts: firstly, we weave conceptual considerations, we propose a conceptual model, listing attributes necessary for resistance at work; secondly, we discussed hidden resistances and their daily manifestations in work situations, identifying and describing them; lastly, we announce resistance as part and expression of health, aimed at its maintenance, prevention, and promotion. We consider the phenomenon to be convergent with the social praxis of maintaining health and life, since the immanent powers of the resistance processes in everyday life are alternatives for freedom and possible strategies constituting positive indicators of workers and work health.

Keywords resistance; psychosociology; work; health-disease process; strategy

INTRODUÇÃO

As resistências são diariamente desenvolvidas pelos trabalhadores. Ao pensar nelas, lembramos da organização dos trabalhadores, das paralisações e das greves, todas reconhecidas como resistências públicas (Linhart, 2009). Para Efros e Schwartz (2009), essas e outras formas coletivas de manifestações são reconhecidas como reações organizadas que visam negociar as condições de trabalho, saúde e vida. Têm uma trajetória de preparo, são frutos de construção social e histórica dos trabalhadores e demandam tempo e condições para serem construídas a partir de transgressões individuais e lutas coletivas de enfrentamento das relações de poder.

As resistências públicas, geralmente, são precedidas da infrapolítica no cotidiano do trabalho, ou seja, uma luta política escondida e evasiva, que evita riscos aos trabalhadores (Scott, 2012, 2013). Dessa forma, na maior parte das vezes, não são visíveis. Consideramos o fenômeno como: (a) pervasivo, penetrante a todas as esferas da nossa vida social; (b) ubíquo, existente em praticamente todos os lugares.

Reconhecendo essas características, entendemos que em nossas vidas, incluindo o trabalho, podemos fazer uso de várias formas de resistência sem termos clareza de sua existência ou participação. Ao usufruir de direitos trabalhistas, raramente percebemos o processo de luta política e social empreendida por trabalhadores, sindicatos e sociedade, o conjunto das mobilizações e resistências passadas. O mesmo acontece quando adotamos um modo de fazer ensinado por um colega de trabalho, executamos uma tarefa, manuseamos um instrumento ou nos relacionamos com um chefe (Oddone, Re, & Briante, 1981). Existe a sombra de inúmeras experiências acumuladas em tais atos, transmitidas de modo discreto e familiar, quase imperceptível, sendo difícil identificar a cadeia inscrita na resistência em ação e que interfere diretamente na saúde do trabalhador.

Optamos pela designação “saúde” como forma de não cindir a saúde física e a psíquica. A clivagem descaracterizaria o próprio fenômeno, pois a resistência empreendida, muitas vezes, concilia a exposição a riscos, demandas e desgastes no trabalho. O trabalhador, por vezes, sacrifica ou intensifica a sua cadência no trabalho para “economizar” suas energias e as consequências dos desgastes, buscando o menor impacto negativo sobre a sua saúde e/ou o seu bem-estar. Seguindo Canguilhem (2009), consideramos que a resistência pode ser entendida como reação às normas do meio, buscando transgredir, adaptar e atenuar em favor da saúde. Entendemos, como Laurell e Noriega (1989) e Borges, Guimarães e Silva (2013), entre outros, que a relação trabalho-saúde demanda abordá-la como processo multifacetado e sócio-histórico.

As atuais condições do meio laboral, como as formas contratuais e de gestão das organizações implementadas no contexto de precarização do trabalho e flexibilização da economia, diminuem as possibilidades de reação do trabalhador/coletivo, sendo essas uma questão demandada de campos de conhecimento, como a psicossociologia em relação à saúde dos trabalhadores. As mudanças no mundo do trabalho e seus efeitos na saúde têm desafiado os psicossociólogos a compreender as situações de trabalho que potencializam “produzir e fortalecer as possibilidades individuais e coletivas de resistência e de construção de novas formas de protagonismo dos trabalhadores” (Borges & Barros, 2021, p. 31). Na proporção que reconhecemos as resistências dos trabalhadores como estratégias de saúde, explicitá-las e/ou ajudar a torná-las conhecidas provavelmente tem a potência de servir de suporte à organização trabalhista e aos próprios trabalhadores para reaplicá-las e recriá-las em novas situações.

Assim, desenvolvemos este ensaio com o objetivo de conceituar e caracterizar o fenômeno da resistência no trabalho, identificando suas estratégias ocultas, manifestas pelo trabalhador como parte da saúde. Estruturamos o texto em três partes: na primeira, tecemos considerações conceituais, propomos um modelo conceitual, elencando atributos da resistência no trabalho; na segunda, discorremos sobre as resistências ocultas e suas manifestações cotidianas nas situações de trabalho, identificando-as e descrevendo-as; na última, anunciamos a resistência como parte e expressão da saúde, voltada a sua manutenção, prevenção e promoção.

PROPOSIÇÃO DO MODELO CONCEITUAL DA RESISTÊNCIA NO TRABALHO

A formulação de conceitos tende a ser circunscrita ou influenciada por seu espaço-temporal, seu horizonte e a cultura em que ele se insere e a forma como é usado (Thiry-Cherques, 2012).

a noção de resistência pode, de acordo com os campos, as disciplinas e os referenciais teóricos, assumir inicialmente significados e designar fenômenos percebidos às vezes negativamente (resistência à verdade de si, no campo da psicanálise, resistência à mudança, no campo da gestão), às vezes positivamente (resistência à exploração, dominação, sujeição, opressão, servidão. (Lhuilier & Roche, 2009, p. 11)

Retomamos as formulações antecedentes empreendidas da resistência, como modo de compreender suas contribuições, pelas apropriações dos conceitos, definições, significados, e para apreender o seu sentido no trabalho. Segundo Thiry-Cherques (2012, p. 31), Kant, Hegel e Husserl consideraram atributos para a definição do conceito, como síntese expressiva, assim, o “conceito é um complexo estruturado de outros conceitos”.

A resistência está associada e se estrutura a partir de outros conceitos essenciais, que constituem os seus atributos, como: autonomia, experiência, saberes, cooperação, solidariedade, reação, transgressão, conservação, mediação, criatividade, saúde, liberdade, entre outros (Ferreira, Araújo, Mendes, & Almeida, 2011). Neste ensaio restringimo-nos aos conceitos estruturantes, pois a conotação adotada delimita o objeto em um espaço de domínio.

Retomando os atributos essenciais da resistência, entendemos que não existe uma linha clara de demarcação do seu conceito, mas uma área fronteiriça de penumbra. O fenômeno adquire representações na nossa mente e na prática, pois um mesmo gesto, ação ou ato pode assumir configuração de resistência ou de poder, dependendo do uso, do sentido e do contexto de utilização. O conceito de resistência possui uso ampliado, pois o fenômeno não é propriamente humano, mas imanente a qualquer objeto, e designa força contrária que duplica continuamente, acompanhando e impedindo a ação, sendo que os usos sociais possuem maior plasticidade (Lhuilier & Roche, 2009; Proust, 1999, 2000; Roque, 2002).

Foucault deslocou o conceito da lei física para o social concentrando-se nas relações de poder. Para ele, a resistência é a necessidade de insubmissão e de liberdades renitentes, fazer obstáculo, uma atividade extraída da força que é subtraída das estratégias das relações de forças no campo do poder, pois “não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual” (Foucault, 1995, p. 248). Ao mesmo tempo que constitui qualidade de reação, a resistência é também a aptidão para suportar as adversidades, pela capacidade de defesa, oposição e recusa de submissão à vontade do outro (Lalande, 1999).

Para Proust (2000, p. 20), resistência é uma “mistura de reatividade e atividade, conservação e invenção, negação e afirmação”. Tudo se faz resistente como esforço para preservar o seu ser quando encontra algo que tenda a diminuir, contrariar ou frustrar a sua existência (Spinoza, 2007). “Resistir é sempre resistir contra ou resistir a. Ou seja, é se opor ou suportar: é, em suma, lutar, coexistindo ou sucedendo certo exercício de poder” (Roque, 2002, p. 23). A resistência não nega a necessidade das normas, mas mostra que é possível ter outra relação com elas (Proust, 1997).

