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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

        07--2024

 

Artigo Original

CONSIDERAÇÕES SOBRE A OFENSIVA CONSERVADORA-RELIGIOSA NA PSICOLOGIA BRASILEIRA

Consideraciones sobre la ofensiva conservadora-religiosa en la psicología brasileña

Considerations on the religious conservative offensive in brazilian psychology

FERNANDO SILVA TEIXEIRA FILHO1  , Concepção, Coleta de dados, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-4975-2273

GABRIEL CATTO2  , Coleta de dados, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-5515-845X

MURILO GALVÃO AMANCIO CRUZ3  , Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-3051-5422

1Psicólogo, Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis/SP. https://orcid.org/0000-0003-4975-2273 E-mail: fernando.teixeira@unesp.br

2Psicólogo, Mestre em Psicologia junto ao PPG Psicologia e Sociedade da UNESP, Campus de Assis/SP. https://orcid.org/0000-0002-5515-845X E-mail: gabriel.catto.r@gmail.com

3Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. https://orcid.org/0000-0002-3051-5422 E-mail: murilogac@gmail.com


RESUMO

Este artigo discute as relações entre política, ciência e religião, a partir da análise do crescente movimento de evangélicos conservadores na política e na tentativa destes em interferir nas resoluções éticas da psicologia. Dessa disputa, surgiu o movimento intitulado “Psicólogos em Ação “, que concorreu às eleições do CFP de 2019. Como chapa, sua principal proposta era a derrubada da Resolução 01/99, permitindo aos psicólogos tratarem o que chamavam de “homossexuais egodistônicos “. Esse movimento foi analisado a partir da discussão de seu material de campanha. Os resultados mostraram que está em andamento um projeto ultraeonservador na psicologia brasileira que visa desqualificar práticas e teorias das Ciências Humanas, a partir do alardeamento do que chamam de “ideologia de gênero “. Explicitaremos a base moral e religiosa que sustenta tal conceito e o quanto ele busca fortalecer o projeto de poder almejado por este movimento conservador.

Palavras-chave: psicologia; religião; sexualidade; conservadorismo; “cura-gay”

RESUMEN

Discutimos la relación entre política, ciencia y religión, a partir del análisis del creciente movimiento de evangélicos conservadores en la política y su intento de interferir en las resoluciones de la Psicologia. Así surgió el movimiento titulado “Psicólogos en Acción “, que se postuló para las elecciones del Consejo Federal de Psicologia (CFP) de 2019. Su principal propuesta fue la derogación de la Resolución 01/99 para que se concediese permiso a los psicólogos de trataran a los que llamaban homosexuales egodistónicos. Este movimiento fue analizado a partir de la discusión de su material de campana. Los resultados mostraron que está en marcha un proyecto ultraconservador en la psicologia brasileha, dirigido a descalificar prácticas y teorias en las Ciencias Humanas, basado en la difusión de lo que ellos denominan ideologia de género. Explicaremos la base moral y religiosa que sustenta este concepto y cuánto busca fortalecer el proyecto de poder del movimiento conservador.

Palabras clave psicologia; religión; sexualidad; conservadorismo; terapia de reorientación sexual

ABSTRACT

This study discusses the relationship among science, politics and religion, from the analysis of the upraising movement of conservative evangelicals in politics and their attempt to interfere in the ethical resolutions of Federal Council of Psychology (FCP). From this dispute, the movement entitled “Psychologists in Action” emerged, running the elections to FCP in 2019. Its main proposal was to overthrow Resolution 01/99, thus allowing psychologists to treat what they call egodystonic homosexuals. This movement was analyzed from the discussion of its campaign material. The results showed that an ultra-conservative project in Brazilian psychology is in progress, which aims to discredit practices and theories in the Human Sciences, based on the spread of what they call gender ideology. We explain the moral and religious basis that supports this concept and how much it seeks to strengthen the project of power sought by this conservative movement.

Keywords psychology; religion; sexuality; conservatism; sexual reorientation therapy

INTRODUÇÃO

Inspirados no método genealógico de Michel Foucault (1993), procuramos traçar um breve percurso histórico da ofensiva conservadora-religiosa no interior da psicologia brasileira, apresentando certo campo de forças em disputa na produção de saberes e poderes. Para tanto, adotamos a analítica do Movimento Psicólogos em Ação (MPA) como referência que ilustra o fenômeno ultraconservador e demonstra como, ainda no século XXI, se configuram as estreitas relações entre religião, política e psicologia.

A gênese dessas relações não é recente. Tampouco os aspectos do conservadorismo na psicologia podem ser atribuídos a uma única organização, dada a sua heterogeneidade política característica. Todavia, para fins do presente artigo, remontaremos ao movimento mais contemporâneo dos últimos 30 anos que tem como ilustração a atuação de grupos evangélicos1 na política brasileira. Nesse sentido, o artigo se inicia apresentando o crescente movimento dos evangélicos na política que, no que concerne ao nosso objeto, tem como consequência a tentativa de influenciar com os preceitos morais da religião evangélica as práticas e éticas da psicologia, que, vale lembrar, é laica.

O foco das manifestações religiosas conservadoras em relação à profissão de psicólogo no Brasil é, sem dúvida, a sexualidade e as pautas denominadas “ideológicas” como, por exemplo, os Estudos de Gênero e Feministas, vulgarmente nomeadas de “ideologia de gênero”. Portanto, nosso trabalho avança abordando o conceito de “ideologia de gênero” e o contexto histórico da elaboração da Resolução n. 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que tem o papel de dar uma resposta ao movimento conservador religioso que iniciava suas práticas de reversão sexual, popularmente conhecidas como “cura gay”.

É nesse campo de disputas entre religião, política e psicologia que surge o movimento intitulado “Psicólogos em Ação” (MPA), o qual apresentamos às e aos leitores com ênfase para o histórico de formação do movimento a partir de suas próprias postagens em redes sociais, blogs e, posteriormente, nas propostas eleitorais no contexto de disputa pela gestão do CFP.

Por fim, encerramos nossas reflexões apresentando uma análise do conteúdo (Bardin, 1977) do material de campanha que apresenta as propostas do MPA nas eleições do CFP de 2019. O que constatamos é que há em curso no Brasil um projeto ultraconservador inserido na psicologia que visa, por meio de um discurso moral religioso, difundir ideias e práticas preconceituosas e antiéticas no que diz respeito, principalmente, à sexualidade e ao gênero.

Nossos resultados serão apresentados sob a forma de três categorias de análise que integram o discurso do MPA: (a) estratégias de purificação, relacionadas a seu caráter político partidário, que diz respeito à crença de que a democracia só será plena se teocrática, mais precisamente, cristã; (b) a inquisição do prazer, relacionada ao seu caráter moral religioso; e, por fim, (c) missões epistêmicas, isto é, a relação deste movimento com um projeto educacional para psicologia. Sem dúvida, como veremos, as categorias não são independentes entre si e, em conjunto, sintetizam a proposta “teocrática” do MPA para a psicologia enquanto ciência e profissão.

RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL

As interferências da religião na política brasileira são seculares e fundamentaram até mesmo a invasão do Brasil. Ao final da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, o primeiro explicita que a missão de “descoberta”, exploração e invasão de novas terras para além de Portugal deva ser uma missão religiosa: “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar” (Caminha, 1500/2018, p. 14). Ainda que, de lá para cá, muita coisa tenha mudado, os efeitos nefastos do desejo colonial de dominação via eliminação das diferenças de crenças, por exemplo, religiosas, ainda permanece nos fundamentos da nossa cultura.

