Stylus (Rio de Janeiro)
ISSN 1676-157X
EDITORIAL
Silvana Pessoa
A lógica da Interpretação,tema do Encontro Nacional da EPCFL-Brasil em 2012, ocorrido em Salvador, foi o assunto escolhido para este número e o próximo. Decidimos abrir esta edição com o artigo de Marc Strauss, um dos prelúdios que circularam na rede, pelo argumento que ele sustenta, ou seja, a proposta de desmitificar a interpretação, o que também pretendemos com a publicação nesta revista.
Marc Strauss inicia seu texto analisando o termo desmitificar comparando-o com desmistificar, afirmando que Lacan se empenhou em combater certo uso do Édipo, tão vão, em sua dimensão sistemática, quanto em sua utilidade prática em relação à interpretação. Porém, o autor reconhece que, antes de chegar à desmitificação do Édipo, Lacan no início o mitificou; ele procurou fazer dessa tragédia um mito autêntico para mostrar que a estrutura fantasiosa, que determina a realidade da relação ao objeto, tem a estrutura de um mito. Entretanto, não numa estrutura ternária, como postulou Freud, mas quaternária, como enfatizou Lacan, com a morte introduzida como quarto termo.
Percebemos com Strauss aproximações e distanciamentos nessas duas estruturas. Destacamos, nesse momento, apenas a diferença crucial entre elas: que a interpretação explicativa do sintoma, suposta ser em si terapêutica, uma interpretação pela iluminação, que teve a sua eficácia até os anos 20, dista da interpretação equívoca de Lacan, que deve jogar contra o sentido. Esse tipo de interpretação, apesar de recebida como tardia em seu ensino, precede as elaborações sobre o inconsciente real e não as supõe necessariamente, afirma Strauss. É interessante acompanhá-lo na construção e justificativa do seu argumento, especialmente quando interroga se o uso do equívoco é ou não suficiente paramostrar uma análise orientada para o real.
Com semelhante interrogação encontramos a conferência de Colette Soler proferida no início deste ano no Campo Lacaniano em Paris, ainda inédita no Brasil. Nela, a autora indaga particularmente qual é a especificidade de uma interpretação que incide sobre o real e interroga se o último ensino de Lacan implica uma nova concepção da interpretação. Vejam como ela introduz a questão:
De fato, no que diz respeito à interpretação, em nosso Seminário deste ano, a questão está colocada, desde o início, tratando-se de saber qual seria a especificidade de uma interpretação que incidisse sobre o real, como se fosse preciso, para essa nova noção de um inconsciente real, uma prática da interpretação totalmente nova. Eu mesma havia colocado essa questão, mas sem respondê-la de fato e, portanto, depois de meus colegas que falaram este ano, perguntei-me até onde seria esse o caso, até onde o último ensino de Lacan implica uma nova concepção da interpretação? (2012).
Vale a pena constatar, por meio dessa conferência, que as ressonâncias da interpretação, que não desconhecem o real, já estão presentes na obra de Lacan desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953), mesmo sem serem desdobradas lá; e também, para verificar que a interpretação visa ao intervalo significante que se anima do objeto, tomado ou como falta ou como mais-de-gozar, é uma tese que se mantém até o fim em Lacan, já que a análise não opera sem o sentido (Posfácio, 1973). Para abordar a questão e tentar respondê-la, Soler escolhe trabalhar com o grafo do desejo – por combinar a estrutura da fala e a da linguagem e por esquematizar, ao mesmo tempo, a estrutura do sujeito e a prática analítica – e com a referência final de Lacan à poesia. E, por causa dessa aproximação final, publicamos os quatro artigos seguintes na seção intitulada Ensaios.