Podemos compreender a resistência como uma projeção de possibilidades nas situações de trabalho. Algo capaz de criar o que ainda pode acontecer, ou seja, a cada porvir, um devir. Em meio a riscos, os novos possíveis são experimentados. Ela atua ao mesmo tempo como reação, resposta a uma situação, de um lado, e invenção, criatividade, do outro (Proust, 1997).

A noção de resistência se torna nítida quando distinguimos os seus sentidos e não as suas definições (Roque, 2002). Ela pode admitir sentidos diversos, como força, persistência, oposição, afirmação, embaraço, recusa, insubmissão, luta e defesa própria. No sentido plural, “ela aparece, pois, situada tanto ao lado da conservação, do status quo, do arcaico, quanto ao lado da transformação e da emancipação” (Lhuilier & Roche, 2009, p. 11). Em discussão em contexto histórico mais amplo, poderíamos incluir a democracia como um dos eixos estruturantes.

A resistência repercute em uma parte significativa da experiência humana no mundo do trabalho (Durkheim, 1967). Para Scott (2013), é a noção básica da existência dos grupos subalternos em opressão e dominação social. Pode ser entendida como contra hegemônica, resultado da exploração da relação capital-trabalho e, ao mesmo tempo, da busca de emancipação que vise apontar a produção de novas subjetividades (Bretas & Carrieri, 2017).

Ao assinalar os aspectos e sentidos ambíguos, contraditórios ou convergentes da resistência, Araújo (2014) elencou tanto o lado emancipatório, contra as diversas formas de opressão, seja no plano macrossocial ou microssocial, quanto o lado reativo e conservador do conformismo ou apatia política, que também é trabalhado por Chauí (2013) e La Boétie (1982), sob forma extrema da servidão voluntária. Apontamos ainda, o sentido de criatividade, capturada tanto nas inovações gerenciais quanto pelos coletivos nas situações de trabalho para enfrentar os excessos da administração (Carreteiro, Araújo, & Barros, 2015).

Fundamentando-se em Deleuze (1968), Roque (2002) sugeriu que resistir, em princípio, não pode ser visto como resistir contra, sendo necessário conceber este verbo como afirmação de positividade. Ao categorizar a resistência ativa e passiva,1 ou afirmativa e negativa, teríamos poucos ganhos, pois “não há dois tipos de resistência, mas uma resistência, com sua metade de positividade e sua metade de contrariedade, porque ambas precedem a síntese do negativo” (Roque, 2002, p. 30). Significa, assim, desdobrar as dimensões dialéticas presentes na negatividade de Hegel, a positividade da negatividade ou a criatividade da destrutividade da resistência. Ruptura e negação devem ser examinadas para iluminar o fenômeno, como conjunto de defesas e liberações às normas na vontade de sobreviver (Lhuilier & Roche, 2009).

Devemos revisitar positivamente o conceito de resistência para atualizar seu significado como manobra estratégica, tanto para as transgressões e manifestações nas declarações microscópicas de um “viver e trabalhar de forma diferente” quanto nas reivindicações políticas que buscam “alternativas aos usos comerciais da vida humana” (Efros & Schwartz, 2009, p. 46). A resistência é um fenômeno infiltrado em toda parte, mas é ignorada frequentemente, pois “onde quer que haja vida, há resistência” (Lhuilier & Roche, 2009, p. 13). Entendemos que ela permeia as situações de trabalho, como espaços de vida, inscrevendo-se na sua concretude. Para esclarecer os caminhos deste ensaio, nos perguntamos: em que consiste a resistência? Recorremos a origem da palavra para a captura de sua significação.

Na palavra resistência há, antes de tudo, o prefixo re, que aponta para uma duplicação, uma insistência, um desdobramento, uma dobra, “outra vez”. Do que o segue, lemos um substantivo derivado do verbo sistere: parar, permanecer, ficar, ficar de pé, estar presente. A esse verbo se associa também a stantia da palavra resistência, que invoca a estadia, ideia perfeitamente expressa pela transitoriedade do verbo estar, uma das preciosas singularidades do português. Até aqui, portanto, resistir é insistir em estar – em permanecer, em ficar de pé. (Roque, 2002, pp. 25-26)

A potência imanente está na necessidade de afirmar, a cada instante, a sua vida, uma vez que “a resistência é a dobra da existência” (Roque, 2002, p. 26). Remetemos o esforço da dobra como reiteração da sobrevivência, como essência do ser que não pode ser renunciado. A resistência ontológica em Spinoza considera que existir é resistir – expressão do Conatus, que essencialmente é o esforço que cada um faz para perseverar a existência –, deste modo, é entendida como potência produtiva e criativa do ser em existir (Spinoza, 2007; Stern, 2008). Foucault a entende como estética da existência a partir do “cuidado de si” (Díaz, 2008). Perseverança é o próprio ser, nada além da coragem da liberdade em meio aos riscos inerentes do exercício do “contra-ser” frente a uma situação vivida que não é habitável ou tolerável, pois a autopreservação, tendência de todos os seres em extrair as potencialidades e possibilidades da própria existência, é uma lei do ser. Interna, imanente e coextensiva, a resistência é um fato, não uma necessidade ou uma obrigação, ela simplesmente existe como caminho alternativo a vidas comprimidas, mutiladas e esmagadas (Proust, 1997, 2000).

A preservação do ser enunciada na resistência é imanente à saúde. Na situação de trabalho-saúde, Araújo (2014, p. 33) a inscreve como “uma ação política no interior das organizações do trabalho, enfrentando sistemas de gestão nocivos à autonomia e à saúde dos trabalhadores”. Neste sentido, Ferreira et al. (2011) consideram o fenômeno como um dos caminhos para a saúde no trabalho. Gomes (2018, p. 83) os complementa, concebendo a “resistência como micro transgressão das normas em favor da saúde”. Lhuilier e Roche (2009, p. 12) descreveram que “resistir significa, aqui, opor uma força a outra, que tende a destruir nossa energia para o trabalho; significa salvar, a qualquer custo, o corpo que a contém, ou pelo menos retardar o tempo de desgaste e, num prazo maior, salvar do esgotamento e da destruição”.

Para Stern (2008), a resistência em Spinoza não depende de risco ou ameaça para a sua manifestação, não é abstrata frente a perigos iminentes, pois ela antecede, “é constitutiva e constituinte de cada coisa singular” (Stern, 2008, p. 127) em seus encontros com outras coisas singulares na existência. Do mesmo modo, Foucault a considera anterior ao poder (Sampaio, 2007). Roque (2002, p. 23), reflete sobre uma articulação deste conceito como “processo que está em curso antes do fato ao qual se resiste”, que será a manifestação de fato, a condição para a sua instauração. Pensamos que essa anterioridade já pronunciada permite explicar o que propomos em relação à saúde e à resistência como processos contínuos do ser em existir nas situações de vida. A nossa compreensão está na mobilização da sobrevivência, de resistências tenazes e obstinadas, transgressões menos visíveis e microscópicas, mesmo as mais discretas e insidiosas, nas situações de submissão e manutenção da vida no cotidiano do trabalho (Araújo, 2014; Lhuilier & Roche, 2009).

