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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.57 São Paulo  2023  Epub 07-Jun-2024

 

Artigo Original

INVESTIGAÇÕES SOBRE UMA MAGISTRATURA DISSIDENTE: UM OUTRO JUDICIÁRIO É POSSÍVEL?

Investigations on a dissident magistracy: is another judiciary possible?

Investigaciones sobre una magistratura disidente: ¿es posible otro poder judicial?

ANDRÉ GUERRA1  , Concepção, Coleta de dados, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Importante: Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-3608-968X

PEDRINHO GUARESCHI2  , Concepção, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Revisões críticas de conteúdo intelectual, Importante: Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-0875-5865

1Psicólogo, Doutor e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). http://orcid.org/0000-0002-3608-968X E-mail: guerra.andreguerra@gmail.com

2Pós-doutor em Ciências Sociais na Universidade de Wisconsin (1991); Pós-doutor em Ciências Sociais na Universidade de Cambridge (2002). Coordenador do Grupo de Pesquisa Ideologia, Comunicação e Representações Sociais. http://orcid.org/0000-0003-0875-5865 E-mail: guareschi1940@gmail.com


RESUMO

O artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa qualitativa que buscou compreender, a partir da Teoria das Minorias Ativas de Serge Moscovici, como magistrados críticos em relação ao Poder Judiciário e à magistratura avaliam a possibilidade de inovação das práticas jurídicas. Foram efetuadas quinze entrevistas através da técnica semi-dirigida episódica. Efetuou-se a análise argumentativa das falas e posteriormente realizou-se a sua interpretação a partir do referencial da hermenêutica de profundidade. Foram identificados três modos de relação dos magistrados dissidentes com a potencialidade inovadora: impotência, potência individual e potência coletiva. Constatou-se a predominância do afeto da impotência, bem como a centralidade de ações de âmbito individual. Disso resultou a confirmação parcial de nossa hipótese de trabalho de que haveria movimentos no interior da magistratura que poderiam ser equiparados às minorias ativas conforme a definição dada por Moscovici.

Palavras-chave: magistratura; poder judiciário; minorias ativas; inovação; dissidência

RESUMEN

El artículo presenta parte de los resultados de una investigación cualitativa que buscó comprender, a partir de la Teoría de las Minorías Activas de Serge Moscovici, cómo los jueces críticos en relación al Poder Judicial y la magistratura evalúan la posibilidad de innovación en las prácticas jurídicas. Se realizaron quince entrevistas mediante la técnica episódica semidirigida. Se realizó un análisis argumentativo de los enunciados y posteriormente se realizó su interpretación con base en el marco de la hermenéutica profunda. Se identificaron tres formas en que los magistrados disidentes se relacionan con el potencial innovador: impotencia, potencia individual y potencia colectiva. Se observó el predominio del afecto de impotencia, así como la centralidad de las acciones individuales. Esto resultó en una confirmación parcial de nuestra hipótesis de trabajo de que habría movimientos dentro de la magistratura que podrían equipararse a minorías activas según la definición dada por Moscovici.

Palabras clave magistratura; poder judicial; minorías activas; innovación; disidencia

ABSTRACT

The article presents part of the results of a qualitative research that sought to understand, based on Serge Moscovici’s Theory of Active Minorities, how critical judges in relation to the Judiciary and the magistracy assess the possibility of innovation in legal practices. Fifteen interviews were carried out using semi-directed episodic technique. An argumentative analysis of the statements was carried out and their interpretation was subsequently carried out based on the depth hermeneutics framework. Three ways in which dissident magistrates relate to innovative potential were identified: impotence, individual potency and collective potency. The predominance of the affect of impotence was noted, as well as the centrality of individual actions. This resulted in the partial confirmation of our working hypothesis that there would be movements within the magistracy that could be equated to active minorities according to the definition given by Moscovici.

Keywords magistracy; judicial power; active minorities; innovation; dissent

INTRODUÇÃO

Os golpes são episódios recorrentes na história do Brasil e da América Latina. Em 2016, o Brasil sofreu mais um golpe. Mas a natureza deste golpe trouxe dificuldades teóricas para o seu adequado enquadramento, já que a definição clássica de ‘Golpe de Estado’ pressupõe a ilegalidade. A derrubada da presidenta Dilma Rousseff, porém, não se deu às margens da legalidade; pelo contrário, todas as instâncias do Poder Judiciário contribuíram ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, para legitimar juridicamente não só aquele episódio, como também os que vieram a seguir: a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o impedimento de sua candidatura no processo eleitoral de 2018, bem como o conluio entre membros do Ministério Público Federal, da Justiça Federal e da Polícia Federal que resultaram no favorecimento da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência. Muitos desses fatos, embora desde sempre evidentes, só viriam a ser confirmados pelo vazamento das conversas obtidas pelo hacker Walter Delgatti Neto1. Além dessas revelações terem maculado a credibilidade das quatro instâncias do Poder Judiciário, elas também explicitaram um problema central muitas vezes ignorado pela ciência jurídica: a natureza psicossocial e psicopolítica do fenômeno jurídico.

Diferentemente do que os manuais de direito dão a entender aos seus estudantes – assim como a mídia corporativa aos seus consumidores –, a decisão jurídica e o manejo do processo judicial não são procedimentos exclusivamente técnicos, sendo invariavelmente atravessados por aspectos políticos. Essa constatação levanta uma série de perguntas que permanecem sem respostas – e essa é uma das razões para que tais questionamentos não sejam comumente realizados. No entanto, essas perguntas são essenciais, apresentando um campo fértil para a psicologia política, pois embora fundamentais, as dinâmicas concretas das elites políticas e das instituições centrais do Estado contemporâneo permanecem pouco conhecidas e compreendidas. Com a intenção de lançar luz a alguns elementos centrais constitutivos da ambiência psicossocial e psicopolítica do campo jurídico, este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2020 que se constituiu a partir de quinze entrevistas com magistrados/as (juízes/as e desembargadores/as) “dissidentes”. A pesquisa almejou compreender, a partir da perspectiva desses participantes, as condições existenciais, psicopolíticas e psicossociais que, por um lado, possibilitam a presença de tais agentes minoritários na magistratura e, por outro lado, por que tais posições permanecem sendo minoritárias. Também pretendeu-se compreender se há no Poder Judiciário movimentos impulsionados por esses segmentos minoritários com a capacidade de inovar a instituição. Utilizamos o termo “dissidente” (Guerra & Guareschi, 2020) para designar pessoas que, ao longo de suas carreiras, vivenciaram direta ou indiretamente episódios em que sua atuação profissional se desviou dos consensos para os quais tendia a magistratura, resultando desses “desvios” perseguições ou hostilizações perpetradas desde dentro ou de fora da magistratura e do Poder Judiciário. A partir da realização das entrevistas e de uma análise argumentativa de seu conteúdo identificamos cinco temas fundamentais representativos de como a magistratura dissidente compreende a dinâmica e estrutura da instituição em que atuam: (a) A origem de classe da magistratura; (b) A estrutura organizacional da magistratura e do Poder Judiciário; (c) A imbricação nas práticas judiciárias de aspectos constitutivos da classe média brasileira, do neoliberalismo e da forma jurídica; (d) A relação entre magistratura e meios de comunicação; e, por fim, (e) O modo como a magistratura dissidente se organiza para afirmar outros horizontes jurídicos possíveis. Em outros trabalhos, abordamos alguns desses temas. Neste artigo apresentaremos os resultados em torno do último tema, em que se buscou compreender como agentes da magistratura não inteiramente conformados às práticas hegemônicas do Poder Judiciário veem a possibilidade de consolidarem práticas inovadoras no interior da instituição. Uma prática deve ser compreendida como a materialização da ação humana em termos de seus efeitos concretamente produzidos, tal como aborda Pedro Guareschi (2003).