Segundo Fabrício Oliveira (2011), a Igreja Católica foi a única instituição religiosa reconhecida pelo Estado até o século XIX, influenciando amplamente as decisões e gestão nacional desde o início da colonização portuguesa. O fim dessa relação simbiótica entre Estado e Igreja ocorreu com a República, em 1889, o que impulsionou o processo de secularização, isto é, a separação entre Estado e religião: os espaços públicos tornaram-se laicos e a religião adquiriu caráter privado. Contudo, Emerson Giumbelli (2008) demonstra que esta cisão fora meramente formal e parcializada, uma vez que ainda havia a possibilidade de parcerias entre Estado e religião, principalmente, a católica. Portanto, a influência cristã sobre as questões sociais permanecera.

Já em um contexto mais contemporâneo, na busca por representações alternativas, a religião adquire papel central como atributo eleitoral. Utilizando-se da abertura política dada à sociedade civil na construção das políticas públicas e conselhos, a religião amplia seu raio de influência e poder (Giumbelli, 2008). Isto nos leva à problemática contemporânea das intrusões do religioso no campo político que tem como protagonista determinados grupos de evangélicos conservadores.

Segundo Queiroz (2019), ao longo dos últimos 30 anos, evangélicos (pentecostais e neo-pentecostais) ampliaram sua participação no campo público, conquistando espaços nas dimensões midiática, cultural, institucional e política. Há uma explosão do contingente populacional que se identifica como evangélico, com um aumento de 61% em 10 anos, o que totaliza 42,3 milhões de pessoas (22,2% dos brasileiros).

O avanço de evangélicos sobre católicos estaria relacionado a uma maior volatilidade e capacidade adaptativa, pois os primeiros apresentam uma formação de pastores mais rápida e quantitativa quando comparada à de padres, além de abrirem novos templos com facilidade, expandindo sua área de atuação com lideranças pulverizadas, enquanto católicos estão mais subordinados às decisões hierárquicas e demais burocracias da Igreja (Queiroz, 2019).

Convém mencionar, ainda, a capacidade de atuação evangélica nas regiões mais carentes das cidades, sendo o grupo com a maior capilaridade no tecido social. Sua atuação, por exemplo, está presente em lugares onde há ausência de outras instituições civis ou religiosas. Com o espaço vazio, evangélicos organizam ações comunitárias de assistência, promoção de saúde, escolarização etc., (Maia, 2006). O Estado, por sua vez, adentra o ambiente, sobretudo, como força repressiva.

Apesar de ocuparem diversos setores sociais, historicamente, os evangélicos se posicionavam como apolíticos, não se envolvendo junto aos espaços considerados “mundanos”. Contudo, com a reabertura democrática e o renascimento das instituições, protestantes de variadas vertentes passaram a se integrar paulatinamente à cena política, amparados pelo discurso de que haveria uma profunda crise moral corroendo a sociedade e a “salvação” estaria nos preceitos religiosos. Este movimento ficou conhecido como a ‘Nova Direita’, isto é, uma atuação política reacionária e contrária ao ‘estado de bem-estar social’, dando início à concepção da bancada evangélica e sua orientação política (Cowan, 2014).

O abandono da postura apolítica encaminhou a ala mais conservadora de evangélicos - batistas e assembleianos, destacadamente - para sua estreia na arena pública em defesa da “remoralização”, que tinha como objetivo atuar sobre o campo moral, sexual e espiritual. Assim, passaram a disputar cargos legislativos, sob o discurso de que ocupar cargos políticos representava o avanço da evangelização do país (Cowan, 2014).

É nesse contexto que, a partir de 1986, a atuação política destes evangélicos mais conservadores passa a ser significativa, em uma direção que visa sacralizar o espaço público e político, que estaria “endemoniado” por ideias amorais e incentivo aos prazeres individuais (Maia, 2006). Assim, se organizaram e participaram da Assembleia Nacional Constituinte, consolidando-se como “bancada evangélica”, grupo de parlamentares que se professavam evangélicos no poder legislativo. Esse grupo se autodeclarava de direita2 e responsabilizava as políticas de esquerda pela “crise” nacional (Cowan, 2014).

Nos processos eleitorais, a bancada evangélica seguia a máxima de que “evangélico vota em evangélico”. No entanto, é importante mencionar que os parlamentares evangélicos não são homogêneos e possuem grande autonomia em relação as suas igrejas. Contudo, quando a pauta é moral e, principalmente, ligada à sexualidade, apresentam maior sincronicidade em seus posicionamentos conservadores. Esse ativismo moral-religioso reivindica uma regulação política sobre o sexo, sobretudo, das identidades não- CISheterossexuais, sendo um tema com grande poder de mobilização e aglutinação. Colocam-se, então, como frente opositora ao movimento LGBTQIA+, barrando ou arquivando Projetos de Lei (PL) que beneficiam essa população ou que se relacionam com questões que afrontam seus preceitos dogmáticos sobre a sexualidade e os direitos reprodutivos (Souza, 2013).

Ao serem acusados de se intrometerem na esfera política, os evangélicos respondem que apenas jogam segundo “as regras do jogo democrático”. Como afirma Giumbelli (2008): “Quando são reprovados pela prática de uma espécie de estelionato espiritual, replicam com a demonstração da liberdade que acompanha as doações dos fiéis. Quando são criticados pela sua intolerância, objetam que estão apenas manifestando a sua opinião” (pp. 90-91).

Nos últimos anos, a agenda da bancada evangélica foi bastante diversa. No que tange às questões acima mencionadas, Souza (2013) aponta o PL 717/2003, que previa, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a criação de um Programa de Auxílio às pessoas que voluntariamente optassem pela mudança da homossexualidade para heterossexualidade. Em nível federal, apresenta-se o Projeto de Decreto Legislativo 234/2011, que buscava suspender parcialmente a Resolução 01/99 do CFP, que veda a/ao psicóloga(o) fazer pronunciamentos que reforcem o preconceito às pessoas homossexuais ou ofertar terapias de reversão sexual. O projeto foi aprovado, mas em seguida retirado por estratégia de seu redator, o deputado pastor João Campos. Em 2014, o PDL retorna com endosso do deputado Marco Feliciano.

A partir de 2016, a bancada evangélica também se envolveu nas articulações em torno do “Escola Sem Partido”, movimento reacionário que visava combater uma suposta doutrinação política e ideológica que ocorria nas escolas, por parte de professores que, em sala de aula, propagavam “ideologias de esquerda e de gênero” (Miguel, 2016). O “Escola Sem Partido”, repercutido em projeto de lei, defendia uma neutralidade do ensino enquanto, simultaneamente, incentivava o ensino religioso - majoritariamente cristão -, borrando as fronteiras entre público e privado, laico e religioso, familiar e escolar (Freitas, 2018).

No âmbito do poder executivo, as eleições de 2010 movimentaram tanto evangélicos quanto católicos, que se manifestaram contrários às pautas da legalização do aborto e criminalização da homofobia - centrais no jogo político daquele momento entre os principais candidatos do primeiro turno (Dilma Rousseff, Marina Silva e José Serra). Neste momento, aproveitando-se da ausência de posicionamentos morais e religiosos por parte da campanha petista, a bancada evangélica impulsionou sua popularidade com a promessa de serem contrários a quaisquer projetos que atentassem contra a vida, a família e a liberdade religiosa.

Por fim, convém mencionar a estratégia utilizada nos últimos anos por grupos conservadores, que se apoiam em falsos discursos científicos para legitimar seus posicionamentos morais religiosos. Com efeito, para Paula Montera, Aramis Luis Silva e Lilian Sales (2018), o discurso acadêmico-científico possui maior valor social no interior da disputa política do que o discurso religioso, fazendo com que grupos religiosos buscassem se articular com instituições, órgãos públicos e conselhos profissionais a fim de se apresentarem ao público como legítimos e cientificamente fundamentados. O discurso moral-religioso se apresenta, portanto, disfarçado por métodos e teorias pseudocientíficas.

