Em 2019 ingressei no programa de pós-graduação de uma universidade pública e a minha pesquisa visava a relação da produção subjetiva de jovens favelados/as do Morro da Providência/RJ em seu trânsito pela cidade. De forma geral, as pesquisas em favelas pouco fazem sentido para os/as moradores/as. Os corpos pesquisadores, engessados na posição asséptica à nossa realidade, colhem informações, preenchem dados e quem deveria ser o protagonista dessas produções permanece anônimo. As vivências na favela são olhadas por referenciais alheios que seus moradores sequer conhecem e viram apenas conteúdo de análise. Como Emicida e Nave (2015) cantam sobre ser “Tema da faculdade em que não pode pôr os pés”. Essa questão começou a me incomodar quando me mudei para a favela e via o roteiro se repetindo: pesquisadores de diversos lugares e instituições chegam com sua fetichização da favela, montam suas teses e depois sequer compartilham essa produção com seus interlocutores.
É justamente a esta realidade incômoda que a aposta da autora em favelizar a psicologia nos provoca sobre o que pretendem nossas pesquisas, ao que e a quem elas servem. A possibilidade da construção de uma proposta popular que repousa na abertura de um não-saber ao invés de sobre codificar e esquadrinhar a experiência do campo em conceitos abstratos, está mais próxima da luta das favelas. E isto permite aprender com o território, construindo com ele outros possíveis (Gonçalves, 2019).
Mariana Gonçalves (2019) aponta que que não há um consenso conceitual e quantitativo sobre as favelas e, isso é refletido entre os números de diferentes entidades que divergem bastante sobre os dados. A prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo, no ano de 2011 contabilizava 1020 favelas, já a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio (Faferj) totalizava cerca de 946 comunidades cadastradas e, o Censo do IBGE de 2010 trazia um quantitativo de 763 aglomerados subnormais, o que corresponde a 22% da população carioca.
Notoriamente, Gonçalves (2019) se vale da discussão sobre a nomenclatura de territórios das maiorias populares. Afinal, favela, comunidade, complexo e morro são sinônimos? Discorre sobre a eleição do termo favela e evidencia a relação entre os discursos acerca da favela e as intervenções que lhes são dirigidas. Terminologias como comunidade, complexo (termo do vocabulário penal), aglomerados subnormais, são utilizados para exprimir o sentido de violência e miséria, e assim conservar as intervenções violentas do Estado sobre as favelas, como são os casos de remoção.
Originando-se do estudo de doutoramento da psicóloga, professora e pesquisadora Mariana Alves Gonçalves, Psicologia favelada: Ensaios sobre a construção de uma perspectiva popular em psicologia contempla uma análise crítica sobre a psicologia comunitária e um projeto popular e reverbera seus encontros e desencontros das psicologias com a favela. Fortemente inspirada pelos escritos do psicólogo Ignácio Martín-Baró (1996), encontramos uma leitura altamente reflexiva sobre nossa formação acadêmica e nossa prática no contexto social, em específico, nas favelas. Transitando entre o que existe hegemonicamente na psicologia (um saber elitista, eurocêntrico e heteronormativo) e os horizontes insurgentes que rompem com a lógica reprodutora de práticas individualistas, somos convocadas a pensar como o contato com a realidade pode e deve reconstruir os referenciais sobre os quais as práticas psicológicas têm se ancorado ao longo de sua história.
Como um problema a ser removido da vida urbana, Gonçalves (2019) coloca que a favela é assim propagada por uma produção discursiva que tem como paradigmas a homogeneização e a ausência. Denuncia o paradoxo desses paradigmas pois, ao mesmo tempo que a favela é ativa na produção do espaço social, tendo suas produções culturais consumidas por toda extensão da cidade, o seu território continua atravessado pela marginalização. Para além da crítica, a autora visibiliza a favela a partir de suas resistências ligadas ao espaço (tanto a reivindicação por moradia, quanto a luta contra o genocídio das juventudes periféricas). (Gonçalves, 2019)
Compreendendo que a formação em psicologia é um campo de disputa, Gonçalves (2019) sublinha que psicologia favelada não é uma categorização a mais. E que psicologizar a favela aprisionando realidades específicas a conceitos elaborados de um particular que se pretendem universais é cair na cilada dos especialismos. A autora ressalta que a problemática do especialismo, nessa busca do projeto comunitário na psicologia, não é do termo em si, mas para o que tem sido utilizado, pois “Usar um nome para reunir pessoas interessadas em agenciar transformação é diferente de usar um nome para produzir os efeitos de um campo disciplinar: enrijecimentos, autoridades, sectarismo.” (Gonçalves, 2019, p.78)
Sua produção busca necessariamente o inverso, acompanhar o movimento de transformação da psicologia a partir de sua vinculação com as lutas e reivindicações das favelas cariocas e não uma nova área discriminada para atuação. Dessa forma, nos convida a pensar quais são as práticas em psicologia que ocupam as favelas.