Na análise de Proust (1995), cinco pontos sobre a resistência merecem atenção: (a) ocorre em uma situação sempre imprevisível e única; (b) não é passividade, mesmo a designada “resistência passiva” é totalmente ativa por forças mobilizadas; (c) é sempre ambígua; (d) é uma prática puramente imanente; (e) é uma questão de tempo e ritmo, pois, por um lado, é diminuir o tempo e cultivar lentidão, por outro, é acelerar o tempo e cultivar a precipitação. Em síntese, são características da resistência: ser dinâmica no tempo e espaço; inerente a todo ser na vida; estar sempre em curso; adquirir diferentes sentidos, usos, formas e designações; ser sensível às circunstâncias do meio; desestabilizar os sistemas de dominação; não presumir consentimento; ser duplicada, pois acompanha e impede o poder de forma ativa-reativa (reage, defende e contra-ataca); subverter por dentro do sistema de poder, sendo transversal; ser uma luta imediata; atuar na formação do sujeito; e mobilizar afetos completamente diferentes e iguais (Araújo, 2014; Foucault, 1995; Lhuilier & Roche, 2009; Proust, 1997, 2000; Spinoza, 2007).

Compreendemos que tais características da resistência não apreendemos no nível individual. Necessitamos recorrer à interação interpessoal, aos grupos e à sociedade, sendo um conceito psicossociológico, por se tratar de um fenômeno do cotidiano no trabalho, que fortalece seus coletivos, revela nexo entre saúde e trabalho e evoca a criatividade e a transmissão de conhecimentos e técnicas. As abordagens psicossociológicas, devido à natureza da realidade e do sujeito, possuem pressupostos ontológicos compartilhados, importantes na análise da resistência, como: noção de concretude, concepção do sujeito no materialismo dialético, papel estruturante do trabalho, realidade social construída, inseparabilidade dos níveis de análise e a realidade estruturada pelas instituições (Borges & Barros, 2021).

Buscando agregar as características e os atributos da resistência e os referenciais de psicossociologia, formulamos um modelo conceitual para facilitar a análise e a observação. Não o compreendemos como definitivo, pois tal presunção descaracterizaria a própria ideia de resistência, cuja essência é dinâmica. Ele representa a síntese conceitual possível no momento. A Figura 1 (sua representação esquemática) abrange: níveis de análise (individual, grupo e sociedade/micro, meso e macro); consciência (individual, grupo/classe e social); política (infrapolítica a macropolítica); práticas de dominação (material, de estatuto e ideológica) e práticas de resistência (pública, oculta), tempo, espaço e ambiente sócio-histórico com problemas sociais, econômicos, ideológicos, políticos e ambientais. No modelo, a realidade problemática e as relações sociais são envolvidas, elaboradas e incorporadas subjetivamente, sendo as manifestações presentes nas convocações e práticas de resistências públicas e ocultas.

Figura 1 Modelo conceitual da resistência 

O modelo representa a resistência permeando toda a esfera social, pois os processos de subordinação sempre terão o contraponto dos conflitos de resistências. Assim, as “relações de dominação são, simultaneamente, relações de resistência” (Scott, 2013, p. 83). Na Figura 1, visualizamos o poder e a resistência no mesmo campo de correlação de forças, com margens permeáveis e irregulares de um jogo contínuo de posicionamentos e deslocamentos da linha flutuante e fronteiriça da resistência/poder, que separam arranjos densos e fissurados dos interstícios de conflito, não existindo um meio totalmente dominado somente pelo poder ou pela resistência, mas pelo duelo de suas convocações. Essas são as situações de trabalho e vida, desencadeadas e manifestas por formas públicas e ocultas, como: ações, inércia, gestos, silêncio, falas, sabotagem, expressões faciais, linguagens não verbais, entre outras. São, assim, acontecimentos possíveis, improváveis, planejados, espontâneos, violentos e irreconciliáveis no campo estratégico das relações de poder (Alvim, 2012).

A experiência do trabalhador sob o exercício do poder e sua incorporação, mesmo que afetado pelas convocações da resistência situada nos diferentes níveis de conflitos, desencadeia embates entre relações de poder e estratégicas pelas intrusões e protrusões indicadas no modelo. Relações de forças coextensivas e indissociáveis que se incomodam mutualmente, mas que não respondem de maneira espelhada ao induzir à reação de mobilidade ou imobilidade. Cada uma a sua maneira se esforça ao máximo, no tempo e espaço, para não ceder nos interstícios das margens de uma situação. No embate, os atributos fundamentais já especificados anteriormente (e.g., autonomia, experiência, saberes, cooperação, solidariedade, criatividade, saúde, liberdade) expressam-se como necessários à resistência nas relações estratégicas. Consciência individual/de classe e participação, por sua vez, são seus desencadeadores (ver Tabela 1). Estes predicativos designados como parte da resistência também são imanentes na direção da saúde, ou mesmo parte dela. Os atributos são, ao mesmo tempo, sentido, essência ou resistência expressa, a depender da situação em que a convocação é realizada, conferindo fluidez e plasticidade ao fenômeno. Podem ainda ser adicionados e retirados do repertório da resistência específica a ser analisada.

Tabela 1 Atributos da resistência no trabalho 

Atributos Definições e características
Autonomia Capacidade do uso das margens de manobra, podendo ser pessoal e coletiva, permite a construção de laços sociais para realizar ações em comum, violando poderes, contando consigo e com os outros na busca de alternativas no trabalho.
Conservação Preservação do espaço, estágio ou situação vigente para não ceder ao poder e às infidelidades do meio. Para a própria preservação fazemos oposição ao que parece nocivo, mas também buscamos o que parece útil ao indivíduo e ao coletivo nos ambientes e nas situações de trabalho.
Cooperação Ação conjunta com o mesmo objetivo ou auxílio para um fim comum. Implanta as bases da resistência na organização do trabalho por meio da inteligência prática e convivência estratégica no coletivo laboral, evidencia valores, como participação, solidariedade, liberdade, confiança, autonomia e respeito.
Criatividade Ações e reações às situações de trabalho manifestas na invenção pelo saber fazer, astúcia, inteligência prática e renormalizações. Contribui para o trabalhador alterar o modo de trabalhar, para o tornar possível e habitável, resolvendo os problemas do cotidiano e podendo proporcionar prazer, tanto nos êxitos como nas tentativas de utilizar alternativas.
Experiência Conhecimento pelo contato com a realidade ou prática laboral. Associada à aprendizagem de saberes, à experiência de classe ou operária, é compartilhada no cotidiano por meio do processo de testagem, avaliação e verificação da validação consensual dos trabalhadores.
Liberdade Possibilita elasticidade na escolha das estratégias de luta e na criação de alternativas na organização do próprio trabalho. As estratégias podem ser móveis, imóveis e simultâneas. Na sua mobilidade clandestina, recua, avança, esconde e reaparece, estando travestida e onipresente. Na imobilidade mantém sua posição, firme, teimosa e combativa. Simultaneamente é lenta e rápida, prudente e imprudente, cálculo e aposta, ritmada e arrítmica.
Mediação Intermedia e auxilia as situações de vida concreta no trabalho, para conservar o espaço ou situação quando os avanços dos limites falham ou precisam ser negociados para evitar maiores perdas ou para não transparecer ameaça quando avança rapidamente.
Reação Capacidade de contrapor as condições de desgaste e aborrecimento nas situações de trabalho. É duplicada e ativa-reativa (reage, defende e contra-ataca), podendo adquirir diversas formas e manifestações públicas e ocultas pelo trabalhador e seu coletivo nas situações de trabalho.
Saberes Conhecimento relacionado à técnica e ao saber-fazer originário da experiência, inteligência prática, criatividade e astúcia dos trabalhadores. Possui ressonância simbólica, e é no coletivo fonte de atualização dos modos de realizar a atividade quando compartilhada. Os saberes práticos são capital social e memória técnica adquiridos progressivamente para resolver os problemas da organização do trabalho e do ambiente de trabalho em saúde e segurança.
Saúde Relação com o meio e os modos de vida expressa na capacidade de responder aos obstáculos que se interpõem entre as singularidades do trabalhador e o bem-estar no trabalho.
Solidariedade Entendida como uma condição grupal capaz de resistir às forças exteriores, pois desenvolve a capacidade coletiva de agir conjuntamente, com interdependência e mutualidade de interesses e deveres, compromisso e coesão com o bem-estar coletivo e individual.
Transgressão Violar as normas, distorcer e apropriar-se, de acordo com as necessidade e singularidades individuais e do grupo de trabalho. A transgressão é um ato de renormalização contínuo na atividade cotidiana. Pode ser uma transgressão criativa, retomando a invenção e o prazer de criação, a necessidade de traspor obstáculo ou simplesmente omitir normas no trabalho.

