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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

        07--2024

 

Artigo Original

A PSIQUIATRIZAÇÃO DA POLÍTICA NO COTIDIANO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO NA MÍDIA IMPRESSA E ONLINE

La psiquiatrización de la política en la cotidianidad brasileña contemporánea en los medios impresos y en línea

The psychiatrization of politics in contemporary brazilian daily life in print and online media

ANDERSON DE CARVALHO PEREIRA1 
http://orcid.org/0000-0002-1485-0095

1Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo - USP Ribeirão Preto. Professor titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Programa de Pós-graduação em Educação. Vitória da Conquista/BA. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq http://orcid.org/0000-0002-1485-0095 E-mail: apereira.uesb@gmail.com


RESUMO

Neste artigo, mostramos como discursos do cenário político brasileiro contemporâneo circulam no cotidiano, recobertos pelo que parecem ser evidências da Psiquiatria. Trata-se de um estudo, portanto, que remete aos aspectos histórico-discursivos da construção de uma noção de interioridade. Para isto, foram analisadas reportagens sobre políticos brasileiros da atualidade (incluindo-se manchetes, chapéus de notícias, comentários de leitores/internautas), conforme o referencial da Análise de Discurso de Pêcheux e da Psicanálise de Lacan. Os resultados mostram um sujeito disperso, entre a evidência do “diagnóstico” e o apagamento de outras interpretações possíveis, a saber: relação entre política e crime, discordância e contradição em detrimento de consenso.

Palavras-chave: psicopatologia; saúde mental; política; análise do discurso; psicologia social

RESUMEN

En este artículo mostramos cómo los discursos la escena política brasileña contemporánea circulan en la vida cotidiana, amparados por lo que parecen ser evidencias provenientes de la Psiquiatría. Se trata, por tanto, de un estudio que remite a los aspectos histórico-discursivos de la construcción de una noción de interioridad. Para ello, se analizaron informes sobre los políticos brasileños actuales (incluídos titulares, palabras clave de noticias, , comentarios de lectores e internautas), bajo el sesgo del Análisis del Discurso de Pêcheux y del Psicoanálisis de Lacan. Los resultados muestran un tema disperso, entre la evidencia del “diagnóstico” y la borradura de otras posibles interpretaciones, a saber: la relación entre política y crimen, desacuerdo y contradicción en detrimento del consenso.

Palabras clave psicopatología; salud mental; política; análisis del discurso; psicología social

ABSTRACT

In this paper we show how the discourses of the contemporary Brazilian political scene circulate in the daily life, supported by what appears to be evidence from Psychiatry. It is, therefore, a research that refers to the historical-discursive aspects of the construction of a notion of inferiority. To do this, reports on current Brazilian politicians were analyzed (including headlines, news keywords, comments from readers and internet users), under the bias of Pêcheux’s Discourse Analysis and Lacan’s Psychoanalysis. The results show a dispersed topic between the evidence of the “diagnosis” and the erasure of other possible interpretations, namely: the relationship between politics and crime, disagreement and contradiction to the detriment of consensus.

Keywords psychopathology; mental health; politics; discourse analysis; social psychology

INTRODUÇÃO

A base garantidora dos direitos humanos somente se fortaleceu no período pós-Revolução Francesa. Afinal, as liberdades individuais asseguradas pela justiça social e pelos direitos humanos fundamentais passaram no transcurso de longo período após a queda da Bastilha, ao tornar a tortura e a negação do direito à ampla defesa crimes contra a humanidade. A ponte entre este período e as bases fundamentais desses direitos preconizadas também pela Organização das Nações Unidas (ONU), após a Segunda Grande Guerra, passou a almejar a diversos outros avanços no Estado de bem-estar social.

Sobretudo no século XIX, as liberdades individuais e garantias sociais sofreram influência razoavelmente danosa com o avanço do paradigma naturalista e biomédico de cunho positivista que alargou seu alcance como o fiel da balança sobre o binômio “normalidade versus anormalidade”. Este paradigma se espraiou no cotidiano e atravessou diversos meandros da sociedade, desde a restrição da representação político-partidária, passando pela relação entre loucura e anormalidade, bem como entre crime e loucura. A perseguição eugenista aos considerados maus herdeiros de uma moral “pura” é um exemplo. Ademais, o bastião das (re)definições sobe “loucura” indicam neste período um aparente relativismo. Todavia, esconde uma rigidez da moral e dos costumes marcada por uma psiquiatrização do cotidiano.

É emblemática deste percurso a novela de Machado de Assis (1882/1994) intitulada “O alienista” em que o psiquiatra Simão Bacamarte encarna uma espécie de juiz da normalidade ao passo que também é reconhecido ao longo da trama como uma espécie de legislador, jurista e executor de ações de natureza política. A novela retrata um cientista médico que conduz uma gestão política totalitária. Em um movimento de aparente boa intenção, benevolência e altruísmo para a “cura da anormalidade” da conduta das pessoas, a peça ficcional encarna o desmantelamento dos três poderes – outra das conquistas das revoluções liberais, como a Revolução Francesa – e certo retorno, com roupagem positivista, da monarquia absolutista.

Nossa hipótese principal é que este recobrimento do valor político das relações por um viés de avaliação da conduta do homem ordinário e de sua trivialidade pela psiquiatria tem retornado no cenário político do cotidiano brasileiro contemporâneo.

A partir desta hipótese construída à medida que entramos em contato com reportagens (incluindo-se manchetes, chapéus de notícias, comentários de leitores/internautas), analisamos neste artigo parte desta materialidade discursiva a fim de trazer à tona para a comunidade científica a questão do que denominamos psiquiatrização da política no cotidiano brasileiro contemporâneo. Para isto, vamos apresentar a seguir um breve panorama histórico-discursivo da noção de interioridade e os conceitos de sentido, sujeito e de imaginário que em uma vertente lacaniana e pecheutiana são mobilizados para a fundamentação de nossa análise.

