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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.24 Rio de Janeiro jun. 2012
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
A interpretação psicanalítica: "um dizer nada"
The psychoanalytic interpretation: "a say nothing"
Maria Helena Martinho*
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
RESUMO
Este artigo vem ressaltar que a interpretação psicanalítica se situa entre a transferência, que marca o início de uma análise, e o momento do passe, que corresponde ao final de análise. A autora interroga: qual é a liberdade do analista no que se refere à interpretação? No que a interpretação – situada como a tática do analista – deve incidir? Qualquer intervenção do analista pode ser considerada como uma interpretação? Para responder a tais questões a autora percorre textos e seminários de Lacan dos anos de 1950 a 1970, nos quais verifica os vários modos de interpretação designados por Lacan: a pontuação, o corte, o semidizer, a alusão e o equívoco. Conclui, com Colette Soler, que existe nos modos de interpretação mencionados um traço comum: "um dizer nada", um "silêncio falante" do analista que obriga o analisante a designar o horizonte do que não é dito.
Palavras-chave: Interpretação, corte, semidizer, alusão, equívoco.
ABSTRACT
This article emphasizes that the psychoanalytic interpretation is placed between the transfer that marks the beginning of an analysis and the moment of the pass, which corresponds to the end of the analysis. The author questions: What is the freedom of the analyst when it comes to interpretation? What must interpretation – situated as the tactics of the analyst – focus on? Can any intervention by analyst be considered an interpretation? To answer these questions, the author goes through some of Lacan's texts and seminars dated from the 1950 to 1970s, in which she verifies the many ways of interpretation assigned by Lacan: the punctuation, the cut, the semi-saying, the allusion, the equivocation. She concludes, with Colette Soler, that there is a common feature in the mentioned ways of interpretation: "a say nothing", a "silent speaker" of the analyst who compels the analyzed to designate the horizon of what is not said.
Keywords: Interpretation, cut, semi-saying, allusion, equivocation.
"No começo da psicanálise está a transferência", afirma Lacan (1967/2003, p. 252), na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Freud já havia nos ensinado: a transferência, que está na entrada, é a condição da análise. Lacan verifica que o momento de passe, aquele no qual o analisante passa a analista – correlato ao ato analítico – corresponde ao final da análise. Mas o que está entre o início e o fim da análise? Entre a transferência e o passe? Pode-se dizer que é a interpretação, que faz com que o analisante passe do início para o fim da análise. Mas qual é a liberdade do analista no que se refere à interpretação?
No final de seu ensino, em um importante texto intitulado O Aturdito (1973/1998, p. 493), ao referir-se à interpretação, Lacan diz: "todos os lances são permitidos", reafirmando assim, o que já havia postulado quinze anos antes em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998, p. 594): "o analista é sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de suas intervenções". Porém, alerta Lacan, esta liberdade encontra-se apenas no nível tático. Como essa liberdade está no nível da tática, isso implica que ela seja dominada pela política da análise, que domina tanto a estratégia quanto a tática. No texto de 1958, Lacan diferencia três níveis de ação analítica: a estratégia, a tática e a política. Vale lembrar que a estratégia e a tática são específicas das artes militares. A estratégia trata da planificação e do movimento de tropas visando alcançar posições e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos. A tática trata da disposição e manobra das forças durante o combate e na iminência deles.
No processo analítico, Lacan observa que a transferência é uma estratégia que está do lado do analisante. O analista deve saber em que lugar o analisante o coloca antes de poder operar a sua tática, que é a interpretação. O que estabelece a estratégia e a tática na análise é a política da falta-a-ser – correlata à ética do desejo. A questão política na direção do tratamento é, portanto, a que tem como base a falta no Outro, ou seja, a inclusão da castração no Outro.
No que a interpretação – situada como a tática do analista – deve incidir? Em O Seminário, livro 9: a identificação (1961-1962, lição de 06/06/62), Lacan enuncia a seguinte proposição: "a interpretação deve incidir sobre a causa do desejo", chamando atenção para o fato de que incidir sobre a causa de desejo não significa responder com um saber sobre o objeto, nomeando-o. Como por exemplo, quando um analista diz a um obsessivo: "você como merda". Pois, ao nomear o objeto fezes, o analista aponta o objeto a partir do saber, fazendo consolidar a fantasia. Ao chamar atenção para o fato de que "interpretação incide sobre a causa do desejo", Lacan procura alertar que a interpretação deve se ater ao objeto causa de desejo, na medida em que, certamente, a interpretação concerne ao objeto, mas não para falar dele, mas para esvaziá-lo de evidência. Lacan propõe que a interpretação não deve reassegurar as identificações, mas deve, ao contrário, fazer surgir uma questão: "o que ele quer me dizer com isso?" Ao manejar dessa forma a sua tática, que é a interpretação, o analista obtém o efeito inverso ao de dar uma resposta. Opera no nível da falha do saber suposto.