Fomos a campo e interpretamos os dados obtidos a partir do referencial da Teoria das Minorias Ativas de Serge Moscovici (2011). Diferentemente da questão funcionalista que investiga a razão de por que grande parte das pessoas tende a se conformar à maioria, com essa teoria Moscovici propõe-se investigar um fenômeno que é ignorado nesse processo: se grande parte das pessoas tende a se conformar às maiorias, por que, em situações específicas, uma minoria não obedece a essa tendência, como nos exemplos de Sollzenitzen, Martin Luther King, Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella ou Carlos Lamarca? A novidade dessa teoria é buscar compreender as condições de possibilidade psicopolíticas e psicossociais da transformação das relações sociais. Estas condições são reunidas em seis proposições fundamentais, dentre as quais destacamos duas: (a) o fato de os processos de influência estarem diretamente vinculados à produção e à reabsorção de conflitos, e que (b) o principal fator de êxito no processo de influência é o estilo de comportamento. Com base nessas duas proposições, pudemos identificar que nossa hipótese de trabalho foi confirmada apenas parcialmente, já que, embora haja indícios e sinais de novos estilos de comportamento da magistratura, tais movimentos ainda são incipientes e fragmentários para desempenharem o papel de minorias ativas tal qual proposto por Moscovici (2011). A principal razão disso é a descrença de grande parte da magistratura dissidente na possibilidade efetiva de empreenderem inovações significativas. Ao mesmo tempo, a parcela que alimenta esperanças inovadoras tende a sustentar práticas que não produzem conflitos de grande envergadura no interior do Poder Judiciário e da magistratura, preferindo ações individuais que, apesar de não serem inofensivas, podem coexistir e serem assimiladas pelas normas hegemônicas vigentes. Apesar disso, identificamos a existência de experiências e ideias com a potencialidade de criação de movimentos inovadores, caso fossem articuladas consciente e consistentemente em um projeto comum.

MÉTODO

Para a realização desta pesquisa foram efetuadas quinze entrevistas, sendo dez com juízes/as e cinco com desembargadores/as, representando cinco instituições do Poder Judiciário brasileiro. Inicialmente obtivemos a aceitação em participar da pesquisa por parte de três magistrados/as, cuja seleção se deu em virtude de terem vivenciado direta ou indiretamente episódios jurídico-políticos que geraram repercussões midiáticas. A partir desses primeiros participantes, através da técnica “bola de neve” (Biernacki & Waldorf, 1981), fomos remetidos a outros potenciais participantes. A decisão pela quantidade de entrevistas (15) se deu em razão do ponto de saturação teórica (Bauer & Aarts, 2008). Para chegarmos até os primeiros participantes, de 2016 a 2019 analisamos diversos materiais midiáticos (notícias, entrevistas, reportagens etc.) que demarcavam conflitos em torno de sentidos distintos em relação às práticas jurisdicionais e que receberam notoriedade nos meios de comunicação – com especial destaque àqueles veículos (o que inclui sites de notícias/artigos e canais de YouTube) considerados de “esquerda” ou alternativos. Embora a discussão em torno dos critérios que distinguem esses veículos ultrapasse o escopo deste texto, eles foram privilegiados porque davam espaço a integrantes da magistratura que faziam contrapontos às práticas de magistrados em torno dos quais naquele período se estabeleceram explícita ou implicitamente consensos sociais. Também não abordaremos neste artigo os critérios e aspectos que nos levaram à seleção dos episódios midiáticos, mas escolhemos alguns daqueles que melhor sintetizaram os diversos conflitos em torno de visões distintas em relação ao Poder Judiciário. Os episódios foram reduzidos a oito para serem levados às entrevistas e servirem de estímulo às falas. As entrevistas duraram entre 1:30h e 2h, totalizando aproximadamente 24h de gravação, as quais foram devidamente transcritas pelo próprio pesquisador. A técnica de entrevista utilizada foi a semi-dirigida episódica (Flick, 2008). As cinco instituições representadas nas entrevistas foram: Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Tribunal Regional Federal da 4ª Região; Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Treze magistrados/as eram do Rio Grande do Sul. Ao todo foram entrevistadas duas mulheres, dois magistrados/as aposentados e um magistrado/a negro/a. O ano de ingresso na magistratura variou desde 1976 até pós-2001 (optamos por não precisar o ano de ingresso mais recente para resguardar o anonimato do/a participante). A década de noventa concentrou o ingresso da maior parte dos participantes (nove). A categorização de nossos dados se deu através de uma “conversão argumentativa” das entrevistas transcritas. Esse processo se baseou na técnica de análise argumentativa adaptada para a pesquisa em psicologia social por Liakopoulos (2008). Após leituras sucessivas de todas as entrevistas, extraímos de cada uma delas todos os argumentos pertinentes ao nosso problema de pesquisa. Esses argumentos foram organizados a partir dos seguintes elementos adaptados do modelo de análise argumentativa: (a) Dado (premissas, pressupostos, de onde se parte); (b) Proposição (afirmação, colocação, ponto chave, aonde se chega); (c) Garantia (o que reforça a proposição); e (d) Apoio (aquilo que assegura tanto a ligação da proposição com a garantia, como serve de reforço à própria garantia). Cada um desses argumentos foi reunido naquilo que denominamos “clusters argumentativos”, isto é, um conjunto de argumentos parciais apresentados para sustentar os argumentos gerais e centrais utilizados em cada uma das entrevistas. A partir da reunião e categorização de todos os clusters (154), chegamos aos cinco temas principais já referidos anteriormente (experiências pessoais; fatores organizacionais da produção jurisdicional; estruturação psicossocial hegemônica do Judiciário; visibilidade midiática do Judiciário; e (im)possibilidades de um outro Judiciário). O detalhamento desses resultados está descrito em outro trabalho (Guerra & Guareschi, no prelo)2. Neste, abordaremos apenas o último tema. Interpretamos os dados a partir do referencial da hermenêutica de profundidade (HP) desenvolvido por Thompson (2011). Esse referencial metodológico oferece um roteiro de investigação abrangente e útil para pesquisas qualitativas hermenêuticas, isto é, cujo interesse é compreender tanto a “doxa”, como os sentidos de determinado campo e sujeitos, ou seja, os referenciais e fundamentos que orientam a vida prática cotidiana de determinados agentes ou instituições. A pesquisa foi realizada com base no que prevê a Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. A participação na pesquisa foi voluntária e todos os participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como foram informados da possibilidade de retirarem seu consentimento em qualquer momento da pesquisa e de que o único risco acarretado por sua participação era o de uma eventual identificação por terceiros no momento da publicação dos resultados. Após a conclusão do trabalho, todos os participantes receberam a versão preliminar e integral da produção, sendo incentivados a apontarem quaisquer desconfortos ou discrepâncias identificadas, o que configura aquilo que George Gaskell e Martin Bauer (2008) denominam de “validação comunicativa” como uma prática de boa pesquisa em trabalhos qualitativos. Apenas um dos participantes solicitou que fossem efetuadas alterações em suas falas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados desta investigação foram obtidos em um contexto jurídico-político desfavorável aos agentes do Poder Judiciário que contrastavam com a hegemonia das forças sociais que golpearam o país (Guareschi & Guerra, 2019; Mascaro, 2018). Mesmo que tenhamos constatado a existência de confrontações e até mesmo iniciativas potentes no seio da magistratura dissidente, os modos de ação, em geral, eram fragmentados, não havendo, portanto, uma consistência suficientemente densa capaz de estar à altura de enfrentar a estruturação psicossocial hegemônica do Poder Judiciário. Identificamos três modos de relação dos magistrados dissidentes com aquilo que denominamos de “potencialidade inovadora”. Os três modos são impotência, potência individual e potência coletiva.

