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Cógito

 ISSN 1519-9479

     

 

PSICANÁLISE E CRIAÇÃO

A criação artística - um comentário, apenas*

 

Gildete Lino de Carvalho**

Círculo Psicanalítico da Bahia

RESUMO
A autora tenta dar uma visão histórica do conceito de arte que, ao longo do tempo, vai mudando de estatuto.
Do ponto de vista psicanalítico aborda a concepção de arte como processo e como possibilidade de nomear o inominável. Reconhece que as suas formas são da mesma ordem das formações do inconsciente e que o campo onde a arte se situa é o da sublimação e portanto não passa pelo recalque.

Unitermos: Arte, olhar, sublimação, Outro, gozo, inconsciente, semblante, vazio, eros , tânatos.



A arte não teve sempre o mesmo estatuto, o mesmo conteúdo, a mesma função. E o campo recoberto pelo conceito é extenso – da obra prima ao esboço, o desenho do mestre, o desenho da criança, o canto e o grito, o som e o ruído da dança e a gesticulação, o objeto e o acontecimento. A prática a todo instante desmente qualquer definição.

A primeira concepção de arte é entendida como fazer. Prevaleceu na antigüidade. Sabe-se, no entanto, que nem todo fazer é arte. Com o romantismo, a ênfase recai no sentido do belo. Concebido, não como adequação a um modelo exterior, mas pela coerência das figuras artísticas, com o sentimento que as inspirava e suscitava. No renascimento, a concepção de arte era comprometida com a de visão da realidade – ora da realidade sensível, ora de uma metafísica, superior ou de uma realidade espiritual mais íntima, profunda, emblemática.

Em 1984, Pareyson faz uma aproximação do conceito de arte através da articulação – exprimir, conhecer, fazer.

Nenhuma dúvida há, de que a arte é expressiva, simbólica; enquanto forma é um ser quevive por conta própria e contém tudo o que deve conter. A forma é expressiva, enquanto ser é um dizer. Ela não tem um significado, mas é um significado. Por isso, é também um conhecer, pois ao revelar um sentido das coisas, o faz de modo particular, apontando para uma nova maneira de perceber a realidade. “É um novo olhar que se prolonga no fazer, como o olho do pintor, cujo ver já é um pintar”.

A especialidade do fazer artístico consiste num fazer tal que, enquanto faz inventa o por fazer e o modo de fazer. Invenção e execução caminham paralelamente, simultaneamente e de modo inseparável.

Para Merleau Ponty “Os primeiros desenhos das cavernas instauravam como um mundo a pintar ou desenhar”. Quer tratemos do desenho na caverna, quer da pintura contemporânea, o suposto é uma operação reflexiva, que funda a unidade da pintura e que na pintura se amplifica.

Por ser diferente dos outros seres, por seu corpo, o homem se situa numa relação problemática com a própria imagem, relação que o leva a se retocar, a fazer tatuagens, cirurgia plástica etc. tão emvoga em nossos dias. Para o autor, nessa tendência autoplástica, talvez, esteja a raiz vital da própria arte.

Michel Thevoz (1984) comenta: o homem necessita, desde os primórdios, de uma proteção artificial, proteção esta que não é apenas física, mas simbólica. O homem é exposto num duplo sentido: aos perigos e aos olhares. Ele é, com certeza, o único animal que faz de sua pele uma superfície a pintar, na qual se inscreve a sua identidade, que, por exemplo, a tela, epiderme ultra-sensível, através da pintura e de toda a arte irá ampliar.

Berman (1986), pontua a força que ganha a arte em nossos dias, ao quebrar totalmente os seus compromissos com os valores religiosos, éticos ou sociais, para poder expressar uma relação mais profunda e mais originária do homem consigo mesmo e com o mundo. Acresce-se que, a tudo isso, questões se lhe apresentam no momento atual – o olhar e o desejo, o imaginário e o real conferindo-lhe uma função e uma força insubstituíveis.

A produção literária, por ser igualmente simbólica, como as artes plásticas, utiliza como matéria prima, na sua criação, um material essencialmente simbólico – a palavra. Tanto quanto a tela e a tinta do pintor, o escritor, ao escrever, constrói uma pele imaginária de palavras, da mesma forma que o brincar da criança pequena, que, com água, areia ou tinta vai construindo a superfície da pele.