ASPECTOS TEÓRICOS

BREVE PANORAMA HISTÓRICO E DISCURSIVO DA NOÇÃO DE INTERIORIDADE

Em Elogio da loucura, Erasmo de Rotterdam (1509/2006) já mostra uma reflexão sobre a hipotética descida do céu de alguém que questiona as crenças metafísicas cristãs. Este também era um modo de provocar questões sobre a interioridade, pois convocava a população a refletir sobre quem seria considerado louco. Ademais, por isso, a loucura indicaria fazer-se sábio, porque o sábio estaria deslocado da conjuntura de uma época. Este deslocamento instala dilemas: afinal, seria maior loucura ignorar novas reflexões como estas ou seguir o fingimento da crença cega na metafísica?

Isto demonstra que a alteridade do homem do Renascimento determinado pelo descentramento das navegações mundo afora (Santi, 1998) também se configura por estes padrões de “normalidade” e “loucura”. Nesta conjuntura, as telas “A operação da pedra (A cura da loucura)” e “O jardim das delícias terrenas: paraíso/inferno” (Copplestone, 1997) de Hyeronimus Bosch (1450-1516) jámostra este mosaico de manifestações de si mesmo por meio da interioridade do “bem” e do “mal” no convívio consigo e com o outro.

Acerca da primeira, há uma inscrição na borda (“Mestre, extirpe a pedra. Meu nome é Lubbert Das”) que orna a quadratura da tela e recorta um enfoque circular como uma lente. Copplestone (1997, p. 18) a explica: “Era crença comum na época de Bosch que uma operação para remover uma pedra da cabeça de um paciente curaria sua loucura inerente”.

Com esta imagem icônica, chegamos mais perto dos processos históricos de um corpo social disperso e suas muitas partes de gozo voltadas a uma unidade. As retratações artísticas de Bosch não estão deslocadas do mundo terreno e desconectadas entre si. Os pecados e a labuta ordinária dialogam entre si e fazem parte de um mundo material. Neste mesmo universo simbólico, há um nome próprio (Lubbert Das) e um sofrimento (“loucura”) ainda designado pelo objeto que lhe faz referência: uma pedra. Portanto, há um nome próprio e um objeto colados a um referente ainda pouco definido, a “loucura”. A pedra da cura possui a “loucura”. Mais tarde, o “louco” passa a ser aquele sujeito que possui (tem) a “loucura” sem que esta possa ser localizada tão precisamente em um objeto. Está assujeitado a ela. Há um giro discursivo neste ponto. Portanto, os desdobramentos dos embates metafísicos já debatidos por Rotterdam (1509/2006) vão sendo representados por deslocamentos em busca de uma dimensão da interioridade articulada à materialidade simbólica dos nomes, dos referentes e dos relatos.

À época de Bosch, esta interioridade reflete uma coletividade profana e mundana pela qual, de outro modo, outros universos simbólicos de fora do monopólio do cristianismo, refugiam-se de forma não totalmente negacionista e apartada, porém descentrada deste último: não são cristãs, mas de alguma forma resvalam nesta alteridade. É o caso de agremiações e suas crenças sustentadas por uma religiosidade fantasiosa como as dos “Andarilhos do bem” que em defesa de boas safras perseguem grupos como os das mulheres consideradas feiticeiras e bruxas (Ginzburg, 1988).

A defesa de Erasmo de Rotterdam (1509/2006) de que as paixões não estão à parte na dicotomia com a razão indica o início de descentramento que marca o período. Na constituição de um sujeito cindido, a ser abordado mais adiante pela psicanálise, a reflexão sobre a “loucura” passa a reger a reflexão sobre a consciência de si. Essa simbiose entre o sábio e o louco é o contexto de telas decisivas do cenário europeu de então, como essas de Hyeronimus Bosch; ainda que nessas permaneça um misto de elucubração religiosa com delimitação de um objeto de conhecimento, que somente se aprofundariam no século XVII.

A partir dos séculos XVII e, sobretudo XVIII e XIX, respectivamente, com o Iluminismo e o Romantismo europeus, parte de nosso imaginário comum acerca da “loucura” como expressão da condição humana se mostra como embate entre um estado físico, mental ou de consciência. Sobretudo na passagem do século XVII para o XVIII, a noção de loucura como “des-razão” (Foucault, 1975) antecede, conforme João Frayze-Pereira (1985), uma ciência da loucura que a toma como objeto de conhecimento no século XVIII e que sustentará a própria noção de indivíduo.

Conforme Frayze-Pereira (1985), por sua vez, sobretudo a partir do século XVII para XIX, a loucura como “objeto” manifesta a interioridade da razão, com valor de coragem e desobrigação que culminará na área delimitada pela Psiquiatria, a saber: objeto do conhecimento na condição de desvio biológico e social a ser observado com certo relativismo e com normas objetivas claras.

De volta à novela machadiana, o que temos ali senão uma proposta de retomada do juízo, de redirecionamento do “bom” uso da razão por meio do gerenciamento, portanto, de um racionalismo positivado? Por isto que Georges Canguilhem (2014) destaca os juízos de valor e a volta ao aspecto funcional e vital de um organismo (ou indivíduo) nas ciências. Estas últimas passam a indagar o normal e o patológico no século XIX até a instituição do pressuposto da doença estar incluída como norma de vida: existe uma normalidade e normatização na doença, de tal modo que o patológico não se define pela ausência de norma.

O “normal” e o “patológico” aparecem no cotidiano a todo o momento. Nosso objetivo é mostrar esta presença ao circularem efeitos de sentido sobre a “loucura” na política em dizeres do cotidiano. A voz não identificada ou o veredicto dado por meio de um diagnóstico atribuído a uma figura pública do quadro da política e do governo, por um anônimo ou por um veículo de imprensa resgata esses discursos. Voltaremos a este ponto na análise do corpus.