Onze anos depois, em O Aturdito (1973/1998, p. 474), Lacan retoma a proposição: "a interpretação incide sobre a causa do desejo", e acrescenta: "causa que ela revela, e isso pela demanda, que envelopa com seu modal o conjunto dos ditos". Para elucidarmos esse enunciado de Lacan faz-se necessário "interrogarmos a relação do dizer com o dito" (Ibid., p. 474). Lacan esclarece que "o dito não vai sem o dizer" (Ibid., p. 451), ou seja, não há dito sem dizer. O dizer está sempre implicado no dito, mas "o dizer fica esquecido por trás do dito" (Ibid., p. 449). Sendo assim, o analista deve fazer uma distinção entre o dito (o enunciado) e o dizer (a enunciação) do analisante. É essencial que o analista questione a posição tomada por quem fala quanto aos seus próprios ditos e, com base nos ditos, localizar o dizer do sujeito, retomar a enunciação, lugar em que está o enunciante perante o enunciado.
Lacan verifica que no discurso analítico há dois dizeres: o dizer do analisante e o dizer do analista. O dizer do analisante "se especifica pela demanda, cujo estatuto lógico é da ordem modal" (Ibid., p. 474). O seu estatuto modal tem a ver com o sujeito que se interroga a respeito do que gostaria de ter, de ser, de saber. Colette Soler (1995, p. 37) chama atenção para o fato de que a passagem do discurso modal do analisante para a asserção se dá no sujeito que pode afirmar algo, não se tratando mais do subjuntivo nem do condicional: "a passagem do modal para a asserção é a passagem de um ‘eu gostaria' para um ‘eu quero', é o fim do enigma e, ao mesmo tempo, é o fim do trabalho de elaboração".
Quanto ao dizer do analista, Lacan assevera: "O dizer do analista é a interpretação, que por sua vez não é modal, mas apofântica",1 (O Aturdito, op. cit., p. 474). Lacan define o dizer como "a ex-sistência ao dito (a este dito de que nem tudo se pode dizer)" (Ibid., p. 473). Para Lacan, não há dito da interpretação, justamente porque os ditos representam sempre um sujeito; e os enunciados do analista como intérprete, ou seja, o que é dito numa interpretação, não se refere ao analista no lugar de sujeito, mas no lugar de objeto a, causa de desejo.
Ao longo de seu ensino, Lacan chama atenção para o fato de que não é qualquer intervenção do analista que pode ser considerada como uma interpretação. Uma intervenção só pode ser considerada como interpretação quando produz efeitos. É então só depois que se sabe se a intervenção do analista foi ou não uma interpretação. Isto quer dizer que uma interpretação é um ato que produz como efeito um levantamento do recalque, algo do inconsciente se torna consciente. O efeito que se espera do levantamento do recalque é produzir sentidos, quando uma intervenção do analista leva o paciente a pensar algo que ele não podia pensar antes, isso foi uma interpretação. Ao longo de seu ensino, Lacan designa vários modos de interpretação: a pontuação, o corte, o semidizer, a alusão e o equívoco.
Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998, p. 315), Lacan observa que "a ausência de pontuação é uma fonte de ambiguidade; a pontuação colocada fixa o sentido". Isto quer dizer que ao pontuar um texto, colocando uma vírgula, uma exclamação, uma interrogação, o analista marca um sentido determinado. Quando, por exemplo, o analista pergunta: "Como assim?" ou exclama: "É mesmo!", ou seja, quando o analista intervém, e a sua intervenção produz um sentido, essa intervenção pode ser considerada como uma interpretação. Mas é preciso que essa pontuação seja feita no lugar certo, não em qualquer lugar. Onze anos depois, em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964, p. 237), Lacan alerta: "a interpretação não é aberta a todos os sentidos [...] O essencial é que o sujeito veja, para além dessa significação, a qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está como sujeito, assujeitado".
O corte, outro modo de interpretação, é oposto à pontuação. Ele é o não-sentido, o non-sense. Quando o analista corta o paciente no meio da frase, ele impede a pontuação. Ele faz surgir o intervalo entre os significantes, apontando para o não-sentido e para a falta no Outro. Com isso ele, geralmente, provoca um efeito de perplexidade e desagrado.
Outro modo de interpretação é o semidizer. Em O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise (1969-1970, p. 34), Lacan propõe que "a estrutura da interpretação é um saber como verdade", localizando, de forma implícita, o matema da interpretação na fração do lado esquerdo do discurso do analista a/S2, único discurso em que o saber (S2) está no lugar da verdade. Nesse mesmo seminário, Lacan situa a interpretação entre o enigma e a citação. O enigma, diz Lacan, é a enunciação de saber latente, presentifica o ato de enunciação, é um dizer sem dito, sem proposição. A citação consiste em sublinhar algo que foi enunciado no discurso do analisante. É um procedimento que corresponde ao de colocar aspas, "trata-se do sólido apoio que encontram no nome do autor" (Ibid., p. 34). Por um lado, temos o enigma, verdade com o saber latente. Por outro, a citação, um saber com a verdade latente. Em ambos os casos há um semidizer. "Na medida em que participam do semidizer, eis o que dá o meio sob o qual a interpretação intervém" (Ibid., p. 35). Quando "um enunciado é colhido na trama do discurso do analisante" (Ibid., p. 35), esse enunciado, por ser recortado se torna enigma. Assim, faz-se surgir algo que vai além do dito.