Ignácio Opereza Dobles (2020) inclui nessa análise, a partir das experiências e estudos na Costa Rica, de forma genérica, que a psicologia comunitária nos países da América Latina, apesar de estar envolta a luta para uma transformação social ainda é, por vezes, anunciada de forma recorrente como um saber regulador tecnocrático que surge da imposição de uma colonização das necessidades pelo olhar estrangeiro e das concepções específicas de determinados contextos que almejam uma generalização dos modos de vida a partir de um modelo majoritariamente eurocêntrico. O efeito desses discursos é suprimir as dores e fraturas além de ignorar as subjetividades que se encontram fora dos ajustes de nossas ações. Quando se olha para as maiorias populares, trabalhamos com as carências percebidas, mas pouco nos atentamos para suas aspirações e projetos.
E é justamente esse olhar estereotipado da carência que se oferta à favela e aos corpos favelados sempre algo já formulado anteriormente ao contato com esse espaço. Pressupõem saber melhor do que nós mesmos o que precisamos, já que não somos consultadas. A construção de outras narrativas com a favela passa pela superação dessas imagens estereotipadas, que, inclusive, alimentamos com a nossa psicologia. Quando nos colocamos dentro da crítica, possibilitamos uma posição de enfrentamento, ao invés de criar problematizações esvaziadas que em nada modificam nossa realidade.
Gonçalves (2019) nos diz que a transformação social que almejamos com a nossa atuação passa pela transformação da psicologia. E acrescentamos que ainda tem muito caminho a ser trilhado. Nitidamente, como salientado pela autora, a presença de pessoas pretas, faveladas ou não, na universidade tem dado contorno a essa mudança. Como pós-graduanda cotista, ouso dizer que já entramos na universidade em uma posição combativa. O direito não apenas de ingressar, mas de permanecer e sermos reconhecidas como produtoras de conhecimento, compõe as críticas sobre o que pretendemos com nossa psicologia e o que almejamos que ela ocupe.
Gonçalves (2019), analisando o percurso do comunitário na psicologia, inclui o vínculo desse projeto com as perspectivas críticas enquanto possibilidade de atuação. O projeto comunitário na psicologia foi, em alguns momentos, capturado como mais um campo de atuação, a saber, a psicologia social comunitária (PSC). Para a autora, o projeto popular extrapola e inclusive destoa em determinados momentos do que convencionou-se chamar de PSC.
Através de um percurso abrangente, a autora aponta a aliança entre a psicologia e as elites, e como isto a tornou uma profissão historicamente conservadora e elitista, de difícil acesso às camadas da população com menor poder aquisitivo. Ao trabalhar a história da PSC no Brasil, por meio de estudo bibliográfico, aponta e tece críticas para uma atuação acrítica e ahistórica pautadas no assistencialismo, com forte tradição da psicologia comunitária norte-americana. Sinaliza que o uso do comunitário na história da PSC foi, inicialmente em referência ao deslocamento físico das psicólogas e psicólogos para áreas periféricas. Entretanto, tal deslocamento não significou uma mudança de intervenção, sendo replicadas práticas individualizantes já vistas em consultórios particulares. (Gonçalves, 2019)
Portanto, é relatado a impossibilidade de analisar o percurso da PSC no Brasil sem considerar o contexto político e econômico. Dessa forma, Gonçalves (2019) trabalha tal percurso em dois momentos: sua emergência enquanto disciplina no período da ditadura militar e sua reformulação emergente entre a década de 1970 e 1980. Alguns eixos trabalhados são: a “crise de identidade” da psicologia; a defesa de um paradigma latino-americano; e a constituição e desenvolvimento da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), que, pretendia diferenciar-se do modelo assistencialista por meio da educação popular para a conscientização da população.