Seguindo os passos de seus colegas deputados e senadores, o MPA tentou, em 2019, chegar ao poder do CFP para mudar suas resoluções, mais especificamente a 01/99, que proíbe a patologização da homossexualidade. Antes de relatarmos esta história, é preciso compreender como foram criados os argumentos que este grupo utiliza para transformar em verdade aquilo que só se sustenta como blasfêmia, a “ideologia de gênero” e a “cura gay”.

NOTAS SOBRE O CONCEITO DE “IDEOLOGIA DE GÊNERO”

Em artigo elucidativo, Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017) analisam evidências históricas que permitem compreender o conceito de “ideologia de gênero”. Inicialmente, é importante destacar que este conceito agrega muitas tendências. Unem-se nele grupos esparsos de católicos (em geral da renovação carismática), (neo)pentecostais e pessoas com ou sem filiações políticas e/ou religiosas que apenas se identificam com a proposta que o conceito sugere. Em suma, por trás deste conceito, defende-se que as teorias que relativizam o binarismo e a gênese biológica do gênero são, na verdade, falsas e se reduzem a “ideologias”.

Há indícios de que o termo “ideologia de gênero” tenha sido utilizado pela primeira vez pelo então cardeal Joseph Ratzinger que, em 1997, escrevia críticas contundentes ao feminismo (Miskolci & Campana, 2017). Tais críticas, ao que parece, surgem como reação direta à Conferência Mundial de Beijing sobre a Mulher, ocorrida em 1995. E por quê? Justamente porque foi nesta conferência que se decidiu mudar o foco das reivindicações das mulheres para o gênero.

A ONU reconheceu na ocasião o conceito de gênero como fundamental para se pensar a sociedade e as relações nela estabelecidas, defendendo a aplicação deste conceito nas políticas relativas a todas as esferas sociais. Uma de suas propostas, por exemplo, é: “Promover a igualdade de gênero por meio da promoção dos estudos sobre as mulheres e por meio do uso dos resultados dos estudos e pesquisas sobre gênero em todos os campos, incluindo o econômico, o científico e o tecnológico” (ONU, 1995, p. 74, tradução nossa).

Podemos dizer que o protagonismo do conceito de gênero distanciou ainda mais a agenda católica do feminismo justamente porque libera as mulheres (e os homens) das amarras discursivas da biologia, a qual dava inteligibilidade à ideia de natureza e ao essencialismo que justificou por séculos o patriarcado, o sexismo, enfim, a desigualdade entre homens e mulheres. Assim, Ratzinger (conforme citado por Miskolci & Campana, 2017) dirá:

Se distingue então o fenômeno biológico da sexualidade de suas formas históricas, às quais se denomina “gender “, mas a pretendida revolução contra as formas históricas da sexualidade culmina em uma revolução contra os pressupostos biológicos. Já não se admite que a “natureza “ tenha algo a dizer, é melhor que o homem possa moldar-se ao seu gosto, tem que se libertar de qualquer pressuposto de seu ser: o ser humano tem que fazer a si mesmo segundo o que queira, apenas desse modo será “livre “ e liberado. Tudo isso, no fundo, dissimula uma insurreição do homem contra os limites que leva consigo como ser biológico. Se opõe, em seu extremo último, a ser criatura. (p. 726)

Vemos que a utilização do conceito de gênero como ferramenta teórico-prática para a minimização das desigualdades entre os sexos tornou-se ameaçadora para as instituições que justificam sua existência em fundamentos essencialistas.

Com efeito, após a publicação do notório artigo de Scott (1986), assistimos à sofisticação da agenda feminista, que adquire independência dos essencialismos biológicos permitindo-se atravessar por outros marcadores sociais de diferenciação, tais como a questão racial, a etnicidade, a classe social, o nível educacional, dentre outras, facilitando a percepção sobre os modos e focos de ação do poder, da opressão e da desigualdade. Em suma, a partir do conceito de gênero, desde uma perspectiva interseccional, o célebre postulado de Simone De Beauvoir (1967, p. 9), “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” adquire um outro matiz: do mesmo modo que parir uma criança não faz uma mulher sentir-se naturalmente mãe, pois não há homogeneidade no conceito mulher, revelando que o ser mulher não se reduz ao corpo, mas a um conjunto diverso de características que variam culturalmente. E, por mais óbvia que pareça, esta e outras distinções, como mãe/genitora, mulher/feminilidade, não agradaram aos sistemas conservadores. Quanto mais as pautas feministas avançavam, mais avançava a oposição a elas. Como apontam Miskolci e Campana (2017):

Esses setores [conservadores religiosos no geral] começaram a definir a “ideologia de gênero “ como “um sistema de pensamento fechado “ a defender que as diferenças entre o homem e a mulher não correspondem a uma natureza fixa, senão que são construções culturais e convencionais, feitas segundo os papéis e estereótipos que cada sociedade designa aos sexos. (p. 727)

Em 2007, insistindo nessa interpretação, a Igreja Católica, na América Latina, lança um documento, conhecido como “Documento de Aparecida”, no qual estabelece explicitamente os posicionamentos contrários da Igreja Católica às pautas feministas, tais como o aborto, e à pauta voltada ao movimento LGBTQI+, que é a união civil entre pessoas de mesmo sexo e/ou gênero. Visando defender o matrimônio como exclusivo de casais cisheterossexuais, a Igreja unifica as pautas feministas e LGBTQI+ no entendimento único de sua relação com a “ideologia de gênero”. A partir desse documento, portanto, é declarada a agenda de oposição da Igreja Católica e setores conservadores da sociedade aos avanços dos movimentos sociais libertários em prol dos Direitos Humanos (Milkolci & Campana, 2017). De acordo com Sonia Corrêa e Isabela Kalil (2020), a difusão do conceito de ideologia de gênero teria se mantido restrita ao catolicismo até meados de 2013, quando veículos midiáticos associados a setores do fundamentalismo evangélico passaram a operacionalizar um movimento de ataque a ele.

Segundo Miskolci e Campana (2017), observa-se, ao longo de décadas, os múltiplos setores e mecanismos a partir dos quais estes discursos conservadores foram se infiltrando na sociedade civil para fazer valer sua crença no poder destrutivo do que chamam de “ideologia de gênero”: articulando organizações não governamentais “pró-vida”, representantes do legislativo e judiciário, grupos e ferramentas midiáticas. Assim, ao se utilizarem de áreas para além da esfera religiosa, converteram a “ideologia de gênero” em via de acesso aos meios acadêmico e científico, distorcendo teorias e outros elementos em prol da constituição de um argumento de caráter moral-religioso que passa a ser protagonizado, principalmente, por setores do protestantismo fundamentalista, destacadamente das religiões neopentecostais.

No Brasil, este movimento se intensifica a partir de 2011, quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo no mesmo contexto em que se difundia a polêmica em torno do programa “Escola sem homofobia”, conhecido como “kit gay” (Milkolci & Campana, 2017). Com efeito, é em 2013, no contexto das discussões do Plano Nacional de Educação (PNE), que a ideologia de gênero ascende das sombras das acusações genéricas de “pedofilia” e “sexualização de crianças” para assumir caráter protagonista enquanto espantalho político e mecanismo de mobilização. Vinculada ao movimento “Escola Sem Partido”, o termo passa a aglutinar múltiplas ideias que tinham valor de engajamento político e que não se restringiam ao campo do gênero ou sexualidade, sendo incorporadas ao fantasma do comunismo (Corrêa & Kalil, 2020).

Nota-se, portanto, que os ataques à chamada “ideologia de gênero” intensificaram-se, não à toa, concomitante aos avanços dos direitos humanos na América Latina para as pessoas não cisheteronormativas. Desse modo, suspeitamos que os ataques ao que chamaram de “ideologia de gênero”, na verdade, unificaram segmentos não necessariamente alinhados em diversos outros interesses, mas que se uniram em seus princípios fundantes, a saber: uma gênese calcada no essencialismo e na naturalização da desigualdade entre homens e mulheres.