Nota – elaborada pelos autores com base em: Barus-Michel, Enriquez e Lévy (2005); Brito (2017); Canguilhem (2009); Efros e Schwartz (2009); Ferreira et al. (2011); Minayo (2004); Oddone et al. (1981); Proust (1997, 1998, 1999); Scott (2011; 2013); Stern (2008); Vieira, Mendes e Merlo (2013).

Não existe supremacia de um atributo sobre o outro, mas dependendo da situação de conflito podemos classificá-los como fundamentais acima nomeados ou operadores (conservação, mediação, reação e transgressão). A resistência em uma situação de trabalho pode acontecer sem que todos os atributos estejam presentes, pois depende da convocação e de quais deles estão disponíveis, assumindo formas e figuras sobre o que insiste em diminuir a perseverança do seu ser, usando a curva e o desvio no resistir para encontrar os limites na sua atuação, intensidade, constância e mobilidade.

Em síntese, no modelo propusemos que resistência é a convocação contínua nas situações de vida e trabalho, que desperta a matriz de atributos voltados à existência e à saúde, permitindo ao trabalhador suportar tais situações por meio de estratégias individuais e coletivas (in)visíveis. O trabalhador trata de enfraquecer o que o desgasta, diminuir a frequência de situações de perigo e riscos no trabalho para ampliar o tempo e o espaço de liberdade que mantenham o poder de preservá-lo, por meio de estratégias alternativas das margens de manobra que acompanham e impedem o domínio de forças nocivas. Não existe necessariamente ataque frontal para aniquilar e vencer o adversário, mas vitórias dentro de um poder frustrado, que arrisca, inventa e aposta em contra-ataques da resistência para liberar o trabalhador da situação, ao ganhar tempo e espaço por meio de suas formas.

FORMAS DE RESISTÊNCIAS OCULTAS NO COTIDIANO DO TRABALHO

Muitas ações de resistência são táticas individuais e coletivas não prescritas à espera de oportunidades para burlar e tirar partido por meio de práticas (Certeau, 1998) provenientes de uma cuidadosa consciência na luta invisível com o poder. Seu conjunto forma uma estratégia agrupadora das intervenções com uma finalidade (Rhéaume, 2005; Scott, 2006). Para Bretas e Carrieri (2017), essas táticas e ações, quando incorporadas, podem ser consideradas estratégias.

A maior parte das ações não chegam à confrontação coletiva, pois as táticas e estratégias possuem margens restritas de liberdade. Tais restrições manifestam-se também em variadas condutas, como: relutância, dissimulação, falsa submissão, pequenos furtos, simulação de ignorância, difamação, silêncio e sabotagem (Scott, 2011). Certeau (1998, p. 18) buscou estudar as táticas desenvolvidas no dia a dia, reconhecidas como micro resistências nas organizações, “as quais fundam por sua vez micro liberdades, mobilizam recursos insuspeitos, e assim deslocam as fronteiras verdadeiras da dominação dos poderes sobre a multidão anônima”, sendo uma “possibilidade concreta, cotidiana, de intervir para produzir mudanças é determinante também para o aumento da capacidade de interpretar e de observar a realidade da organização do trabalho” (Certeau, 1998, p. 18). Não se trata somente do modo de fazer o trabalho do jeito que os trabalhadores querem, mas contestar por meio das estratégias e “espertezas” as normas (Oddone et al., 1981). Os “micros combates”, “micro transgressões” ou “críticas em atos” favorecem reconfigurar as situações de trabalho e de vida (Efros & Schwartz, 2009).

Cunha (2007) descreveu uma destas formas de resistências possíveis no trabalho na mineração, o nomeado “nó”, que se refere a uma sabotagem planejada do trabalhador para aguentar as exigências produtivas e não ser punido. Necessariamente não contempla uma situação de risco iminente, tirando proveito das oportunidades, utilizando a autonomia e a consciência crítica. “Esconder o pulo do gato”, “dar nó cego” e “ter maldade”, descritos por Minayo (2004), são modos cotidianos de resistência em que os saberes e a experiência são requisitados para poupar o trabalhador e mostram ainda a insatisfação e ressentimento do corpo social, ampliando a ressonância de maneira direta e coletiva.

Essas formas de resistência, denominadas por Araújo (2014, p. 40) como transgressões, “podem gerar mudanças no conjunto das relações de trabalho (condições e organização do trabalho, contrato, salário, trabalho sujo etc.) e até mesmo provocar efeitos fora das organizações, no plano das relações sociais”. Para Efros e Schwartz (2009, pp. 40-41), as transgressões são concretas e diversas, abrindo um espectro para outras possibilidades para lidar com o trabalho da melhor maneira possível, como as “fraudes funcionalmente obrigatórias, ardis a escárnio, provocações por invenção de técnica ou mesmo por desobediência ou retirada, a subversões organizadas de uma ordem estabelecida”. Sua ocorrência e seus efeitos são imprevisíveis e dependem de consciência, graus de explicitação e coletivização.

A transgressão das normas nas situações cotidianas resulta em micro ações políticas subversivas que se infiltram com valores imanentes de saúde. O envolvimento transgressivo como uma forma de resistir é uma expressão subjetiva de recusa oculta à organização do trabalho, à exploração e à degradação dos modos de vida.

Para Scott (2011, 2013), essas formas ocultas de luta de classe têm certas características em comum: exigem pouca ou nenhuma coordenação; são um modo de autoajuda individual; e evitam qualquer confrontação simbólica à autoridade ou às normas da elite. Estas práticas corriqueiras e cotidianas de resistência são a maneira como os trabalhadores agem entre as greves e paralizações para defender seus interesses. Para Efros e Schwartz (2009), a resistência faz parte da combatividade humana no trabalho, subvertendo a ordem estabelecida e concretizando táticas diferentes, por meio de atos, gestos, palavras aparentemente insignificantes, sem publicidade, que podem influenciar as práticas de gestão.

As formas públicas – como insurreições, rebeliões, greves e paralizações – expõem os participantes a maiores riscos e são mais espaçadas, pois tendem a ser esmagadas e neutralizadas pelo poder coercitivo e hegemônico que busca reduzir a porosidade no trabalho e aumentar a produtividade (Scott, 2011, 2013). As oposições à exploração da classe trabalhadora ocorrem por uma diversidade de práticas e reacomodação de estratégias, na medida da organização interna para se contrapor, aceitar ou desafiar os limites possíveis da conjuntura (Minayo, 2004). Para a resistência pública é necessário ganhar terreno e trabalhar nos bastidores em um processo de luta lento, silencioso, em que se mobilizam indivíduos e grupos (Scott, 2011, 2013).

O discurso que mobiliza é qualificado como resistência, seja oculto, seja público, sendo a discrepância e a dialética entre eles evidentes na socialização. O oculto apresenta linguagem, manifestos em gestos, discursos e práticas normalmente excluídos do discurso público, constantemente policiado. A prática de dominação cria atos discursivos ocultos, como condição da resistência prática, com dimensão, virulência e símbolo de relativa liberdade dos oprimidos da infrapolítica, que ripostam o não dito na face do poder, sendo partilhados na sociedade. Tais práticas são destinadas a minimizar a apropriação material, de estatuto ou ideológica, por meio de um conjunto de mecanismos triviais que atuam de modo decisivo na conquista do espaço social. A fronteira dos discursos de dominação e resistência é terreno de luta e renegociação das relações com efeitos políticos e econômicos (Scott, 2013).