O artigo de Luis Guilherme Mola abre essa parte apresentando consistentemente algumas definições de poesia e as suas relações com a concepção lacaniana de interpretação. Concluindo que verdade poética não estaria atrelada a algum conteúdo específico, mas ao princípio que revela sob a lógica dos códigos linguísticos uma outra relação que se caracteriza fundamentalmente pela contingência, que envolve a relação do significante com aquilo que possibilita sua existência: a voz. Esta que faz com que o gozo escoe pela fala, que marca a singularidade daquele que diz algo, e que faz com que as poesias devam ser lidas em voz alta, pois o som das palavras, ponto essencial em sua composição, implica e envolve o corpo do leitor, diz o autor.
Em seguida, Silvia Facó Amoedo denomina essa relação entre psicanálise e arte de "psicanarte", dizendo que a palavra é a matéria-prima tanto do poeta quanto do psicanalista e, quando utilizada com licença poética, lhes permite uma subversão da linguagem e uma consequente subversão do sentido da palavra em seu estado de dicionário, podendo mudar tudo para o sujeito sem mudar nada na realidade, pois, a vida que o analisando teve não se refaz, o que se modifica mesmo é a maneira como ele se situa nela e o sentido que lhe dá. Como ela mesma diz, "o sujeito em análise é o escritor de sua própria história, é ele quem detém, com seus ditos, o texto a ser lido e interpretado pelo analista". Assim, cabe interrogar o que pode o analista em relação ao texto do sujeito em análise? É o que a autora tenta responder com este ensaio.
Andrea Hortélio Fernandes segue a mesma trilha quando afirma que a interpretação na psicanálise convoca certa arte poética, tanto do analisando como do analista, para lidar com o que do inconsciente insiste e não cessa de não se escrever. Pois tanto a poesia quanto a fantasia e o sintoma têm em comum o fato de trançarem, por meio do equívoco, de metáforas e metonímias, o gozo do Um, gozo de alíngua, com o gozo do sentido. Entretanto, ela interroga como a interpretação na psicanálise, ao se servir do equívoco significante, tal qual a poesia, pode intervir simbolicamente no real. Para dar conta dessa questão a autora faz diversas citações de passagens em Freud e Lacan que marcam o "linguageiro necessário" para o manejo clínico.
Encerrando esta seção, temos o ensaio de Manoel Baldiz, que dialoga com os textos de Susan Sontag e Umberto Eco. Ele propõe, em forma de aforismos, interrogar vários pontos sobre a interpretação, com base na leitura desses dois autores. Num deles ele propõe não confundir a posição do morto (destacada por Lacan com o jogo do bridge) com a do cadáver, pois o analista mudo e cadaverizado não é um analista; noutro critica o excesso interpretativo do analista asfixiante que não deixa nada por interpretar; no seguinte, diferencia as intervenções válidas numa cura da interpretação propriamente dita, distingue a interpretação que corresponde à ética e à lógica do discurso analítico das intervenções sugestivas e persuasivas e, finalmente, discute o problema da interpretação na supervisão, articula interpretação e tempo, interpretação e transferência, interpretação e après-coup.
Na seção Trabalho crítico com conceitos esta revista traz mais quatro trabalhos que merecem ser estudados pelo seu rigor conceitual no que diz respeito à lógica e à interpretação. No primeiro deles, Maria Helena Martinho afirma que a interpretação é o que faz com que o analisante passe do início para o fim da análise e interroga qual a liberdade do analista nesse caso, quais intervenções podem ser consideradas interpretações e no que ela deve incidir. Para responder a tais questões, a autora percorre textos e seminários de Lacan dos anos de 1950 a 1970, nos quais verifica os vários modos de interpretação designados por Lacan: a pontuação, o corte, o semidizer, a alusão e o equívoco. Conclui, com Colette Soler, que diz existir nos modos de interpretação mencionados um traço comum: "um dizer nada", um "silêncio falante" do analista que obriga o analisante a designar o horizonte do que não é dito.
