INTRODUÇÃO: A DIMENSÃO MICROPOLÍTICA DA ACESSIBILIDADE E A POTÊNCIA DA ARTE
A acessibilidade na universidade vai bem além de garantir a presença de alunos com deficiência em sala de aula nas mesmas condições de aprendizagem dos demais estudantes. Partindo da distinção estabelecida por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996; Guattari & Rolnik, 1986) entre macropolítica e micropolítica, podemos dizer que a acessibilidade possui tanto uma dimensão macropolítica, envolvendo leis, direitos e tecnologias assistivas, quanto uma dimensão micropolítica, que envolve políticas cognitivas, modos de perceber, de pensar, bem como gestos e regimes de atenção. Tal dimensão micropolítica, que marca a relação entre estudantes com e sem deficiência, constitui uma parte importante do cotidiano na universidade. O projeto de extensão acessando uns aos outros”, desenvolvido pelo NUCC – Núcleo de Pesquisa Cognição e Coletivos do Instituto de Psicologia/Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coloca como problema a dimensão micropolítica da acessibilidade, promovendo Encontros Estéticos para reunir estudantes com corpos marcados pela diversidade. Tomando as atividades do projeto como campo de pesquisa, o presente estudo é desenvolvido no contexto de uma universidade pública, trazendo discussões a partir de condições específicas que articulam o ensino, a pesquisa e a extensão.
Muitos estudantes ingressam na universidade com uma formação capacitista (Kastrup & Pozzana, 2020; Mello, 2016)), sentindo-se e colocando-se, de modo mais ou menos consciente, como alguém superior às pessoas com deficiência. O capacitismo não é apenas um sentimento ou uma crença pessoal, mas se atualiza em práticas sociais de exclusão e opressão. Ele pode ser intensificado e mesmo reforçado num ambiente universitário competitivo, marcado muitas vezes pela desigualdade e pela hierarquia. Comparece muitas vezes como desinteresse pelo contato e falta de atenção aos alunos com deficiência, que têm com frequência sua singularidade ignorada ou negligenciada. Seus corpos e seus modos de perceber, aprender e se locomover que parecem por vezes estranhos, ao invés de provocarem atitudes de aproximação, atenção e cuidado, provocam frequentemente afastamento e distanciamento, que se atualizam em situações cotidianas como a escolha do lugar na sala de aula, a limitação das conversas e até a evitação do olhar.
Por outro lado, a universidade pública não é apenas um espaço de transmissão de saber, mas também, e sobretudo, um território de invenção, de produção de conhecimento e de formação crítica. A presença de estudantes com deficiência surge como oportunidade para problematizar e transformar saberes capacitistas e práticas micropolíticas de exclusão, que são por vezes naturalizadas, mesmo em face de um corpo discente que hoje em dia é marcadamente diverso. Cumpre problematizar as concepções teóricas eminentemente negativas da deficiência, fundadas nas ideias de falta e déficit, bem como desenvolver conhecimentos sobre as múltiplas formas de perceber, conhecer e estar no mundo. É também imperativo banir práticas de exclusão e opressão que marcam, por vezes de forma velada, as relações com as pessoas com deficiência, e se colocam ao lado e se somam àquelas que caracterizam o racismo, o machismo e o sexismo. Em outras palavras, a presença de alunos com deficiência na universidade surge como ocasião para a problematização da lógica capacitista, convocando à invenção de estratégias e dispositivos que coloquem em questão a hierarquia entre alunos sem deficiência e alunos com deficiência. Enfim, que problematize a suposta superioridade cognitiva e existencial das pessoas sem deficiência e a suposta inferioridade das pessoas com deficiência.
Produzir mudanças micropolíticas não é algo trivial. Embora existam diversas leis para a acessibilidade de pessoas com deficiência em espaços educacionais e culturais, nem sempre elas são cumpridas. Muitas vezes elas são consideradas pela população como sendo sem sentido e mesmo como “privilégios”, o que leva a seu descumprimento mais ou menos velado. Como exemplo, podemos citar o caso das vagas de automóvel reservadas para pessoas com deficiência no campus da universidade, que exigem o adesivo apropriado. No entanto, não é raro que essas vagas sejam ocupadas por carros de pessoas sem deficiência – professores, técnicos etc. – que alegam que o estacionamento está cheio, que não há demanda de deficientes naquele momento ou que ocupará a vaga “só por alguns minutos”. Se a esta pessoa é chamada atenção por um aluno ou funcionário, não é raro que a advertência seja ignorada ou que a resposta venha em tom de indignação ou mesmo de ofensa. Assim, a existência de leis não parece garantir, a menos a curto e médio prazo, a transformação efetiva das subjetividades e das instituições.
Nossa aposta é que práticas artísticas acessíveis, realizadas em grupos heterogêneos, bem como a experiência estética compartilhada indicam um caminho fecundo para a produção de transformações micropolíticas, que afetam o plano relacional. A arte tem uma dimensão política no sentido em que ela é capaz de operar transformações em nosso modo de perceber, sentir, desejar, aprender, pensar, atentarmo-nos uns aos outros e partilharmos um mundo (Ferraz, 2010, 2012; Kastrup, 2018; Pozzana, 2017). O que se visa é criar um território comum, habitado pela diversidade e que inclua os corpos das pessoas com deficiência. Nesta medida, as práticas artísticas são entendidas como práticas que respondem pela invenção de políticas da cognição distintas do capacitismo (Kastrup & Pozzana, 2020; Kastrup, Tedesco, & Passos, 2008). Os Encontros Estéticos visam à criação de um território de cultivo da atenção conjunta, onde a desigualdade dê lugar à diversidade e diferenças sejam afirmadas, produzindo a potencialização de corpos e subjetividades.