Reconhecemos a resistência como práxis do sujeito sócio-histórico, pois a sua prática orienta a mudança social (Rhéaume, 2005). Politicamente, os movimentos e as formas ocultas de resistência nascem como fenômeno espontâneo ou da conscientização de indivíduos e pequenos grupos mobilizados e rebelados contra alguma forma de poder (Scott, 2006, 2013). A resistência pública voltada à organização dos trabalhadores está historiada (e.g., Antunes, 1991, 2018; Costa, 1995; Martin-Artiles, 2003), mas não é o foco deste ensaio. Destacamos os sindicatos, neste movimento de luta por melhores condições de trabalho e por direitos, ao mesmo tempo que salientamos que existem novas formas públicas de organização do trabalhador e que estas se renovam permanentemente.

Scott (2006, 2013) apontou que cada resistência pública barulhenta é parceira da infrapolítica disfarçada, que possui os mesmos objetivos estratégicos. A infrapolítica da resistência é uma maneira estratégica na área discreta da luta política presente, constante no alto grau de tensão e conflito entre ricos e pobres, patrões e trabalhadores (Scott, 2013). É uma política cuidadosa e evasiva que evita perigos, riscos e conflitos abertos, como marchas, petições, tumultos, manifestos políticos e comícios públicos. Uma conformidade maciça, silenciosa e não declarada composta de milhares de pequenos atos individuais de insubordinação no dia a dia, expressos na forma de fazer corpo mole, dissimulação, falsa concordância, ignorância fingida, silêncio, boicote social a festas da elite, fofocas, boatos, rumores, mentiras, ameaças, agressões, pequenos furtos, atos de violência sob anonimato, calúnia, sabotagem e resistência cultural, utilizados como moeda de conflito e luta de classe, pois não há a ilusão de seus praticantes serem ouvidos (Scott, 2006, 2012, 2013).

Na arte do disfarce político, técnicas como resmoneio, eufemismos e anonimatos são elementares (Scott, 2013). O uso do anonimato na infrapolítica é um elemento de segurança, pois torna difícil ao antagonista culpar e aplicar sanções, ao mesmo tempo que concede aos trabalhadores explorar os limites do que é permitido nas experiências e nos ataques gradativos e frequentes. Permite ainda ao trabalhador adquirir benefícios, tanto na economia de reserva de tempo como na liberação da agressividade, satisfazendo a desforra imaginária dos patrões por meio dos ritos e de modo simbólico (Flynn, 1916; Lima, 2006; Oddone et al., 1981; Ong, 2010; Scott, 2013).

Os trabalhadores diante dos problemas da organização do trabalho e dos riscos à saúde, inventam e buscam soluções para agir nas situações de trabalho a partir do confronto e da validação consensual das experiências individuais e coletivas (Oddone et al., 1981). As maneiras de como fazer o trabalho, desenvolvidas pelo coletivo de trabalho e transmitidas informalmente pela socialização das experiências, criam uma lógica de dimensão relacional valorativa de convivência de grupo, oposição à gestão e defesa de seus saberes.

As resistências nas situações laborais são influenciadas pelas formas de controle, gestão, crenças e vivências sobre a severidade das retaliações, não sendo dirigidas necessariamente à fonte imediata de apropriação, pois o objetivo é atender necessidades cruciais, como segurança, sobrevivência e renda, buscando não ser percebidas enquanto resiste (Scott, 2011). Minayo (2004) descreveu que diante da rotinização e dos excessivos controles gerenciais, os trabalhadores recorrem a outras maneiras de resistir, como o absenteísmo, lapsos de produção, produtos defeituosos e o uso do humor. As formas individuais e coletivas de resistir ficam evidentes no momento da ação, lacuna entre o trabalho real e o prescrito, interpretada como espaço de resistência que tornam o existir no trabalho mais habitável e suportável, amenizando o sofrimento (Linhart, 2009).

No trabalho real, existe entre a concepção prescritiva e a sua realização uma lacuna de múltiplas variabilidades relacionadas às condições e organização do trabalho, condições do ambiente e do trabalhador (físicas, psíquicas e sociais) que deverão ser gerenciadas, convocando resistências a depender da situação e de suas incertezas. Deste modo, a existência da heteronomia do trabalhador pode ser negada (Efros & Schwartz, 2009).

O estilo de resistência cotidiana é informal, dissimulado e preocupado com ganhos imediatos, negando objetivos públicos. A insubordinação ostensiva, a inobediência prática e a recusa em obedecer ocorrerão praticamente em todo o contexto, penetrando nas situações sem contestar as definições formais de poder e hierarquia. Para muitas classes essa é a única opção, simbólica, persistente e inventiva, muitas vezes, reforçada por uma cultura popular de resistência (Scott, 2011, 2013). No dia a dia é a dinâmica entre subordinação e resistências sub-reptícias, realizadas nos pequenos atos reveladores das relações de produção que afrontam o trabalho e o capital (Minayo, 2004). Tal forma de resistência cotidiana opaca e pertinaz só é possível quando ocultas por máscaras de submissão, medo e cautela. Esta visão também é partilhada por Chauí (2013), quando descreve a dialética do conformismo e da resistência como aspecto utilizado pelos trabalhadores de uma resistência situada.

As práticas cotidianas são artes do fazer e do não fazer, pois, ao mesmo tempo que a ordem é exercida, é também burlada. Assim, subverter as ordens por dentro, não as rejeitando ou as transformando, encontram “uso que os meios ‘populares’ fazem das culturas difundidas pelas ‘elites’ produtoras de linguagem” (Certeau, 1998, p. 95). Ong (2010), a partir da cultura das trabalhadoras, analisou o confronto da disciplina industrial, questionando se tal resistência por possessão de espíritos teria ligação com base nas tradições pré-industriais ou seria uma forma de ataque contemporâneo e protesto social. É a forma de resistência simbólica descrita por Scott (2006, 2013) ao se referir aos grupos informais quando ela é convocada nas diferentes formas de subculturas dissidentes aparentemente inocentes na cultura oral, lendas populares, processos de inversão simbólica, rituais e espaços de subversão, como o carnaval, considerados válvulas de escape e segurança, controlando a violência, raiva e agressividade dos subalternos.

A história é tecida por essa revolta prolongada e permanente contra a servidão, composta de uma sucessão de conflitos agindo em um só tempo por detrás das relações de produção, das estruturas econômicas, das lutas de classes, das ideologias, e, “de forma mais imediata, uma infinidade de situações concretas e atuais” (Lima, 2006, p. 280). Exemplo dessa reconfiguração das demandas e resistências pode ser o quadro atual pandêmico e o deslocamento do trabalho para o home office, muitas vezes utilizando os instrumentos tecnológicos de demanda para instaurar uma nova resistência. As conversas preliminares das reuniões e a infrapolítica construída foram transferidas para os espaços de aplicativos de conversa. Da mesma forma, outros usos dos recursos tecnológicos na formação de redes informais de apoio no trabalho, erros programados do uso da tecnologia e o silêncio virtual podem ser parte desta tecno-resistência oculta protagonizada pelos trabalhadores na pandemia da Covid-19. A tecnologia também auxiliou a resistência dos trabalhadores que permaneceram nas ruas, por exemplo, na articulação e organização dos entregadores de aplicativos. Muitas das formas cotidianas de resistência, sejam elas disfarçadas, discretas ou não declaradas e que constituem a infrapolítica, podem ser identificadas, sendo descritas e exemplificadas na Tabela 2.