Em A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958/1998, p. 648), Lacan se refere a outro modo de interpretação: a alusiva. A alusão é um enunciado que deixa a entender sem formular, que designa algo sem nomeá-lo. Esse modo de interpretação alude a... Lacan ilustra a virtude alusiva da interpretação com base em "o dedo erguido de São João, de Leonardo". O quadro "São João Batista", de Leonardo da Vinci, é talvez o mais controvertido. Houve muita polêmica sobre o significado do dedo do santo apontando para cima. O que da Vinci estaria aludindo ao retratar São João dessa forma?
Em O Aturdito (1973/1998), Lacan propõe outro modo de interpretação: a interpretação como equívoco. Lacan chegou a dizer que a interpretação fosse exclusivamente um equívoco. Propõe esse modo de interpretação como paradigma das interpretações, mantendo essa tese até o final de seu ensino. A interpretação como equívoco se utiliza da pluralidade dos sentidos, da polissemia, deixa a via aberta para vários sentidos. Lacan considera que a interpretação deve operar por meio do equívoco, na medida em que ele é um instrumento que não sugere, não impõe a maneira de ver do analista, deixando assim, aberta a escolha do sentido que o analisante queira lhe dar. Para Lacan, o equívoco é apofântico da interpretação, pois ele faz passar à asserção. Lacan menciona três tipos de equívoco: o da homofonia, o da gramática e o da lógica. O equívoco por homofonia depende da ortografia da língua, o equívoco aqui é a ambiguidade homofônica. Lacan ilustrou esse modo de interpretação: deux (dois) d'eux (deles), paraître (parecer) e par être (para ser), sembler (ser semblante) e s'y embler (se emblemar). A interpretação equívoca por homofonia faz aparecer um elemento latente na cadeia intencional do sujeito e faz com que ele se dê conta que há muito mais no enunciado do que ele pode perceber. Ela faz aparecer a divisão do sujeito, ou seja, a parte não dita, não percebida.
O equívoco gramatical trata-se da intervenção interpretativa mínima: "eu não o faço dizê-lo". Esse é um equívoco entre "você o disse" e "eu não assumo isso". Esse tipo de interpretação tem como alvo o ato de dizer. Convoca a causa do dito, o real, do qual o sujeito como significação é efeito.
O equívoco na lógica pode ser formulado do recenseamento das pulsões parciais: oral, anal, escópica e invocante. Esse modo de interpretação não revela o objeto, mas a consistência lógica do objeto que é o impossível de dizer. O apofântico da interpretação é correlativo do não-todo, sempre faz aparecer a consistência lógica e corporal do objeto. Os equívocos da homofonia, da gramática e da lógica "fazem aparecer no nível da língua, da linguagem e da lógica o impossível de saber o que está sendo dito, o impossível de dizer tudo" (Interpretação: as respostas do analista, op. cit., p. 34).
Existiria nos modos de interpretação aqui mencionados um traço comum? Colette Soler (Ibid., p. 31) propõe que o traço comum nesses modos de interpretação é um "dizer nada". Soler esclarece que "o silêncio do analista não designa o ato de que ele se cale, é um silêncio falante, silêncio ao nível do dizer [...] Tal silêncio obriga o analisante a desenvolver sua própria cadeia e, ao mesmo tempo, designar o horizonte do que não é dito".
Referências bibliográficas
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Endereço para correspondência
Maria Helena Martinho
E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br
Recebido em: 11/02/2012
Aprovado em: 16/03/2012
Notas
* Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Professora dos Cursos de Mestrado e Especialização em Psicanálise da UVA. Coordenadora e Supervisora Clínica do SPA/UVA. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC – Rio. Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Psicanalista membro do colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro.
1 "O discurso modal é um discurso de não asserção. Trata-se de um discurso para pedir alguma coisa. Ele se expressa gramaticalmente por meio do modo subjuntivo, do condicional e do imperativo. O discurso apofântico designa o assertivo, não oscila entre ‘talvez sim, talvez não', que é próprio do discurso do analisante, tipicamente modal. Há no discurso apofântico um sentido de revelação. O verbo apofaino, em grego, significa fazer conhecer, fazer ver, mostrar; e apofansis é uma declaração que revela categoricamente, assertivamente" (SOLER, 1995, p. 28).