Em torno da “impotência” estão os argumentos que buscam explicitar as razões pelas quais a magistratura dissidente não tem possibilidades de fazer valer uma perspectiva diferenciada acerca do direito, da magistratura ou do Poder Judiciário. Os argumentos destacam que, desde os mecanismos de seleção até os aspectos estruturais do próprio direito e do Poder Judiciário, tudo termina servindo como instrumento de opressão e perseguição contra os próprios magistrados dissidentes. Já em torno da “potência individual” estão os argumentos que buscam explicitar a existência de margens de possibilidades para uma atuação comprometida com fins não necessariamente subordinados, ao menos em absoluto, aos interesses das forças hegemônicas da sociedade. Sem desconhecer alguns dispositivos que consagram a impotência, esse segundo modo considera ser possível exercer certo grau de autonomia, especialmente dependendo do modo como cada um dos magistrados individualmente se coloca diante de determinadas questões. Mesmo reconhecendo a existência de diferentes níveis de resistência institucional dependendo da natureza das pautas em disputa no interior do Poder Judiciário (sexualidade, racialidade, criminalidade ou economia), seria possível aos magistrados individualmente operarem certas inovações, sobretudo no sentido de efetivar dispositivos negligenciados pela hermenêutica jurídica, mas previstos na Constituição de 1988. Por fim, em torno da “potência coletiva” estão os argumentos que buscam explicitar a possibilidade de inovação estrutural não só da magistratura, como também do direito e do Poder Judiciário. Em outras palavras, esses argumentos tangenciam a utopia de um outro Judiciário possível, dentro de um outro mundo possível. Os argumentos apontam para o papel central que a construção de espaços coletivos pode desempenhar em um engajamento ativo da magistratura no enfrentamento das mazelas sociais que atingem os segmentos mais vulneráveis da população. Além disso, é ressaltada a necessidade de se desconstruir coletivamente alguns dos pressupostos mais profundos que normatizam a autocompreensão do que é a magistratura, o direito e o próprio Poder Judiciário.

Ainda que tenham sido identificados esses três modos de relação com a “potencialidade inovadora”, eles não foram equitativamente representados do ponto de vista quantitativo. A impotência foi o afeto largamente predominante. A potência individual, por sua vez, foi extremamente diminuta. Já a potência coletiva apareceu apenas a partir de indícios e sinais em torno de práticas e reflexões de alguns dos/as entrevistados/as. Essa ressalva é importante para compreender por que nossa hipótese de trabalho não foi confirmada integralmente. Embora os argumentos em torno da potência coletiva tenham oferecido os aspectos essenciais para a caracterização do fenômeno das minorias ativas, essa potencialidade não apareceu incorporada às práticas atuais da magistratura dissidente. O estilo do comportamento, de acordo com Moscovici (2011), é o principal fator de êxito dos processos de inovação, mas para que um estilo possa de fato produzir efeitos concretos no mundo, ele precisa ser incorporado em agentes que aparecem publicamente e produzem conflitos que desestabilizam a normatização vigente das condutas.

A seguir apresentaremos cada um três modos de relação dos magistrados dissidentes com a potencialidade inovadora. Como esta pesquisa se interessou pela distinção qualitativa dos argumentos dos entrevistados – e com vistas a preservar o anonimato – não serão especificados os sujeitos de cada um dos enunciados. Entretanto, podemos dizer que as falas selecionadas são as que melhor ilustram os argumentos em torno de cada um dos três modos de relação, contemplando a diversidade argumentativa encontrada. A contribuição desses argumentos, contudo, não deriva de sua representatividade quantitativa, mas qualitativa, isto é, a capacidade de ilustrarem satisfatoriamente uma ambiência psicossocial mais ampla.

IMPOTÊNCIA

Essa seção é mais ampla do que as duas subsequentes porque trata de dois aspectos de um mesmo fenômeno. Em primeiro lugar, a impotência refere-se ao modo de relação da magistratura dissidente com sua potencialidade inovadora. Em segundo lugar, esse modo peculiar é indissociável de um diagnóstico crítico do Poder Judiciário e da magistratura. Um dos achados mais surpreendentes e ao mesmo tempo mais dolorosos ao longo desta pesquisa foi a constatação de que a maioria dos magistrados dissidentes vivenciava – ainda que em graus bastante diversos – dores muito semelhantes. O que nos olhos de uns apareceu como tristeza, em outros ganhou tons de revolta. Mas quase nenhum deles estava plenamente confortável em participar daquilo que entendiam ser a realidade da magistratura hegemônica. Quanto menos conformados ao papel desempenhado pelo Poder Judiciário na realidade brasileira, maior o desconforto pessoal. Alguns, inclusive, buscaram conforto em uma cisão entre sua “identidade pessoal” e sua “identidade profissional”. Nesses casos, o “eu pessoal” e o “eu profissional” estavam em polos quase opostos, como adversários. Essa cisão anunciava uma forma de reduzir o sofrimento ético-político vivenciado pelo “eu pessoal” diante da lucidez crítica em relação ao papel desempenhado pelo “eu profissional” no seio da engrenagem judicial. Em outro trabalho Guerra (2020), aprofundamos mais detidamente como esses magistrados entendem as repercussões negativas dos atravessamentos neoliberais nos fatores organizacionais que configuram objetivamente o seu trabalho (a produção jurisdicional). Além disso, em outro trabalho Guerra e Guareschi (2022) também aprofundamos como a “noção de sofrimento ético-político” apresentada por Bader Sawaia (2001) é útil para compreendermos a formação da sensibilidade da magistratura dissidente.

Para ilustrar como se dá o modo de relação dos magistrados dissidentes com a inovação sob o signo da impotência, apresentaremos a metáfora colhida em uma das entrevistas, cujo significado melhor sintetizou o afeto da impotência: a metáfora dos “artesãos de guilhotina”. Na entrevista em que obtivemos a visão mais ácida em relação ao Poder Judiciário e à magistratura foi relatado que há pouco tempo o/a entrevistado/a havia lido um texto em que o inventor da guilhotina descrevera sua invenção. A lembrança da leitura dessa passagem se deu durante a tentativa de verbalizar qual era a sensação para um/a dissidente ao se reconhecer como uma peça na estrutura do Poder Judiciário, uma instituição então descrita como extremamente opressiva, tanto em relação à sociedade externa como também à comunidade interna, especialmente em relação aos agentes dissidentes.

Eu faço o meu trabalho, aquilo é uma máquina, aquilo é um mecanismo. [...] É como um construtor de guilhotina. Eu posso muito bem criticar a guilhotina, pensar a guilhotina e estar lá apertando o parafuso dela, montando-a. É mais ou menos isso. Eu também tenho um texto que eu peguei um pedaço de um relatório do inventor da guilhotina, ele não diz que está falando da guilhotina, mas ele fala com tanto carinho daquele instrumento, com tanto carinho, “Porque a lâmina assim e assado, o pêndulo…”. Você acha que ele está falando de uma coisa extremamente importante, mas é uma guilhotina.

Foi a partir desse relato que construímos a metáfora dos “artesãos de guilhotina”. A imagem nos convida a pensar o Poder Judiciário como uma guilhotina, isto é, uma estrutura sólida, fixa e potente que desempenha uma única função: cortar cabeças. Os magistrados, por sua vez, são os artesãos dessa guilhotina. Não necessariamente eles concordam com as consequências e efeitos de sua obra, mas de algum modo contribuem decisivamente para os desfechos produzidos por ela. A impotência deriva do fato de que, caso eles queiram atenuar o sofrimento das vítimas de sua obra, a única alternativa que lhes resta é terem cuidado para afiar muito bem a lâmina, garantindo que a execução seja tão rápida quanto possível, acarretando menos sofrimento.

Diante desse cenário, os magistrados estariam tão somente divididos entre aqueles que se importam em afiar a lâmina e aqueles que deixam o fio cego. Essa metáfora é ilustrativa do afeto predominante dos magistrados dissidentes entrevistados. Para eles, independentemente das intenções e valores dos artesãos individualmente considerados, as suas guilhotinas continuarão a cortar cabeças. Da mesma forma, as intenções dos magistrados pouco poderiam influenciar no resultado da atuação do direito e do Poder Judiciário, já que, estruturalmente, há uma configuração predisposta a alcançar determinados resultados: a manutenção e a reprodução da sociedade – ao menos em seus aspectos centrais, quais sejam, garantir a máxima eficiência da circulação mercantil e assegurar as condições para uma concorrência generalizada. Na consecução desses resultados, os magistrados apontam, inclusive, a possibilidade de serem suspensas pela própria magistratura as garantias jurídicas que, em tese, seriam a própria razão de existir do Poder Judiciário e do direito.

agora se você pegar a decisão do Moro, que é um juiz de primeiro grau, desautorizando o Favreto, que é um desembargador, isso chancelado pelo STJ, ali você vai ver o direito fazendo o papel que ele é geneticamente programado para a fazer. Não importaram ali as regras do jogo. Não importou que o juiz tenha que se submeter ao desembargador, não importou que a competência era do Favreto no plantão, nada disso importou, eles simplesmente esqueceram todas as regras. Como eles queriam o Lula preso, disseram “Não, o Moro tava certo. Mantém a decisão do Moro”. O STJ disse isso. Para você ver como nosso problema não é o Moro, nem o Dallagnol, nem a desvirtuação do processo da Lava Jato. Não é. O nosso problema é que o direito é isso.