Vejamos, a seguir, como esta pauta se insere no interior da psicologia brasileira que, em 1999, publicou a Resolução n. 01/99 em defesa da despatologização da homossexualidade e, como consequência, movimentou grupos conservadores seguindo, de certo modo, o mesmo caminho geral apresentado acima.

A RESOLUÇÃO N. 01/99 E SEU CONTEXTO HISTÓRICO

Desde 1973 (APA) e 1990 (OMS), a homossexualidade deixou de ocupar um lugar junto ao rol de patologias dos grandes manuais nosológicos. No âmbito da psicologia brasileira, não há registro de que em algum momento ocorreu sua patologização institucional. Contudo, no exercício profissional de alguns psicólogos, principalmente envolvidos com religião, a patologização e a consequente oferta de “cura” foi e ainda é uma prática recorrente.

Foi diante dessa realidade que, ao final da década de 1990, o CFP publicou a Resolução n. 01/99, que estabelece “normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual” (CFP, 1999). Em suma, o seu texto cumpre duas funções: (a) reafirmar o caráter não patológico das sexualidades dissidentes à cisheterossexualidade; (b) impedir o avanço e as práticas de patologização das sexualidades. Nesse sentido, não se tratava de “despatologizar”, mas reafirmar a posição ética de que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (CFP, 1999).

Como demonstram Henrique Araújo Aragusuku e Maria Fernanda Aguilar Lara (2019), desde a reabertura democrática o CFP tem pautado com afinco a luta pelos direitos humanos e a democracia. No entanto, até 1999, a questão das orientações sexuais permanecia fora das discussões e propostas do Congresso Nacional de Psicologia (CNP), instância máxima de deliberação dos Sistemas Conselhos. Apesar do avanço dos movimentos pela diversidade sexual no país, os autores apontam que esta temática não se concretizou como Resolução ou moção em nenhum dos três primeiros Congressos de 1994, 96 e 98 (Aragusuku & Lara, 2019).

É importante notar que apesar da sexualidade não obter protagonismo nas pautas do Conselho, o avanço dos direitos humanos possibilitará, no futuro, uma importante recepção das intervenções externas contra a opressão das sexualidades dissidentes. Em 1998, por exemplo, o CFP instituiu a Comissão Nacional de Direitos Humanos, sob responsabilidade de Marcus Vinícius de Oliveira, a qual terá um papel fundamental na recepção e condução de uma denúncia que culminou na publicação da Resolução n. 01/99 (M. Oliveira, 2011).

Antes de tratarmos desta denúncia, é importante mencionar alguns fenômenos relacionados ao contexto brasileiro da época, que se dividem entre movimentos progressistas e conservadores. Do lado progressista, assistimos à fundação, em 1993, do Grupo Arco-íris de cidadania LGBT e a organização, em 1998, da primeira “Parada Gay” de São Paulo - posteriormente renomeada “Parada da Diversidade” - que reivindicava os direitos humanos a gays, lésbicas, bissexuais e travestis. Já do lado conservador, em 1997, é fundado o Movimento pela Sexualidade Sadia. Em 1998, três eventos se destacam: (a) a Exodus, importante organização de cura gay internacional, é implantada no Brasil com um dos maiores investimentos da organização; (b) o 3º Encontro Cristão sobre Homossexualidade, que conta com a participação do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC); (c) a publicação do livro de Júlio Severo, blogueiro evangélico assumidamente homofóbico, que trata do movimento homossexual e seu impacto na sociedade e na igreja.

É neste contexto que Luiz Mott, antropólogo e representante do Grupo Gay da Bahia, protocola um pedido de informação e denúncia ao CFP acerca de um grupo de psicólogos evangélicos que, apesar da despatologização da homossexualidade, propunham e divulgavam uma suposta “cura gay” aos indivíduos que não aceitassem ter uma orientação sexual dissidente - o antropólogo se referia, especialmente, ao movimento do “Exodus” e ao evento cristão que ocorrera em Viçosa (M. Oliveira, 2011; Sposito, 2015). Nesse contexto, essa psicologia cristã, carente de fundamentação científica, se torna um saber-poder que descreve sob um argumento de autoridade as origens, causas e reversões da homossexualidade.

O CFP, alicerçado pelas reflexões dos direitos humanos, preocupado com esta prática realizada em nome da psicologia, instituiu como resposta à denúncia um grupo de trabalho que tinha como objetivo posicionar o lugar da psicologia brasileira frente às questões de orientação sexual, de modo que não se visava um tratamento individual e pontual da questão, mas uma resposta ampla e coletiva sobre como a Psicologia, enquanto ciência e profissão, compreendia o fenômeno do ponto de vista das discussões científicas e culturais até ali acumuladas (M. Oliveira, 2011).

Assim, a Resolução n. 01/99 emerge como resposta a um movimento conservador que avançava durante a década de 1990 em direção à união da prática psicológica com a religião, partindo do pressuposto de que a homossexualidade se caracteriza por uma conduta patológica e desviante que, portanto, possuiria tratamento e cura. Desse modo, o casamento entre psicologia e religião propunha uma resposta ao “problema moral” da sexualidade dissidente da norma (Sposito, 2015). Ana Bock, então presidente do Conselho e do Grupo de Trabalho, em entrevista à Revista Veja (2000), afirma:

Em geral, os psicólogos que tratam o homossexualismo como doença estão ligados a grupos religiosos. Há clínicas que prometem cura para a homossexualidade e existem psicólogos envolvidos nesses tratamentos. No ano passado, houve um grande congresso de um grupo religioso em Viçosa que prometia curar gays. Nós soubemos do envolvimento de psicólogos e foi a partir daí que decidimos adotar a Resolução. (Bock, 2000, citada por Sposito, 2015)

Nesse sentido, a Resolução n. 01/99 cumpria uma função de delimitar a esfera da psicologia e a esfera da religião como campos distintos, não cabendo à primeira emitir quaisquer discursos que induzam o pensamento patologizante, estigmatizante ou discriminatório da homossexualidade.

Assim, além do destaque merecido ao aspecto coercitivo da Resolução n. 01/99 no que tange às práticas e discursos patologizantes de seus profissionais (Aragusuku & Lara, 2019), consideramos que a Resolução permite ir além ao situar o campo da psicologia brasileira como uma profissão de saúde, frequentemente interpelada sobre as questões ligadas à sexualidade, que com base em seu conhecimento deve contribuir para o esclarecimento e a superação de preconceitos e discriminações. Com efeito, a consolidação desta Resolução, desde 1999, tem gerado inúmeros debates, ataques e tentativas de derrubada tanto por profissionais conservadores quanto pela bancada evangélica do Congresso Nacional.

O MOVIMENTO PSICÓLOGOS EM AÇÃO

Em seus estudos sobre a. História da Sexualidade,Foucault (1988) destaca que a Psicologia, em sua gênese, é tributária da disputa discursiva entre religião e ciência. Assim, o que vemos acontecer em torno das inúmeras batalhas jurídicas para a derrubada da Resolução n. 01/99 não é se não uma atualização deste “estranho familiar” que oscila entre a vigília fascista aos corpos e prazeres traduzida em discursos laudatórios e normalizadores. Ora, cada vez mais, as forças religiosas se fazem representar politicamente no Congresso Nacional (Campos, 2020), compondo forças contrárias às pautas de igualdade de gênero, direitos reprodutivos e direito das pessoas LGBTQIAP+.

Um dos principais representantes do elo concreto entre religião, política e psicologia é o Movimento Psicólogos em Ação (MPA), cujo protótipo é apresentado por meio do blog “Psicólogos Brasileiros em Ação”, de autoria de Rozangela Justino, configurando-se, desde então, como uma ferramenta de aglutinação política, e articulação e composição de chapas para as eleições dos conselhos regionais e Conselho Federal de Psicologia.