Como a obra não esgota a discussão da trajetória da PSC e, entendendo que há uma pluralidade de práticas em seus diversos contextos e regiões do Brasil, a autora elege algumas produções dos estados do Sudeste (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), do Nordeste (Ceará) e do Sul (Rio Grande do Sul) para compor sua análise. Ressalta que seu esforço foi assinalar as especificidades de cada um desses lugares. (Gonçalves, 2019)
Como a pesquisa da autora se constitui na cidade do Rio de Janeiro, sua análise pela produção bibliográfica do percurso da PSC dessa localidade compõe grande parte da discussão. Apresenta alguns trabalhos, nos quais foram encontradas as seguintes contribuições: a tarefa da psicologia comunitária como interpretação das necessidades da comunidade por intermédio da escuta, com a importância de uma equipe multidisciplinar e a crítica a vertentes da PSC associadas a Medicina Preventiva e a tradição norte-americana. (Landin & Lemgruber, 1980 citados por Gonçalves, 2019). As relações de saber-poder e problematizações a alguns instituídos (Fernandes & Anjos, 1991 citados por Gonçalves, 2019). Um estudo teórico sobre as bases da PSC no Rio de Janeiro com embasamento na abordagem ecológica (Gallindo, 1981 citado Gonçalves, 2019). E, aqueles que questionam o âmbito acadêmico e suas intervenções com a classe popular, a demanda de uma prática psicológica ligada às demandas sociais. (Soares, 2001 citado Gonçalves, 2019). A autora reitera que, uma construção popular em psicologia está atrelada ao resgate da memória histórica, ao reconhecimento das lutas e resistências populares, e à presença em organizações de interesses populares.
Destacamos na análise, ainda que não abordado no interior da obra apresentada, o racismo ambiental, como uma dessas violências impetradas ao território favelado e periférico. De acordo com Lara Moutinho-da-Costa (2011) racismo ambiental é um termo cunhado pelo doutor Benjamin Franklin Chavis em 1983 que investigava a possível conexão entre a concentração de resíduos tóxicos nos territórios habitados por afro-americanos. Ou seja, afirma que as injustiças ambientais estão atreladas às injustiças sociais. O racismo ambiental, resumidamente, opera uma lógica de poder sobre as áreas que são exploradas e danificadas, impactando a saúde de seus moradores. No Rio de Janeiro incide principalmente nos espaços favelados, baixada fluminense e zona oeste. Temos, por exemplo, o lixão de Jardim Gramacho (desativado há mais de cinco anos, permanece inalterado), o despejo inapropriado de lixo doméstico na Baía de Guanabara (que contorna parte das favelas da Maré, Caju e outros territórios). São elementos que alimentam, junto às intervenções policiais, a necropolítica (Mbembe, 2018) que vivenciamos, uma vez que possuir (ou não) condições básicas de vida no espaço onde se habita, enuncia o propósito de fazer morrer a parte da população tomada como descartável. Este tema é uma das lacunas da obra, uma vez que, o racismo ambiental tema sensível quanto não é citado ou posto como análise, mesmo atravessando uma parte do campo da autora, como o conjunto de favelas da Maré.
Gonçalves (2019) informa como o termo comunidade foi bastante relativizado na PSC, afastando-se da noção de periferia e sendo utilizada em diferentes espaços sociais. Ou seja, comunidade não é sinônimo de favela. Essa relativização do termo também operou a relativização das práticas em Psicologia, não sendo possível uma associação das intervenções em PSC às maiorias populares. Favela, portanto, tem sido o mais utilizado pelos moradores, principalmente pelos ativistas em movimentos sociais e está ligado à sua história. Conecta-se a uma forma de resistência ao visibilizar que o estigma carregado pelo nome é uma produção do Estado e não algo inerente à formação das favelas. A identidade favelada é apresentada como estratégia de diferenciação que permite a produção e visibilização de novos enunciados que rompem com os discursos já instaurados hegemonicamente acerca da favela e dos/as favelados/as. (Gonçalves, 2019).
A autora aborda o funcionamento dialético da cidade pela dinâmica capitalista. É apontado como o espaço tem sido apropriado pelo capital e sua reprodução, mas também como o cenário das lutas anticapitalistas. Enquanto pauta de luta da favela, expõe a reivindicação do direito à cidade relacionado às suas necessidades concretas, como o direito à circulação. Entende-se que a favela, com suas diferenças provenientes da violência sofrida constantemente pelo Estado, também participa ativamente da dinâmica capitalista no tecido urbano. E, como parte desse tecido, também opera pela lógica neoliberal em curso, com a competitividade, com o empreendedorismo de si e desmistifica essa ideia romantizada de que a favela é uma grande comunidade carente e solidária.