Em suma, não acessamos “a loucura” ou sua “verdade”, mas “somente a sedimentação do que a história do Ocidente fez dela em 300 anos. A loucura é muito mais histórica do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também” (Foucault, 1975, p. 56). Assim, “Nunca a Psicologia poderá, dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da Psicologia” (p. 60). Isto porque este efeito paradoxal de dizer uma suposta verdade sobre a loucura decorre de que ao tentar fazê-lo a Psicologia toca seus próprios limites, sua condição de existência e suas possibilidades como ciência, podendo arruinar-se. No século XIX, Michel Foucault (1978/2006) explica que também a Psiquiatria fomenta a verdade de um sujeito do conhecimento na busca pelo parâmetro entre normalidade e loucura, passando pela constituição da Psiquiatria Legal.

Diante desta perspectiva, coube perguntar: como estes dizeres atuais sobre governantes brasileiros põem em funcionamento algumas destas zonas de sentido sobre a loucura e a Psiquiatria já postas a circular por esta noção de interioridade? Que relação entre sujeito e imaginário é esta?

OS CONCEITOS DE SENTIDO, SUJEITO E IMAGINÁRIO

Michel De Certeau (1990) nos explica que do ponto de vista histórico a psicanálise debate o homem ordinário e eventos triviais de seu cotidiano. Imerso e desafiado em dimensões de um mal-estar que inclui o trato com a política, de certa forma o homem comum sabe que o governante que o representa falta em parte com a verdade porque toca o impossível de governar. Sigmund Freud (1925/1968) discute esta impossibilidade de governar, em meio aos três ofícios (governar, educar e curar) e nos permite afirmar que não se alcança uma governabilidade que ocorra de forma ideal. Isto nos lembra Jacques Lacan (1998) e torna possível entendermos por que um lugar parece possível de interpretação e não outro. Esta rede de sentidos de discursos do Outro admite uma posição ora ocupada porque antecipada, ora porque o sujeito se dá conta a posteriori em que lugar foi interpelado pelo Outro.

É neste circuito da constituição pelo Outro que Michel Pêcheux (1993) ao fazer sua releitura do pressuposto althusseriano da interpelação do indivíduo em sujeito do discurso propõe seu modo de analisar a eficácia material do imaginário, resgatando também o pressuposto lacaniano do inconsciente enquanto discurso do Outro. Abase material do sentido é o pressuposto que permite na proposta de Pêcheux (1993) discutir a tomada de posição não como um papel social representado nem como ponto de vista, mas como lugar provisório na linguagem definido pela “relação a X”.

É a partir da noção de sujeito elaborada por Lacan, a partir de sua releitura de Freud que Pêcheux (1993) elabora sua teoria sobre a eficácia material do sentido e os processos de identificação no registro do imaginário. Em suma, o imaginário tem sua eficácia ao produzir evidências, mesmo recortando sentidos do Outro, e o faz ao atender expectativas, basear-se em aparentes obviedades, ao negar ao sujeito alienado ao Outro, estranhar o sentido.

Nesta perspectiva de Análise do Discurso (doravante, AD), essas aclamações para unidades que seriam dadas pelo exercício de papéis sociais ou de verdades produzidas por saberes com efeito de completude do sentido, em que este não parece aberto à outra interpretação, como na política ou na ciência, podem ser problematizadas.

A referência ao Outro e à interpretação que este permite (autorização/impedimento) no simbólico decorre de que a rede de sentidos pela qual circulam os significantes e pelos quais se formam cadeias de significantes depende do valor histórico destes últimos. É nesta anterioridade da História por uma rede de interdiscursos que a AD defende que “em uma conjuntura dada, sujeitos falantes, tomados na história, possam estar de acordo ou se confrontar sobre o sentido a dar às palavras, falar diferentemente embora falem a mesma língua” (Courtine & Marandin, 2016, p. 38). Sendo assim:

O sujeito, em AD, é ou uma máscara (um lugar vazio) na qual um indivíduo indefinido molda sua voz, uma voz impessoal em que as regras da sintaxe e os olhos da significância operam sobre um puro conteúdo, ou um “locutor coletivo”, o que reduz a realidade social dos discursos à existência de aparelhos homogêneos, sujeitos plenos de seus discursos. (Courtine & Marandin, 2016, p. 45, aspas no original)

Então, a mídia impressa e online incorpora alguns sentidos dados pela psiquiatria. Nesta linha, inevitavelmente, ocupa o lugar de um sujeito que supostamente falaria como um “locutor coletivo”, apagando outros efeitos de sentido possíveis, ou seja, outros discursos.

Na próxima seção, vamos abordar de que maneira este jogo no registro do imaginário é fabricado por uma sequência de padrões, de imposições de expectativas a serem cumpridas pelo leitor comum. É por este caminho que esta materialidade vem sustentando o que denominamos de psiquiatrização do cotidiano político brasileiro contemporâneo.

AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DOS DISCURSOS DAS MÍDIAS IMPRESSA E ONLINE

Conforme Pêcheux (2014) a tomada de frente pelas ciências do controle do comportamento e o modelo de administração gerencial predominante ao longo do século XX provocou revezes nas Ciências Humanas e Sociais. Uma decorrência foi sua despolitização.

Esta despolitização, por um lado, fortaleceu o monopólio da racionalidade e, por outro lado, a desvalorização da análise dos processos históricos. Por ocasião de seu trabalho de pesquisa na seção de Psicologia Social do Centre National de la Recherche Scientifique em Paris, Pêcheux (1993) critica a tentativa de uma Análise Experimental em pretender uma espécie de meta-código para explicar o comportamento cotidiano. Por conta disso, redefinir essas experimentações e teorias é um modo de as Ciências Humanas e Sociais fazerem política, de um modo que ao questionarem qual ciência para qual sociedade se contesta valores supostamente meta-científicos.