Neste blog, dentre outros de sua autoria, são apresentados os elementos que embasam as práticas discursivas deste movimento, bem como seu núcleo ideológico e as principais propostas que motivam suas “cruzadas eleitorais” desde 2016. Em geral, tematiza questões referentes à política, moralidade, religiosidade, família, educação e sexualidade, tudo sob uma abordagem conservadora e de raiz religiosa cristã (Justino, 2010a, 2010b, 2012, 2013).

No campo específico da psicologia, apesar da falta absoluta de comprovação, há um discurso acusatório de que as gestões dos Conselhos são autoritárias e cerceiam a pluralidade de posições, já que estariam aparelhadas por partidos políticos de esquerda que objetivam vulnerabilizar e destruir os valores sociais. Nesse sentido, os conselhos estariam adotando posturas anti-família, anticristãs, pró-aborto, pró-liberdade sexual e pró-ideologia de gênero (Justino, 2013).

Logo, a partir das declarações de Rozangela, a principal voz do MPA, começam a se evidenciar suas conexões com o conservadorismo religioso, uma vez que, para além de alguns de seus membros serem notórias “psicólogas cristãs” (Aragusuku & Lara, 2019; Justino, 2012, 2019), suas pautas convergem ao projeto político-religioso e “remoralização” da Nova Direita (Cowan, 2014).

Segundo Rozangela, existiria em curso na psicologia brasileira uma adulteração da ciência por meio de perspectivas pós-modernas, oriundas da aproximação com movimentos sociais, que têm imposto uma ideologia dominante de desconstrução social, a qual falseia os elementos identitários e sociais, tomando-os como produções exclusivamente culturais e negando a dimensão biológica e ética da psicologia (Justino, 2010a). Nesse sentido, o MPA compreende que o conselho tem se pautado desde a década de 1980 por perspectivas político-partidárias, atreladas a teorias falsas e não-científicas - portanto, para o MPA, ideologias -, que visam a desconstrução dos valores e crenças sociais, defendendo, assim, a neutralidade política e a recuperação de paradigmas científicos confiáveis (MPA, 2019).

Apesar de se dizerem politicamente neutros, especialmente na condução do conselho, isso não se reflete em seus discursos e práticas, dados os ataques contínuos e incisivos às “ideologias de esquerda”. Conforme divulgado por Ana Karoline Silano e Bruno Fonseca (2019), Rozangela, por exemplo, é assessora parlamentar desde 2016 do deputado Sóstenes Cavalcante, vinculado à Assembleia de Deus. Além disso, Deuza Avellar, vice-presidente da chapa de 2019, em conjunto com outros membros do grupo, se reuniu durante a campanha eleitoral do CFP com a ministra Damares Alves, a fim de apresentar o grupo recém-criado “Movimento Ex-Gays do Brasil”, que tem o objetivo de acolher homossexuais cristãos egodistônicos que, por isso, desejassem abandonar a homossexualidade.

Uma das principais pautas do MPA é a luta pela revogação das Resoluções n. 01/99 e n. 01/18 - a qual veda a prática discriminatória e patologizante da transexualidade e travestilidade -, de modo que alguns de seus membros apresentam históricos de falas e ataques direcionados à diversidade de gênero e sexualidade. Justino (2010b), por exemplo, chega a associar a homossexualidade ao abuso sexual de crianças e adolescentes, traumas e pedofilia. Suas afirmações tendem a caracterizar a homossexualidade como uma doença ou transtorno de comportamento, porém nega promover a chamada “cura-gay”. Ao contrário, ela afirma ofertar auxílio a “pessoas homossexuais egodistônicas”, que desejam alterar sua sexualidade para pôr fim ao sofrimento que esta condição causaria (Silano & Fonseca, 2019).

Em 2007, devido aos seus posicionamentos públicos e após uma denúncia de que realizava terapias de reorientação sexual, esteve próxima de ter a licença cassada no país, graças a uma representação no CRP-RJ realizada por uma ONG em defesa dos direitos LGBT. Ao fim do processo, o Conselho decidiu por censurá-la publicamente como punição (Aragusuku & Lara, 2019). De acordo com Gabriela Feiten da Maia e Maria LuizaAdoryan Machado (2019), em 2017, Justino, em conjunto com outros psicólogos, entrou com um pedido de liminar para derrubar a Resolução n. 01/99, o que foi parcialmente aceito pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, sob a justificativa da defesa do direito à liberdade científica, da execução de livre exercício da profissão e do paciente poder buscar auxílio para lidar com seu sofrimento. Posteriormente, tal decisão foi revertida (Aragusuku & Lara, 2019).

Em setembro de 2018, no entanto, o CFP apresentou reclamação constitucional ao STF solicitando a suspensão dos efeitos da sentença do juiz de primeira instância, o que foi acatado em abril de 2019, quando o STF concedeu liminar que mantinha a total eficácia e integralidade da Resolução n. 01/99 suspendendo, assim, a tramitação da ação popular e todos os efeitos dos atos judiciais a ela praticados. Nesse caso, concordamos com Gonçalves (2019): ainda que comemoremos tal decisão, é necessário cautela diante dos argumentos apresentados naquele contexto, os quais, indicavam “a questão da legitimidade de julgamento de um ato infraconstitucional elaborado por um conselho profissional, sem, no entanto, julgar o mérito da causa ou mencionar aspectos relevantes ao debate dos direitos humanos” (p. 192). Por fim, outro desfecho desse embate foi a cassação definitiva de Rozangela Alves Justino em fevereiro de 2022 (CRP/DF, 2022).

Deuza, por sua vez, é conhecida por suas declarações favoráveis às terapias de reorientação sexual para “egodistônicos” e contrárias à “ideologia de gênero” (Silano & Fonseca, 2019). Do mesmo modo, outra integrante da chapa do MPA de 2019, Patrícia de Souza Teixeira teve sua licença cassada - decisão revertida posteriormente - por defender a “família tradicional” e atacar a “ideologia de gênero” em vídeo de 2015 (Barone, 2019).

Além dos posicionamentos individuais das três integrantes acima mencionadas, em 2015, ocorreu o primeiro encontro dos “Psicólogos em Ação”, segundo consta em blog da Associação de Apoio ao Ser Humano e à Família (Justino, 2015). Pouco tempo depois foi organizada a primeira formação da chapa que viria disputar as eleições de 2016. O discurso apresentado em sua primeira campanha eleitoral soava mais discreto e com uma estratégia retórica menos agressiva. Mesmo mantendo a postura “anti-ideológica”, a Resolução n. 01/99 ainda não era mencionada explicitamente na campanha eleitoral.

Ao fim do processo eleitoral de 2016, o MPA se classifica em quarto lugar, com aproximadamente 9% dos votos. No ano seguinte, organizaram o Encontro da Associação Brasileira de Psicólogos em Ação (ABRAPSIA), cujo tema foi “A fragmentação da família e das identidades, a quem interessa?”, que contou com a participação de alguns dos membros que viriam a compor a formação da chapa de 2019 (ABRAPSIA, 2017). Já em 2018, ainda frustrados com a derrota nas eleições, buscaram a dissolução do sistema de conselhos:

No governo passado, em audiência com o Ministro do Trabalho, solicitamos a extinção das Autarquias Federais, pois na atualidade se prestam a financiar políticas da esquerda, mas ele achou por bem nos aconselhar a criar chapas para concorrer às eleições. Portanto, solicitamos a V. Exas visibilidade para as nossas chapas para as próximas eleições junto ao Sistema Conselhos de Psicologia, e denunciar que, tanto a OAB quanto o Sistema Conselho de Psicologia, vêm discriminando profissionais que não pensam de acordo com a ideologia vigente em seus conselhos profissionais. (Justino, 2019, p. 1)

Com efeito, apesar de tentarem a todo custo se impor contrários ao que rege a ética do profissional da psicologia no Brasil e destituir, portanto, aqueles que fiscalizam a profissão, a saída democrática que restou ao MPA foi insistir nas eleições de 2019. Novamente inflamados pela pauta do aparelhamento político-partidário-ideológico e acompanhando a onda reacionária que engolia a sociedade brasileira, anunciam sua participação do processo eleitoral sob vaias. Afinal, argumentavam: “O Brasil já não mais comporta uma psicologia travestida de direitos humanos. Nós queremos no Movimento Psicólogos em Ação uma política que respeite o ser humano de verdade” (Farias, 2019).