Tabela 2 Identificação, descrição e exemplificação das resistências ocultas no trabalho 

Identificação Descrição Exemplos
Ameaças dissimuladas ou anônimas Realizar agressões e ameaças disfarçadas, ou sob anonimato. Intimidar colegas e chefias de trabalho sob a cortina do anonimato. Utilizar informação privilegiada para impedir a demissão de um colega de trabalho, usando o anonimato.
Atos de insubordinação Desafiar o poder estabelecido por pequenos atos de insubordinação. Fazer corpo mole (To drag your feet), dissimulação, falsa concordância, ignorância fingida, silêncio, boicote social, fofocas, boatos, mentiras, ameaças, agressões, pequenos furtos, atos de violência sob anonimato, calúnia, sabotagem e resistência cultural.
Boicote social à chefia, pelego, bajulador Excluir e isolar socialmente quem faz ato não aprovado pelo coletivo de trabalho. Isolar a pessoa nas refeições ou momentos de confraternização da empresa; ficar em silêncio e dispersar o grupo diante da pessoa. Não convidar para os eventos e boicotar os seus convites. Não visitar ou cumprimentar a pessoa fora do ambiente de trabalho.
Captar tempo para descanso Aumentar o ritmo para ganhar tempo e folga. Acelerar o ritmo de certas tarefas do processo sem aumentar a produção para liberar tempo para descansar até reiniciar a próxima.
Conchavo de ações, códigos e opiniões Combinar práticas e posicionamentos a serem adotados. Acordar o modo de atividade a ser executada pelos trabalhadores ou posicionamento de opinião em relação a uma chefia. Partilhado por duplas e grupos de trabalho em que se estabeleça confiança.
Cooperação e solidariedade Cooperar e solidarizar com as situações de trabalho e saúde. Auxiliar os colegas nas dificuldades de execução do trabalho e ajudar nos momentos de doenças que dificultam o seu trabalho, bem como na sobrevivência e renda quando estes são afetados.
Criatividade, invenção e saberes tácitos Criar novas formas de fazer o trabalho com base nos saberes. Inventar novos modos de realizar as atividades no cotidiano de trabalho, seja por criatividade da ação, invenção de técnica e instrumentos, inovação de processo, experiência e astúcia prática.
Denúncia da empresa e pessoas Acusar a empresa, chefias e pessoas por descumprir normas. Entregar anonimamente aos órgãos competentes situações de risco, quebra dos protocolos sanitários e/ou de segurança realizada por trabalhadores, chefias ou a empresa.
Desobediência e recusa Subverter e recusar obedecer a realização da prescrição. Recusa para realizar atividade de trabalho ou obedecer a uma ordem as quais oferecem algum risco ou cause desconforto ao trabalhador (Abandono e inobediência prática).
Difamação de empresa, chefia, pelego ou bajulador Realizar fofocas, calúnia e amplificar boatos e rumores de pessoas e intuições. Maldizer a empresa, chefia, pelego ou bajulador por meio de mexericos e/ou calúnia ampliadas por boatos e rumores para a desmoralização diante dos acontecimentos no cotidiano do trabalho.
Discurso oculto (verbal e não verbal) Expressar o que não pode ser dito publicamente. Manifestar escárnio, raiva, agressão e dignidade disfarçados pelo uso de símbolos, gestos e histórias do cotidiano do trabalho que envolvem humilhação, rancor, vingança e humor. Este tipo tem acontecido em outros espaços, como nos aplicativos de conversa.
Dissimulação das atividades Ocultar os procedimentos ou a realização tácita. Dar aparência de que o trabalho real seguiu o procedimento padrão do trabalho prescrito. Realizar fraudes funcionalmente obrigatórias nos processos de trabalho.
Espaços alternativos de sociabilidade Criar espaços de troca de experiência, apoio e socializar no cotidiano do trabalho. Compor espaços dos grupos de trabalho para socializar no refeitório, intervalos, assim como nos aplicativos de conversa que facilitam a comunicação e apoio em situações problemáticas do trabalho que evocam a experiência coletiva para a sua resolução.
Falsa submissão/ concordância Fingir que concorda com o trabalho prescrito e que se submete às regras. Realizar a tarefa de acordo com a experiência do trabalhador, desconsiderando a ordem da chefia, dos protocolos e do trabalho prescrito. Muitas vezes o silêncio, deferência e o distanciamento são utilizados como falsa concordância ou submissão.
Humor, escárnio e eufemismos Utilizar humor, escárnio e eufemismos como mecanismos de resiliência no trabalho. Usar a jocosidade para “amenizar” quadros frente às demandas e situações laborais. Podem estar ligadas à vazão das frustrações e aos ressentimentos com chefias, colegas ou empresa, ou somente as situações embaraçosas e engraçadas do trabalho. Uso da ironia, paródias, canções, encenações, piadas e sorrisos por conveniência social.
Ocupação de espaços e cargos Ocupar espaços e cargos usando o conhecimento tácito. Conquistar espaços e cargos nos quais o conhecimento formal não supera o conhecimento tácito, a experiência e a prática manual, mantendo o emprego, status ocupacional e profissional.
Operação tartaruga (Slowdown) Repelir o ritmo de produção pela lentidão no trabalho. Diminuir a eficiência do trabalhador no processo de trabalho, desacelerando o ritmo imposto, por exemplo, o uso de “corpo mole” no trabalho.
Pequenos furtos Roubar pequenos objetos/produtos e/ou instrumentos. Afanar pequenos objetos que podem representar: uma maneira de acesso ao produto do seu trabalho ou aos instrumentos; retaliação ao baixo salário, à sua exploração e ao seu valor simbólico.
Preservação das margens de manobra no trabalho Desenvolver estratégias divergentes aos programas de controle no trabalho. Elaborar meios de manter rotinas e modos de trabalho que não estejam totalmente prescritos por protocolos, programa de qualidade e supervisão, permitindo margens de manobra para o trabalhador, subverter a ordem estabelecida.
Relutância à norma e à prescrição. Hesitar em realizar uma ação ou ordem que represente risco. Tentar não realizar atividades de trabalho ou cumprir uma ordem que exponham o trabalhador a riscos, acidentes, desconfortos, aborrecimentos e desgastes desnecessários. Uso do ceticismo.
Sabotagem de processos e produtos Boicotar os processos e o ritmo de produção. Recusar-se a produzir, por meio da interrupção de processos, danificação de maquinário, rebaixar a qualidade e quantidade dos produtos ou rejeitar a adulteração exigida pelas chefias. Manifesta também ao seguir normas que atrasam a produção.
Silêncio, omissão e resmoneio Mudez, comedimento ou omissão de respostas para poupar o trabalhador. Silenciar, omitir e moderar falas/opiniões para poupar-se de situações, ordens e hierarquias fora do seu alcance de mudança ou para evitar desgastes desnecessários.
Simulação de ignorância – cinismo Disfarçar a falta de conhecimento sobre algo que tem domínio. Fingir que não conhece atividades, riscos, produtos, maquinários, procedimentos para ganhar tempo ou colocar à prova quem demanda o trabalhador, que disfarça ou não entra em conflito.

Nota – Tabela elaborada pelos autores com base em: Minayo (2004); Oddone et al. (1981); e, Scott (2011, 2013).

Muitas figuras ocultas podem se tornar públicas a depender da sua ampliação e publicidade adotada pelos trabalhadores. Parte das manifestações que fazem do conjunto de estratégias estão nomeadas como reservas de alternativas ou como margens de manobra, ação, autonomia, tolerância, transcendência, transgressão, liberdade ou resistência. A Tabela 2 mostra invenções, fluidez, astúcia e estratagemas que as resistências ocultas podem adquirir no jogo engenhoso com o poder, identificando formas refinadas e táticas com várias singularidades em sua elasticidade, a depender da situação de trabalho.

Ressaltamos que as mesmas estratégias ocultas descritas na Tabela 2 estão incluídas no processo de renormalização, sendo que parte são captadas pelo poder. Um destes é o saber-fazer e o conflito originário do saber tácito protegido como campo de resistência. Este passa a ser valorizado, capturado e incorporado pela gestão como elemento de proatividade e criatividade dos trabalhadores na busca de soluções por premiações individuais. As propostas do trabalhador multifuncional e polivalente são estratégias, mascaradas, codificadas e efetivas para cooptação ideológica e subjetiva (Carreteiro et al., 2015; Linhart, 2009; Minayo, 2004).