Se, por um lado, a magistratura dissidente se reconhece impotente para inovar em razão do funcionamento hegemônico do Poder Judiciário, por outro lado, a própria organização da resistência é percebida como fragmentada, dispersa e debilitada.

Hoje eu tenho um descrédito muito grande [na possibilidade de transformação do Poder Judiciário] [...]. Eu desacredito porque tem todo esse histórico e poucas pessoas, hoje em dia, têm essa coragem, até porque há uma tendência de perseguição, de punição, de fechar portas para carreira, e todos pensam um pouco nisso.

Essa debilidade da resistência é tão acentuada que os próprios espaços que concentram ou poderiam concentrar o segmento dissidente da magistratura são considerados impotentes para dar uma resposta à altura. Nem as associações corporativas – dentre essas especialmente a AJD (Associação de Juízes pela Democracia) – são consideradas como estando à altura do desafio de inovar o Poder Judiciário e a magistratura desde movimentos internos. A AJD, ainda que seja uma associação absolutamente minoritária no âmbito global da magistratura brasileira, é a entidade que reúne o maior número de juízes e juízas que fazem um contraponto à hegemonia da magistratura. Embora haja essa crítica em relação à capacidade de mobilização e confrontação por parte da magistratura dissidente, também é ponderado que tal impotência vai muito além do Poder Judiciário, abrangendo a sociedade como um todo.

Quer dizer, não tem isso [disputa e confrontação ideológica] no Judiciário e não tem isso em lugar nenhum. Você está vendo isso na política? Existe um rumo, uma articulação dada? Existem resistentes? Existe um projeto alternativo a esse capitalismo voraz, de fim de festa? Não existe. Agora, entre juízes, tem a AJD, eu não sou filiado à AJD. Eu acho muito discurso. É doutrinário. Não tem. Agora você poderia fazer alguma coisa tendo claro que você é minoritário. Mas mesmo assim... Agora eu vou falar mal dos parceiros, eu acho que, claro, sempre há exceções, mas muitos dos, entre aspas, rebeldes, eles não deixam de ser pequeno burgueses e tal. [...] E seja porque eu sou dissidente, seja porque eu sou desistente, eu não acredito muito na AJD, já não estou. E eu acho que não muda. O meu ceticismo chegou a esse ponto, que é muito mais que um pessimismo da inteligência. O Bobbio dizia que têm os pessimistas e os céticos, e os céticos acabam virando cínicos. Eu não vejo muitas alternativas. Olha... falar comigo deprime…

Mesmo quem esteve em outros momentos engajado ativamente em tentativas de inovar a magistratura desde dentro, com o passar dos anos, especialmente com os acontecimentos que se sucederam no Brasil desde 2016, terminou se abatendo pelo pessimismo e tristeza advinda da constatação da impotência: “Eu sempre disse, eu não quero envelhecer com amargura, mas por tudo que está acontecendo no Brasil hoje, na área do direito e na área do direito criminal, principalmente, eu estou envelhecendo com amargura. É uma pena, mas é”.

Para encerrar esta seção, apresentaremos uma breve síntese do diagnóstico feito pela magistratura dissidente que justifica o modo de relação sob o signo da impotência. Em outro trabalho (Guerra, 2020) reunimos esse diagnóstico naquilo que denominamos “ciclo da impotência”: as variáveis que se ligam umas às outras e, em conjunto, contribuem decisivamente para a percepção da impotência por parte da magistratura dissidente.

Em primeiro lugar, não é possível diagnosticar a atuação do Poder Judiciário e da magistratura sem fazer referência à cultura antidemocrática e escravocrata de classe média, conforme discutido por Jessé Souza (2017). Essa cultura é estruturante do “senso comum jurídico”, a camada originária pré-compreensiva em que os sujeitos se situam, conforme conceituam Marková (2017) e Jovchelovitch (2011). A partir desse senso comum vigente no Poder Judiciário, é desenvolvida e legitimada uma rede de microdispositivos (por exemplo: os parâmetros “objetivos” para a progressão na carreira como os rankings de produtividade, a lógica subjacente à informatização do processo judicial, além de elementos de estruturação dos tribunais, tais como o conteúdo e o método do processo seletivo de novos magistrados, bem como a própria forma como é realizada a hierarquização das posições, cargos e competências dentro dos tribunais). Sendo assim, mesmo que os processos de seleção de novos magistrados não contribuíssem para que pessoas oriundas de camadas populares fossem filtradas, o modo como a organização regula a ascensão na carreira e a própria natureza do direito capitalista, iriam ser capazes de reproduzir o senso comum jurídico hegemônico. Ou seja, a própria forma jurídica, conforme conceitualizada por Mascaro (2013), é capaz de estabelecer limites e conformações para uma atuação jurídica “tecnicamente legítima”.

Todas essas dimensões “objetivas” que compõem a ambiência psicossocial da magistratura são responsávéis pela subjetivação dos magistrados, isto é, pela constituição de seu ethos. Esse ponto é central porque vulgarmente se supõe que a decisão jurídica moderna deriva exclusivamente de uma operação formal e racional; no entanto, a ciência jurídica tem dificuldades de reconhecer que “racionalidade” não é algo livre e independente do Lebenswelt (mundo-da-vida) de onde ela se origina. Por isso se ignora que a magistratura tende a interpretar e decidir o destino da sociedade a partir da racionalidade neoliberal vigente, a chamada “nova racionalidade do mundo”, tal como concebem Pierre Dardot e Christian Laval (2016). Essa identificação da racionalidade jurídica com a racionalidade neoliberal é em grande parte responsável pela ausência de movimentos coletivos de resistência na magistratura. Essa foi uma das grandes surpresas da pesquisa, já que apenas em uma das entrevistas houve menção a iniciativas concretas imediatamente em andamento que tinham como alvo disputar a estruturação psicossocial do Poder Judiciário. Essa ausência de divergências termina legitimando tacitamente um silenciamento institucional. Como uma percepção recorrente nas entrevistas é de que o modo como o poder opera internamente no Poder Judiciário tende a ser sutil – especialmente através da omissão com relação àquilo que deveria ser considerado importante e da invisibilização daquilo que poderia provocar tensão –, esse silenciamento termina conformando grande parte da magistratura a uma postura de não querer se expor a conflitos. Quem quer que eventualmente venha a quebrar esse acordo tácito, estará sujeito a virar alvo de perseguições. Nesse sentido, foi marcante a presença do medo nas falas dos magistrados, tanto em relação aos agentes “externos” como “internos”, ambos responsáveis por perseguições aos dissidentes. Em que pese a autonomia formal conferida à magistratura pelo direito escrito – a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional –, afirmou-se que atuações que contrariem esses deveres não escritos, quebrando as condições para o silenciamento de tensões, podem ser passíveis de sanções internas, as quais podem se travestir das mais variadas justificativas, quase nunca diretas ou explícitas. Segundo os/as magistrados/ as, as sanções internas (processo disciplinar no CNJ, suspensão das oportunidades de ascensão rápida na carreira etc.) são motivadas quase que exclusivamente pelo sentido desviante das condutas dissidentes em relação ao senso comum jurídico hegemônico; todavia, as sanções se explicitam como se visassem atacar incorreções meramente formais e burocráticas, como se almejassem simplesmente adequar o/a magistrado/a à letra fria das normas que supostamente teriam sido violadas.