Felizmente, o resultado das eleições indicou, mais uma vez, que o discurso reacionário não representa os profissionais da psicologia. A chapa obteve aproximadamente 5,4% dos votos válidos. Contudo, apesar da pouca expressividade numérica, estes profissionais permanecem reiterando discursos retrógrados atrelados à psicologia. A vista disso, o MPA atua como um instrumento estratégico de disseminação de discursividades de sujeição que mascaram seu caráter moral-religioso, estando articuladas em redes de atuação de defesa de valores sociais dogmáticos e morais, bem como fazendo frente aos avanços das minorias de gênero e sexualidade. Assim, empregam uma forma de homofobia/transfobia cordial e religiosa de cunho pastoral, representada pelo desejo de “acolher” aqueles que desejam passar por uma regeneração moral e abandonar sua condição desviante (Maia & Machado, 2019).

Para concluir, apresentaremos uma análise do conteúdo expresso na campanha de 2019 desta chapa. Segundo Laurence Bardin (1977), a análise de conteúdo permite inferir reflexões em torno da produção/ recepção das comunicações a partir de três etapas: análise preliminar, exploração do material e, por fim, inferência e interpretação. Nesse contexto, tendo como fonte os dados dos encartes de divulgação da chapa “Movimento Psicólogos em Ação” (MPA, 2019a; 2019b), bem como a participação de representantes desta chapa nos debates promovidos pelo CFP (2019), procedemos à análise que caracteriza seus posicionamentos. Três categorias analíticas formam parte desta exposição: (a) estratégias de purificação, relacionada ao caráter político-ideológico; (b) a inquisição do prazer, relacionado à moralidade-religiosa; e (c) as missões epistêmicas, relacionada à proposta pedagógica.

ESTRATÉGIAS DE PURIFICAÇÃO

Desde um projeto semiótico (Greimas, 1975), segundo o qual uma estruturação narrativa se apoia em qualquer tipo de texto, temos que a imagem já é um texto, pois nos comunica algo. Assim, se observarmos com atenção o encarte amplamente divulgado pela chapa do MPA (2019b), não se poderá negar a referência explícita às cores da bandeira brasileira. O encarte, em fundo branco marcado com pinceladas verde, amarelo e azul, a moldura que envolve as fotos dos candidatos, o destaque das cores na apresentação das propostas, enfim, toda a imagem sugere o nacionalismo.

Vemos repetir este nacionalismo extremista na ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’ de 19 de março e 8 de junho de 1964 à ocasião do golpe militar, a qual teve uma reedição em 07 de abril de 2014. Tanto lá quanto cá, os discursos se repetem: (a) luta contra a corrupção; (b) resgate das tradições brasileiras (importante na luta contra o comunismo, o estranho, o que vem do exterior); (c) resgate dos valores familiares; (d) oposição ao aborto.

Tradicionalmente, no Brasil, o nacionalismo é usado como recurso para se dizer que se é contra um discurso de esquerda e apartidário. Como se se dissesse: “meu partido é o Brasil”! Também, utiliza-se esses signos para sustentar valores e crenças conservadoras, em especial, aquelas que dizem respeito à sexualidade e ao gênero.

É curioso observar que a candidata a presidente por esta chapa, Rozangela Justino, explicita na proposta 19 de seu encarte (MPA, 2019b) ser favorável ao apartidarismo, mas, no debate público (CFP, 2019) entre as cinco chapas que disputavam a eleição ao CFP, em 2019, Rozangela inicia a sua fala acusando a atual gestão e as precedentes de assumirem posicionamentos políticos partidários sem, contudo, apresentar evidências que deem sustentação a estas teses. Segundo ela, sua chapa “quer resgatar os anos perdidos por conta de uma psicologia política partidária” (CFP, 2019).

Porém, o inverso não é verdadeiro. Isto é, a candidata Ana Sandra Fernandes Arcoverde Nóbrega, da chapa 21 (Frente em defesa da psicologia brasileira) que foi a vencedora das eleições, aos 36’:44”, interroga Justino sobre a seguinte contradição: “justamente ela que nos acusa de partidarismo e proselitismo de esquerda, é a atual assessora parlamentar do deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM, do Democratas), e que é aberta e publicamente evangélica e favorável ao governo Bolsonaro”. Como resposta, Rozangela assume ter este cargo de confiança, mas diz não estar filiada a nenhum partido político. Como se esta filiação garantisse alguma isenção ideológica e/ou de posicionamento político. Ora, o atual presidente do Brasil, o qual ela apoiou, ficou sem partido político por quase três anos, após se desfiliar do Partido Social Liberal (PSL) para criar um novo partido, a Aliança pelo Brasil, que nunca se concretizou.

Na sequência, para defender-se do apoio dado ao governo Bolsonaro (explicitamente conservador e de direita), Rozangela retoma a clássica tese de que, como milhões de brasileiros, já não suportava mais a corrupção que envolvia o Partido dos Trabalhadores (PT) e que “infelizmente, veio a descobrir que aquele partido é o que dirige o CFP”. Enfim, mais uma mentira e tese não comprovadas que utiliza para não responder à pergunta: “ser cargo de confiança de um político, apoiar explicitamente o atual governo não é ser partidária?” A candidata aproveita o tempo que lhe resta de resposta para acusar a chapa 21 de corrupção. Faz, portanto, o mesmo jogo daqueles políticos que apoia. Incita, ainda, o medo na população proferindo a tese de que “nosso dinheiro está sendo roubado, mal gerenciado, de que estamos sendo enganados, pois não somos informados corretamente” (CFP, 2019).

Outro exemplo é visto na apresentação inicial de seu encarte (MPA, 2019b), onde vislumbramos o descontentamento do movimento com a gestão do CFP pós anos 1980, período que coincide - não por acaso - com a redemocratização do país, quando havia certa expansão da liberdade de expressão e dos posicionamentos críticos que, pouco a pouco, começaram a ganhar mais espaço. Além disso, já é perceptível o caráter moral e ideológico do MPA, exposto na ideia de que atualmente a psicologia estaria trabalhando em prol da “desconstrução do sistema de crenças e valores sociais”.

Ora, a psicologia, por primar a laicidade, não se alinha a nenhum sistema de crenças. Quanto aos valores envolvidos, o CFP indica em seu primeiro princípio fundamental os valores que envolvem a psicologia brasileira: “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (CFP, 2005, p. 7). Tendo por base os direitos humanos, portanto, a psicologia só interpela algum sistema de crenças ou valores sociais quando estes implicam em se contrapor ao que preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse sentido, o que o MPA implicitamente indica é que a psicologia tem contribuído para desconstruir valores preconceituosos e ultrapassados, relacionados às crenças religiosas.

A INQUISIÇÃO DO PRAZER

Diante do exposto até aqui, é notável o caráter moral do MPA que, como vimos, se reflete principalmente em temas como sexualidade, gênero, família e concepção. Em suma, temas que atravessam a maneira como os sujeitos vivenciam individual e socialmente sua sexualidade e tornam-se fenômenos privilegiados no discurso de ataque de grupos evangélicos quando ingressam na esfera política (Gonçalves, 2019; Souza, 2013). No caso do MPA, é daí que advém o protagonismo da Resolução 01/99, isto é, no protagonismo da inquisição ao gênero e à sexualidade dissidente (Miskolci & Campana, 2017).