Articulando arte, acessibilidade e atenção conjunta, o artigo discute a dimensão micropolítica da acessibilidade de alunos com deficiência na universidade. Identifica a universidade como um território majoritariamente capacitista, com a presença de práticas de exclusão e barreiras invisíveis. Aponta também que estratégias inventivas podem ser experimentadas e implementadas para a mudança de tal cenário. Apostando na potência da arte para promover encontros e trocas não hierárquicas, o estudo investiga práticas de atenção conjunta numa oficina de DanceAbility.
A DanceAbility foi fundada em Oregon, nos Estados Unidos pela Joint Forces em 1988, companhia de dança sem fins lucrativos que visa incentivar a evolução e prática da new dance e cultivar um lugar comum de expressões criadoras através da experimentação artística para todas as pessoas independente de raça, habilidade física ou condição econômica (Liberman & Samea, 1998). A ideia norteadora do trabalho é não excluir qualquer membro do grupo dos exercícios e das proposições artísticas, encontrando sempre um denominador comum, para que a dança seja acessível a todos. Em nossa oficina, a proposta era reunir pessoas com e sem deficiência para trabalhar artisticamente e eliminar barreiras existentes entre elas.
Partindo da ecologia da atenção de Yves Citton (2014), o objetivo deste estudo é analisar diferentes camadas da rede atencional onde circulam forças e afetos, conectando estudantes com corpos marcados pela diversidade. A pesquisa utiliza o método da cartografia (Deleuze & Guattari, 1995; Passos, Kastrup & Escóssia, 2009; Passos, Kastrup, & Tedesco, 2014; Rolnik, 2006). A partir de diários de campo, são cartografados gestos de atenção de uns aos outros, de atenção aos objetos do ambiente e da atenção do cartógrafo.
A ATENÇÃO CONJUNTA: AMPLIANDO UM CONCEITO
O conceito de atenção conjunta surge na psicologia do desenvolvimento na década de 70, em pesquisas sobre a relação mãe-bebê. Jerome Bruner tem um estudo seminal onde é identificada uma tendência em bebês, no final do primeiro ano de vida, de acompanharem a linha do olhar da mãe, quando ela desvia o olhar para observar algo presente no espaço que eles ocupam (Scaife & Bruner, 1975). Quando a mãe reorienta o olhar, o bebê faz o mesmo, voltando sua atenção para o objeto em questão. A atenção é conjunta no sentido em que a atenção de um leva a do outro a se orientar na mesma direção (Moore & Dunham, 1995). Há uma atenção de uns aos outros. Sua estrutura é dita triangular: sujeito-objeto-sujeito.
Outros estudos buscaram investigar o papel da atenção conjunta na aquisição da linguagem verbal, na compreensão da intencionalidade e na chamada cognição social (Tomasello, 2014). Mais tarde, Daniel Stern (1992) vai observar que os estudos de Bruner e seus seguidores deixam de ressaltar que, após o bebê dirigir seu olhar para o objeto visado pela mãe, ele faz em seguida mais um gesto atencional, que é retornar seu olhar em direção à mãe, como que para confirmar e então compartilhar sua experiência com ela. Para Stern, é este gesto de partilha que completa o processo de atenção conjunta.
Diferentemente da psicologia do desenvolvimento e dos estudos da filosofia da mente, e na mesma linha indicada por Stern, a abordagem fenomenológica da atenção conjunta considera que o fenômeno não se esgota em direcionar a atenção para o objeto visado por outra pessoa. Segundo Natalie Depraz (2010), para que a atenção conjunta ocorra é preciso que a presença de ambos os sujeitos seja mutuamente manifesta e explícita, numa experiência de encontro e partilha. Identifica então dois componentes: a atenção a um mesmo objeto e a atenção de um sujeito ao outro, sendo o segundo componente dependente do primeiro. O exemplo evocado é de mãe e filha que assistem juntas um número de acrobacia no circo. O objeto comum – o número de acrobacia – é o fio condutor das manifestações, como a troca de falas e a pressão na mão, por exemplo. Por outro lado, há também um modo de relação singular entre mãe e filha, que diz respeito ao sentimento de poder partilhar a experiência de um vivido. Depraz (2010) sublinha que a atenção do outro qualifica aquele objeto de modo singular. Ou seja, o número de acrobacia ganha qualidade e sentido especial quando mãe e filha podem partilhar sua beleza e dar testemunho recíproco de seu entusiasmo, angústia e alegria. Na atenção conjunta há, portanto, consciência da partilha, embora os vividos não sejam simétricos ou homogêneos.