Contribuindo para esse silenciamento, além das perseguições internas, também se disseminou uma perseguição externa muito peculiar: a perseguição efetuada pela mídia, aquilo que denominamos de “jurisdição midiática”, tema que abordamos em outro trabalho (Guerra, 2020). Tal termo diz respeito ao assujeitamento da magistratura à soberania midiática. Com a capacidade de, por um lado, seduzir – através de uma visibilização complacente e lisonjeira – e, por outro lado, ameaçar – através de uma visibilização ácida e pejorativa –, a mídia empresarial se tornou uma espécie de tribunal de cúpula no Brasil, balizando as possibilidades e impossibilidades da atuação jurisdicional, isto é, as margens e limites do senso comum jurídico hegemônico. Sendo assim, mesmo nos casos mais banais, a variável “repercussão social” estará presente no momento do/a magistrado/a tomar sua decisão. O enfraquecimento cada vez mais acentuado das fronteiras que separavam o mundo “interno” do Poder Judiciário do mundo “externo” da sociedade faz com que a jurisdição midiática dê contornos de juridicidade e legalidade aos preconceitos e valores que orientam, desde o nascimento até a morte, todos os membros da classe média brasileira, segmento da sociedade de onde são oriundos a maior parte dos juízes/as. Nas palavras de Mascaro (2018), embora positivamente os agentes do Poder Judiciário na contemporaneidade tenham deixado de fazer parte de uma casta aristocrática qualitativamente distinta; negativamente eles se tornaram membros indistintos de mais uma das tantas categorias que compõem a classe média nacional.

Diante da amplitude e solidez desse diagnóstico, é assumida como nula a possibilidade de inovações que sejam capazes de alterar significativamente o cenário diagnosticado.

POTÊNCIA INDIVIDUAL

Com base na seção anterior, somos levados a questionar se a realização de uma justiça materialmente justa é possível. Entretanto, verificamos em várias falas tons de vergonha em relação a essa impotência. Esse duelo contra a fatalidade das ações sem futuro é do que se trata a potência individual. Desde um ponto de vista externo, essas ações muitas vezes aparecem como ingenuidade ou virtuosismo. Contudo, desde o ponto de vista dos próprios agentes, antes de transformações efetivas, nessas ações está presente uma certa fidelidade a si mesmo, independentemente dos resultados que efetivamente podem ser alcançados. Uma das falas que sintetiza o sentido da potencialidade individual é esta: “Mas eu acho que dentro da engrenagem ainda é possível, na jurisdição e administrativamente, fazendo propostas, tentando sempre dar o murro na ponta da faca até que ela entorte”. Tal compreensão reconhece a improbabilidade – ou altíssimo custo – do sucesso das iniciativas dissidentes (entortar a ponta da faca com murros), mas ainda assim afirma a necessidade – e a possibilidade – do sucesso desse empreendimento. O termo “individual” (potência individual) pode não ser o melhor para designar esse modo de relação dos magistrados dissidentes com sua potencialidade inovadora; mas, na ausência de denominação mais apropriada, o importante é compreendermos o seu sentido. A definição de potencialidade individual só pode ser precisada quando contrastada com o sentido atribuído à potencialidade coletiva, cuja definição será dada na próxima seção. O ponto central dessa contraposição entre as duas potencialidades é discernir a natureza “individual” ou “coletiva” da ação e de seus efeitos. Dessa maneira, a potencialidade individual diz respeito a um modo de relação com a potencialidade inovadora que atribui peso inclusive às ações cotidianas comezinhas que podem ser praticadas pelos próprios magistrados individualmente, independentemente de uma ação concertada de média e grande envergadura que envolva segmentos amplos da magistratura ou do Poder Judiciário. O próprio ponto de referência para se mensurar os resultados alcançados por essas iniciativas muitas vezes também está situado em pessoas concretas individualmente consideradas.

Então isso eu sempre digo pra eles [secretaria judicial] “A gente não vai mudar o mundo, mas a gente vai mudar o mundo de determinadas pessoas, em situações específicas, e isso é muito”, porque se você fizer disso uma soma, se tiverem outras pessoas fazendo isso, já pensou? Eu acho que é só assim que as coisas se modificam historicamente, se as pessoas começam a fazer aquele movimentozinho de água: mexe, vai fazendo uma ondinha, uma ondinha, daqui a pouco vem e mudou.

Um dos aspectos decisivos para a oposição entre impotência e potência individual é a compreensão da margem de autonomia da magistratura, do direito e do Poder Judiciário. Mesmo que eventualmente possam concordar com o diagnóstico anterior (o ciclo da impotência), ainda assim haveria um aspecto constitutivo da potencialidade individual muito importante: não considerar esse ciclo fechado e pré-determinado. Embora possam concordar com o diagnóstico, o afeto da impotência não está presente. A razão disso é a crença na possibilidade da magistratura, do direito e do Poder Judiciário, a partir de suas dinâmicas internas e com relativa autonomia, produzirem rupturas, mesmo que mínimas. Essa margem de autonomia deriva de compreensões, por um lado, acerca da natureza do direito e, por outro lado, das relações que os/as magistrados/as individualmente considerados/as podem estabelecer com ele. No primeiro caso, há duas compreensões predominantes sobre a natureza do direito: (a) Espaço; e (b) Substância.

Quando o direito é compreendido como um Espaço – como um campo de batalhas –, é reconhecido que ali se dão conflitos e disputas em torno de resultados possíveis e até certo ponto imprevisíveis – ainda que a probabilidade de sucesso dos dissidentes seja muito menor.

Eu sempre digo, o juiz não vai fazer a revolução, mas eu não vou mandar desocupar o MST, uma ocupação do MST. Casualmente ...[relato sobre o processo]...3 eu mandei deixar. Isso não é revolução, não melhorou nada pro MST, a juíza não chegou a mudar de posição, o Judiciário continua decidindo pela capa [...] Mas aí é aquilo, deu uma bronca, deu uma discussão, aí dei umas entrevistas. Então volta para aquela coisa, é luta.

Por se tratar de um espaço, dependendo da posição que cada um dos agentes ocupe nesse campo, os resultados podem ser distintos, favorecendo ou desfavorecendo determinadas visões de mundo.

Pode ser uma convicção que vai se formando, então o jurista sabe procurar no sistema e tal, aquela palavra, aquele jeito, aquela expressão, onde ele vai se centrar para dizer o que ele acha sobre determinado fato. [...]. Hoje fica bem claro isso, ele cita a Constituição, eu cito a Constituição. Ficou claro, né? A Constituição tanto lava a roupa como suja a roupa.

A segunda compreensão predominante sobre a natureza do direito considera-o uma Substância. Desde essa compreensão, haveria no direito e em sua razão de ser uma intrínseca racionalidade jurídica com certo grau de autonomia em relação às circunstâncias concretas em que o direito é aplicado. Mesmo que possa ser eventualmente distorcida ou até mesmo completamente ignorada circunstancialmente, essa racionalidade seria capaz de demarcar a própria arbitrariedade e antijuridicidade dos atos que eventualmente a violarem. Mesmo que tais atos sejam praticados materialmente pelo próprio Poder Judiciário, a substancialidade dessa racionalidade não permitiria a formalização deles como propriamente jurídicos, já que estariam em contraposição a essa racionalidade jurídica.

Então existe uma hermenêutica jurídica propriamente falando. E as decisões jurídicas têm que ser tomadas dentro desse campo, a partir dessas regras de interpretação. “Ah, mas alguém pode jogar as regras de interpretação para lixo e dizer que não se importa com elas”. Bom, isso pode acontecer em dados momentos, mas isso tenderá a ser, em contextos não autoritários, não totalitários, tenderá a ser mal-visto, poucas vezes poderá acontecer, será mal-visto, terá uma chance maior de ser revertida.

Um dos exemplos mais recorrentes nas entrevistas acerca dessa substancialidade do direito como uma possibilidade de inovação é o princípio da “função social”. Tal princípio se desenvolveu ao longo do século XX, incorporando-se na racionalidade jurídica quando se passou a atribuir ao Estado o dever de garantir e promover direitos, ao invés de apenas arbitrar conflitos individuais em torno da propriedade, tal como era a concepção do Estado-liberal do século XIX.

Função social. Isso não é nada revolucionário, em si. Mas permite um discurso contra hegemônico. Porque se a funcionalização em si não é revolucionária, a ação de movimentos sociais que contestem a própria propriedade por conta disso, passa a ser. Não pela questão da propriedade em si, mas de como a sociedade reage e como ela pode reprogramar essa ideia da relação com o solo, urbano ou rural. [...]. Aqui é que vem a questão que pode ser revolucionária, ou pelo menos transformadora, de você começar a perceber a legitimidade de determinadas camadas da população.