Ao acessarmos o encarte com o qual o MPA (2019b) impulsionou sua candidatura às eleições de 2019, percebemos um caráter mais apaziguador, que disfarça suas propostas reais. Com efeito, não há uma apelação direta à ideologia do MPA, tão presente em seus discursos para além do encarte, assim como não há um ataque explícito à Resolução n. 01/99 ou, ainda, propaganda da categoria “egodistônico”, utilizada com frequência para apoiar processos de reversão sexual. Ao contrário, utilizam-se de demandas gerais da classe de psicólogas no Brasil como a valorização do profissional e exploração dos planos de saúde para abarcar uma temática mais comum à classe profissional.

Enquanto o encarte público divulgado pelo CFP (MPA, 2019b) é discreto, a página principal de campanha demonstra seus reais interesses. Por meio de um QR-Code, acessamos um documento maior intitulado “Propósitos da Chapa” (MPA, 2019a), onde são detalhadas suas expectativas com relação à psicologia e o CFP. Nele, os detalhes tornam-se mais visíveis: as crianças estariam sendo submetidas a teorias ideológicas e se colocando, portanto, em risco. Nesse sentido, a resposta da psicologia deveria ser uma proposta de reconstrução da sociedade - eliminando a diferença - e oferecendo “atendimento digno às vidas, às famílias, à nação” (MPA, 2019b).

Sua ideologia e defesa aparecem em algumas das 30 propostas gerais da chapa que percorrem temas caros à religião: “valorização da vida da concepção à morte natural” e “fortalecimento da família brasileira”. No campo da psicologia enquanto disciplina da norma, propõem “ampliar a atuação do psicólogo em todas as áreas do saber”, o que preocupa quando não aliado a um debate crítico, uma vez que a psicologia pode contribuir para psicopatologização de indivíduos saudáveis. Há, ainda, a defesa de promoção de “debate interno acerca de temas polêmicos” e “credenciamento de abordagens psicológicas por meio da avaliação criteriosa nos moldes da psicologia enquanto ciência”, o que preocupa quando analisamos o histórico do MPA e a falta de clareza em suas propostas.

Com efeito, apesar de “zelar pela imparcialidade”, o MPA é o menos parcial possível. Sua parcialidade se efetiva no combate à legalização das drogas, do aborto e às famílias dissidentes (que não reproduzem o status social de uma família cis-heteronormativa). Nas dez medidas propostas contra o “aparelhamento ideológico do CFP”, o tom é mais direto:

  • 1. CONTRA o aborto, a destruição da infância e da família;

  • 2. CONTRA a legalização e comercialização das drogas;

  • 3. CONTRA a promoção e o ensino da ideologia de gênero;

  • 5. CONTRA a perseguição a psicólogos com a revogação das Resoluções n. 01/1999 e n. 01/2018 para permitir o atendimento de pacientes egodistônicos...

Há, portanto, para o MPA uma confusão entre o que é a psicologia, qual o seu papel na sociedade e suas relações com outros campos sociais, como a religião e a política. O MPA se propõe a escutar anseios e demandas dos cidadãos brasileiros como se a psicologia fizesse parte de um escopo normalizador que deve atender ao anseio social.

Os temas polêmicos que o MPA costuma abordar são temas morais e religiosos que não dizem respeito à psicologia enquanto ciência e profissão - laica. Um desses assuntos, envolvidos em abordagens psicológicas, é a conhecida “cura gay” que trata da reversão da homossexualidade nos consultórios de psicologia, prática combatida pela Resolução n. 01/99, tendo em vista não se tratar de patologia.

No debate das chapas, aos 1h11:06, o candidato da chapa 25 (Avançar na profissão no Brasil), Murillo Rodrigues dos Santos questiona a candidata Rozangela Justino sobre a cientificidade de seus argumentos para defenderem a terapia com homossexuais, pontuando que a forma como abordam o tema causa mais sofrimento à comunidade LGBT do que esclarecimentos, posto que não apresenta dados científicos. Uma vez mais, Rozangela não responde às questões e fala de uma experiência pessoal em 1992, dentro do psicodrama, dizendo ter auxiliado muitas pessoas a lidarem com sua “egodistonia”.

Para ela, ter realizado um TCC e apresentado esta experiência em um Congresso de Psicodrama, a faz pensar que seus dados, sua pesquisa, já constituem dados científicos. Certamente, a candidata entende o discurso científico como resumindo-se a um testemunho, coisa que parece mais comum às religiões. Em sua opinião, a Resolução n. 01/99 é um estratagema psicoterrorista do CFP para impedir a realização de pesquisas com a “homossexualidade egodistônica”.

De fato, esta Resolução impede que a homossexualidade seja tratada como egodistonia já que ela não é doença e, quem afirma isso, é a Organização Mundial de Saúde que, em 17 de maio de 1990 retira a homossexualidade do Código Internacional de Doença (CID). Ou seja, à data de sua defesa de TCC, Rozangela Justino já contradizia referências psiquiátricas ao insistir em tratar homossexuais insatisfeitos com sua sexualidade como pessoas egodistônicas.

Para ela e seus seguidores, a homofobia, que é um sistema de opressão e controle social, não poderia vir a ser interiorizada e, por isso, causar a insatisfação pessoal. Ademais, por crer que as teses sobre sexualidade produzidas pelo discurso científico são totalmente pautadas em “ideologias de gênero”, sente-se autorizada a pensar que apenas a homossexualidade é passível de alteração, mas, jamais a heterossexualidade, pois que esta não causa distonia de qualquer espécie, já que é o destino da sexualidade humana (Maia & Machado, 2019).

Por fim, percebemos que as estratégias propostas pelo MPA buscam exorcizar a Resolução n. 01/99, batizada de “estratégia psicoterrorista”, pois que engessa as possibilidades de realização de pesquisa com pessoas em sofrimento psíquico causado, assim creem, pela egodistonia. Assim, já que a homossexualidade não é doença e que a homofobia passou a ser equiparada ao crime de racismo, não espanta as duas últimas propostas (28 e 29) desta chapa que sugerem que temas polêmicos, sem comprovação científica, e/ou considerados crimes, sejam discutidos internamente (Gonçalves, 2019).

AS MISSÕES EPISTÊMICAS

Retomando o trabalho de Montera, Silva e Sales (2018), em que se nota que o argumento religioso, por si só, é incapaz de sustentar-se frente aos discursos técnico-científicos nos espaços de debate público e político, vemos se abrir um novo território de disputa para o movimento religioso na Psicologia. Conforme notam Maia e Machado (2019), há uma transição do argumento religioso para o médico-jurídico no combate à “ideologia de gênero” ao adotarem o conceito de “sexualidade egodistônica”. Assim, se estabelece uma disputa epistemológica e narrativa, configurando as universidades e a própria formação, enquanto espaços de produção e validação de saberes e abordagens teórico-metodológicas.

Movimento semelhante foi vislumbrado com o PL n. 5.816/2005, de autoria do deputado Elimar Máximo Damasceno, que buscava alterar as diretrizes curriculares em Psicologia para que profissionais da área estivessem aptos a ofertar acolhimento àqueles que desejassem deixar a homossexualidade.