A perspectiva fenomenológica considera ainda que a atenção conjunta possui diversos modos de articulação e comporta gradações. No grau mais baixo, há um objeto que funciona como fio condutor estruturante e alguma consciência da co presença. A partilha ocorre aí em grau mínimo. No exemplo do espetáculo circense, ela diz respeito à conexão atencional entre os espectadores do circo, que participam conjuntamente daquele espetáculo, de modo mais ou menos difuso. Numa gradação ascendente, a ênfase é deslocada do objeto para a experiência de partilha. O objeto passa a ocupar o pano de fundo da atenção conjunta e é a própria experiência da atenção conjunta, ou seja, a qualidade da ligação vivida conscientemente pelos sujeitos, que ganha o primeiro plano. A experiência de relação torna-se o verdadeiro objeto da atenção conjunta, como no caso de mãe e filha que partilham alegrias e angústias assistindo ao espetáculo circense. Embora traga avanços em relação aos estudos cognitivistas, vale observar que a abordagem fenomenológica trabalha ainda com a noção de experiência subjetiva e individual, além de não abandonar a estrutura tripartite da atenção conjunta (sujeito-objeto-sujeito).
A novidade da abordagem ecológica da atenção proposta por Yves Citton (2014) é conceber uma atenção desde sempre coletiva e individuante, apontando a existência de mil folhas da atenção e de redes de atenção conjunta. De modo geral, um dos problemas dos estudos tradicionais sobre a atenção é limitá-la a uma focalização intencional. Para Citton, ao contrário, é preciso levar em consideração também uma espécie de atenção ao fundo, que envolve ser sensível a ruídos sutis, odores nem sempre conscientes, palavras e imagens dotadas de afetos. Daí falar da atenção em termos de camadas, superpostas e co presentes, de intensidades variáveis e em constante movimento de composição e recomposição.
Citton (2014) concebe a abordagem ecológica da atenção inspirando-se no livro Três ecologias (1990) de Félix Guattari, e nos conceitos de individuação e de transindividual de Gilbert Simondon (2007). Um dos pontos altos do trabalho de Citton é a recusa do modelo individualista e o reconhecimento de que nunca estamos sozinhos quando mobilizamos nossa atenção. A atenção é sempre constituída por vetores heterogêneos e coletivos – materiais, midiáticos, tecnológicos, políticos, econômicos e estéticos. Colocar o problema da atenção como o de um sujeito que presta atenção a um objeto ou situação é algo limitado e mesmo equivocado. A atenção não cabe no modelo representacional, que coloca em relação duas realidades ou polos pré-existentes: o sujeito e o objeto. Ao invés de concebê-la como um processo individual, Citton coloca o problema da potência individuante da atenção, ou seja, de sua participação nos processos de subjetivação (Kastrup & Herlanin, 2018).
Por certo, a atenção conjunta ocorre quando a atenção do outro afeta a orientação de minha própria atenção. Por sua vez, a ecologia da atenção busca dar ao conceito uma definição mais precisa e mais ampla. A atenção conjunta ocorre em situação de co-presença e tem como características a reciprocidade, o esforço de sintonia afetiva e as práticas de improvisação. A condição de co-presença diz respeito a uma atenção presencial e em tempo real, que envolve um número limitado de pessoas. Várias pessoas, conscientes da presença do outrem, interagem e produzem interferências atencionais umas nas outras. A co-presença é temporal e sensível, mais do que espacial e física, não sendo, em princípio, impossível ocorrer em situações em que a conexão se dá pela internet. Todavia, não estão incluídas situações de difusão midiática e de redes sociais. Não se trata apenas de problema de escala, relativa ao número de participantes implicados. O que é distinto é o modo como a relação está organizada nesses ambientes.
Citton aborda o fenômeno da atenção conjunta tomando como modelo a conversação presencial direta. A característica de reciprocidade aponta que estar conectado num processo de atenção conjunta significa que a atenção do outro afeta e orienta minha própria atenção e vice-versa. Há uma alternância de papéis entre aqueles que falam e aqueles que escutam. Para explicar o princípio de reciprocidade, é evocada a diferença proposta por Vilém Flusser (2006) entre dois sistemas de comunicação: o sistema rádio, composto por um emissor central e uma pluralidade de receptores periféricos, e o sistema rede, onde múltiplos participantes são ligados entre si de modo biunívoco, todos podendo ser emissores e receptores. A atenção conjunta funciona segundo o modelo rede.
A ideia de que a atenção conjunta envolve sintonia afetiva indica que ela não é entendida como um processo estritamente cognitivo, mas envolve trocas não verbais e um conhecimento no plano dos afetos. A sintonia não está dada nem garantida, havendo sempre um trabalho de ajustamento recíproco entre a fala de um e a escuta dos outros. A atenção conjunta detecta micro gestos de simpatia, encorajamento, precaução e conforto. Graças também a micro gestos de atenção, os participantes se conectam uns aos outros para manter entre eles uma ressonância afetiva. Consistindo numa atenção sutil, tais micro gestos parecem tão ou mais determinantes nas trocas relacionais do que o conteúdo do que é dito e mesmo do rigor argumentativo. A entonação da voz, o ritmo da conversação, uma piscada de olhos, um sorriso, um gesto de confiança ou de pacificação afetam diretamente a sintonia afetiva. O trabalho de sintonização afetiva não pode ser completamente preparado de antemão. “Se mostrar atencioso à atenção do outro exige aprender a sair das rotinas programadas de antemão, para se abrir aos riscos (e às técnicas) de improvisação” (Citton, 2014, p. 131). O sistema rádio de comunicação traz o conforto da distância temporal, da comunicação diferida. Já na rede atencional a improvisação e os riscos têm que ser assumidos.