A potencialidade individual pode derivar, tanto de compreensões vinculadas à espacialidade ou substancialidade da natureza do direito, como também das relações que os magistrados podem estabelecer com ele. Em relação a essa segunda compreensão, por um lado, reconhece-se que o direito não é estanque, mas possui uma Dialeticidade, sendo, portanto, permeável aos movimentos que ocorrem na sociedade.

O direito não vai mudar nada. A estrutura social não vai ser mudada pelo direito por uma questão muito simples: ele foi constituído para mantê-la. Agora, dentro de uma dialética interna que existe da relação do direito com a sociedade, o direito ajuda a apontar contradições e criar brechas por onde outras forças vão poder entrar e atacar o organismo do sistema.

Por outro lado, independentemente da maleabilidade ou dialeticidade do direito, os magistrados consideram que é possível manter uma Fidelidade a si ao estabelecerem relações com o direito, modelando-o aos seus próprios valores e convicções, mesmo que isso só repercuta na esfera individual do próprio magistrado.

A gente tem a percepção, a impressão, e acho que é verdadeira, de que a gente não está sendo ouvido. Mas aí tem uma questão existencial, sabe, de que, como ser humano, como indivíduo, embora eu esteja vestindo a mesma toga que o outro, eu não consigo ver sentido na minha atuação jurisdicional se eu não tentar falar, se eu não tentar disputar a narrativa. Então mesmo que essa narrativa seja capaz de conectar uma única pessoa ao que eu estou dizendo, ainda assim, eu acho que é possível [...]. Não tem como ficar em silêncio, pra mim não existe outra possibilidade, embora talvez eu não consiga fazer a transformação e a justiça que eu pretendo. Mas, por uma questão existencial, vale pela prática, pelo exercício.

Relatos como esse, sintetizam o conteúdo central da potencialidade individual, que é considerar possível e necessária a inovação da prática jurídica desde os próprios indivíduos que a operam. Entretanto, mais relevante do que a possibilidade de efetivamente buscar uma transformação, o que está em jogo nessa modalidade de relação com a inovação é a necessidade dos próprios dissidentes criarem formas de harmonizarem o sentido de suas práticas com os valores que lhes orientam.

Acho que a gente também trabalha um pouco para a nossa consciência, eu acho que esse pessoal que você está chamando de dissidente, talvez tenha uma espécie de vergonha do que faz e do que deixa de fazer, e por isso tenta fazer um pouco melhor, tenta evitar ou reduzir os danos que são causados pelo funcionamento normal desse Sistema de Justiça.

POTÊNCIA COLETIVA

O terceiro modo de relação dos magistrados dissidentes com a potencialidade inovadora diz respeito às possibilidades de transformações estruturais da magistratura, do Judiciário e do próprio direito, a partir de ações desde dentro da magistratura. Dentre os argumentos são mencionadas sobretudo as possibilidades trazidas pela intervenção junto às associações corporativas de magistrados, bem como a atuação na formação de novos juízes, na política administrativa dos tribunais, na reestruturação das carreiras jurídicas, além do estreitamento da relação dos magistrados com a sociedade – sobretudo com os movimentos sociais. Nesse sentido, identificamos quatro “frentes” de ações inovadoras em que os magistrados dissidentes já atuaram ou ainda atuam.

A primeira delas denominamos de frente Estrutural. Esta congrega todas as iniciativas que apontam para a necessidade de se inovar a própria estrutura de funcionamento da magistratura e do Poder Judiciário. Os campos de atuação apontados distribuíram-se em ao menos três, denominados por nós de: “associação corporativa”, “política administrativa” e “reestruturação das carreiras jurídicas”.

Com relação à Associação corporativa, há no Brasil diversas associações de juízes, como por exemplo a AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil), a AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul), a AJD (Associação Juízes para a Democracia) e muitas outras. Os magistrados consideram que esses espaços são privilegiados para o desenvolvimento de mecanismos de politização que podem alcançar toda a magistratura:

Ali [associação corporativa] é um espaço de debate, um espaço político, e certamente aqueles que representam estão levando as discussões para a classe. [...] Cabe à direção da entidade politizar aqueles temas que mais nos envolvem, e para politizar tem que criar um debate interno, um espaço de debate interno.

A partir da conquista de espaços estratégicos nessas associações, determinadas possibilidades de inovação se tornaram possíveis. Três exemplos apontados foram a institucionalização de observatórios e secretarias voltadas para a promoção dos Direitos Humanos, além de seminários direcionados à magistratura que tocam temas relevantes para a sociedade.

Mas se a gente for pensar no período histórico anterior de uma democracia, em que se jogava um jogo de respeito às regras do jogo e a … [associação corporativa]... como uma instituição da sociedade civil que se fazia ouvir, eu acho que nós tínhamos legitimidade com a categoria. [...] e acho que, porque estávamos num processo, em um período histórico desse soft [soft power], de uma normalidade democrática, a gente ocupou bem esse espaço.

O segundo campo apontado como propício para a inovação estrutural é a Política administrativa. Essa diz respeito às intervenções na gestão e nos fatores organizacionais dos próprios tribunais e do Sistema de Justiça. Foram apresentados como exemplos a institucionalização de comitês voltados para as questões de gênero e raça no interior dos tribunais.

A gente cria, solicita e o tribunal acolhe, aceita e a gente tem o primeiro Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade de um tribunal estadual no país. [...] Em âmbito nacional, a gente há muito tempo queria que fossem realizados estudos sobre a situação do negro dentro do Poder Judiciário [...] E se conseguiu que o Judiciário, por intermédio do CNJ, faça uma pesquisa sobre a questão do negro no Judiciário. O resultado dessa pesquisa vai refletir como isso acontece e, a partir daí, nós vamos poder demandar uma ação coletiva, que abranja o país inteiro, que diga respeito à situação de pessoas negras.

Como a atuação dos magistrados é respaldada constitucionalmente, o poder que busca conformar as condutas de juízes tende a se expressar indiretamente, através da manipulação das regulamentações burocráticas que determinam, inclusive, os parâmetros de ingresso e ascensão na carreira. Por essa razão a intervenção na administração dos tribunais é um campo de ação privilegiado.

Esta, com certeza, pra mim é chave, chave. Se existe um espaço que eu quero alcançar, dentro dessa perspectiva de ocupar espaços – e não tenho nenhuma pretensão pessoal –, é uma questão estratégica, é o espaço da gestão e da administração. [...] Eu só consigo compreender a mudança de conduta e de pensamento, se eu puder acessar esse espaço de gestão e administração, porque o Judiciário é hoje o que ele é, porque ele foi feito por alguém, para alguém, num determinado momento da história, com algum objetivo. Então eu tenho que mudar esses objetivos, eu tenho que questionar essas estratégias, eu tenho que buscar com que as pessoas compreendam que outras coisas também são importantes para o exercício da jurisdição.

Mais ampla do que a intervenção no interior dos tribunais, é a intervenção que visasse a Reestruturação das carreiras jurídicas, já que se o magistrado tivesse trilhado inicialmente um caminho que lhe colocasse em contato direto com as mazelas da parcela mais vulnerável da sociedade, no caso a Defensoria Pública, ele poderia adquirir um olhar mais crítico e menos elitizado no momento de tomar suas decisões. Além disso, também se mencionou as regulamentações que limitam a legitimidade de participação da magistratura na sociedade. As tentativas de assegurar a “imparcialidade” da magistratura frente aos conflitos sociais visam restringir as possibilidades de politização da carreira e de seus membros. No entanto, como a política é uma dimensão inerente à existência humana, tais tentativas não impedem a politização, mas, ao invés disso, permitem que esta se dê sem freios ou limites. Até porque, ao se dar visibilidade aos rumos políticos tomados pela magistratura, também se torna possível à sociedade desenvolver mecanismos de intervir nessa politização de modo a tentar assegurar interesses coletivos. A luta pela possibilidade de sindicalização dos magistrados vai nessa direção.