Esta reflexão de Pêcheux (2014) é relevante porque estes valores meta-científicos não aparecem apenas no espaço restrito dos laboratórios, mas na circulação do conhecimento científico no cotidiano. Esta redefinição não ocorre somente na própria ciência e aqui nos interessa discutir como, de forma análoga, a mídia redefine teorias ao mobilizar o discurso científico da psiquiatria. não se pode fazer um paralelo direto, pois houve um projeto sistemático de dentro do comportamentalismo para empreender esta disseminação. no entanto, a mídia apresenta questões das ciências médicas, no caso da psiquiatria, ao retratar governantes, também em um jogo imaginário de codificação do cotidiano aparentemente neutro, posto que a partir de um meta-código.

Este deslocamento do que aparentemente possa ser posto de lado com certa neutralidade recorre ao artifício denominado por Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) pelo conceito de esclarecimento. Trata-se de um processo de atualização de conceitos supostamente presentes na Psiquiatria. Deste modo, seja na ciência e em sua divulgação, sua vulgarização, destituem-se verdades universais e as substitui por outras. Reside nisso, o valor autoritário do esclarecimento. Sua “razão calculadora” (expressão dos autores) projeta um horizonte de aparente liberdade, mas com amarras reinventadas.

Seguindo esse percurso do plano das condições de produção dos discursos das mídias sob a nomenclatura da loucura é que notamos inicialmente este viés da psiquiatrização. Nesta pesquisa exploramos o tipo de esclarecimento feito pela mídia acerca do que seria a relação entre política e loucura, fazendo notar que parte deste gesto de interpretação recorre a uma dimensão da psiquiatrização como começamos a mostrar mais acima.

O sentido em AD é efeito de cadeias significantes em sua base material e inscritas no simbólico. Vale ressaltar que se trata de uma releitura da noção saussuriana de signo, de modo que a AD faz uso da noção lacaniana de simbólico, este último um registro com falhas e sujeito ao equívoco e aos mal-entendidos. É por este caminho que a tomada de posição do sujeito do discurso, assujeitada a uma rede de sentidos dominantes, também pode indicar reviravoltas pelas quais o sujeito estranha e subverte o sentido e emerge como intérprete dos enunciados.

Uma das formas de assujeitamento pode ser atribuída à produção linguageira em geral. No caso da mídia não se trata de uma produção de linguagem qualquer, mas fincada em lugar de esclarecedora da realidade. Se a mídia por um lado promete esclarecer, em AD, por outro lado, vale lembrar, a interpretação do sentido “em relação a” outro lugar possível de uma rede de evidências é determinada pela ideologia. A ideologia é constitutiva do imaginário e não uma “visão de mundo”; nem é inversão da consciência a ser esclarecida, mas modo de estabelecer relações entre “parte” e “todo” dos enunciados para analisar a representação imaginárias dessas evidências. Deste modo, não existe lugar para o sujeito da linguagem, sem determinação ideológica nem valor político. Nem existiriam discursos mais ou menos ideológicos. Trata-se de discursos produzidos em certas condições de produção (Pêcheux, 1993).

Jean Jacques Courtine (2014) explica que as condições de produção põem em diálogo a conjuntura histórica das relações de reprodução de dominação (parte e todo) e uma singularidade estabelecida com um grupo por meio de um lugar na linguagem. Este lugar é determinado pelo recobrimento da ideologia e de um objeto de conhecimento que não coincide com um objeto real. Por isso, como ensina esse mesmo autor, o termo formações imaginárias não apenas substitui a noção de papéis, mas também situa que o sujeito tem que se haver com o imprevisto do jogo de expectativas nas leituras entre seu lugar e o lugar do Outro. É um sujeito político e estrategista (Pêcheux, 1997).

Não há disjunção entre uma história objetiva e luta de classes como efeito da História, nem entre linguagem científica e linguagem ideológica. No lugar destas disjunções, existentes nem mesmo no “discurso político” (Pêcheux, 2014, p. 209), como muitas vezes atualmente se reivindica, não há sujeito isento e descolado da dimensão política da disputa pelo poder no cotidiano.

Na linha do que hoje parece ocorrer em movimentos que procuram “des-ideologizar” a política e torná-la atributo de competência em gestão, a psiquiatrização seria uma dessas tentativas de isenção ideológica, ou de qualquer outro mecanismo de destituir o valor político da política. Por isso, o que não cabe na neutralidade positivada e em uma gerência burocrática pode ser colocado de lado, como possível patologia.

Deste modo, analisamos de que modo discursos atuais que se mostram na mídia com aparência de isenção de marcação ideológica, por não apontarem explicitamente opção partidária ou de inclinação à esquerda, ao centro ou à esquerda, sustentam esta suposta neutralidade pela “objetividade” da Psiquiatria. Questionamos junto deste debate teórico questões paralelas a nossa questão (objetivo) principal, a saber: que relação entre sujeito e poder é esta? Que estratégias de leitura (interpretação) são estas? Trata-se, portanto, de processos de identificação com um modo e um lugar discursivo que impossibilita outros possíveis e que torna o imaginário eficaz pelo caminho da psiquiatrização. Que caminho é este? É o que vamos abordar na formação e na análise do corpus.

MÉTODO – FORMAÇÃO DO CORPUS DISCURSIVO

Em nossa seção sobre o “panorama histórico-discursivo da interioridade” abordamos algumas telas que se tornaram emblemáticas desta construção da dimensão inefável na constituição do sujeito moderno. Não é à toa que imagens sustentam um efeito na contemporaneidade para instalar uma rede de sentidos (evidentes) acerca de um tipo de relação entre política e loucura.