Embora Citton não faça referência explícita à obra de Daniel Stern, é possível perceber que sua concepção da atenção conjunta é inspirada nos conceitos de afetos de vitalidade e de sintonia afetiva. Segundo Stern (1992), os afetos de vitalidade dizem respeito ao aspecto dinâmico da afetividade, àquilo que não pode ser reduzido aos afetos categóricos como a raiva, o medo, a alegria e a tristeza. Eles são descritos por Stern no gerúndio, por termos como “surgindo”, “passando rapidamente”, “explodindo”, remetendo sempre a propriedades amodais da experiência, como ritmo, velocidade e intensidade. É através dos afetos de vitalidade que ocorre a sintonia afetiva. Com o conceito de sintonia afetiva, Stern descreve como mãe e bebê experimentam padrões de alternância e revezamento, que incluem variação mútua e práticas de improvisação.
Cabe notar que Stern fala de afetos de vitalidade, no plural, indicando que se trata sempre de uma rede coletiva de forças em conexão. Para Guattari (1992) o trabalho de Stern é importante por reconhecer o lugar da experiência não-verbal na produção da subjetividade (Costa & Gondar, 2010). Por sua vez, o conceito de afetos de vitalidade ajuda a pensar o plano coletivo de forças, que é também um plano de afetos pré-individuais (Brazão & Rauter, 2014; Peixoto & Arán, 2011). Segundo Félix Guattari e Suely Rolnik (1986), subjetividades e objetividades possuem dois planos, que coexistem na experiência: o plano das formas e o plano das forças. Considerando que pode haver uma atenção ao plano dos afetos, o conceito de atenção conjunta assume um novo alcance. Ela não mais se define de modo intersubjetivo ou triangular, mas sim pela conexão no plano coletivo de forças e afetos, configurando um rizoma atencional. Nesta mesma direção, Citton (2014) fala de mil folhas da atenção, em camadas superpostas, co presentes e de intensidades variáveis.
Consideramos que a atenção conjunta não é própria de uma etapa do desenvolvimento, mas nos acompanha ao longo da vida. Todavia, a conexão atencional no plano dos afetos pode ser inibida pela linguagem e pelas trocas verbais, que assumem pouco a pouco a dominância na comunicação social. Então, a pergunta que se coloca é: que ecologia da atenção estamos praticando na universidade pública? Com a abordagem ecológica, a atenção conjunta assume uma função de modulação da qualidade afetiva das relações, na medida em que ela está sujeita a variações, flutuações e mutações. Sob tal enfoque, o conceito se amplia e ganha importância para pensar o campo das relações micropolíticas.
Aí reside a fecundidade das práticas artísticas e da experiência estética, que acessam o plano dos afetos e ativam a atenção conjunta neste nível. Nesta medida, as práticas corporais realizadas em grupo podem ser entendidas como práticas de cultivo da atenção conjunta (Romero, 2018). Por sua vez, oficinas de dança e improvisação com grupos heterogêneos, onde pessoas com e sem deficiência se encontram e entram em composições inusitadas e pouco habituais, podem constituir dispositivos capazes de forjar novas ecologias da atenção e incitar transformações na dimensão micropolítica da acessibilidade na universidade.
A arte tem a potência de produzir experiências de problematização. Uma obra ou proposição artística provoca estranhamento e uma suspensão da recognição, nos forçando a pensar. A atenção é tocada no plano das forças moventes, e não no plano da recognição ou representação de objetos e formas. É possível perceber uma proximidade entre o funcionamento da atenção na experiência estética e no trabalho do cartógrafo. Os diferentes gestos que caracterizam a atenção do cartógrafo – rastreio, toque, pouso, reconhecimento atento – possuem como diretriz o acesso ao plano coletivo dos processos de produção de subjetividade e de objetividade (Escóssia & Tedesco, 2009; Kastrup, 2009).
Frente a outros métodos de pesquisa-intervenção, a singularidade da cartografia é considerar a existência de uma ontologia das forças e dos processos de produção, que são reiteradamente buscados pela investigação. Na pesquisa cartográfica, há experiência de problematização quando algo inesperado se destaca e ganha relevo. O relevo não resulta da inclinação ou deliberação do cartógrafo, não sendo, portanto, de natureza subjetiva. Algo acontece, toca e exige atenção. Surge uma rugosidade de origem exógena, no sentido em que o elemento perturbador provém do campo. O gesto de pouso da atenção indica uma pausa, uma parada. Um novo território se forma, o campo de observação se reconfigura. Vamos ver o que está acontecendo.
PRÁTICAS DE ATENÇÃO CONJUNTA NUMA OFICINA DE DANCEABILITY
A Oficina de DanceAbility daquele Encontro Estético, em 2018, foi conduzida pela professora de contato improvisação e terapeuta de movimento Sofia Giliberti. A divulgação foi realizada por meio de cartazes espalhados no campus da Praia Vermelha e pelas redes sociais. Foi feito um convite especial aos estudantes com deficiência e aos participantes da Oficina de Corpo, Movimento e Expressão do Instituto Benjamin Constant, instituição de atendimento a pessoas cegas, na cidade do Rio de Janeiro. Compareceram 30 pessoas, sendo 8 com deficiência (cegos, baixa visão, cadeirantes e deficientes intelectuais), entre alunos e convidados, e 22 pessoas sem deficiência (videntes, andantes, ouvintes). Todos os participantes assinaram autorização para uso de imagem, de seus depoimentos e de seus nomes em publicações e trabalhos acadêmicos. Tínhamos um grupo heterogêneo para o trabalho. Foi estendida uma lona em frente ao prédio do DCE – Diretório Central dos Estudantes, onde transitam muitas pessoas ao longo do dia. A oficina foi realizada ao ar livre com o intuito de trazer à cena e dar visibilidade à presença de alunos com deficiência na universidade e ao encontro de corpos marcados pela diversidade. A ideia era fazer uma intervenção no campus, criando um dispositivo que oferecesse a oportunidade de um trabalho em grupo para cultivo da atenção conjunta.