A segunda frente de ação inovadora denominamos de Substancial. Esta congrega iniciativas que se contrapõem à conformação do conteúdo das práticas jurídicas, tanto do ponto de vista “objetivo” (aquilo que é assimilado como sendo o direito a ser aplicado e a função da magistratura), bem como do ponto de vista “subjetivo” (valores e crenças de como se deve dar a atuação do magistrado). Os campos de atuação apontados distribuem-se em ao menos três, denominados por nós de: “política ontológica”, “preparação” e “formação”.

Com a designação Política ontológica referimos as iniciativas com vistas a inovar a natureza do saber e do fazer jurídicos, isto é, inovar os pressupostos ontológicos sobre os quais se erguem as práticas jurídicas. Um argumento singular em relação às condições de possibilidade das ações coletivas foi o que identificou os pressupostos subjetivos que a magistratura traz consigo, isto é, o a priori não refletido a partir do qual todo o prédio da magistratura é erguido, como um problema central. Dentre esses pressupostos, destacam-se dois: a ação individual e a passividade em relação aos conflitos sociais.

Na minha perspectiva isso não existe [movimento coletivos] por dois motivos fundamentais, e os dois vinculados à forma de ser do juiz e do ator do espaço jurídico, mas notadamente o juiz e o promotor, porque os advogados já têm outros tipos de movimentos nos quais se inserem, com mais liberdade, diversas experiências coletivas, mas para o juiz e para o promotor há essa ideia da ação individual [...] E o segundo aspecto é essa reatividade natural, natural entre aspas, quer dizer, esperada, do Judiciário. Então você reage, não age, e sempre individualmente, porque é o que você faz. [...] Mesmo os mais contra-hegemônicos desses atores não escaparam dessa armadilha, da reação e da ação individual.

A demarcação dessa autocompreensão da magistratura é central para os desdobramentos da potencialidade coletiva. Invariavelmente, todas as ações nessa direção visam atacar direta ou indiretamente o pressuposto de que a justiça pode derivar da pura intelecção individual do magistrado isolado. Foi apontada como uma forma de enfrentar essa situação subjetiva iniciativas que aproximassem os magistrados da realidade dos segmentos mais amplos da população.

a gente aqui tem uma característica muito própria, que lamentavelmente em outros estados não é reproduzido, que é exatamente essa abertura para a sociedade, para debater as questões do direito com a sociedade e inclusive se posicionando em situações em que isso é necessário, seja através de notas, seja através de ações concretas. Então a gente já voltou a ter relação com o MST, a gente mantém relação com os movimentos de ocupação urbana, trabalhamos com as questões dos quilombolas, com a questão da comunidade LGBT, estabelecendo diálogos com eles. Tentando, primeiro, mostrar que dentro do Judiciário, apesar desse hermetismo bastante acentuado, desse fechamento para a sociedade [...] há espaços que têm sensibilidade para receber essas discussões. E para que a gente possa aprender com eles o que efetivamente é a luta deles, quais são os debates que eles estão propondo.

Outro exemplo do exercício da política ontológica é o enfrentamento teórico, através de proposições conceituais jurídicas que afirmem outras matrizes epistemológicas a partir das quais as soluções jurídicas podem se referenciar. Uma expressão marcante disso foi a iniciativa do Direito Alternativo.

eu observei que aquele movimento do Direito Alternativo mexeu com o tribunal, o tribunal ficou bem mais progressista, porque eles colocaram o dedo em algumas feridas muito expostas, em que o pessoal mais conservador, mas que tinha alguma honestidade intelectual, refletiu em cima das suas posturas. [...] eles fizeram aquele radicalismo, eram vistos como os patinhos feios, mas eles influenciaram. E influenciaram em várias matérias que a gente jurisdicionava na época.

Pela natureza da política ontológica, ela perpassa as outras duas iniciativas, preparação e formação; entretanto, estas são relativamente autônomas porque não necessariamente assumem a radicalidade da primeira, isto é, com a intenção de desconstruir os alicerces fundamentais que estruturam as práticas jurídicas contemporâneas. Com relação às iniciativas de Preparação, estão presentes ações que buscam oferecer possibilidades de que membros de parcelas marginalizadas da sociedade possam ter condições de ingressar nas carreiras jurídicas. O pressuposto é de que, em razão dessas pessoas partirem de regiões distintas da sociedade, podem levar consigo uma pré-compreensão naturalmente inovadora em suas práticas. Exemplo disso é o Instituto de Acesso à Justiça (IAJ):

O que gente está fazendo no IAJ é patrocinar bolsas de estudo para negros e índios. [...] a gente precisa dar formação pra esse pessoal para fazerem o concurso e, paralelamente, a gente vai tentando dar uma formação cultural e de abertura, de formação mais de esquerda, trazer para debates. É na educação que se consegue mudanças. [...] começar a mostrar como é que pode se aplicar lei para garantir direitos, direitos ampliados, nos termos da Constituição, acho que é aí.

Outra ação que foi apontada como relevante para a inovação da magistratura é a atuação na Formação de magistrados que já ingressaram na carreira. As escolas estaduais e nacionais da magistratura, como a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), foram apontadas como espaços permeáveis a essas ações.

Quais são os espaços de resistência que eu vejo? São os cursos feitos pelas escolas de formação dos juízes, em que, por uma diretriz educacional do próprio órgão formador, que é a ENFAM [...] Eu já não domino tudo isso [quem coordena a política administrativa da ENFAM], mas eu diria que é um dos setores mais progressistas dentro da formação que está fazendo isso. Evidentemente que passa por uma série de filtros políticos, mas eu acho que é um respiro dentro do Judiciário.

Denominamos a terceira frente inovadora de Comunitária. Esta congrega iniciativas que giram em torno do estreitamento de vínculos entre a própria magistratura dissidente, favorecendo não só a circulação de informação, mas também o compartilhamento de conhecimentos e práticas entre os integrantes desse segmento da magistratura. Os campos de atuação destacados foram ao menos quatro, denominados por nós de: “encontros”, “produção acadêmica”, “troca de conhecimentos e práticas” e “criação de coletivos”. Com relação aos Encontros, foi destacado, por exemplo, a experiência do Fórum Mundial de Juízes, iniciativa criada no Fórum Social Mundial, ocasião que reuniu uma diversidade de magistrados de todo o mundo. Outra iniciativa mais recente foi o Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros. A importância desses encontros é que eles estão diretamente relacionados a outro campo de atuação, que é o da Criação de coletivos.

Desde 2017 nós temos um grupo de juízes negros, um coletivo de juízes negros, informal. É nacional, tem juízes de todas as justiças, de todas as esferas de jurisdição, juízes federais, juízes estaduais, juízes do trabalho, desembargadores, só não temos ministros, até porque acho que só temos um ministro negro do STJ, e eu não sei se ele está no nosso grupo. [...] Trocamos ideias, textos, práticas diferenciadas com relação ao exercício da jurisdição.

No espírito do Fórum Mundial de Juízes, desdobrou-se no Rio Grande do Sul a criação do Núcleo de Estudos Críticos (NEC), voltado a reunir magistrados em torno de uma perspectiva crítica ao direito.

Criamos o chamado NEC lá dentro [associação corporativa] [...] E uma perspectiva que se estabeleceu, então, foi a gente passar, a partir do nosso local de fala, a dialogar com os movimentos sociais, o que foi uma experiência extraordinária na época para nós. Então a gente teve diálogo com o Movimento dos Sem-terra, movimento negro, movimento LGBT, diálogo com várias expressões, pra tentar entender, da perspectiva deles, como o direito poderia agir.

Essa aproximação dos magistrados em coletivos propicia um outro campo de atuação que é a Troca de conhecimentos e práticas. Esses compartilhamentos terminam por contribuir para a qualificação coletiva das práticas individuais.

Eu tenho um caso agora que aconteceu recentemente que eu até fiquei com vontade de me exibir um pouco para os meus amigos criminais. Aconteceu o seguinte:[relato processual]... Caiu comigo. Eu digo:…[relato processual]... Como eu puxei coisas de direito penal, fiquei com vontade de me exibir “Olha o que eu aprendi com vocês” [risos].