O crescente interesse político-religioso nas instituições de ensino, seja básico ou superior, remete não somente ao “Escola Sem Partido” - enquanto mecanismo de combate a “doutrinação ideológica de esquerda” e a “ideologia de gênero”, promovendo um ensino alienante (Miguel, 2016) -, mas também aos modelos de ensino protestante-fundamentalista enquanto ferramentas pedagógicas de interpretação da realidade a partir do cristianismo, se contrapondo aos saberes pós-modernos contrários a sua visão dogmática da vida (Schunemann, 2009). Logo, ao traçar paralelos com o MPA, vislumbramos uma lógica que parece coincidir com o argumento de que “as teorias pós-modernas relativistas, como a da desconstrução, vêm adulterando as verdades científicas das ciências exatas e muito mais das humanas e sociais, que são subjetivas” (Justino, 2010a, s/p.).

Nas eleições de 2019, o MPA afirmava objetivar um resgate das bases científicas da psicologia, dos paradigmas científicos “confiáveis”. Isto seria fruto da ideia de que o CFP faria uso de “teorias inventadas, sem qualquer fundamentação científica, construídas simplesmente para a desconstrução de todo sistema de crenças e valores sociais” (MPA, 2019, p. 1). Ou seja, paradoxalmente, o grupo defende uma psicologia supostamente científica e ética. Inclusive, algumas de suas propostas eleitorais centravam-se na defesa da ciência, como podemos observar nas propostas 20 e 25 : “20) Zelar pela ética nas atividades científicas e no exercício profissional; 25) Analisar e promover o credenciamento de abordagens psicológicas por meio da avaliação criteriosa nos moldes da psicologia enquanto ciência” (MPA, 2019, p. 6). No entanto, na proposta 28, sugerem a promoção do “debate interno acerca de temas polêmicos e que ainda não tenham o respaldo científico com especialistas que defendam seus posicionamentos com embasamento científico” (MPA, 2019, p. 6).

Na contramão, portanto, do caráter científico, o MPA propõe a abertura para a introdução e naturalização de “temas polêmicos” - pseudocientíficos e de base moral-religiosa, como a “cura gay”, amplamente refutada e institucionalmente proibida - na agenda da Psicologia brasileira, como meta eleitoral.

Outras de suas propostas, no que tange a questão do ensino, têm por foco ações propositivas do CFP quanto a formação e, conjuntamente ao MEC, na elaboração curricular universitária, de especialização e o aperfeiçoamento de programas de pós-graduação:

  • 9. Trabalhar em conjunto com o MEC e elaborar propostas para os currículos das universidades empenhadas na formação dos profissionais da psicologia;

  • 11. Incentivar o aperfeiçoamento dos currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia;

  • 13. Favorecer a proximidade do CFP junto às Universidades/Faculdades envolvidas na formação e especialização dos profissionais da psicologia. (MPA, 2019, p. 6)

Há, portanto, uma direção propositiva de interferência das pautas conservadoras deste grupo no interior da formação dos psicólogos brasileiros. Por meio da articulação com o MEC, instância federal, pretendem interferir na construção curricular buscando parcerias para a veiculação de suas teses evangelizadoras, tais como o tratamento do que chamam de “homossexualidade egodistônica” e a validação dita científica da normalidade de um modelo único de família, a saber, a cis-heteronormativa.

Considerando que muitos de seus ataques aos conselhos derivam dos posicionamentos favoráveis da entidade a um ideário social emancipatório e igualitário, não nos surpreende o desejo em ocupar sua posição deliberativa e o interesse nos ambientes formativos e de produção de saberes. Nesse sentido, parecem estar em consonância com um movimento de reestruturação conservador de cunho evangélico, de modo a rearticular a prática profissional em prol de um projeto pedagógico/epistemológico específico que ofereça sustentação e justificativa argumentativa às suas concepções religiosas de sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, apresentamos as complexas relações que misturam religião, política e psicologia no contexto brasileiro. Nessa tríade, sobressai o discurso conservador de ataque às minorias sexuais, aos direitos reprodutivos das mulheres, às chamadas “ideologias de gênero” e todo e qualquer discurso relacionado aos direitos humanos, lido como pauta exclusiva da esquerda partidária.

Como pano de fundo da nossa fundamentação argumentativa está o fundamentalismo da religião cristã evangélica que, por meio de seus dogmas morais religiosos, e sua crescente inserção nas esferas pública e política, tem galgado influência no interior da psicologia brasileira. Nesse sentido, desejam alcançar a gestão do CFP a fim de exercer controle e poder sobre os profissionais desta categoria em concordância com seu projeto societário.

O principal foco de intervenção seria a suspensão da Resolução n. 01/99 e a consequente patologização das sexualidades dissidentes à cisheterossexualidade, exemplificada no processo de reversão da orientação sexual. Como buscamos demonstrar, as bases discursivas da campanha estão baseadas em três processos discursivos: o caráter político-ideológico, oculto por uma frágil retórica sobre neutralidade; o caráter moral-religioso e, por fim, as estratégias pedagógicas de apresentação científica destes discursos morais.

Nossa análise teve como foco o material de campanha da Chapa 24 “Movimento dos Psicólogos em Ação”. No entanto, infelizmente, nos limites do presente artigo, não foi possível explorar o posicionamento de outros membros do MPA. As perspectivas aqui apresentadas estão baseadas, sobretudo, na porta-voz do movimento: Rozangela Justino. Em outros momentos, consideramos o discurso geral do MPA, como no caso dos encartes e materiais sem assinatura.

Por fim, considerando que nas eleições de 2019 a chapa do MPA ficou em último lugar com aproximadamente 5,4% dos votos, concluímos que o projeto de poder por ela encabeçada ainda não tem força na psicologia. Mas, não podemos afirmar que seja exatamente pelo conteúdo ou pela oratória que a chapa propôs que houve tamanha rejeição entre os eleitores. Afinal, este país surpreendeu o mundo elegendo um presidente de extrema direita, de fala pouco polida, e que defende - muitas vezes com informações falsas - a ditadura, a tortura, a violência contra os LGBTQIAP+, a pena de morte etc, mas que, mesmo assim, se mantém no poder com certo grau de aprovação.

Por fim, a religião evangélica não se resume a apenas uma categoria. Há diversos segmentos e nem todos são contrários à homossexualidade ou acreditam na egodistonia. Mas, é fato que algumas pautas morais ligadas, por exemplo, à luta contra o aborto, muitas vezes, provocam unicidade discursiva. Seria importante, para melhor compreender o conservadorismo na psicologia brasileira, que tivéssemos dados sobre a religião dos profissionais da psicologia. Somos uma categoria que atualmente chega a 320 mil profissionais e deles pouco sabemos sobre valores morais e crenças, apesar de sabermos que estes influenciam muito nas suas escolhas teóricas, práticas e éticas.

Financiamento

Não houve financiamento.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

1Certamente, o termo evangélico agrupa uma diversidade de pessoas que guardam, entre si, inúmeras especificidades e não podem ser tomadas como um grupo homogêneo. Neste texto, quando fazemos referência aos evangélicos, estamos nos dirigindo especificamente aqueles que visam ocupar lugares de saber e poder, tais como a psicologia e a política, a fim de propagar e aplicar sua moral cristã às questões e espaços, por excelência, laicos. Alguns representantes deste movimento conservador são exemplificados ao longo do texto.

2Segundo Gustavo Jorge Silva (2014), “direita” e “esquerda” são termos históricos cuja definição é complexa e múltipla, sendo atravessados por dimensões políticas, econômicas e sociais/morais. De modo geral, no campo político, direita e esquerda referem-se, por um lado, a ações e pensamentos conservadores e, por outro, a movimentos e ideias progressistas, respectivamente. No contexto brasileiro, a direita estaria associada ao asseguramento da ordem, do mercado como controlador do Estado e regente da vida social, enquanto a esquerda se vincularia à ideia de justiça social, do Estado como responsável pela redução da desigualdade e pela proteção ambiental (Silva, 2014).

REFERÊNCIAS

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Recebido: 15 de Julho de 2021; Revisado: 01 de Fevereiro de 2023; Aceito: 30 de Março de 2023

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