Tomamos como ponto de partida algumas camadas da atenção conjunta que imaginamos que iriam comparecer naquele dispositivo: atenção entre os participantes, atenção à professora, atenção a transeuntes do campus, atenção a objetos como a lona, a bengala e a cadeira de rodas e a própria atenção do cartógrafo. Os fenômenos atencionais deveriam envolver não apenas a visão, mas também a audição, o tato e todo o corpo multissensorial. Trabalhando com o conceito de redes de atenção conjunta, não era previsto um número pré-definido de camadas, mas sim uma multiplicidade que não poderia ser previamente definida. A atenção concentrada do cartógrafo deve rastrear o território que está se constituindo, mantendo-se aberta a camadas, gestos e regimes atencionais que poderiam surgir de modo inesperado.
No começo do trabalho, a professora sugeriu que todos tirassem os sapatos e entrassem na lona - dançaríamos sem música. Sentamo-nos em roda. A roda é um dispositivo utilizado em práticas grupais para que cada participante possa perceber a presença dos outros, além de propiciar uma conversa inicial para apresentações, troca de expectativas, dúvidas e afetos. Este é um momento especialmente importante quando existem participantes com deficiência visual, que podem perceber, pela voz, os demais participantes. A roda é também um dispositivo de produção de grupalidade, na medida em que conecta atencionalmente, visual e/ou auditivamente, os participantes. O grupo ganha aí um primeiro contorno, uma linha que desenha o limite entre o interior e o exterior. Trata-se de um fechamento espacial que funciona como uma membrana porosa, distinguindo, sem isolar, interioridade e exterioridade, ou seja, posições de pertencimento e não pertencimento ao grupo.
Logo no início da apresentação dos participantes, a professora perguntou se alguém tinha algum tipo de limite ou desconforto corporal para a atividade. Deveríamos estar atentos uns aos outros. Naquele momento, os participantes estavam com a atenção solta, salteando aqui e ali, vagueando pela roda, passeando de modo mais ou menos aleatório pelas pessoas e pelo espaço do campus. Eis que uma estudante, que passava naquele exato momento por ali, interferiu na dinâmica da roda e falou bem alto:
Posso falar? Sofia convidou-a para entrar na roda e participar da oficina, mas ela disse que não, só queria responder ao que tinha sido perguntado: “O que é mais importante para você dançar, sem haver nenhuma forma de abuso, é você se conectar consigo mesmo. A partir disso, você se respeita, se ama e o resto vai por osmose, porque você jamais vai invadir a intimidade da pessoa”. Falou, acenou se despedindo e disse que não poderia ficar, pois tinha um compromisso. Sua fala nos deixou sem reação, e percebi que, da mesma forma que eu, várias pessoas se entreolharam e esboçaram um sorriso, talvez sentindo-se contempladas pela asserção da aluna. Parecia que havia sido ensaiada a chegada da moça àquele lugar, naquele momento, com uma fala instigante que pode ter causado incômodo a alguns, mas que certamente convidou, mais ainda, todos a mergulharem naquela experiência.
O diário de campo narra uma surpresa, um susto, uma experiência de problematização. Naquele momento houve uma convocação das atenções e a atenção do cartógrafo foi tocada. A estudante falava de abuso, de necessidade de conectar-se consigo mesmo. Foi possível notar que havia uma camada da atenção que deveria ser observada, mas não havia sido inicialmente prevista: a atenção a si, que vai acabar por se tornar um dos analisadores daquele encontro.
Em seguida nos levantamos e demos início ao trabalho corporal. Nos dividimos em grupos de quatro pessoas e seguimos a primeira proposição da professora, que convocava a experimentar variações do toque e do som baseadas nos elementos da natureza. A proposição era percorrer o corpo das outras pessoas, da cabeça aos pés, com toques e sons que remetessem à água, à terra e ao ar. Um(a) participante ficava no centro, de olhos fechados, e os/as outros/as três o tocavam, experimentando aquelas nuances. As posições se alternavam, de maneira que todos, no fim, tivessem vivido a experiência tanto de estar no meio, de olhos fechados, quanto em volta, tocando de diferentes modos. Distinta de uma mera tarefa, a proposição provoca uma suspensão da recognição, na medida em que não existiam modos pré-definidos de expressão de elementos da natureza por meio do toque. O fato de não haver um padrão expressivo, gestos certos ou errados, fazia daquela prática um exercício de invenção, experimentação e improvisação.
Fechei os olhos e quatro pessoas ficaram ao meu redor. Dedos começaram a tilintar no alto da minha cabeça, passando por meus ombros, costas, braços, cintura, pernas, até os meus pés – como gotinhas de chuva caindo suaves no meu corpo. Eu ouvia o som de chuva, um som de chiado, que Sofia havia pedido que fosse feito, acompanhando os gestos das mãos que tocavam os corpos das pessoas nos centros dos grupos. Que leveza foi se produzindo em mim! Em seguida, toques “mais de terra”, sentia mãos que apertavam partes do meu corpo, levemente, junto a sons guturais, também produzidos com os gestos. [...] O vento que eu sentia na pele, nos cabelos, naquela tarde fresca no campus começou a se misturar com os sopros das pessoas ao meu redor. Esse era o terceiro toque. Dos pés à cabeça movimento de ar, pelas mãos que se mexiam e as bocas que assopravam, com som de ventania, de brisa nos corpos no centro dos pequenos grupos.