Foi a partir da chamada de atenção para uma destas imagens que começamos nossa pesquisa. Há alguns anos, a edição 2417, de 6/4/2016 da revista “Isto é“ publicou uma imagem de capa da presidenta Dilma Rousseff aos gritos. Na legenda, lia-se “As explosões nervosas da presidente”. Somada a esta capa, a repercussão da reportagem “Louca inicia 3ª. onda de cortes e impostos para engordar bancos” da edição do jornal “A hora do povo” veio à público e a notamos filiada à região de sentidos da nosologia psiquiátrica. Mais recentemente, passamos a estranhar o elo que se estabelecia entre as reportagens daquela época e a alta freqüência na atualidade de manchetes e declarações também atravessadas por esses sentidos. Algumas passaram a caracterizar o então presidente Jair Bolsonaro e outras figuras políticas como, por exemplo, a deputada Janaína Paschoal1 e o ex-ministro Ciro Gomes2.

Vale lembrar que em AD a análise não se esgota em categorias semânticas, mas procura investigar como parte do percurso do jogo com o sentido sustenta posições discursivas. É o que vamos mostrar na análise do corpus. O analista de discurso (pesquisador) de forma análoga ao psicanalista inicia um processo de análise a partir do estranhamento, da formulação de questões iniciais que procuram deslocar ainda mais um “objeto” de investigação. Este deslocamento é operado pela eleição de fragmentos lingüístico-discursivos de onde emerge um sujeito que insiste em aparecer em outra zona de sentidos do que uma anterioridade já aparentemente definida. Na análise apresentada, esta eleição decorreu dos estranhamentos iniciais e que resultaram, conforme a nomenclatura de Courtine (2014), em sequências discursivas (doravante, SDs).

Em suma, o efeito de sentido que remete à zona de sentidos sobre “loucura” já havia aparecido na referida capa da revista “Isto é” e em reportagem no periódico “Hora do povo”. A ampla repercussão desta última nos permitiu resgatar a página pela qual destacamos esta SD1 (abaixo). A recuperação da capa original da edição de 15/9/2015 (Hora do Povo), por sua vez, não foi mais possível, pois os arquivos do periódico estão disponíveis até 2017. Todavia, a veiculação em diversos outros sites permite uma leitura legível. A SD2, por sua vez, pode ser acessada diretamente no site da revista “Isto é” (edição 2417, de 6/4/2016) e as SDs 3,4,5 nos sites dos periódicos de onde foram retiradas.

Como se nota, não se trata de um campo de significações previamente definido. De forma análoga ao psicanalista, esta busca pautada na epifania do encontro com uma pista ou indício, na linha do viés indiciário da Psicanálise (Ginzburg, 1989) e do valor discursivo de uma interpretação que indica uma reviravolta na estabilidade semântica do mundo (Pêcheux, 1997), seguimos com Lacan ao citar Picasso: “Eu não procuro, acho!” (Fontenele, 2002, p. 53).

A partir do estranhamento inicial da capa do periódico “Hora do povo” (SDI) e da revista “Isto é” (SD2), formamos um corpus que apresenta fragmentos lingüístico-discursivos sobre a questão da psiquiatrização da política na mídia. A análise abaixo percorre reflexões, a saber: de que lugar esta psiquiatrização mobiliza regiões histórico-discursivas de evidência do sentido? A quais interesses atendem?

ANÁLISE DE SEQUÊNCIAS DISCURSIVAS

Após o estranhamento inicial provocado por estas SDs, notamos em período recente discursos caros ao campo do diagnóstico da “loucura”. A partir disso, elegemos o corpus de análise que segue abaixo a fim de demonstrar o que denominamos psiquiatrização da política. Nas três primeiras SDs, notamos que há um modo de descrever um perfil, de enquadrar um sujeito em uma nosologia psiquiátrica. Vejamos:

SD 1 – Por menos que isso, D. Maria I foi internada. Louca inicia 3ª onda de cortes e impostos para engordar bancos. (capa do periódico “Hora do povo”). Fonte:https://juscelinofranca.blogspot.com/2015/10/jornal-chama-dilma-rousseff-de-louca-em.html

SD 2 – As explosões nervosas da presidente. Em surtos de descontrole com a iminência de seu afastamento e completamente fora de si, Dilma quebra móveis dentro do palácio, grita com subordinados, xinga autoridades, ataca poderes constituídos e perde (também) as condições emocionais de conduzir o país.https://istoe.com.br/edicao/894_AS+EXPLOSOES+NERVOSAS+DA+PRESIDENTE/, edição 2417, de 6/4/2016, Isto é.

SD3 – O dia em que Jair Bolsonaro foi ao psiquiatra. Novo colunista da Fórum, Felipe Pena imagina o presidente deitado no divã de seu consultório em posição fetal, com os chinelos Raider escorrendo pelos dedos e a camisa falsificada do Palmeiras amassada pelo uso. “Nem precisa ir ao analista para fazer o diagnóstico. O Brasil está em perigo porque os brasileiros vivem em estado de negação e o ato falho está no poder.”, 17/2/2019,https://revistaforum.com.br/colunistas/felipepena/o-dia-em-que-jair-bolso-naro-foi-ao-psiquiatra/

Na SD1 temos os dizeres da manchete do jornal “Hora do Povo”, edição de 15/9/2015. Em destaque, é possível ler: “Por menos que isso, D. Maria I foi internada. Louca inicia 3ª onda de cortes e impostos para engordar bancos”.