A necessidade de escrever, tanto quanto de pintar, de esculpir, de fazer música, tanto pode seguir a vivência de um luto, não necessariamente de uma perda concreta (aponta a psicanálise) mas, captação de um vazio qualquer, como diz Ana Cecília, Profa. de Psicologia da UFMG, escritora e psicanalista. “Por exemplo, a tentativa de um desvelamento, de um não dito, do deciframento de um enigma, de um segredo ou de um mito, que, pela sua própria natureza, comporta inúmeras versões”. Razão porque, uma mesma temática, a nível artístico, pode ser trabalhada e representada inúmeras vezes por um mesmo artista e outros.

A produção literária traduz bem essa posição de “nomear o inominável”, de dar sentido ao que não tem sentido, de representar uma ausência, de substituir aquilo que se foi, recuperando-o em um outro registro.

Melanie Klein vê na criação, a reparação do objeto destruído ou danificado pelo sujeito, na posição depressiva.

O ato de criar implica em perda e sofrimento, já odissemos. Sem sofrimento não há arte. É a arte um processo masoquista? Antonio Ribeiro, emérito psicanalista mineiro, pondera: “No sintoma, no processo masoquista, o sujeito está alienado ao gozo do Outro. No processo criador, o artista se rebela contra esta alienação e não se conformando em ficar preso e alienado ao Outro, aposta em si mesmo, assumindo certo risco a procurar uma posição diferente em relação ao Outro. Esta posição seria a da separação”.

O ato de criar implica necessariamente no aparecimento do novo, consequentemente, uma mudança de posição em relação ao antigo. Não que ao criador lhe seja facultado resolver a falta e a impossibilidade. Mas na sua criação, torna possível o impossível, elimina limites e assim a configuração de uma forma particular de lidar com a falta.

A criação artística é um processo, é um devir sempre, ao contrário da doença que parece ser a interrupção e a parada no processo.

Em 1911, no texto “Dois princípios do funcionamento psíquico”, Freud fala especificamente do artista e diz que o artista, para fugir da frustração que a realidade impõe, refugia-se na criação, mas que, depois ao buscar o reconhecimento, cai de novo no princípio de realidade.

Já no Projeto, em 1835, Freud se refere ao primeiro ato de criação do ser humano. Antes mesmo de se constituir como sujeito, o recém-nascidodiante da impossibilidade, cria um objeto alucinatório. E assim, o homem cria uma condição única, que é somente encontrada na espécie humana – o desejo.

Não estaria a produção artística vinculada a essas primeiras experiências de satisfação?

No Capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, sabe-se que o desejo move o aparelho psíquico e é em torno dele que guiará o processo de criação. Desejo que é sempre desejo do outro e sempre já marcado pela sua realização impossível.

Concluída a obra, os segredos mais recônditos estão ali, as impossibilidades. A singularidade do estilo. E já não é mais do autor. Está pronta pra seguir o seu destino, como filhos “edípicos e parricidas”.

Nada mais narcísico do que se eternizar numa obra de arte. E do ponto de vista pulsional, é a vitória de Eros sobre Thanatus. De algum modo, a morte foi driblada; a existência do artista, de finita, passa a serinfinita, através da obra, que o presentifica sempre.

Não há obra de arte sem o espectador; nas artes plásticas e artes dramáticas, e sem o leitor na produção literária, e sem ouvinte, na música. Em Escritores Criativos e Devaneios, Freud tenta explicar o efeito que a obra de arte provoca no espectador; para ele, o artista, como o devaneador, fantasia para lidar com o princípio do prazer - desprazer. “Ele cria um mundo de fantasia, no qual pode satisfazer seus desejos inconscientes”. Nesse aspecto, diz Freud, o artista se aproxima mais das crianças que, quando brincam utilizam e moldam o mundo externo aos seus desejos.

Sabemos que as obras de arte, os romances querem dizer algo, querem dizer alguma coisa e somos impelidos a interpretar porque são intrigantes e por isso, interessantes. No entanto, não é a compreensão ou a explicação que faz surtir um efeito. Se dermos um sentido, tudo se fecha e a pulsão nãose desprende.

Freud – 1914 – Texto intitulado “O Moisés de Michelângelo” diz: “Não sou conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto “obras de arte” tem para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para o artista, o valor delas esteja, antes de tudo, nestas”.

Freud continua : “a meu ver o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos compreendê-la”.

Ele descarta a questão da compreensão intelectual, pontuando: “o que o artista visa é despertar em nós a mesma atitude emocional que nele produziu o ímpeto de criar”.
E porque a intenção do artista não poderia ser comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental?