A proposição inclui o gesto de fechar os olhos, buscando talvez criar condições favoráveis para que a atenção se desconecte do ambiente exterior e, num gesto de redireção e conexão ao momento presente, dê lugar à atenção a si.
Formei um grupo com a Mari, o Mário e um outro homem. [...] Mário, que era cadeirante, pediu que tomássemos cuidado ao chegar perto de sua perna. Na minha vez de ficar no meio, me senti um tanto vulnerável [...]. Enquanto eles iam fazendo os elementos, eu me permitia estar mais presente nessa condição. Essa primeira proposta me relaxou bastante e fazê-la de olhos fechados, sem prestar atenção na feição e nos gestos dos outros, permitiu que eu me concentrasse mais no momento presente.
Como segunda proposição, fomos convidados a formar grupos de três, experimentando uma dança em que o toque com o par deveria se manter ao mesmo tempo constante e fluido, como dois corpos conectados. Uma terceira pessoa assumia o papel de anjo, observando e cuidando dos movimentos, para que não houvesse choque entre duplas. Por fim, a proposição foi que os trios fossem confluindo para formar um só grupo. Os participantes se movimentavam, se colocando em contato uns com os outros, tocando e sendo tocados, num belo exercício de improvisação e de cultivo da atenção conjunta.
Todavia, o cultivo da atenção conjunta não é evidente, nem tampouco está garantido. Pudemos notar que uma menina com deficiência intelectual dava sinais de uma atenção dispersa e de pouco engajamento no trabalho conjunto. No decorrer da dança, se voltava reiteradamente para a mãe que, de pé e fora da roda, disputava a atenção da filha, dizendo a ela, em voz alta, o que deveria fazer a cada proposição. A atenção alerta da mãe buscava atrair a atenção da filha, tornando difícil o exercício da atenção conjunta com os demais participantes e outras composições atencionais.
Os relatos a seguir evidenciam e colocam em análise a distância habitual e o consequente desconhecimento, por parte das pessoas sem deficiência, dos modos de perceber e estar no mundo das pessoas com deficiência. Revelam também experiências de aproximação, encontro e trocas atencionais no plano dos afetos, propiciadas por aquele Encontro Estético, que trazia a proposição da dança envolvendo corpos heterogêneos.
Formei um trio com Waldir e outro menino. Waldir era um senhor de idade e era cego, muito faladeiro, logo nos identificamos. O menino era vidente. Quando falei meu nome, Waldir passou as mãos por meus braços, rosto e apalpou meu coque de uma maneira engraçada e em seguida disse: “Ah, sim, você então é Lívia, né?” . Achei legal sua forma de me reconhecer, sua vontade em me conhecer. Em seguida, ele me falou sobre como as pessoas evitam o toque no dia-a-dia e esquecem que essa é uma forma muito importante de conhecer o mundo e uma ferramenta muito importante pra quem é cego [...] No momento em que formei dupla com Waldir, senti uma fluidez, uma leveza e sintonia muito grandes nos movimentos que improvisávamos. Ele contou que já havia feito dança de salão, assim como eu também, e acho que esse ponto em comum produziu uma interação muito agradável que nos permitiu acessar realmente um ao outro através da dança.
Para além da diversidade dos corpos, a dança improvisada surgiu como um ponto de aproximação, conexão, leveza, fluidez e sintonia afetiva, sendo capaz de criar a experiência de um plano comum e heterogêneo entre a estudante e aquele senhor cego.
Eu fechava e abria os olhos. Me sentia em confiança para isso. Podia encostar sem ver, em pessoas que eu não conhecia e isso não representava perigo. Não sentia medo, pelo contrário, me sentia em liberdade e alegria, descobrindo como podia estar com aquelas pessoas tão diferentes de mim, desconhecidas, mas que me pareciam íntimas, de alguma maneira, era possível estarmos nos movendo juntos, naquela tarde na Praia Vermelha.
A dança com corpos diversos, conduzida com cuidado e realizada de olhos fechados pela estudante vidente não produziu a experiência de algo arriscado e capaz de evocar o perigo. Em lugar do medo, a experiência foi de confiança no encontro com o diverso e o desconhecido.
Elaboramos uma dança naquela mesma intenção de conexão, mas agora acrescida de pausas e poses que fugiam às posições naturais rotineiras. Esta foi se desenvolvendo a partir do encontro e fusão dos grupos. Começamos em três, e conforme Sofia indicava, nos juntamos em seis, nove, doze... A dança crescia, até que nos unificamos num único grande amontoado ainda com muita harmonia e fluidez; éramos um grande rizoma embaralhado. [...] A medida que o grupo ia crescendo, pareceu se formar uma rede maior de confiança e aproximação entre os participantes.
Era como se nos conhecêssemos há tempo, houve uma facilidade naquele encontro que se concretizou nesse último momento. [...] Alí tocamos e fomos tocados.