A resistência oculta acaba por se personalizar, tornando-se mais difícil de se detectar pelas investidas no trabalho individualizado promovido pelo capital, ou situações adversas, como a pandemia da Covid-19. As formas de resistir são inventadas e induzidas pelos aparatos da época e pela situação contemporânea parcialmente nova, sendo ativas, afirmativas, inovadoras, radicais, combativas e singulares (Proust, 1998, 2000). Mesmo fragmentando o coletivo, reduzindo as formas possíveis e a legitimidade do direito de resistir, as margens de manobra sempre existirão, pois é no cotidiano que aparecem reverberações dos conflitos macrossociais nas práticas de dominação, contrapostas pela resistência oculta como manifestação microssocial de enfrentamento à estrutura em atos de preservação do ser, sendo tanto um ato sociopolítico quanto necessário à saúde do trabalhador.

RESISTÊNCIA COMO PARTE E EXPRESSÃO DA SAÚDE

A relação entre resistência e saúde tende a permanecer encoberta nos conflitos no trabalho por alguns motivos: visão fragmentada de trabalho e saúde; desconsideração do ofício como operador de saúde; exclusão do desgaste como parte do trabalho; autopunição e culpabilização do trabalhador pelo adoecimento; proibição implícita do empregador em adoecer; cultura organizacional que conjuga a ausência de reclamação e a defesa contra a deterioração da saúde; manifestações de resistência que simbolizam a quebra de confiança do trabalhador na empresa; enfraquecimento das relações de cooperação/solidariedade e dos coletivos de trabalho; problemas de saúde e acidentes que não são associados aos ritmos de trabalho intolerável, exaustivos e/ou alienantes (Frayne, 2017; Sainsaulieu, 2017; Silva & Bendassolli, 2018, 2019). Os conflitos no trabalho devem ser o ponto de partida para a saúde, pois são campos de luta estratégicos da resistência do trabalhador com o poder.

A precarização do trabalho é mais um aspecto, incluído nas relações de poder sobre a determinação das condições de trabalho (abrangendo vínculos de emprego, salário, competitividade, a intensificação das exigências produtivas, o tempo no trabalho e a individualização das lutas), que coloca o trabalhador em uma situação preocupante em relação à preservação de sua saúde e vida. Ainda em referência às condições de trabalho, Lhuilier (2012) e Moulin e Moraes (2010) alertam sobre os fatores que impactam nas formas de resistir e de produzir saúde nos ambientes de trabalho, como: dominação da gestão e seu desconhecimento do trabalho real, desconsideração pelo saber-fazer dos trabalhadores, transformações do trabalho e o sofrimento psíquico.

Cada vez mais “a falta de resistência dos indivíduos no trabalho moderno se manifesta na tendência cada vez mais geral em recorrer a medicamentos de diferentes tipos, psicotrópicos, antidepressivos, relaxantes, etc.” (Linhart, 2009, p. 81). O consumo de drogas está substituindo mais o absenteísmo e se tornando aliado do presenteísmo pelo medo de perder o trabalho. A resistência contribui com as condições laborais, pois atividade e saúde são entrelaçadas no trabalho, tornando o uso de substâncias psicoativas – assim como: o stress, assédios, violências, traumas e suicídios – vetores do mal-estar no trabalho (Lhuilier, 2012).

As formas e manifestações das resistências mudam o tempo todo, podendo estar mais aparentes em algumas situações ou, em outras, mais escondidas, pois a “luta pela saúde não se faz apenas com a denúncia dos adoecimentos e acidentes produzidos nas situações de trabalho, mas também pela ampliação da capacidade de intervenção no seu trabalho e pelo modo como são engendrados movimentos coletivos” (Muniz et al., 2013, p. 289). Portanto, “saúde está relacionada à atividade, ao poder de agir, à capacidade de transgredir o meio e suas normas vigentes tendo em vista a criação de novos espaços de vida” (Silva & Bendassolli, 2018, p. 17). Neste sentido, resistência e saúde são determinadas pelo “poder de agir”, sendo que amplitude da saúde pode abarcar outros elementos, mas a resistência é um dos seus atributos. A resistência é parte e, ao mesmo tempo, a própria expressão da saúde, utilizando estratégias para manter a integridade do ser, por meio de artifícios de variadas formas. A resistência é propulsora e permite criar um campo de possibilidades para a saúde, constituindo-se como oportunidade de tornar as normas do meio menos agressivas ao trabalhador. O desgaste e o adoecimento ocorrem quando não existe espaço possível para renormalizar. Saúde é, ao mesmo tempo, conservação, desvio e inovação das normas singularizadas pelo trabalhador ao operar o fenômeno.

Em síntese, a saúde utiliza a resistência para reagir, para criar espaços de manobra para o trabalhador a partir da experiência, que amplia suas formas de liberdade. Resistir às normas é um ato saudável, presente em toda atividade, pois, ao mesmo tempo que busca se proteção, confronta-se a ameaça que causa doenças. Resistência não existe somente em determinado momento, mas faz parte do processo de saúde-doença, assim como a resistência e a saúde fazem parte de toda atividade ou situação de trabalho e vida.

Neste sentido, Canguilhem (2009) entendeu o adoecimento como uma dimensão da vida. Não seria somente desequilíbrio, mas também esforço para um novo equilíbrio, sendo ao mesmo tempo, privação e reformulação. Para Canguilhem (2009, pp. 12-13), a doença é “uma reação generalizada com intenção de cura”, pois se trata de uma ameaça à existência. Assim, a doença também surge como expressão do organismo ao meio, sendo possível que certas patologias ou ações degradantes a saúde, sejam respostas para diminuir o ritmo ou função do trabalho como descrito por Lima (2006) para conservar a vida. Desta maneira, pode ser entendida como forma subjetiva de resistência encontrada pelo trabalhador a reações catastróficas ao trabalho.

A vinculação entre resistência e saúde são consideradas por Canguilhem (2001), ao analisar o trabalho de Friedmann (1946, pp. 245-246), no que se refere às “medidas que a ele são impostas de fora”. Canguilhem (2001, p. 116) revela as resistências do trabalhador e reflete que elas devem “ser compreendidas tanto como reações de defesa biológica quanto de reações de defesa social e nos dois casos como reações de saúde”. As formas de defesa biológica e social são modos encontrados para manter à saúde nas situações do cotidiano de trabalho e vida, que agregam interesses individuais e coletivos contraditórios, pois não se trata de uma saúde somente física, mas que atenda aos anseios psíquicos e sociais, pois o organismo e o meio se relacionam de modo similar (Canguilhem, 2009).

Podemos ainda apontar a resistência como porção da saúde, pois uma se torna atributo da outra, como fontes recíprocas que assumem características partilhadas, tais como: fluidez e plasticidade dos fenômenos; destinadas a preservação do ser; imanentes, mas podem ser convocadas em níveis e gradações de acordo com a situação; demandas da vida; possuem sentidos e singularidades para cada indivíduo e coletivo; expressas e manifestas de formas variadas; operam na liberdade e na flexibilidade de o ser agir conforme suas regras; dependem do uso de si e dos outros; diretamente relacionadas com o meio e de suas capacidades de resposta a esse; transpassam o fenômeno de manutenção biológica e se inserem como fenômenos sociais da vida.

A saúde é “essencial da atividade em sua dupla vocação subjetivadora e socializadora”, se referindo às formas de vida singulares e coletivas dadas e criadas na atividade (Lhuilier, Barros, & Araújo, 2013, p. 9). É uma relação com o meio e os modos de vida, assim, para Brito (2017, p. 2), a “saúde está muito vinculada tanto ao meio em que vivemos quanto a capacidade que temos e desenvolvemos (individual e coletivamente), para transformá-lo segundo os nossos interesses e valores, (re)afirmando nossa potência de vida”. A potência da saúde para Canguilhem (2009, p. 78) está na capacidade de instaurar “normas vitais”. Desta forma, a “saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio”, sendo uma experiência singular de sua relação com o meio sócio-histórico, arriscando e propondo diante das normas antecedentes suas próprias normas em saúde (Gomes & Schwartz, 2014), expressas na normatividade do ser, manifestas por formas de mobilização direcionadas a reações da dignidade da vida.