Embora tenham sido mencionadas todas essas iniciativas, a que foi mais prevalente foi a Produção acadêmica. No entanto, ainda que tenha uma natureza comunitária, uma vez que as produções se destinam a promover debates com os pares, bem como interferir na formação do campo jurídico, a atividade acadêmica, em si, tende a ser individual e monológica, correndo o risco, portanto, de se manter dentro do paradigma da subjetividade individualista em que se assenta a atuação jurisdicional hegemônica.

Por fim, a quarta frente de ação inovadora foi denominada Estilística. É questionável até que ponto esse conjunto de ações possa constituir uma frente autônoma, mas seu reconhecimento é essencial para a compreensão do sucesso ou fracasso de movimentos inovadores. Embora não tenha sido diretamente abordada, essa frente perpassou muitas falas. Ela diz respeito à lição mais profunda que pode ser extraída da Teoria das Minorias Ativas: a de que uma minoria, simplesmente por manifestar o estilo minoritário de existir, já é capaz de influenciar significativa e perceptivelmente a maioria. Nesse sentido, a frente estilística é a dimensão propriamente psicossocial e psicopolítica expressada pela magistratura dissidente. Na ausência de termos melhores, denominamos “parresia” e “confrontação” os dois campos de intervenção dessa frente. Em relação ao primeiro, a Parresia, está o dizer verdadeiro, isto é, o pressuposto ético que recusa as vantagens do dizer conveniente exigido pela conformação moral, independentemente das consequências que isso possa acarretar.

A partir dali ...[episódio]... ele [Amilton Bueno de Carvalho] é super perseguido, estigmatizado dentro do tribunal, como outras figuras daquele momento, o Rui Portanova, aquele povo todo do Direito Alternativo sofreu muita perseguição, muita tentativa de desqualificação, o que é mais ou menos o que acontece hoje com os juízes que se colocam dentro daquilo que alguns chamam de vanguarda democrática, eu particularmente não gosto muito dessa expressão, mas pessoas que não seguem a cartilha neoliberal ou a cartilha de determinado tribunal que estipula como pode decidir ou não pode, quem está desagradando, de modo geral essas pessoas sofrem esse tipo de perseguição.

Em relação à Confrontação, isto é, ao conflito aberto pela minoria contra a maioria – independentemente dos resultados aparentemente obtidos –, é produzido o efeito psicopolítico e psicossocial que, conforme Billig (2008), pode ser considerado um dos mais significativos dos movimentos minoritários: a desnaturalização das posições majoritárias. Essa prática constitui uma situação em que não é possível estar de dois lados ao mesmo tempo, o que obriga a um posicionamento que rompe com toda e qualquer pretensão de naturalidade e universalidade – pressupostos sobre os quais se assenta a racionalidade jurídica mistificada.

Por isso que a gente está engajado nesse grupo, porque realmente faz uma diferença você ter uma resistência, uma referência. [...] Você tem que ter esse grupo com essa visibilidade, alguém que aponte. E nesse momento, ao mesmo tempo em que o conservadorismo está imperando, e as pessoas estão normalizando condutas como tortura, racismo, homofobia, misoginia, isso tá sendo normalizado, a promiscuidade entre o Ministério Público e a Magistratura, dentro da Magistratura parece que isso é uma coisa normal, apesar de tudo isso, nós estamos ali apontando o dedo nessa ferida aberta. (...) Então esse questionamento, quem é que vai fazer? Alguém tem que fazer. E é esse o nosso papel hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A magistratura não é um bloco monolítico. Entretanto, a maior parte dela tende a se conformar a determinadas normas não escritas que regulamentam o papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário e pelo direito na sociedade. À medida que essa tendência vai se cristalizando, os desvios vão se tornando cada vez menos prováveis e mais custosos. Entretanto, justamente esses movimentos contraintuitivos caracterizam os processos inovadores produzidos pelas dissidências.

No atual cenário, grande parte da magistratura dissidente estabelece um modo de relação com sua potencialidade inovadora a partir do signo da impotência. A participação ativa do Poder Judiciário no golpe de 2016 e em outros episódios que resultaram na eleição de Bolsonaro, em 2018, revelaram para a magistratura dissidente uma dinâmica e estrutura judiciais absolutamente comprometidas com segmentos antidemocráticos da sociedade brasileira. Nessa conjuntura, é esvaziado o sentido de justiça materialmente vinculado às camadas mais vulneráveis da população, que é de onde a magistratura dissidente retira o fundamento político de suas práticas jurídicas. Em decorrência disso, ao invés de uma profissão vocacionada à artesania do justo, a magistratura dissidente passa a reconhecer a si própria como motor e alicerce da legitimação da injustiça. Esse sentimento é particularmente presente nos magistrados que vivenciaram a redemocratização do país em 1985 e depositaram suas esperanças nas possibilidades da Constituição de 1988 servir de farol para uma nova sociedade. Em quantidade significativamente menor, aparecem os magistrados que de alguma forma sustentam a convicção na potencialidade inovadora da magistratura dissidente. Em geral, as lutas mais vigorosas são aquelas que envolvem a necessidade de democratização do Poder Judiciário em termos da representatividade de raça e gênero. Não ignorando os limites impostos pela dinâmica e estrutura judiciais, o modo de relação da magistratura dissidente com sua potencialidade inovadora a partir do signo da potência individual assume a posição privilegiada que a pessoa concreta do magistrado ocupa na sociedade como um importante fator de transformação. Ainda que não ignorem os limites de seu otimismo, tal fração da magistratura dissidente é a que está mais ativamente engajada em iniciativas concretas com vistas à inovação, especialmente no que diz respeito a ocupar posições estratégicas na administração e gestão do Poder Judiciário para, desse modo, dar voz e materialidade às suas reivindicações. Apesar de insignificante do ponto de vista quantitativo, persiste na magistratura dissidente um horizonte mais amplo e promissor do ponto de vista da inovação. Contudo, a potencialidade inovadora a partir do signo da potência coletiva não apareceu como uma tarefa em curso ou sequer por se fazer, mas apenas como a lembrança de que um dia foi possível o desejo e o sonho por um outro Poder Judiciário e por uma outra magistratura. Essa instituição já foi a incubadora de experiências e ideias concretas capazes de inovar a autocompreensão e o papel desempenhado por seus agentes. Embora sempre minoritárias do ponto de vista quantitativo, as diversas iniciativas que foram colocadas em curso com originalidade, ousadia e coerência se mostraram potentes do ponto de vista qualitativo.

O diagnóstico crítico e realista acerca do Poder Judiciário e da magistratura é um componente indispensável a quaisquer iniciativas inovadoras; no entanto, quando tal compreensão se torna paralisante, ela termina reforçando e reafirmando a realidade que se propõe a diagnosticar. As iniciativas individuais que materializam avanços concretos, por menor que sejam, afirmam que nenhuma realidade, por mais opressiva que seja, é definitiva e absoluta; entretanto, tendo em vista que a subjetividade que configura a dinâmica e estrutura judiciais é individualista, tais iniciativas são mais vulneráveis à assimilação, correndo o risco de perderem seu caráter inovador ao serem integradas a uma arquitetura institucional que consiga manter intactos os elementos centrais de sua dinâmica e estrutura. Por fim, há uma série de iniciativas concretas que já provaram a potência das intervenções que se propõem a refundar os fundamentos sobre os quais a magistratura assenta suas práticas; todavia, a inovação coletiva pressupõe a existência de programas capazes de concatenar as dimensões individuais, corporativas, sociais e econômico-políticas na afirmação de um movimento minoritário que, usufruindo da posição favorável que ocupa na sociedade, disponha-se a disputar um projeto original, ousado e coerente de um outro Judiciário possível.

Financiamento

Pesquisa realizada no Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEPPSICO) sob o parecer 3.386.802.

21 Guerra, A, & Guareschi, P. (no prelo) Uma Psicologia Social do Direito: investigações sobre uma magistratura dissidente. Revista Arquivos Brasileiros de Psicologia.

3O conteúdo das falas que possam comprometer o anonimato foram substituídos pelo seu sentido geral, colocado entre colchetes, imediatamente precedido e sucedido por três pontos.

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Recebido: 02 de Fevereiro de 2022; Aceito: 03 de Setembro de 2022

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