A condução do Encontro Estético, que teve início com atividades em duplas e trios, seguiu num movimento crescente, culminando no encontro reunindo todo o grupo, que assume agora a configuração de uma rede de conexões atencionais tecida no plano dos afetos. Relações que no cotidiano da universidade pareciam distantes e difíceis, se destacam agora pela confiança, pela fluidez e pela facilidade, que são experimentadas naquele momento final.
Os relatos acima tratam da experiência de um movimento constante e fluido, de sensação de leveza e sintonia, de encontros momentâneos marcados pela entrega, confiança e harmonia, ainda que com pessoas diversas, não previamente conhecidas. Ao final do trabalho, a atenção conjunta assume o desenho de “um grande rizoma embaralhado”. Contato direto por meio da improvisação, fusão, atravessamento, tocar e ser tocado, partilha. Os relatos falam também de experiências de acesso de uns aos outros, de conexões no plano dos afetos, conexões alegres, no plano coletivo de forças moventes. Em função da proposição do Encontro Estético de suspender a atitude de recognição e ativar a abertura à experimentação, o estado de alerta, regime atencional comandado pelo ego, parece ter também sido desativado. Preconceitos, crenças e algumas barreiras invisíveis que configuram o capacitismo parecem ter sido momentaneamente suspensas.
No final da oficina, os participantes se reuniram mais uma vez em roda, para troca de experiências e afetos. Eis que surge nas falas um novo regime de atenção, que podemos nomear como “experiência de quatro paredes”.
Ocupávamos um espaço movimentado no campus, próximo ao bar do DCE, no qual muitos assistiam e vibravam aos jogos da Copa do Mundo; com movimentação de muitas pessoas que paravam curiosas, observavam, e logo seguiam seus caminhos. Ainda assim a sensação era de quatro paredes; o além-lona não incomodava.
Esquecemos totalmente o espaço de fora da lona e fechamos nossa atenção totalmente àquele momento, como se existissem realmente paredes nas fronteiras daquela lona. O fato de estarmos no meio da circulação de pessoas não tirou a concentração de ninguém.
A sensação foi que a lona criou um território para nós; ao estarmos na lona, não nos preocupávamos com os olhares que buscavam entender essa intervenção no campus da Praia Vermelha. Era como se ela criasse paredes e nos colocasse no espaço de um estúdio de dança.
Cada participante sai de sua zona de conforto e o grupo se arriscou na criação de um território comum. Ali, a universidade deixou momentaneamente de ser um território capacitista habitado de modo hegemônico por corpos ditos normais e capazes e, ainda que por um momento frágil e provisório, abrigou corpos diversos em composições inusitadas. Observamos movimentos de agrupamento e reagrupamento numa cadência harmoniosa, com agregados parciais, tecidos pelas redes de atenção conjunta. Os corpos dançavam e a atenção dançava também. A atenção focalizada em objetos e sujeitos deu lugar a uma atenção às passagens, ao entre corpos, ao contato que é sustentado no movimento. Naquela experiência, naquele presente vivo, a reciprocidade, a sintonia afetiva e a improvisação forjaram, por meio do cultivo de uma nova ecologia da atenção conjunta, um esboço de reinvenção da micropolítica da acessibilidade na universidade.
DOIS ANALISADORES: A ATENÇÃO A SI E A EXPERIÊNCIA DE QUATRO PAREDES
Sobre a análise do material cartográfico, Letícia Renault de Barros e Elizabeth Barros afirmam: “O que move a análise em cartografia são problemas. É a um problema que ela se volta e também são problemas seu resultado” (Barros & Barros, 2014, p. 177). É justamente a partir de acontecimentos inusitados, de problemas que afetam a atenção do cartógrafo, que se constitui o terreno fértil para a pesquisa. Assim são definidos os analisadores. Cabe ao cartógrafo, juntamente com os participantes da pesquisa, construir esses analisadores. Estes evidenciam o instituído e também fazem emergir as forças instituintes que participam da invenção da realidade. Os analisadores se definem pelos efeitos de intervenção que produzem, que afetam o próprio cartógrafo-analista e o forçam a pensar.
Surgiu um primeiro analisador quando houve a intervenção inesperada da aluna que, ao passar pela roda, apontou a necessidade de cada um se conectar consigo mesmo, fazendo emergir o problema da atenção a si. Eis o primeiro indício de intervenção no campus: tocamos quem passava e, num movimento de reciprocidade, fomos tocados. Realizando a cartografia das redes de atenção conjunta, a atenção a si surgiu como mais uma camada das mil folhas da atenção. No momento de troca de experiências, diversos comentários exprimiram uma redireção da atenção do exterior para o interior, estimulada pelo gesto de fechar os olhos.
Segundo a pragmática fenomenológica de Natalie Depraz, Francisco Varela e Pierre Vermersch (2003), a atenção a si é um dos gestos do ciclo básico da redução e da tomada de consciência. Ela se segue ao gesto de suspensão da atitude natural de recognição, que é acionado pela prática artística e pela experiência estética. Sob suspensão, há uma menor prontidão para responder imediatamente aos estímulos externos, como geralmente ocorre em situações cotidianas. A partir daí, quando a atenção se dobra sobre si, ela entra em contato com a virtualidade do si mesmo. O si não se limita a um ego, a uma estrutura supostamente identitária, mas se encontra ligado a uma rede de processos, de onde emerge. O desafio da arte é colocar a subjetividade em contato com esta rede de processos que é dotada de potência de invenção de si e do mundo.