Assim como mostrou que a psicologia tem suas capturas e processos de insurgência, Gonçalves (2019) identifica movimentos de insurgência nas favelas cariocas e suas capturas. Enquanto captura, engendra a questão de mercantilizar a favela, reduzindo-a enquanto espaço de trocas comerciais e econômicas. As organizações populares transformadas em Organizações Não Governamentais (ONG’s), a princípio, poderiam estar associadas a processos de insurgência, mas acabam por compactuar com o interesse neoliberal ao gerir a pobreza como mercadoria, sendo preciso quantificar e mensurar a transformação feita no território para mostrar aos investidores e captarem mais financiamentos. O encontro da autora com psicólogos/as atuantes nesse espaço institucionalizado evidenciou a operação de individualizar as questões sociais. Daí as contundentes críticas a essa psicologia que captura a favela para atender metas institucionais estabelecidas sem diálogo com as reivindicações das favelas.
Corpos pretos e pobres – maioria nas favelas – são sobre codificados como vidas recuperadas e transformadas em lucro. Há um entrelaçamento entre a lógica neoliberal e outras formas de colonização. A presença de fomento internacional constitui um dos índices desta operação. Na favela mais antiga do Brasil, o Morro da Providência, uma dessas criada e mantida por investimento internacional, ocupa, não sem simbolismo hierarquizante, a parte mais alta. É do alto que se continua decidindo pelo outro o que ele necessita evidenciando a colonização das necessidades pelo olhar estrangeiro (Dobles, 2020). Universalismos que não são universais e hierarquias nas ONG ‘s são, por esta via, instituídos moldando narrativas e reforçando os estereótipos que já deveriam ter sido superados.
Por movimento de insurgência, são colocados os processos que operam o inverso, como o protagonismo dos moradores nas pautas em defesa de uma identidade favelada e o combate à violência do Estado contra as favelas, confrontando sua organização racista e a necessidade de um olhar descolonizado sobre o território favelado. Gonçalves (2019) dedica parte do seu trabalho às narrativas e análises do seu percurso em algumas favelas cariocas como a de Vigário Geral e o conjunto de favelas da Maré, Morro do Borel, localizados na zona norte da cidade, além da favela Cerro-Corá localizada na zona sul da cidade. Tais narrativas contemplam o encontro com as psicólogas que atuam nessas favelas (e com estas, encontrou práticas que estão dispostas a construir com a organização popular, evidenciando o quanto a psicologia deve se conectar e aprender com os saberes populares); o encontro com os movimentos sociais de favelas e com discentes do curso de psicologia moradores de favelas.
De maneira substancial, esta obra inflama questionamentos que nos desacomodam e nos convocam a repensar nossa postura e nossas práticas psicológicas. Fica evidente a partir de psicologia favelada, o quanto nós, psicólogos/as, devemos revisitar nossos referenciais de maneira crítica. O que esperamos com nossa atuação? Continuar compactuando com a lógica neoliberal, servindo e dando subsídios para sua manutenção em nossa realidade de desigualdades e tornando a pobreza um simples campo de intervenções? Ou estaremos com o povo comprometendo-nos com suas pautas e lutas para uma nova transformação em nosso contexto? Transformação esta que não seja a incorporação no sistema neoliberal e mercantilizado, antes disso, que se proponha outras emergências de viver e construir a cidade.
A psicologia não é uma ciência ingênua. Podemos agir perpetuando silêncios ou rompermos com a servidão ao sistema capitalista, somando nossa voz aos gritos de indignação da favela. É nesse sentido que a psicologia favelada nos convida ao debate. A importância e a atualidade das discussões que o livro traz são fundamentais para serem amplamente discutidas na comunidade acadêmica. A autenticidade em trazer tais questões que enriquecem a reflexão e corroboram em disseminar como a psicologia ainda está em tempo de modificar-se para pensar em transformação social é o que alimenta esta obra. Deixamos agora as perguntas da autora para nós: “Psicologia, a quem você ouve? A que você serve na cidade do Rio de Janeiro? A sua escuta qualificada ouve os tiros da favela? Ouve seus gritos? Conhece as pautas de sua luta?” (Gonçalves, 2019, p. 231)