A referência à rainha Maria I, mãe de Dom João VI, conhecida como Maria “Louca” é explícita. A retroação do predicado “louca” a partir do segundo período (e que retroage com o primeiro) articula um efeito sintático-semântico cujo valor discursivo está no modo como o implícito atua na designação do predicado “louca”. Não há dúvida de que se refere tanto à rainha Maria quanto à presidenta Dilma. Aquela, designada vulgarmente como “louca” e, “internada”. A ratificação de que Dilma é louca é sustentada pela substituição do nome próprio “Dilma” por “Louca” no início do segundo período. “Louca” passa a ter valor de nome próprio. Por efeito metonímico, temos a substituição de “D. Maria” por “Dilma”, de modo que se chega a “[rainha] Dilma, a louca”. O valor implícito de “rainha” para Dilma tem efeito irônico também e de denegação (no sentido psicanalítico) deste suposto poderio monárquico da ex-presidenta.

A historiadora Mary del Priore (2019) explica que o enfrentamento da mentalidade patriarcal e machista foi uma marca das decisões da rainha D. Maria I. Ao enfrentar episódios depressivos (diagnóstico àquela época ainda marcado por uma suposta possessão demoníaca) que não abalaram sua sanidade, esta é comprovada dos diversos atos de governo. Não há menção à internação. Ao contrário, a rainha tomou várias medidas estratégicas consideradas ousadas, com reformas urbanas e tratados internacionais.

Notamos que este recorte da suposta fraqueza e incapacidade mental da rainha é também um atalho no grande Outro (no sentido lacaniano) para se referir à presidente Dilma Rousseff. Há uma voz alinhada ao paradigma dominante do patriarcado que ecoa no modo de se referir à presidenta. O mecanismo de falar de A (rainha Maria I) para se referir a B (presidente Dilma) é mobilizado para sustentar a evidência de sentido de “louca” e de “incompetente”. Este sentido implícito que faz funcionar o sentido de mérito individual e do binômio sucesso e fracasso aparece pela forma do enquadre, de um retrato fichado, com aspecto policial, em que o sujeito é mirado como alvo de uma acusação.

Esse enquadre dialoga com o fichamento policial que marcou a trajetória política da presidenta, como apresentado na biografia dela escrita por Amaral (2011). O enquadre mobiliza sentidos em um plano do não dito, porém, recuperado em uma zona de sentidos deslocada, na superficialidade lingüística. Há um sentido de ficha policial do criminoso e do louco a ser abordado mais adiante.

Na SD2, o enquadre sobre o nervosismo vem acompanhado da descrição destes momentos de “explosões nervosas”. De certa forma ainda filiada à rede de sentidos do patriarcado e do enquadre da “mulher louca”, vemos a continuação da evidência semântico-discursiva do isolamento. Sobre a rainha Maria I, Priore (2019) também explica que o isolamento da rainha chamou a atenção da população. O despertar da preocupação com envenenamento no cotidiano (em folhas de papel, comidas) permitiu a interpretação que a conspiração para retirada da rainha era um golpe. O jogo de sentidos com este significante também é atualizado. Em AD, consideramos que os sentidos são atualizados por domínios de memória, ou seja, sítios de recuperação de enunciados em circulação no sentido de Foucault (citado por Courtine, 2014).

Na mesma SD2, vale destacar o “fora de si”. Do ponto de vista do fragmento lingüístico-discursivo, o “fora de si” recupera o sentido de “des-razão” e de “verdade da loucura” que mencionamos nas seções anteriores. O sujeito que não fala por si porque está “fora de si” pode ser falado de outro lugar, pela revista.

Todo o enquadre da “louca” é pautado em uma cena em que o significante (mestre?) “surto” é significado pelos significantes “grita [...] xinga [....] ataca [...] quebra”. O uso dos verbos encadeados flexionados na terceira pessoa do singular sustenta uma descrição e a narração de uma cena ainda em andamento. Por fim, o uso da coordenada aditiva “e perde (também) as condições emocionais” retroage com o jogo com o sentido do significante “surto”. Como em uma gradação “invertida”, os predicados “mais graves”, supostamente mais evidentes em relação à loucura são mostrados de início até a chegada às “condições emocionais”, estes mais triviais, “mais leves”. No imaginário comum, é sabido, o descontrole razoável e temporário das emoções não garante um quadro de loucura. É este efeito de retroação da cadeia significante que queremos recuperar.

Desta forma, o enquadre começa de uma categoria mais ampla e mais atingida pelas “marcas” dos “surtos” que garantem a constatação da “loucura”. Esta perfilação do pressuposto mais amplo até uma descrição mais específica ganha um caráter silogístico, cujo enquadre traz como herança o papel da Antropologia Criminal de fins do século XIX, tal como discutido por Ginzburg (1989). Voltaremos a isto.

Na SD3, o uso da narrativa sustenta o processo de significação em “O dia em que”. O valor genérico deste arranjo significante também articula um tom fantasioso, quase como de conto de fada ou de narrativa de ficção, também assegurado pela marca “Felipe Pena imagina”. A voz do Outro (“Novo colunista da Fórum”), no caso da autoridade jornalística, enuncia de forma deslocada, como se pudesse olhar “de fora” um enredo de ficção.

Segue a descrição da posição fetal caracterizada com o que se tornou marca de uma suposta aproximação do atual presidente das vestimentas e do perfil “simples” do eleitorado. A marca do “divã” faz parecer destoar de um enquadre psiquiátrico. Está no limiar da fronteira entre um setting psicanalítico e um consultório médico psiquiátrico; isto também serve para o significante “analista”. A oposição entre “divã” e “consultório”, e entre “analista” e “diagnóstico” sustenta uma aparente dicotomia entre o que seria uma leitura psicanalítica e uma psiquiátrica.

Além disso, a tentativa de marcar para o sujeito comum (interlocutor) que não haveria distinções, embora não haja consenso sobre se um psicanalista realiza diagnóstico, marca como efeito de sentido uma zona que será assegurada pela constatação ao final: “O Brasil está em perigo porque os brasileiros vivem em estado de negação e o ato falho está no poder.”. Em suma, este efeito de sentido sustentado e que autoriza poder falar da área “Psi” de modo geral, sem distinções, garante que o interlocutor compartilha da evidência de que se trata de um caso de “loucura”. Esta evidência, por retroação, se sustenta na atribuição de sentido do anúncio “O dia que Jair Bolsonaro foi ao psiquiatra”.