Foi descrita também uma conexão atencional crescente com os demais participantes, ao longo do trabalho conjunto. Tal conexão culminou na última proposição, quando o que ocorria fora da roda já não atraía a atenção dos participantes. Como se aquele grupo heterogêneo, composto de corpos marcados pela diversidade, tivesse forjado ali, momentaneamente, um território existencial comum e heterogêneo. A experiência foi descrita como sendo de “quatro paredes”, que faziam uma espécie de contorno e desenhavam um território. Em seu caráter inesperado, a experiência de quatro paredes surgiu como o segundo analisador na cartografia da oficina e emergiu como mais uma camada da rede de atenção conjunta.
Pensando com Depraz, Varela e Vermersch (2003), podemos dizer que ocorreu uma mudança na qualidade da atenção. A atenção que busca e controla, tão frequente nas ações da vida prática e nas relações sociais, dá lugar a uma atenção que encontra, que acolhe a experiência, que deixa vir (letting go). Esta atenção, concentrada e ao mesmo tempo aberta ao encontro, contraria o gesto de busca, que predomina na vida cotidiana e parece mais espontâneo. É aí que é evidenciada a potência inventiva das práticas artísticas. A curiosa experiência atencional de quatro paredes que apareceu quando da composição de corpos com e sem deficiência, revela um mergulho na experiência estética. Tal mergulho consiste num tipo de imersão que se deixa levar pelos fluxos do movimento. Os participantes são deslocados do regime de atenção alerta, da vigilância, do controle pelo ego e da política de recognição e se entregam a uma experiência marcada pela reciprocidade, sintonia afetiva e improvisação. Após a oficina, a fala dos participantes estava carregada de afetos de alegria e delicadeza, nos levando a pensar o quanto é urgente discutir qual a ecologia da atenção conjunta e que micropolíticas estamos praticando com os alunos com deficiência na universidade.
Em sua discussão acerca do conceito de território, Vinciane Despret (2018) afirma que o território não é dado, mas construído, marcando um limite frágil entre o interior e o exterior. No entanto, não devemos tomá-lo como algo que criamos ou que possuímos como uma propriedade. Ele deve ser entendido como um limite protetor, que permite a um corpo compor com as interferências do que vem do exterior. Compomos ecologicamente com o território que habitamos. Nossas práticas inventivas configuram um território existencial e, num processo de co-engendramento, nós mesmos nos reconfiguramos e nos reinventamos.
Estivemos imersos nas propostas de tal maneira que criamos um território existencial, de espaço e tempo próprios, tão nosso que parecia que haviam de fato paredes nos separando do que acontecia ao nosso entorno. Falamos sobre como estar de olhos fechados tirava nossa atenção do corpo como tabu e nos sentíamos mais livres para nos tocar. Notei que as primeiras pessoas que falaram nesse momento e abriram a discussão foram uma pessoa cega, outra de baixa visão e uma cadeirante. Sensação boa, de que ali, eles tinham voz.
CULTIVANDO REDES DE ATENÇÃO CONJUNTA
Percorrendo os estudos da atenção conjunta na psicologia de desenvolvimento, no cognitivismo, na fenomenologia e na ecologia da atenção, assistimos o alargamento desse conceito, ampliando a possibilidade de utilizá-lo para analisar a experiência com a arte e a dimensão micropolítica da acessibilidade na universidade. Recolhendo elementos de sua breve história, guardamos a perspectiva de que nossa atenção atravessa e é atravessada pela atenção dos outros e que a atenção conjunta é uma experiência de partilha, capaz de dar visibilidade, importância e valor àquilo que é percebido. A partir da abordagem ecológica, sublinhamos o caráter coletivo e individuante da atenção, onde a atenção conjunta responde pelas modulações, variações e mutações das relações, que são fecundas no campo da acessibilidade e em outros domínios, como a educação, a clínica e o trabalho com grupos.
Neste estudo, a oficina de dança foi um território de cultivo da atenção conjunta, suscitando conexões atencionais entre corpos marcados pela diversidade e estimulando práticas de reciprocidade, sintonia afetiva e improvisação. A atenção entre os participantes foi convocada desde a roda inicial, depois nas duplas, trios e composições mais amplas, comparecendo também na roda final. A atenção conjunta foi detectada em múltiplas camadas: a atenção às proposições da professora, à experimentação, às conexões do corpo multissensorial, aos objetos, a atenção do cartógrafo, a atenção a si e às quatro paredes. Eis um arranjo, sempre provisório e incompleto, das mil folhas da atenção mobilizadas na criação de um território comum.
Naquela oficina, qualquer corpo podia dançar. Bastava conectar-se consigo e se dispor ao contato direto e ao movimento improvisado. A única indicação era manter-se em contato, fazendo o exercício da alternância e do revezamento no que diz respeito a iniciar e fazer variar o movimento. Bastava experimentar trocas sem hierarquia e deixar a dança acontecer. Acolher os corpos e os fluxos. Partilhar. Naquele exercício de conexão no plano coletivo de forças e afetos emergiu uma qualidade de fluidez e uma alegria no ar. Num trabalho de conexão afetiva, uma curiosa e inesperada sintonia deu indícios da direção micropolítica que nos orienta: vamos acessando uns aos outros. Eis uma imagem fugaz, um esboço, uma espécie de miragem do que desejamos ser a universidade pública nos dias atuais: um território marcado pela diversidade, como uma extensão dos corpos que nela habitam.