A ideia de saúde como reação às normas do meio está ancorada no trabalho de Canguilhem (2009), pois sendo o homem um ser da norma, saúde é a disposição permanente de instituir novos padrões de vida nas situações de exercício em oposição à degenerescência e à morte, por resistências que se revelam por meio de combinações complexas de elementos que diferem em intensidade, engenhosidade, complexidade e inventividade. Conservando, destruindo e instituindo frente aos obstáculos e restrições encontradas, liberando possibilidades, a “vida se recupera simultaneamente, parcialmente e imparcialmente” (Proust, 2000, p. 22). Assim, saúde e resistência são forças sempre em curso, que contrapõem à morte na situação limite, expressas na capacidade de dar resposta às situações (Proust, 1997).

A força da resistência está na conversão de reatividade da indignação e situações negativas no trabalho em sessões ativas, como a invenção, firmeza, coragem em assumir riscos e perseverança. Este agir por “contra conduta” é no sentido foucaultiano, invenção de novas possibilidades de vida na constituição de modos de existência alternativos, novas subjetividades, ainda que a relação consigo mesmo não repercuta no poder político (Díaz, 2008; Proust, 1998). As linhas de fratura são as linhas de batalha da resistência, muitas vezes por meio de ações de multiplicidade limitada, sem treinamento e com singularidades que oscilam nas ações/situações de trabalho e constroem novas subjetividades a cada limite testado ou ultrapassado. Quanto mais se instauram situações de transformação pelo trabalhador, mais se fortalecem vetores de saúde no trabalho e amplia “o poder de agir”. Este, para Spinoza (2007), garante a perseverança do ser, e para Clot (2010) é fonte de saúde no trabalho, pois é a ação de produzir um contexto para viver nas situações de vida e trabalho.

Assim, a resistência age para “viver em saúde” frente às incertezas e às infidelidades do meio (Efros & Schwartz, 2009). “A resistência é uma exigência humana de saúde” (Gomes, 2018, p. 80), para instituir uma nova relação com o trabalho, como um movimento de redistribuição de vida, por meio dos “círculos de resistência” como condição às possibilidades da perseverança do ser e como força elementar da vida (Barkat & Hamraoui, 2009, p. 204). Deste modo, os trabalhadores combatem a política de repressão da existência implantada no trabalho, atravessando tudo o que é possível na sua busca por liberdade, saúde e vida.

A saúde se torna expressão do corpo produzido: ao mesmo tempo que se protege do risco, tem a audácia de se expor para ultrapassar as capacidades iniciais que não vislumbrava (Canguilhem, 2005). “O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas” (Canguilhem, 2009, p. 77). Assim, a resistência contínua na relação com o meio permite o desenvolvimento da saúde como processo dinâmico.

A compreensão do processo saúde-doença baseado em Canguilhem está na possibilidade de criar novos modos de vida, que vai além de um processo de adaptação, mas está ligada a capacidade de estabelecer normas, tolerar e reagir às “infidelidades” e às agressões, recorrendo à resistência como exercício de subversão e experiência de liberdade na criação de estratégias em reação ao meio (Proust, 2000; Silva & Bendassolli, 2018).

Gerir o impossível/invivível para Schwartz (2019) tem a finalidade da autopreservação da vida e da saúde, pois o corpo que está no trabalho lança mão das estratégias voltadas à proteção, retrabalhando as normas do meio – social, de vida e trabalho – em torno de suas próprias normas em saúde. Assim, a saúde se torna uma “margem de tolerância”, por um lado, às “infidelidades” do meio e, por outro, a capacidade de, individualmente ou coletivamente, criar novas normas, transformando e agindo sobre o meio, incluindo o trabalho, por meio do debate. A dificuldade de instituir e revisar normas aumenta a escala de desenvolvimento de desgastes e adoecimentos, pois não conseguir renormalizar torna o meio invivível para o trabalhador (Canguilhem, 2005, 2009; Silva & Bendassolli, 2018).

As relações sociais e os coletivos de trabalho são importantes no processo de renormalização, por meio da criação das estratégias e do desenvolvimento da ação nas margens necessárias para proteger a saúde (Silva & Bendassolli, 2019). Os coletivos de trabalho, uso da criatividade e arbitragens nestes processos de proteção são entendidos como indicadores de saúde do trabalhador e do trabalho. Ao mesmo tempo, podemos elencar que os atributos da resistência já descritos na primeira parte do ensaio são também indicadores de saúde do trabalhador e do ambiente de trabalho. A resistência e a saúde são, assim, indicadores uma da outra, pois existe uma relação de mutualismo e dependência entre estes dois fenômenos.

Para promoção, prevenção, proteção, reabilitação e manutenção da saúde no trabalho é necessário criar articulações para identificar, entender e atuar sobre as condições laborais e organizacionais nocivas, buscando fortalecer os trabalhadores e os seus coletivos para que as manobras de resistência/saúde se ampliem fora do ambiente laboral, no campo político e macrossocial. Por meio das resistências coletivas, buscando uma situação de trabalho vivível, – na sua intensidade, segurança, tempo, prazer, requisitos de construção da saúde individual e coletiva – sendo assim, resgate da saúde e resistência como direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resistência no trabalho é aparato estratégico, incansável e mutável no cotidiano, faz conquistas antes impensáveis e impossíveis por meio de pequenos atos inventivos que exploram as possibilidades de reconfiguração das normas e se arriscam em artimanhas nas situações laborais tensionadas pelas relações de poder. O modelo e definição propostos para a resistência, auxiliam a análise e compreensão de sua elasticidade, dinamicidade e atributos convocados na sua manifestação no trabalho, a partir da abordagem psicossociólogica.

As resistências ocultas são expressões singulares do cotidiano do trabalhador e seu grupo face a vigilância e controle gerenciais da organização do trabalho. Este fenômeno acontece na vida de todos, com configurações variadas, manifestas e convocadas continuamente nas situações de vida, como prática contestadora em processo de transformação constante.

A resistência como parte e expressão da saúde é potência imanente que permeia o trabalhador e seu coletivo, na vida e no trabalho. Como uma reação de autopreservação e emancipação para escapar ao insuportável, a resistência é, assim, atributo de conservação e estratégia de ampliação da saúde, um ato saudável em relação ao meio. No cotidiano laboral uma face da saúde age pelas brechas possíveis do resistir de forma concreta, busca desenvolver, reativar estratégias e espaços indefinidos de liberdade continuamente. A resistência permite, dessa forma, dar vazão às expressões de subjetividade, inventar e (re)trabalhar a norma, como práxis social da manutenção da saúde e da vida, pois os seus processos e atributos convocados no cotidiano constituem indicadores positivos de saúde do trabalhador e do trabalho.

Por se tratar de artigo reflexivo entendemos que aperfeiçoamentos propositivos poderão advir de testes empíricos e de outras proposições teóricas em pesquisas futuras, explorando por exemplo, a articulação de níveis de análise para o avanço da compreensão do fenômeno e o seu refinamento conceitual.

Financiamento

Bolsista de produtividade CNPq (PQ1A)

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

1A regulação coletiva do processo de trabalho por meio de resistências passivas e/ou ativas são desenvolvidas para o enfrentamento das exigências produtivas. Para Silva (1986), a resistência ativa pode opor-se de modo persistente e por vezes violento ao exercício da autoridade constituída. A resistência passiva age manobrando as situações de enfrentamento, configurando como um ato diferente por seu significado e por suas consequências, tendo efeitos sindicais muito importantes e repercussões jurídicas e políticas. Proust (1997) classifica como resistência conservadora e resistência inovadora, entre resistores reativos e ativos, respectivamente.

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Recebido: 16 de Setembro de 2021; Revisado: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022

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