Em outras palavras, tendo ido a um psiquiatra ou a um psicanalista ou a um profissional que tenha características de mais de um desses dois campos a constatação é “óbvia”, é a da “loucura”. Há uma contradição que reside nesta constatação, uma vez que o fato de o “ato falho” estar no poder não garante, no campo da Psicanálise, por exemplo, um caso de psicose. O “ato falho”, pelo contrário faz parte do cotidiano do homem ordinário, do trivial, faz parte de uma “Psicopatologia da vida cotidiana”, para lembrar o título do ensaio freudiano. Mas a SD mostra como a imprensa veicula uma verdade sobre a “loucura” ao circular por várias áreas, desdizê-las e enunciar a partir de um lugar vazio de sentido, em que seja de que área for, não sustenta verdade alguma.

A evidência de que perigo se alinha à loucura por conta da imaginária ida do presidente ao Psiquiatra é marcada pela cadeia significante assim por nós formulada: “Jair Bolsonaro – psiquiatra – analista – diagnóstico – em perigo – negação – ato falho”. Em suma, no plano da enunciação, no nível do sintagma, que do ponto de vista lacaniano poder-se-ia caracterizar pelo nível da combinação (metonímica), a ocupação do poder pelo presidente seria uma farsa porque é fictícia sua ida ao Psiquiatra e porque a negação do poder seria sua própria “loucura”.

No interdiscurso, ou seja, na rede de sentidos em torno de sua trajetória política, está a marca de que sua candidatura foi pautada em um personagem “antissistema” e que marcaria este “ato falho” por meio de sua chegada ao poder. Em suma, nesta zona de sentido, a própria “loucura” teria chegado ao poder. Por meio da combinação acima desmembrada, O “Brasil está em perigo” não apenas porque “os brasileiros vivem em estado de negação e o ato falho está no poder”. A cadeia significante que pode ser extraída de “posição fetal- chinelos Raider – camisa falsificada” também remete à substituição no eixo paradigmático da metáfora e de metonímias que sustentam o sentido de farsa ou de pouco comprometimento com a verdade, como ocorreria na loucura. No plano dos enunciados, o da associação, do eixo paradigmático, da metáfora, a substituição destes significantes sustenta a evidência entre farsa e loucura.

O sentido em “vivem em estado de negação” também escapa do alinhamento acima indicado. Ao debater a noção lacaniana de real Pêcheux (1997) explica que os enunciados se transformam em outros porque algo escapa. Algo fala à revelia do sujeito, está inscrito no real das “coisas a saber” (expressão do autor). Isto nos remete em parte à negação da política pela maior parte da população, uma vez que tivemos após a redemocratização a eleição com maior índice de abstenção ou votos em nulo e branco, bem como o retorno de investidas autoritárias à democracia que remetem a época em que slogan “política, futebol e religião não se discutem” mostram que este fragmento direciona o sentido à margem do sentido que predomina na cadeia significante acima apontada. Seria este o lugar alhures, à revelia do sujeito que produz sentido à deriva para a formulação “vivem em estado de negação”.

A descrição de um perfil, de um retrato, de um modelo de político “louco” tal como aparece nessas SDs 1, 2 e 3 nos remete à discussão de Ginzburg (1989) sobre o confronto entre o paradigma galileano e indiciário. O primeiro com postura marcadamente generalizante refém da herança da relação entre causa e efeito. O segundo, por sua vez, atravessador por diversos caminhos, das Artes, da Psicanálise, da Arqueologia, Paleontologia, Medicina e da Antropologia Criminal na passagem do século XIX para o XX, foi aquele que por um lado deu voz ao sujeito em sua singularidade e ao mesmo tempo cometeu alguns erros.

Por meio do pressuposto de que “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas, sinais, indícios – que permitem decifrá-la” (Ginzburg, 1989, p. 177), o paradigma indiciário, na contramão da generalização, procura inferir causas por meio do conhecimento da dispersão dos efeitos. De meados para fins do século XIX, os britânicos, por exemplo, apropriaram-se de algumas leituras indiciárias dos bengaleses e as fizeram voltar contra estes últimos.

Ao subdividir os erros desse paradigma, contudo, Ginzburg (1989) comenta: “O erro da fisiognomia foi o de enfrentar a diversidade dos indivíduos à luz de opiniões preconcebidas e conjeturas apressadas (p.175)” e entre os colonialistas britânicos o erro foi estabelecer “uma série de indivíduos assinalados cada qual por um traço biológico específico” (p. 177). Isto demonstra que o mesmo paradigma que pode libertar o sujeito, por desvelar a opacidade e “curar” pela singularidade como na Psicanálise, também pode calar, ao cometer esses erros.

Com o reforço da frenologia e da fisiognomia, da descrição de caracteres minuciosos da face, das medidas cranianas e encefálicas, diâmetro de circunferências de partes do corpo, na esteira de uma herança eugenista, o erro geral do uso do paradigma indiciário foi angariar nestes detalhes aglutinações de predicados para fortalecer modelos padrões de descrição e de tentativa de antever “crime” e “loucura”. É na linha da ratificação desses erros de uma perscrutação indiciária vista nessas SDs que a mídia imprensa e online também ratifica uma “verdade” sobre a psiquiatrização na política.

O resgate de como os erros do paradigma indiciário circulam no imaginário comum e essa demonstração do valor desta leitura minuciosa da figura pública do político para enquadrá-lo no paradigma biomédico e antropológico criminal da loucura nos leva à análise das SDs 4 e 5.