Freud irá dizer que somente um outro discurso, um outro saber para tentar dizer da intenção do artista. Nem a própria obra o diz.

Michelângelo foi, em suas criações, até o limite máximo do que é possível exprimir em arte. Freud também, aos limites da interpretabilidade. “Os sonhos bem sucedidos são aqueles dos quais não lembramos”.

Trago-lhes aqui a articulação que Gilda Vaz faz dos conceitos de Freud e Lacan:
“A psicanálise cujo campo vai sempre no avesso da cultura, detém sua atenção para o além das formas congeladas, onde ali, algo estáem suspenso. Freud chega à conclusão do que Lacan vai postular mais adiante – “A verdade não é dita toda”.
Freud privilegia no Moisés de Michelângelo o momento antes de Moisés erguer e arremessar as Tábuas por Terra e desencadear a sua cólera.

O instante antes do ato. A psicanálise se ocupa exatamente, não onde o movimento termina, mas onde ele se inicia e do movimento em si.

Lacan, ao falar sobre as artes plásticas, interroga como o que ele chamou de “chuva de pincel”. Será que se um pássaro pintasse, não seria deixando cair suas penas, uma serpente suas escamas, uma árvore se desfolhar e fazer chover suas folhas? Não será isso o que o artista faz quando cria novos objetos?

Lacan desloca nosso ponto de atenção para fora da linha, para a existência de uma temporabilidade-espacialidade, que não está no objeto, na representação, mas além dele. É ainda no Seminário XI, sobre o tema em questão, que ele vai inverter a relação do ato de pintar com a obra, deslocando a nossa atenção enquanto analistas para um outro campo da verdade.

Para a Psicanálise, essas formas são da mesma ordem das formações do inconsciente estampadas nos objetivos. É da ordem do que Lacan chama de semblante que cumpre a função de enganar a verdade, que mobiliza o gesto, ou seja, o vazio do objeto feminino ou a morte.

O inconsciente é puro furo, não é o semblante.

À pulsão de morte Lacan a define como: vontade de destruição, vontade de recomeçar com novos custos, vontade de outra coisa. Essa éa pulsão de morte como potência criadora, criação ex-nihilo a partir do nada. Gilda Vaz Rodrigues articula a posição do artista como “fonte de algo que pode passar ao real e a que o tempo todo, nós, seres comuns nos recuamos”. E situa o olhar num ponto chave do fazer do artista. “O sujeito humano diz ela, joga com as formas, joga com a máscara a partir desse mais além que há além do olhar. O ser se decompõe entre o ser e o semblante, entre si mesmo e o que se dá a ver.

O que dá de si mesmo e o que recebe dos outros é sempre máscara, invólucro. Só existem semblantes. A única coisa que talvez não faça semblante é a morte. É um saber que só se tem nessa hora, de forma radical.

As formas servem para obturar esse buraco. O campo da sublimação é uma operação acionada de um lugar específico da estrutura do sujeito.

A criação artística é da ordem da sublimação e, portanto, não passa pelo recalque.
Quando Miró foi ameaçado pela ditadura de Franco de não poder mais pintar, reagiu: “Eliminem as tintas, destruam os pincéis, as telas, eu continuarei pintando através das baforadas do meu charuto.”

É no mais além das formas que seu discurso se situa, pois ele sabe da coalescência destas e continuará pintando porque o que interessa para o artista, e também para o analista, é o ato de pintar e não as formas onde o ato se petrifica.



BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. O Moisés de Michelângelo. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1972, Vol. XIII         [ Links ]
____________ Os Limites da Interpretabilidade dos Sonhos. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1972, Vol. XIX
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____________ O Estranho. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1972, Vol. XVII        [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário – Livro VII – A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar 1988        [ Links ]

____________ O Seminário – Livro XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro. Jorge Zahar 1979        [ Links ]

MACÊDO, Rosângela Gazzi. O Estranho da Pulsão in: Griphos - Revista de Psicanálise nº 14. Agosto de 1996 – Belo Horizonte – Minas Gerais GREP        [ Links ]

RODRIGUES, Gilda Vaz. Ao Campo da Sublimação in: Griphos -Revista de Psicanálise nº 14 –. Agosto de 1996 – Belo Horizonte – Minas Gerais GREP         [ Links ]

Notas
* Trabalho apresentado na X Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia
** Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia

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