O objetivo do artigo que vem em seguida, de autoria de Ronaldo Torres, é o de acompanhar passagens do ensino de Lacan que apontem para uma lógica da interpretação. No desenvolvimento do seu argumento, ele afirma que logo após formalizar a lógica da fantasia, Lacan demonstrou como o ato psicanalítico implicava, em última instância, um ato para além dessa lógica, concluindo com isso, que Lacan chegou ao extremo de uma tensão entre os campos da lógica e da ética, na qual o limite do primeiro se encontrava em uma resposta advinda do segundo. O ato, assim, é uma resposta do real à montagem fantasmática pela qual o sujeito se constituiu na determinação simbólica. Nesse sentido, lógica e real se mostravam excludentes. Todavia, Lacan não tardou em formalizar o tipo de laço que se estrutura como efeito deste ato, o discurso do psicanalista, um laço que pressupõe uma lógica afeita ao real, afirma Ronaldo.
Também da lógica da interpretação trata o artigo de Christian Dunker na sua dimensão ética: o dever dizer e o dever calar presentes na condução de uma análise. O autor justifica a sua posição por meio da reunião de alguns argumentos – certas condições suficientes (o desejo do psicanalista e o tempo da transferência) e certos limites do que pode ser interpretado (genéricos, móveis, materiais ou metapsicológicos) – de que o dizer torna-se na análise um ato contingente, porém, baseado numa forma de dever que exclui a dimensão superegoica. Um artigo que deve ser estudado nos três aspectos que estão na origem lacaniana do problema de uma lógica da interpretação: a sensação real, a incorrigibilidade simbólica e o espírito imaginário do sistema.
Finalizando esta seção, o artigo de Sonia Alberti faz uma análise das três questões kantianas que dizem respeito às possibilidades éticas do saber, do fazer e do esperar para examinar os limites da interpretabilidade, o passe e a possibilidade de aprender com a sua experiência. Para dar conta do seu intento, a autora rastreia a retomada feita por Lacan na última década de seu ensino, de um pequeno texto de Freud sobre a interpretação para verificar até que ponto a construção do inconsciente Real daquela década poderia ter alguma base nas observações do criador da psicanálise. Lastreia-se nossa visada na identificação nesse texto de Freud, da função do sonho que não é senão a de "evitar a perturbação do sono" e que esta representa o ganho de prazer, a Mehrlust (prazer a mais), o gozo, um despertar. Tal despertar é também examinado na relação com as três questões kantianas afirmadas acima e tratadas por Lacan em Televisão (1972): o que posso saber? O que posso fazer? E o que me é permitido esperar?
Na parte que trata da Direção do tratamento temos um trabalho solo de Dominique Fingermann. Neste artigo a autora trata, com seu estilo peculiar, a direção de uma análise que se expressa no título do seu trabalho: Da lógica da interpretação e à prática da letra. A formalização expressa no "de... à" indica uma orientação, uma passagem, uma operação. Uma operação lógica que afeta e que tenha efeitos, é o que se espera da direção da psicanálise pelo psicanalista, orientado eticamente pelo Real. Ela diz: "visamos a uma passagem, que tenha consequências poéticas e políticas, já que apostamos em um novo laço enraizado no radical da letra do sinthoma".
Consequências do ato psicanalítico que podemos notar nos testemunhos dos analisandos de Lacan, relatados no livro Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão e nos seminários, resenhado pelo colega do Fórum São Paulo, Leandro Alves Rodrigues dos Santos, a quem aproveito para agradecer o difícil trabalho de estabelecimento das novas orientações editoriais dessa revista, que entram em vigor a partir desse número, e que estão sempre sujeitas à possibilidade de revisão, por sugestões vindas da nossa comunidade.
Encerrando este editorial, fica a promessa de publicação no número 25 da conferência de Marcelo Mazzuca, AE da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, no Encontro Nacional da EPFCL-Brasil; a conferência de Bernard Nominé, proferida na Jornada de Encerramento do Fórum São Paulo no final de 2011 e os artigos de alguns colegas do Campo Lacaniano. Além dessas contribuições, contaremos também com a resenha do novo livro de Antonio Quinet, O Outro em Lacan. Desejo a todos uma boa leitura e até breve, no próximo e derradeiro número desta Equipe de Publicação, a qual tenho enorme satisfação em coordenar!
Silvana Pessoa