SD 4 - Psiquiatra afirma que Bolsonaro não é caso clínico, mas criminal. O psiquiatra analisa Bolsonaro e seus ministros não como doentes mentais, mas como autores de crimes contra a Constituição, os direitos, e a humanidade. “Deveriam ser tratados como criminosos” – 23/5/2019.https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2019/05/psiquiatra-afirma-que-bolsonaro-nao-e-caso-clinico-mas-criminal/

SD 5 - A cabeça de Bolsonaro. Os atos e as falas do presidente podem ser sinais de transtorno narcísico e lógica delirante. Mais grave, segundo a literatura médica, é a possível falta de empatia. Mas isso não o exime de responsabilidade. Ele sabe o que faz – revista Isto é, edição no. 27/11,https://istoe.com.br/a-cabeca-de-bolsonaro/

Na SD 5, a descrição da cabeça. A “cabeça” recebe um enquadre em um perfil nosológico. Na SD 4 há um processo de identificação com uma região de sentido vinda da Criminologia. Que aporte é este? Foucault (1978/2006) ensina que no século XVIII o médico aparecia na cena pública para confirmar o Direito Civil ou Canônico. Em uma conjuntura em que loucura e ilegalidades (atitudes consideradas sem motivo racional ou passional) andavam juntas, misturadas, tal que se consolida a noção de monomania. Logo em seguida, esta união entre une loucura e crime, feita pela Psiquiatria até início do século XIX, coloca loucura e crime como doença social, doença esta incompatível com responsabilidade individual. À medida que este parâmetro se torna alvo de polêmica, a Psiquiatria se especializa de tal modo que resulta na desunião entre loucura e crime.

Esta reflexão já é uma elaboração de aula anterior, em que Foucault (1975/2010) explica que uma espécie de ontologia do delito, que escrutina a responsabilidade individual para saber se “anomalias de caráter têm uma origem patológica, se realizam um distúrbio mental suficiente para atingir a responsabilidade penal” (p. 5) o que repercute em um sistema de verdade científico, um “regime anônimo da verdade para um sujeito supostamente universal”, a que a justiça penal se submeteu após o século XVIII.

A partir do Código Penal de 1810 se apregoa a inexistência de crime caso haja estado alterado de exame psiquiátrico no instante do ocorrido. Esta ontologia pelo exame psiquiátrico serve para enquadrar o delito em uma linha que passa pela “causa, origem, a motivação, o ponto de partida do delito”. Vemos o efeito de completude em que opera a ciência. Mas ele enquadre que pode ser vir para enquadrar e punir também pode em seu escrutínio atenuar a pena.

Por isso, vemos que o enquadre, por vezes, passa a configurar um lugar entre Psiquiatria e Criminologia ou um “não-lugar”, como em “Psiquiatra afirma que Bolsonaro não é caso clínico, mas criminal” (SD4); ou ainda, a relação com responsabilidade individual, como em “Mas isso não o exime de responsabilidade. Ele sabe o que faz” (SD5).

Na rede de sentidos que une crime e responsabilidade (SD5), temos o que Foucault (1978/2006) explica sobre como ao longo do século XIX a variedade de suplícios e a penalidade voltada mais ao criminoso individual do que ao crime (como uma doença social que já não convence mais) consolida o espaço privado de autoria do crime e obriga o indivíduo a falar de si mesmo, a jogar o jogo de uma Psiquiatria em que, filiado a esta formação discursiva, o indivíduo fala sob a formatação médica do discurso. Mesmo “criminal” (SD4), o caso “não o exime de responsabilidade” (SD5).

Por isso, Foucault (1978/2006) explica que a Antropologia Criminal, à época filiada aos erros do paradigma indiciário (Ginzburg, 1989), reforçava uma periculosidade inicialmente atribuída aos perfis e depois aos atos. Neste percurso, consolida-se, pela Psiquiatria a responsabilidade civil. Uma vez que a mídia imprensa e online ratifica esta evidência atribuímos um artifício discursivo denominado de psiquiatrização da política no cotidiano brasileiro contemporâneo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O compromisso ético do analista de discurso não é analisar o individuo empírico, mas por quais processos zonas de sentido definem posições do sujeito do discurso. Como notamos, a psiquiatrização da política brasileira no cotidiano brasileiro contemporâneo faz uso do caminho do perfil e do enquadre (SDs 1,2,3), caminho este tomado de forma equivocada pelas Ciências Humanas e Sociais no fim do século XIX.

Por sua vez, as SDs 4 e 5 discutem responsabilidade criminal fazendo uso da voz de autoridade da Psiquiatria para indiciar uma culpabilidade individual que apaga uma análise mais aprofundada sobre a complexidade de uma conjuntura histórico-política de um governo e seus vários governantes. Este afunilamento do sentido para a evidência de uma posição individual nas SDs analisadas faz funcionar o discurso da psiquiatrização alinhado às “verdades” sobre si que a conjuntura de uma interioridade pautada no binômio razão e desrazão de um sujeito do conhecimento, pleno de seus atos.

Deste modo, a psiquiatrização atua como uma tentativa de destituição do valor político do jogo com o sentido, na linha da nossa hipótese sobre uma isenção ideológica, agora exercida pelo modo de a mídia impressa e online mobilizar os lugares de produção de evidência de sentido da Psiquiatria.

Financiamento

Bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

1Puff, J. ‘As pessoas diziam que eu estava louca’, diz autora do pedido de impeachment, BBC Brasil, Rio de Janeiro, 28/3/2016, https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160327_entrevista_janainaJf_if

2“Ciro Gomes já é caso de internação”, diz Leandro Fortes sobre carta à Rainha Elizabeth, 9/4/2021, https://www.brasil247.com/midia/ciro-gomes-ja-e-caso-de-internacao-diz-leandro-fortes-sobre-carta-a-rainha-elizabeth

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Recebido: 20 de Julho de 2021; Aceito: 07 de Março de 2023

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